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CONSTRUÇÃO DA INTERDISCIPLINARIDADE NO TERRITÓRIO DA PNAS: EXERCÍCIOS PARA UMA PSICOLOGIA DA CIDADANIA Fabiana Meijon FADUL 1 Maria Lúcia Miranda AFONSO 2 Introdução Neste artigo, fazemos uma reflexão sobre as possibilidades e tensões da aplicação de saberes e práticas da psicologia no campo da assistência social, considerando a interdisciplinaridade do trabalho social no Sistema Único da Assistência Social (SUAS) e indagamos sobre a constituição de uma psicologia da cidadania. Procuramos dar continuidade a argumentos que foram abordados em Afonso et al (2012), onde discutimos como a incorporação da psicologia no SUAS reacendia o receio da psicologização da questão social e como seria importante, para superar este receio, trabalhar na associação entre cidadania e subjetividade, tanto no plano individual quanto no coletivo. Naquele momento, apontamos algumas contribuições da psicologia e da psicologia social para o SUAS, enfatizando que “a sustentabilidade dos saberes e práticas do campo psi no SUAS passa necessariamente pela interdisciplinaridade e pela intersetorialidade, que juntas compõem um setting para a ação dos psicólogos no SUAS” (AFONSO et al, 2012). No presente artigo, buscamos avançar na questão da interdisciplinaridade e da intersetorialidade como condições básicas para a incorporação de saberes e práticas da Psicologia no SUAS. O texto é dividido em duas partes. Na primeira, fazemos uma breve contextualização das concepções de territorialidade, intersetorialidade e interdisciplinaridade na Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Na segunda 1 Psicóloga, Especialista em Violência Doméstica, Mestranda em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local, Centro Universitário UNA. Analista de políticas públicas e Coordenadora de CRAS, Prefeitura de Belo Horizonte. Professora da Especialização em Intervenção Psicossocial nas Políticas Públicas, Centro Universitário UNA, Belo Horizonte, Minas Gerais. 2 Psicóloga social e clínica, Mestre e Doutora em Educação, Pós-Doutorado em Psicologia Social. Professora aposentada da UFMG. Pesquisadora e docente no Programa de Pós-Graduação em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local, Centro Universitário UNA, Belo Horizonte, MG. parte, buscamos articular algumas ideias sobre as tensões e o diálogo entre o campo discursivo da PNAS e os saberes e práticas das diferentes disciplinas que se reúnem no campo psi 3 , isto é, no campo discursivo das psicologias, aqui consideradas em sua pluralidade. Trabalhamos com a definição de discurso da Análise de Critica Discurso, desenvolvida por Norman Fairclough (2001), que considera que o discurso é uma prática de significação social associada às lutas pela hegemonia social. Nesse sentido, procuramos formular questões que contribuam para a articulação do campo psi com os objetivos de uma política baseada em direitos. A PNAS propõe o enfrentamento de vulnerabilidades, o acesso aos direitos socioassistenciais e a promoção da cidadania. Acreditamos que, no campo psi , isto exigiria tanto invenção de novos saberes e práticas quanto reinvenção, adequação/transformação de saberes e práticas existentes. Nessa direção, colocamos a ideia de pontes que poderiam ser construídas ligando saberes e práticas das psicologias com os objetivos da política pública. Nesse exercício, sugerimos pensar na criação de uma psicologia da cidadania – saber transversal e operativo, que pode ser constituído em disciplinas, estágios, conteúdos transdisciplinares, ou outras modalidades de formação – que poderia servir como referência para a ação de profissionais que usam as psicologias no SUAS e, talvez, em outras políticas públicas de promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos. 1. A PNAS no Sistema Brasileiro de Proteção Social A Política Nacional de Assistência Social (PNAS), promulgada em 2004, com base na Constituição Federal de 1988 e na Lei Orgânica da Assistência Social de 1993, foi proposta como política respaldada no direito à proteção social, na universalização dos direitos de cidadania e no princípio da responsabilidade do Estado (BRASIL, 2004). Busca-se romper, pelo menos no texto legal, com o paradigma da tutela e da caridade associado à área de assistência social. 3 Designamos por campo psi , um campo de conhecimentos que inclui a psicologia e outras áreas (que assumimos não serem derivadas da psicologia) como a psicologia social, a psicologia comunitária e a psicanálise. A formação na graduação em Psicologia, no Brasil, hoje, autoriza o profissional a atuar em todas estas áreas. A PNAS integra, junto com outras políticas públicas, o Sistema de Proteção Social Brasileiro que, a partir da Constituição Federal de 1988, pode ser compreendido como: o conjunto de políticas e programas governamentais destinados à prestação de bens e serviços e à transferência de renda, com o objetivo de cobertura dos riscos sociais, garantia dos direitos sociais, equalização de oportunidades e enfrentamento das condições de destituição e pobreza (CARDOSO JUNIOR; JACCOUD, 2005, p. 194 in ANDRADE, 2011, p. 20). Nesse sentido, a PNAS visa garantir seguranças básicas , ligadas aos direitos socioassistenciais 4 , e definidas como: (1) Acesso à renda; (2) Acolhida (inserção na rede de serviços e provisão das necessidades humanas); (3) convívio familiar e comunitário; (4) desenvolvimento da autonomia individual e familiar; e (5) sobrevivência a riscos circunstanciais (BRASIL, 2004). Em 2005, começa a implantação do SUAS, que se divide em Proteção Social Especial (PSE) e Proteção Social Básica (PSB). A PSE é dirigida a indivíduos, famílias ou grupos em situação de violação de direitos e com vínculos familiares ameaçados ou rompidos. A PSB atende indivíduos, famílias e grupos em situação de vulnerabilidade decorrente de pobreza, exclusão e/ou violência, mas que mantêm os seus vínculos de pertencimento social. Visa prevenir e enfrentar situações de vulnerabilidades e riscos sociais por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, e da ampliação do acesso aos direitos de cidadania (BRASIL, 2009). O equipamento onde se desenvolve a PSB é o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), localizado em territórios de alta vulnerabilidade social, onde se busca trabalhar com as vulnerabilidades e potencialidades das famílias, dos indivíduos e das redes sociais, fortalecendo as seguranças básicas e os direitos de cidadania, especialmente aqueles designados como direitos socioassistenciais (BRASIL, 2004; BRASIL, 2009). 4 Os direitos socioassistenciais são: 1) Todos os direitos de proteção social de assistência social consagrados em Lei para todos 2) Direito de equidade rural-urbana na proteção social não contributiva 3) Direito de equidade social e de manifestação pública 4) Direito à igualdade do cidadão e cidadã de acesso à rede socioassistencial 5) Direito do usuário à acessibilidade, qualidade e continuidade 6) Direito em ter garantida a convivência familiar, comunitária e social 7) Direito à Proteção Social por meio da intersetorialidade das políticas públicas 8) Direito à renda 9) Direito ao co-financiamento da proteção social não contributiva 10) Direito ao controle social e à defesa dos direitos socioassistenciais. Dentre as diretrizes fundamentais da PNAS encontramos a territorialização, a intersetorialidade e a interdisciplinaridade (BRASIL, 2004). Neste artigo, enfocamos estas diretrizes com o intuito de discutir a interdisciplinaridade e os desafios colocados para a utilização das psicologias no SUAS. 1.1. O território como base para a ação intersetorial e interdisciplinar Na PNAS, a territorialização refere-se à centralidade do território como fator determinante para a compreensão das situações de vulnerabilidade e de risco social, bem como para seu enfrentamento, ofertando os serviços socioassistenciais nos locais em que se organiza a vida dos usuários: O princípio da territorialização significa o reconhecimento da presença de múltiplos fatores sociais e econômicos, que levam o indivíduo e a família a uma situação de vulnerabilidade, risco pessoal e social (BRASIL, 2005, p.90). O território é constituído, ao mesmo tempo, por suas dimensões espaciais e psicossociais. Não é um simples espaço geográfico. É um espaço habitado, usado e vivido, onde os sujeitos sociais exercem o seu modo de existir, sua linguagem, representações, relações e práticas sociais. O território tem vida interna e também existe na relação com outros espaços sociais, culturais e políticos, dentro de contextos e processos históricos, estando sujeito a transformações (ROLNIK, 1989 in JOVCHELOVICHT; PRIEGO-HERNÁNDEZ, 2013, p. 32). Entretanto, as proposições teóricas sobre território e territorialização não são suficientes para delas se deduzir, automaticamente, procedimentos para o trabalho social. Como argumenta Pereira (2010), a dimensão espacial sempre fez parte da história da assistência social no Brasil. A partir dos anos 1970, com a crise dos Estados-nação e a universalização do capital financeiro, confrontam-se dois projetos societários: o primeiro, pautado na perspectiva de universalização de direitos, de constituição de esferas públicas fortalecidas por participação societária para controle social sobre as ações estatais e, o segundo, precursor do Estado mínimo, da participação consultiva e adesista, das políticas públicas focalizadas sobre os mais pobres, da cidadania de resultados (PEREIRA, 2010, p. 195). O trabalho com a territorialização pode servir como estratégia de amenização dos conflitos sociais em nível local ou, diferentemente, ser consonante com um projeto de universalização dos direitos. Assim, o princípio de territorialização na PNAS