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Batista, Nilo. Novas Tendências Do Direito Penal.

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Novas tendências do direito penal Nilo Batista( ) ∗ Para desincumbir-me da honrosa tarefa, a mim cometida pelo Ministro César Asfor Rocha, de proferir a palestra inau inaugu gura rall dest deste e semi seminá nári rio, o, disp dispun unha ha eu de duas duas alte altern rnat ativ ivas as conf confort ortáv ávei eis. s. A prim primei eira ra cons consis istitiri ria a em simp simple lesm smen ente te visi visita tarr os temas das mesas redondas e conferências dele integrantes: estaria coincidindo com a organização do seminário quanto ao conteúdo das novas tendências. Para a segunda alternativa bastaria aceitar o tema delicadamente sugerido no esboço preliminar do programa a mim remeti remetido do (pós-f (pós-fina inalis lismo) mo):: estaria estaria restri restringi ngindo ndo ao campo campo da teoria do delito o objeto de nossa neste caso sonífera reflexão. Ao optar por um terceiro terceiro caminho, rendido rendido pela forte convicção convicção de que as maiores transformações que o direito penal experimenta e virá a experimentar provêm de uma ruptura metodológica que poderíamos perceber como uma sorte de reconstrução do discurso dogmático, não deixarei contudo de roçagar os assuntos de nossa pauta, nem de espiar a vitrine de novidades nov idades teóricas – algumas já em liquidação de verão – que podem ser rotuladas como pós-finalismos.   ∗ ( ) Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Cândido Mendes. Presidente do Instituto Carioca de Criminologia. Palestra proferida em 8 de maio de 2003, no Centro de Estudos Judiciários. Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes Na virada do século XIX, o positivismo crim crimin inol ológ ógic ico o havi havia a triu triunf nfad ado o em noss nosso o país país.. Em 1894 1894,, Nina Nina Rodrigues publicava seu  As Raças Humanas, e Viveiros Viveiros de Castro, Castro, num livro intitulado  A Nova Escola Penal , afirmava ser o crime “o efeito do contágio, (que se) transmite como um micróbio”. Dois anos depois, o futuro chefe de polícia, Aurelino Leal, dava a lume seu Os Germens do Crime. O saber médico tinha um encontro marcado com a política criminal e, portanto, reivindicava – e teve muito – poder. A medicina social havia conseguido, em 1893, na pele da poderosa Inspetoria Geral de Higiene, a um só tempo demolir o Cabeça de Porco e semear, com os destroços humanos e materiais do cortiço, a primeira favela carioca, no vizinho morro de Santo  Antônio. Mas em 1904 conseguiria muito mais, nos complexos acontecimentos que ficaram conhecidos como Revolta da Vacina. O positivismo criminológico, tanto quanto a política criminal acoplada a suas suas prem premis issa sas, s, prod produz uzia ia um disc discurs urso o estr estrat atég égic ico o para para aquel aquela a conj conjun untu tura, ra, no qual qual a perdi perdida da infe inferi riori orida dade de jurí jurídi dica ca iner inerent ente e às domi domina naçõe çõess escra escravi vist stas as era era subs substititu tuíd ída a por por uma uma infe inferio riori rida dade de biol biológ ógiica, ca, de base ase raci racial al – que que dever everiia ser ser cien cienttific ificam amen ente te demonstrada –, e no qual se buscava a patologização da infração e dos infrat ratores (aque quelas metá etáforas do crim rime como doença tran transm smis issí síve vel,l, vali valida dada dass agor agora a por por uma uma inci incipi pien ente te esta estatí tíst stic ica a crimi criminal nal). ). Portan Portanto, to, a última última engenh engenhoca oca instit instituci uciona onall da políti política ca criminal norte rte-ame americana de droga ogas, a chamada “justiça terapêutica”, não passa de uma falsa novidade, que tem a idade do positivis vismo crim riminológi ógico. Quero ero 2 destacar dois aspectos Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes Na virada do século XIX, o positivismo crim crimin inol ológ ógic ico o havi havia a triu triunf nfad ado o em noss nosso o país país.. Em 1894 1894,, Nina Nina Rodrigues publicava seu  As Raças Humanas, e Viveiros Viveiros de Castro, Castro, num livro intitulado  A Nova Escola Penal , afirmava ser o crime “o efeito do contágio, (que se) transmite como um micróbio”. Dois anos depois, o futuro chefe de polícia, Aurelino Leal, dava a lume seu Os Germens do Crime. O saber médico tinha um encontro marcado com a política criminal e, portanto, reivindicava – e teve muito – poder. A medicina social havia conseguido, em 1893, na pele da poderosa Inspetoria Geral de Higiene, a um só tempo demolir o Cabeça de Porco e semear, com os destroços humanos e materiais do cortiço, a primeira favela carioca, no vizinho morro de Santo  Antônio. Mas em 1904 conseguiria muito mais, nos complexos acontecimentos que ficaram conhecidos como Revolta da Vacina. O positivismo criminológico, tanto quanto a política criminal acoplada a suas suas prem premis issa sas, s, prod produz uzia ia um disc discurs urso o estr estrat atég égic ico o para para aquel aquela a conj conjun untu tura, ra, no qual qual a perdi perdida da infe inferi riori orida dade de jurí jurídi dica ca iner inerent ente e às domi domina naçõe çõess escra escravi vist stas as era era subs substititu tuíd ída a por por uma uma infe inferio riori rida dade de biol biológ ógiica, ca, de base ase raci racial al – que que dever everiia ser ser cien cienttific ificam amen ente te demonstrada –, e no qual se buscava a patologização da infração e dos infrat ratores (aque quelas metá etáforas do crim rime como doença tran transm smis issí síve vel,l, vali valida dada dass agor agora a por por uma uma inci incipi pien ente te esta estatí tíst stic ica a crimi criminal nal). ). Portan Portanto, to, a última última engenh engenhoca oca instit instituci uciona onall da políti política ca criminal norte rte-ame americana de droga ogas, a chamada “justiça terapêutica”, não passa de uma falsa novidade, que tem a idade do positivis vismo crim riminológi ógico. Quero ero 2 destacar dois aspectos Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes metodológicos daquela ocasião, aparentemente secundários: 1º) o saber médico e o saber jurídico (mesmo sob a forma mais tosca da gestão gestão polici policial al urbana urbana)) vivem vivem intensa intensass trocas trocas;; 2º) o para paradi digm gma a etiológico está em seu inquestionável apogeu. Afinal, em 1895, uma das das reg regras ras do métod étodo o soci sociol ológ ógiico de Durkh urkhei eim m, rela relatitiva va à explicação dos fatos sociais, recomendava precisamente “buscar  separadamente a causa eficiente que os produz”. Desta Desta breve breve fotogr fotografi afia a do alvoroç alvoroço o positi positivis vista, ta, que na jovem república se exprimia também como ciência política, passemos ao direito penal. Em 1899, um prestigiado José Hygino publicava, em dois volumes, sua tradução do Tratado de von Liszt, precedido de um prefácio que foi – e provavelmente ainda o é hoje – a página de um penalista brasileiro mais elogiada por seus colegas. Vários dos presentes sabem a raridade que é isso. Entre os inúmeros elementos que a tradução de von Liszt introduziu entre nós, quero destacar dois. Em primeiro lugar, estávamos tomando contacto com um conceito natural de ação, próprio de uma empostação causal do del delito. ito. Em segu segund ndo o lugar, gar, está estáva vam mos rece recebe bend ndo o a grand rande e concepção lisztiana da ciência criminal “total”, que ao lado do direito situa a como como suas suas “ciê “ciênc ncia iass irmã irmãs” s” (são (são pala palavr vras as de José José  penal  situ Hygino) a  política criminal  e a criminologia. Olhemos mais de perto estes dois problemas. 3 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes O código imperial não dispunha de uma regra básica sobre causalidade; a palavra resultado não aparecia uma só vez em sua parte geral. Para os problemas práticos colocados pelo homicídio, recorria-se ao histórico critério da letalidade das lesões, a ser afirmado pelos facultativos mencionados no artigo 195 CCr  1830. A imputação objetiva da morte demorada, que tradicionalmente se resolvia numa presunção temporal – o conselheiro Paula Passos lembrava que Farinácio excluía a imputação após 40 dias da ferida, e uma lei inglesa, ainda vigorante no início do século XIX, valia-se do prazo mais prudente, e curiosamente possessório, de 1 ano e 1 dia – a imputação objetiva da morte demorada era assim também entregue ao saber médico, ao qual um aviso ministerial de 1854 autorizava recorressem os  juízes mesmo sem “pedido das partes”. Um excelente artigo de Eduardo Durão sobre o tema se intitulava, significativamente, “A concausa no homicídio”. Convém acrescentar, já que estamos provocadoramente falando de imputação objetiva na primeira metade do século XIX, no Brasil, que o código imperial contemplava um homicídio privilegiado quando a morte se verificasse “não porque o mal causado fosse mortal, mas porque o ofendido não aplicasse toda a necessária diligência para removê-lo” (art. 194): estes eram o lugar e os efeitos, naquele momento, da autoexposição perigosa da vítima. Mas o código penal de 1890, por direta influência do artigo 38 do código bávaro de 1813 (que, a partir da tradução de 4 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes Vatel, de 1852, circulava intensamente entre os penalistas do império), trazia em seu artigo 11 uma regra segundo a qual “quando a consumação do crime depender da realização de determinado resultado, considerado pela lei elemento constitutivo do crime, este não será consumado sem a verificação daquele resultado”. Topologicamente inserido entre a impunibilidade dos atos preparatórios (art. 10) e as regras da tentativa (arts. 12 e 13), tal dispositivo foi interpretado pela doutrina como simples distinção legal entre crimes formais e crimes materiais. Assim fariam, por  exemplo, Galdino Siqueira e Costa e Silva. A questão do resultado desorientava um pouco nossos colegas de antanho. Em primeiro lugar, por seu ineditismo: só isto explica que Oscar de Macedo Soares tenha cedido ao truísmo de que “ao vocábulo resultado damos a significação criminológica que deve ter, isto é, o que resulta de um ato ou fato criminoso, conforme a intenção do agente”. Mas a principal dificuldade era que, perante um conceito de ação como o de von Liszt, centrado na “causação do resultado” através de um “movimento corpóreo voluntário”, que implica “contração dos músculos”, e no qual “o resultado deve ser  produzido pelo movimento corpóreo”, e entre ambos deve ainda mediar uma “conexão causal”, perante tal conceito de ação é impossível reconhecer crimes sem resultado.  Apesar do artigo 11, o primeiro código penal republicano, cujo parto induzido se iniciara ainda no Império como revisão e aprimoramento do diploma anterior, mantivera-se fiel ao 5 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes critério da letalidade das lesões: “para que se repute mortal, no sentido legal, uma lesão corporal – rezava seu artigo 295 – é indispensável que seja causa eficiente da morte por sua natureza e sede”. Também aqui, ao contrário de que se passava no correspondente artigo 195 do código de 1830, aparecia a expressão causa eficiente, que remontava a Aristóteles e, a partir de Tomás de  Aquino, dentro da conhecida concepção das quattuor causae, chegara ao direito comum pela via canônica. Na prática judiciária, esta receita – uma causa eficiente no artigo 295 (referindo um critério restritivo da imputação objetiva da morte demorada) mais um resultado no artigo 11 (que, em minha opinião, integrava o princípio da legalidade, complementando os artigos 1º e 7º, muito antes de postular uma classificação legal de crimes formais e materiais, em todo caso implícita) – esta receita gerava perplexidades e soluções contraditórias. Há uma sentença muito interessante, de 6 de março de 1891, da lavra do juiz municipal Zacharias Horácio dos Reis, prolatada em Simão Dias, Sergipe; podemos conhecê-la porque João José do Monte fê-la publicar no 56º volume de sua revista Direito. Em 19 de janeiro daquele ano, Manuel Pedro das Dores Bombinho, do lado de fora da Intendência Municipal, onde se realizava uma audiência, chamou por José Leopoldino da Silveira Collete, e pediu-lhe que em seu favor elaborasse uma petição. Não 6 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes sendo atendido, seguiu-se um entrevero no qual Bombinho deu “uma bofetada” em Collete, quem, ao retornar à Intendência, “caiu fulminado por uma asfixia produzida pela supressão brusca da circulação pulmonar, como verificou-se da autópsia”. Deixo de lado outros aspectos sedutores do caso, como ter ocorrido durante a vacatio do novo código, que foi aplicado por retroatividade benigna, e convido meus colegas a imaginar as dificuldades de fundamentação de nosso juiz Zacharias, sem uma orientação legal  – só disponível a partir do código de 1940 – acerca da irrelevância de concausas antecedentes em hipóteses de interrupção de nexo causal. Em seu formoso Tratado, publicado exatamente um século após a sentença que ora examinamos, Roxin recorda que o emprego judicial explicito da fórmula “suprimir mentalmente” deu-se pela primeira vez em 1910, num aresto do Tribunal do Reich. Nosso  juiz não empregou explicitamente a fórmula, talvez porque já lhe bastasse, evitando redundâncias, a supressão da circulação pulmonar que os facultativos lhe haviam asseverado; porém o critério foi substancialmente utilizado: “todas as testemunhas – escreveu ele – dão a luta e a bofetada como causa da apoplexia, e portanto como causa eficiente da morte, porquanto sem aquela causa não haveria este efeito; sem a luta não haveria supressão da circulação pulmonar, e sem esta não se daria a morte”. Nada mal para um contemporâneo periférico de Thyren. Seria contudo ingenuidade concluir que a causalidade, como critério central daquilo que os velhos 7 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes criminalistas chamavam imputatio facti , estava ingressando na doutrina penal brasileira tangida apenas pelo emprego,em dois dispositivos desconectados do código de 1890, das expressões resultado e causa eficiente, ou ainda pela edição e circulação do livro de von Liszt, ou finalmente pelos casos concretos sobre os quais tinham os juízes que decidir. A coisa era muito mais profunda. Do chamado renascimento científico brotara a concepção de um mundo físico causal, onde fenômenos guardam entre si aquela “ferma e costante conessione” à qual se referia Galileu, onde o determinismo de Newton concebe a força como uma causa. A teoria  jurídico-penal das forças – física e moral – do delito, formulada por  Camignani e desenvolvida por Carrara, que as decompunha em graus, exprime uma recepção clara e direta daquela concepção. Não nos esqueçamos de que Carrara fazia derivar  vita de vis, ou seja, a vida proviria – numa metáfora etimológica – da força, e o exemplo que fornecia era astronômico: “o que dá ao planeta sua existência e sua vida é a força de translação e rotação”. Para Feuerbach, autor era “a pessoa em cuja vontade e ação está a causa eficiente que produziu o crime como efeito”, e o fundamento da menor punibilidade da tentativa residia numa “menos íntima conexão causal entre ação e resultado”. Essas trocas não eram absolutamente inéditas: Galileu não sugerira a Hobbes que a ética poderia ser tratada com o método da geometria? Mas no mundo da revolução industrial, da máquina a vapor aos crimes culposos, tudo parecia cantar a glória do princípio causal. 8 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes Também na filosofia o princípio causal parecia reinar soberanamente. Kant não se contentara em afirmar, na Metafísica dos Costumes, que a lei penal constituía um imperativo categórico; na Crítica da Razão Pura, a causa é concebida como categoria a priori , portanto perfeitamente conforme às funções lógicas gerais do pensamento, e apta a prescrever leis à natureza, entendida como a totalidade dos fenômenos. Como poderiam as futuras ciências sociais abrir mão deste instrumento, com aval kantiano, que facultava a inteligibilidade das relações e dos conflitos a partir do princípio causal? Como poderia a teoria jurídica do delito deixar de formular, como seu mais inquestionável e basilar  construto, um conceito naturalístico-causal da conduta humana punível? Em suma, a tradução que José Hygino publica, no último ano dos oitocentos, divulga entre nós a formulação lisztiana da ação causal. O tema que dominaria absolutamente – perdoe-nos a culpabilidade e sua eterna crise – a teoria do delito no século XX estava servido à mesa doutrinária brasileira, mesa esta que naquele momento, à exceção luminosa de alguém que polemizara muito com o próprio José Hygino, mas já estava morto havia uma década, o grande Tobias Barreto, fartava-se mais nas enxúndias dos comentários do que nas ervas finas da sistematização dogmática. 9 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes Porém, mais importante do que isto, estávamos paralelamente, como já frisado, recebendo a grande concepção da ciência criminal “total”, e ao lado da organização propedêutica que articulava o direito penal à política criminal e à criminologia, chegava também a racionalidade final, cujo manifesto fora a aula magna de 1882, quando von Liszt assumia a cátedra em Marburgo.  Ao romper com as fundações metafísicas da pena, decretando o “naufrágio” do empreendimento kantiano a respeito; ao derivar a pena, quanto a conteúdo, extensão, espécie e quantidade, diretamente da idéia de fim, von Liszt construia a mais consistente versão de combate do relativismo penal. Sua frase lapidar – “só a pena necessária é justa” – orientaria inúmeras formulações preventivistas, e constitui o antecedente doutrinário da polêmica quarta categoria do delito: a necessidade preventiva, que poderia excluir a pena ainda que afirmada a culpabilidade. Não cabe, aqui, expor longamente o que era para von Liszt a política criminal e a criminologia. De forma sucinta, observaremos que, ancorado em Hobbes (o direito evita que prorrompa a guerra de todos contra todos) e em Rousseau (o prudente José Hygino colocou uma nota de rodapé na expressão “vontade geral”, negando tal filiação), e discutindo com Binding, von Liszt fez dos bens jurídicos, da coerção pública e especialmente da pena objetos privilegiados da política criminal. Quanto à criminologia, não tinha ele como escapar ao conceito de uma ciência causal naturalística, dividida entre uma biologia e uma 10 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes sociologia criminal, então dominante – e que dominante se manteria por muito tempo. Podemos agora olhar para o direito penal de nossa família jurídica, e particularmente o brasileiro, ao longo do século XX, e constatar que, neste amplo mosaico de tendências e movimentos, compatíveis ou antagônicos, houve um fenômeno só explicável por uma interdição metodológica: nenhum diálogo entre política criminal, criminologia e nossa disciplina. Conhecemos de perto dois fundamentos para essa interdição: o do tecnicismo  jurídico e o do neokantismo. Em 1942, na famosa conferência paulistana, Hungria dizia que o método do direito penal, “seu único método possível, é o técnico-jurídico ou lógico abstrato”; nada de dialogar com o produto “infecundo” da criminologia, ou menos ainda com “devaneios filosóficos”. Ecoam aí as palavras de Rocco em Sassari: “a elaboração técnico-jurídico do direito penal positivo e vigente é a tarefa e a função do direito penal”; ressoa aí o memorável ornejo de Manzini, considerando a filosofia “de todo supérflua”. Aníbal Bruno afirmava, em 1956, que “todos estão acordes em que o método no direito penal deve ser o técnico jurídico”. Mas foi o neokantismo de Baden, com a divisão irremissível entre o mundo – e as ciências – do ser e do dever-ser, que consumaria a edificação de uma muralha entre os saberes  jurídicos e criminológico ou político-criminal. O penalismo neokantiano chegaria à América Latina não pelos trabalhos de Max Ernst Mayer ou de Gustavo Radbruch, e sim pela tradução do 11 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes Tratado de Mezger, por Rodriguez Muñoz, em 1935. O primeiro Heleno Fragoso afirmava que o direito penal se incluía “entre as ciências culturais, conforme a classificação que provém da filosofia dos valores”, e frisava que “não é missão do jurista estudar a realidade social para estabelecimento de conceitos”. O penalista seria, assim, meio parecido com o personagem da anedota, aquele paciente que, após três lustros de psicanálise, recebe alta e, encontrando na rua um amigo que lhe pergunta como vai, responde com um esgar: eu vou muito bem, a realidade é que é insuportável. Que o assunto mais emocionante para penalistas, lecionando entre os escombros fumacentos do pósguerra, fosse a polêmica causalismo–finalismo, é verdadeiramente de estarrecer. Tantas violações de velhos e bons princípios liberais; tantos oportunismos teóricos, com tantas adesões; tantas criminalizações do ser e do pensar; tantas sentenças e tantos assassinatos sem elas; tanta privação de liberdade, tanta vigilância; tantos campos, tantas mortes, tanta violência; quando, anteriormente, houve tanta pena, tanta pena, com todos os seus adereços institucionais e teóricos, intervindo num projeto político imperialista? E, não obstante, o melhor a fazer era discutir  causalismo e finalismo?! Esta foi talvez a maior demonstração de força que o neokantismo deu. Muñoz Conde apresentou, em seu estudo sobre Mezger, bons indícios de que o grande sucesso da polêmica 12 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes causalismo-finalismo ajudou a manter a reflexão penalística longe do debate sobre a trágica experiência penal nazista, retirado para o ambiente mais rarefeito da filosofia do direito. O certo é que a polêmica entre uma teoria do delito – sucessora daquela de von Liszt, e ainda causal-naturalista, mas que buscara na filosofia dos valores o expediente metodológico da normativização – e outra, nova, que se chamou “da ação final” ou “finalista”, dominaria o interesse dos penalistas na América Latina, até a década de oitenta. Olhando-se de certo ângulo, nem polêmica havia, verdadeiramente. Quando Welzel elabora o primeiro finalismo, aquele da finalidade potencial, nos meados dos trinta, o princípio causal estava já completamente desacreditado no âmbito das ciências físicas. Como diz Prigogine, a física do não-equilíbrio e os sistemas dinâmicos instáveis significaram um abandono da visão científica clássica, que “privilegiava a ordem e a estabilidade”, questionada pelo reconhecimento, “em todos os níveis de observação”, do “papel primordial das flutuações e da instabilidade”. Na década anterior, Wittgenstein escrevera em seu Tractatus Logico-philosophicus essas palavras incisivas: “Da existência de uma situação qualquer não se pode, de maneira nenhuma, inferir a existência de uma situação completamente diferente dela. Um nexo causal que justificasse uma tal inferência não existe. Os eventos do futuro, não podemos derivá-los dos presentes. A crença no nexo causal é a superstição” (5.135 ss). 13 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes Mas Welzel se fundamentou precisamente na filosofia causalista de Nicolai Hartmann. Embora ele tenha tentado negar isso, no prólogo à 4ª edição do Das neue Bild , as provas em sentido contrário são muito convincentes: todos os elementos integrantes daquela frase que correu os cinco continentes, sobre a cegueira da causalidade e a vidência da finalidade, estão em Hartmann. E, efetivamente, o finalismo não descartou o princípio causal: apenas isentou de tal modelo de determinação a conduta humana, cujos fins são previamente representados pelo sujeito. Marx já houvera formulado isso naquela comparação entre a mais laboriosa das abelhas e o mais desastrado dos arquitetos – que, no entanto, à diferença do inseto, constrói a casa na cabeça antes de plantá-la no espaço. Porém, se excetuarmos a conduta humana, orientada a fins, todo o resto do mundo seria resultante de processos causais – que o homem conhece mais ou menos, e por  isso Welzel falava de um “saber causal”, com conseqüências dogmáticas que aqui não nos interessam. Em seu Tratado, no primeiro exemplo com o qual queria caracterizar a “causalidade cega”, para distingui-la da “finalidade vidente”, Welzel afirma que ser o homem atingido pelo raio era algo que “estava por certo condicionado causalmente na cadeia infinita do devir”. Que dúvida poderemos ter de que o finalismo era... causalista?! Uma teoria jurídico-penal que, tal como ocorreria nas ciências sociais, negasse frontalmente o paradigma causal, investindo antes na indeterminação, na possibilidade sobre a 14 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes certeza, e rompendo os preconceitos que nos fariam ver na locução “sistemas caóticos” uma contraditio in adjecto, era totalmente impensável em meados do século XX. O sucesso da teoria finalista  – além da utilidade entrevista por Muñoz Conde na polêmica que a divulgou, de evitar assuntos desagradáveis, e além do inquestionável aprimoramento e coerência que trouxe para diversos núcleos problemáticos da teoria do delito – este sucesso foi alavancado, em minha opinião, por duas circunstâncias. Por um lado, subtrair o sujeito do mundo causal determinado era algo em consonância com o princípio da autonomia moral da pessoa humana, pedra angular do então nascente direito internacional dos direitos humanos; de outro lado, no quadro da guerra fria, no qual uma das oposições propagandísticas situava no ocidente cristão a liberdade e na União Soviética materialista o determinismo histórico, este sujeito que pode atuar finalisticamente, fora dos condicionamentos de classe social, era um personagem benvindo. Não me deterei sobre o subjetivismo monista, este pós-finalismo que, negando a pretensão de validade ontológica da teoria finalista com base numa crítica gnoseológica neokantista, quis conformar toda a teoria do delito ao modelo da tentativa, no que Zaffaroni viu, com razão, uma exasperação da eticização welzeliana do direito penal. Ouçamos um de seus corifeus, Zielinski: “o ilícito jurídico-penal é constituído pelo desvalor da ação, e neste desvalor se esgota; o resultado de uma ação é sempre casual”. Ouçamo-lo para entender porque, contrariando a ansiedade 15 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes colonizada de, como dizia Hungria, emitir fumaça sempre que a Europa acende um fogo, o subjetivismo monista não influenciou o direito penal brasileiro, cujo código explicitamente atribui relevância e efeitos, em diversos níveis, ao resultado.  Antes de chegar aos funcionalismos sistêmicos, quero recordar aquelas interdições metodológicas que concederam um certo autismo discursivo ao direito penal. Com efeito, não há exagero no apodo de autista atribuído a uma disciplina que, sem embargo de esforços individuais e isolados, jamais incorporados, recusou-se a dialogar por exemplo com o marxismo, ou com a psicanálise, ou ainda com certas frutuosas vertentes da filosofia da linguagem. Em nosso esplêndido isolamento técnico-jurídico, alapados entre as ameias da alta muralha que impedia a realidade de penetrar na cidadela do dever-ser, só lográvamos nos ouvir  mutuamente, uns fundamentando-se nos outros, repetindo aqui, ultrapassando acolá, numa enfadonha mesmice. Parecíamos concordar com Mefistófeles quando, ao atender, travestido com a toga e o gorro de Fausto, um estudante que lhe disse não querer  ingressar na faculdade de direito, acrescentou que “as leis e o direito se transmitem, de uma a outra geração, como doença perpétua sem descanso”. É forte, mas trata-se do diabo. O movimento de retorno a von Liszt, nos anos setenta, se de um lado implicava o resgate do preventivismo, por  outro também significava a implantação da racionalidade de fins – 16 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes para que serve tudo isto? –, que abria caminho para a inserção do discurso jurídico-penal na experiência histórica concreta do sistema penal institucionalizado, e principalmente representava a recuperação metodológica do intercâmbio direito penal – política criminal – criminologia, vedado por aquelas interdições. Em seu artigo sobre as fundações políticocriminais do sistema de direito penal, Roxin aspira a “tornar  frutíferos para a dogmática postulados sócio-políticos, bem como descobertas empíricas e dados criminológicos especiais”, ampliando para o âmbito criminológico a interação que sua famosa monografia dos anos setenta prescrevera apenas do ângulo da política criminal. Ou seja: o que Roxin propôs, com sua sistematização teleológico-funcional, foi a destruição daquela muralha. A política criminal ganhou legitimidade para intervir na solução de problemas dentro da teoria do delito, e os dados da criminologia também podem ingressar na cidadela dogmática. Esta é a grande novidade metodológica do último quarto de século em direito penal, e dos horizontes abertos por esta interdisciplinaridade é que brotam as novas tendências do direito penal. A política criminal, a qual, na introdução de suas Moderne Wege, referia-se pejorativamente Mezger como “irmã mais moça e mundana” do direito penal, e a criminologia – que na mesma conjuntura dos anos setenta começava a abandonar o paradigma etiológico para finalmente investigar o complexo fenômeno da criminalização e os aparatos de poder que a realizam – a nova criminologia,a 17 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes criminologia da reação social, numa palavra a criminologia crítica, eram ambas – política criminal e criminologia – concitadas a ingressar no templo. Toda simplificação é perigosa, principalmente quando dirigida a uma obra jurídica cujo autor não apenas tem um conhecimento enciclopédico do direito penal, mas também uma probidade e finura intelectual a toda prova. Estou me referindo à construção teórica de Claus Roxin, deste herdeiro direto de von Liszt, para – simplificada e talvez, ai de mim, simplistamente – dizer  de seu sistema teleológico-funcional que, se foi pioneiro e criativo em fazer a política criminal dialogar com a dogmática e ajudá-la a resolver problemas, foi tímido no momento de entreabrir a porta à criminologia. Se a adoção de uma concepção retributivo–absoluta de pena não passa de um ato de fé, adotar uma concepção preventiva – mesmo na sofisticada versão antes dialética e agora unificadora roxiniana – é mais do que isso, é desafiar todo o fracasso das pesquisas que empiricamente tentaram comprovar as funções preventivas, quando tal comprovação era factível. No sistema de Roxin, se as trocas com a política criminal receberam um enorme impulso, a criminologia foi deixada no vestíbulo: era uma convidada algo inconveniente, cujos maus modos poderiam perturbar o encontro, explodindo numa gargalhada quando alguém falasse de ressocialização através da privação de liberdade. 18 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes  A questão é diversa no funcionalismo sistêmico de Jakobs, também uma elaboração teórica de altíssimo nível. Aqui, uma teoria social está no cerne da reconstrução dogmática, influenciando suas soluções de alto a baixo. O problema é de qual teoria social se trata, ou, melhor ainda, de qual versão da teoria social se trata, e como se deu sua incorporação. É naturalmente grande o repúdio a uma proposta que atribui ao poder punitivo a função de reforçamento do sistema através da certeza na interação conforme a papéis sociais, que mediatiza o sofrimento humano penal definindo a pena como demonstração de vigência da norma à custa do responsável. Não cabe aqui aprofundar essa crítica, para a qual, ficando apenas no meu Estado, remeto às palavras definitivas de Juarez Tavares e Heitor Costa Júnior. Era talvez inevitável que a primeira teoria social a acasalar-se sistematicamente com categorias jurídico-penais fosse, paradoxalmente, uma teoria perante a qual o conflito equivale a uma perturbação, e não a uma dinâmica social; um teoria que postula o equilíbrio do sistema a qualquer preço; em suma, com novas e sofisticadas fórmulas, uma teoria da ordem e da estabilidade, cujo espírito pertence, em realidade, ao sempre previsível e perene mundo do princípio causal. Poderá fazer sucesso nos países centrais, ricos, com baixa conflitividade social; mas, aqui?! Faz sentido olhar por exemplo para a criminalização das ilegalidades populares, sacoleiras, camelôs, prostitutas, apontadores do bicho, etc, para essas estratégias de sobrevivência, e pensar em reforçar o sistema (e não mudá-lo) ou 19 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes na satisfação de expectativas da classe média, que não quer ver a miséria por perto? Fujamos à tentação de, mesmo rapidamente, mirarmos as construções que, tendo por cumieira o risco de Roxin ou os papéis de Jakobs, reinventam criativamente o velho problema da imputação objetiva. Passemos por elas com a observação de que tais autores na verdade não descartam a causalidade, que em algumas versões normativizadas era já quase uma metáfora atributiva; o debate causal se refina criticamente, e acopla-se ao requisito causal um conjunto de topoi , de diversa procedência e natureza, com a capacidade de resolver constelações de casos. Confrontar essa tópica com o texto do código penal brasileiro, aplainando desavenças; comparar os impasses da causalidade com aqueles advindos do conceito, bem longe de unívoco ou denotativo, de risco (se reconhecer a causa pelo efeito é impossível, como reconhecer o risco que se realiza no resultado sem grandes dificuldades?); tudo isso nos tomaria o tempo que nos resta deste encontro. E este tempo deve ser dedicado ao esclarecimento de quais orientações político-criminais e criminológicas estão, neste momento histórico, e com atenção especial em nosso país, fermentando novas tendências no direito penal, e quais são elas. O quadro de transição histórica que vivemos – apresentado quase unanimente como inexorável – produz conseqüências sociais gravíssimas. O empreendimento neoliberal 20 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes implica o sucateamento da considerável parcela “não competitiva” do parque industrial nacional, gerando desemprego massivo e obrigando esse proletariado, náufrago do mundo industrial, a se agarrar a subempregos ou buscar estratégias de sobrevivência na economia informal. O corte nos programas assistenciais públicos, gradualmente substituídos por planos de saúde ou previdenciários privados para o que resta da classe média, e, para os pobres, por  essa caridade virtual que passa seu pires nos intervalos comerciais da televisão, quando não é o próprio Estado a conceder a esmola como “bolsa” ou “cidadania”, o corte nos programas assistenciais públicos representa o fechamento de saídas de incêndio. Como lembra Atílio Borón, para essas versões do liberalismo a democracia se reduz a simples método de constituição da autoridade pública. Para favorecer a privatização dos diversos setores sobre os quais o estado de bem-estar intervinha diretamente, era preciso, e foi cabalmente realizada pela mídia, uma campanha de desmerecimento das instituições públicas e da vida política, de cujos efeitos ainda não nos conscientizamos completamente. Para aferir a intensidade e, mais ainda, a intencionalidade desta campanha, basta comparar o espaço concedido a delitos praticados no âmbito empresarial – salvo os casos de perda de invulnerabilidade por disputas de poder – e delitos praticados por ou envolvendo funcionários públicos. A verdade é que a mídia em geral integrou-se aos grandes negócios das comunicações (publicidade, telefonia, etc), como uma espécie de seu braço armado, e é parte importante deste processo, do qual 21 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes tem a pretensão delirante de ser cronista imparcial. O movimento de mutilação institucional que desaguará no estado mínimo dos sonhos neoliberais tem, contudo, uma conseqüência: este estado mínimo precisa de preservar e ampliar o controle social penal sobre os contingentes humanos marginalizados e desassistidos por suas políticas econômicas e pelos cortes que a busca deste paraíso que parece existir no equilíbrio orçamentário lhe impôs. Ou seja: o estado mínimo acaba sendo um estado máximo, apenas do ponto de vista da expansão de seu sistema penal, até quase coincidir com ele. Os índices ascensionais de encarceramento fizeram Loïc Wacquant pensar tal fenômeno como uma espécie de único programa público habitacional do capitalismo tardio. O estado de São Paulo, por ter ostentado o maior parque industrial, tem a ferida quantitativamente mais aberta, e deverá este ano aproximar-se da metade da escandalosa cifra, calculada por 100.000 habitantes, dos Estados Unidos, tendo já ultrapassado de muito todos os países da comunidade européia.  A política criminal hegemônica acaba, como a política econômica, surpreendendo pela generalidade de sua aceitação: partidos e lideranças com programas ou passados antagônicos terminam reunidos no discurso político-criminal. Da mesma forma que o discurso econômico único procura convencernos, o tempo todo, de que o sistema econômico regido pelo capital financeiro transnacional, tendo o FMI por  spalla, constitui uma inevitabilidade histórica sem alternativas, assim também a política 22 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes criminal correlata a tal sistema aparece como necessidade incontornável. Esta política criminal hegemônica bloqueia as trocas possíveis entre a criminologia e o direito penal. Tomemos dois exemplos. Da indemonstrabilidade da concepção retributivoabsoluta da pena, do fracasso que os preventivismos – geral, especial, positivo, negativo, de todos os matizes – experimentaram sempre que levados à proveta da investigação empírica, e da grosseira inaptidão do modelo punitivo para solucionar conflitos (pois se limita a decidir sobre eles, com escassa intervenção da vítima), disso tudo brotou uma teoria negativa ou agnóstica da pena. Em síntese, a pena existe, com sua natureza – como Tobias Barreto nos ensinava há cento e vinte anos – política, e corresponde ao direito penal produzir a teoria que regule e controle seu emprego, a partir do texto legal. Mas não precisamos de uma teoria falsa que a legitime, e, menos ainda, de derivar dessa falsa teoria legitimante soluções dogmáticas. Entretanto, no ambiente político neoliberal, deslegitimar a pena é quase deslegitimar o estado, uma espécie de lesa-majestade penal. Pensemos agora na recente proposta de elevar o patamar máximo da pena privativa de liberdade para quatro anos. Caberiam algumas perguntas: 1ª) (pergunta sobre a viabilidade) considerando-se o número disponível de vagas, o programa de construção de penitenciárias e o fluxo de ingressos, quanto demoraria e custaria implantar essa medida?; 2ª (pergunta sobre a conveniência) a experiência recente das prisões 23 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes brasileiras sugere aumentar ou reduzir o tempo de internação? Ou, dito de outro modo: a política dos crimes hediondos tem dado bons resultados, para pretendermos ampliá-la, ou os presídios sem esperança de progressão estão em chamas? 3ª (pergunta sobre direito comparado) nos países europeus e latino-americanos de nossa família jurídica, os mais recentes códigos penais operam com tal patamar, ou com patamares inferiores aos nossos trinta anos?; 4ª (pergunta sobre constitucionalidade) levando em conta a média da idade de ingresso, e a expectativa de vida média do brasileiro, não estaremos próximos de incidir na vedação constitucional de penas perpétuas? Fiquemos por aqui: a criminologia, recolhendo os dados sociais e checando sua consistência, não só pode interpelar  propostas político-criminais, como pode dialogar com o direito penal acerca de suas categorias mais centrais, como, no primeiro exemplo, a própria pena. Esta política criminal hegemônica tem sua pauta.  A questão das drogas ilícitas, cujas virtualidades no campo das relações internacionais apareceram mais claramente após o fim da guerra fria e reinaram absolutamente até o 11 de setembro, é certamente um dos itens mais complexos dessa pauta, projetandose na geopolítica, que, das versões mais simplórias (países exportadores “agressores” x países consumidores “vítimas”) encontrou na criminalização de guerras civis e estados internos de beligerância o álibi perfeito. A criminalização da imigração ilegal, a lavagem de dinheiro e a responsabilidade fiscal são outros itens 24 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes importantes dessa pauta. A rápida recepção e circulação de um conceito tão polêmico, tão essencialmente problemático quanto o de crime organizado – intensa e alegremente difundido pela mídia – torna-o suspeito de integrar o léxico desta política criminal, que também pretende globalizar o jargão criminológico. É o que se deu com o termo narcotráfico, maciçamente difundido desde o hemisfério norte: aqui ficamos nós a repeti-lo como papagaios, embora nem maconha nem cocaína sejam narcóticos. Crime organizado, conceitualmente e no campo de aplicação pragmática, é algo que, como a bruxaria, pode ser aquilo que o juiz quiser que seja, do comércio local, de rua, de drogas ilícitas, até o que se costuma chamar de crime as business. É uma situação parecida com a do legislador ordinário perante o conceito de crime hediondo, que, ao contrário daquele dos  juros reais, não se considerou devesse ser primeiro explicitamente construido antes de aplicado. Silva Sanchez se detém sobre estes ensaios de compatibilização dos sistemas penais nacionais, para evitar o que ele chama de “paraísos jurídico-penais”; bem, não conheço nada mais parecido com um “paraíso jurídico-penal” do que o campo de concentração de presos de Guatánamo. O sistema penal do empreendimento neoliberal tem características que o distinguem do sistema penal do capitalismo industrial, que no caso brasileiro correspondeu historicamente ao estado de bem estar. Apenas mencionarei algumas dessas diferenças: 1ª) sua dualidade: para consumidores 25 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes ativos, penas alternativas à privação da liberdade, suspensão do processo, sursis, transação penal; para consumidores falhos, encarceramento prolongado neutralizante. O símbolo da primeira face é a legislação dos Juizados Especiais; da segunda face, a legislação dos crimes hediondos. 2ª) O abandono da utopia preventivo-especial, própria do estado de bem-estar, em favor de uma pena privativa de liberdade de segurança; 3ª) o vigilantismo (corta-se na carne da privacidade, altera-se o estatuto ético da delação, espiona-se com câmeras e com prêmios); 4ª) os novos papéis da mídia.  Antes de apreciar, para concluir, estes papéis da mídia, cabe frisar que a esta política criminal correspondem estilos legislativos e doutrinários que têm a mesma dinâmica de expansão  – e não de contenção – do poder punitivo. Isso vai ocorrer  freqüentemente nos tipos de perigo, em especial abstrato (com ofensa ao princípio da lesividade), no abuso freqüente de criar  responsabilidade dilargando arbitrariamente deveres ou círculos dos garantidores na omissão imprópria, na transigência com o emprego de dolo eventual em supostos culposos; na introdução de uma espécie de “responsabilidade penal pela administração” em delitos societários, etc. Nada, contudo, supera esses novos papéis que a mídia passou a desempenhar. O discurso político-criminal e criminológico da mídia se impôs sobre o da universidade. Duas 26 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes caretas desses oráculos pós-modernos que são os âncoras da televisão influenciam mais que a obra completa de nossos melhores penalistas e criminólogos, cujas opiniões, de resto, só serão divulgadas se e enquanto puderem ser adaptadas e apropriadas pelo discurso político-criminal único. O espaço concedido ao “especialista” é apenas para referendar o sentido geral da mensagem; alguém já viu um locutor, anunciando desrespeitosamente a concessão de uma ordem de habeas corpus, invocar a opinião de algum jurista que, contrariamente, achava que naquela situação havia efetivamente ilegalidade ou abuso de poder? Mais grave do que isso é a executivização, ou seja, passarem alguns veículos a operar como agências de criminalização secundária, fazendo do que foi o jornalismo investigativo um jornalismo policialesco, no qual a única informação obtida e divulgada, se jornalisticamente não significa coisa alguma – quem ignora que garotos pobres das favelas cariocas vendem maconha para garotos ricos? – implica pautar e movimentar as agências policiais (eis aqui o rosto de doze garotos que estão vendendo drogas no morro tal). Através desse expediente, aquela seletividade que caracteriza a criminalização secundária, regida por  estereótipos criminais, vai acrescentar-se à nova configuração de poder da mídia. Uma manchete mobiliza muito mais o sistema penal  – particularmente aqueles operadores que sucumbiram às tentações da boa imagem – do que uma portaria de instauração de inquérito policial, uma promoção ou uma sentença. O poder de selecionar quais conflitos criminalizáveis 27 serão tratados Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes procedimentalmente está, hoje em dia, mais do que em quaisquer  outras, nas mãos da mídia. O velho modelo do trial by the media não dá conta destes julgamentos diretos que muitos programas ordinariamente, ou muitas campanhas, sucessivamente, realizam. Com algumas agências policiais já se instalou um contubérnio chocante: o que significa a câmera de uma empresa de comunicações instalada numa viatura policial? Em que inciso da Constituição se autoriza esta prática infamatória de “apresentar” um suspeito, ou mesmo um condenado, a toda a imprensa, forçando-o a exibir-se, às vezes sob um cartaz? Essa dramaturgia policialesca vem sendo observada desde os estudos pioneiros sobre jornalismo radiofônico policial, mas está alcançando um nível que coincide com a ascensão de radialistas e animadores a altos cargos públicos, seja no Legislativo, seja no Executivo. Quando isto ocorre, fica às vezes difícil definir os contornos entre o espetáculo e o exercício de poder público, o primeiro com sua livre inventividade e o segundo  jungido, particularmente no campo penal, a regras e garantias estritas. Quando o show é o governo, ou o governo é o show,as garantias, os prazos, as exigências formais, a defesa plena, em suma, todo o devido processo legal passa a ser visto também como um “excesso” do estado do bem-estar, sujeito a cortes e flexibilizações. É curioso que com esta obsessão pela pena, com este apego a uma interpretação infracional de tudo e de todos, a mídia incorra na evidente contradição de opor-se radicalmente ao tratamento penal de seus próprios delitos. 28 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes O Poder Judiciário brasileiro recebe todos os impactos dessa política criminal e de seus fundamentos econômicos. No processo de minimização do Estado, está o Judiciário, imobilizado na camisa de força orçamentária tão cara ao FMI, sujeito a perdas e reduções, seja para soluções arbitrais, seja para jurisdições internacionais ou regionais. Perante o desmerecimento do espaço público, qualquer procedimento que possa envolver a responsabilização de um magistrado terá divulgação similar à de uma catástrofe: hoje, no Brasil, aqueles que têm a responsabilidade funcional de velar pelo princípio da presunção de inocência dos cidadãos não desfrutam dessa garantia. Definitivamente, pretende-se que o Judiciário abandone sua missão, insubstituível para o estado de direito democrático, de conter todo o poder punitivo exercido inconstitucional, ilegal ou irracionalmente, para policizar-se, para ser um complacente espectador da criminalização secundária; para ser, numa palavra, uma espécie de capitão-do-mato dos foragidos da nova economia. Isto seria a ruína do Judiciário, seguida da ruína do estado de direito, com a implantação de um estado policial submisso à nova ditadura financeiro-virtual planetária. O refinamento que o finalismo trouxe à teoria do delito chegou ao direito brasileiro – à parte os trabalhos precursores de Luiz Luisi e João Mestieri – na reforma da Parte Geral de 1984. Claro está que não chegou de modo ortodoxo: se a paixão de Assis Toledo pela intrincada questão do erro conduziu a uma disciplina 29 Prof. Dr. Nilo Batista Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Titular de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes enxuta e avançada, no tema da autoria e participação – que sofreu indiscutível aprimoramento – alguns passos adiante poderiam ter  sido dados. A febre da imputação objetiva não cancela esses merecimentos, e será fácil, quando ultrapassada a tolice consumista de atirar-se ao último modelo, constatar que a novidade é pouca; ou o princípio da confiança, do risco permitido, e até da realização do risco no resultado – neste último caso, sob a designação de “determinação específica” – já não estavam, todos, na disciplina dos crimes culposos? O que importa é que, agora, o debate não será mais um debate fechado à realidade, o que implica conhecer o funcionamento histórico concreto de sistemas penais determinados, e propor acerca deles. As novas tendências do direito penal não se subordinam hoje, como nos tempos da polêmica causalismofinalismo, apenas às marés das categorias jurídicas. Elas provêm dos reflexos e influências que os dados econômicos e sociais concernentes à questão criminal – recolhidos e trabalhados pela criminologia – e a luta das concepções político-criminais introduzem nas teorias da pena e do delito. Nossa torre de marfim caiu, e, cá entre nós, já era tempo. A causalidade perderá sua centralidade como critério de imputação no dia em que os penalistas assumirem que nenhuma outra disciplina, social ou jurídica, pode ser mais comprometida com o conflito, com a flutuação, com a instabilidade, com o desequilíbrio, com a ruptura, com tudo aquilo que nega a repetibilidade causal, do que o direito penal. Neste dia, os 30