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Crônica Da Casa Assassinada

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Crônica da casa assassinada: uma poética da finitude

Maria Madalena Loredo Neta

Resumo: Esta é uma leitura das imagens da finitude presentes em Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, com o intuito de estabelecer os elementos constituintes de uma poética. São estudadas as imagens que expõem a decadência dos espaços e sujeitos nos quais o tempo inscreve a marca da transitoriedade. Palavras-chave: Lúcio Cardoso, Crônica da casa assassinada, literatura brasileira, poéticas da modernidade, finitude.

Nossa análise do romance Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, se volta para o destaque das imagens da finitude presentes no texto, imagens que expõem a decadência dos espaços e sujeitos, nos quais o tempo inscreve a marca da transitoriedade. A estrutura narrativa da Crônica funda-se na rememoração de suas personagens que, por sua vez, são os narradores da história dos Meneses, família mineira tradicional e opulenta, agora decadente. O tempo será tomado como categoria que deixa a marca de caducidade e como modelador dos esquecimentos e rememorações, base da estrutura narrativa do romance. Também o espaço será destaque, uma vez que nele se tornam visíveis as marcas de ruína deixadas pelo tempo. Dos espaços destaca-se a casa, com seus porões, escadas, jardins e, especialmente, a porta fechada como ícone da interdição, do desconhecido, do irremediável, da morte. Na reflexão filosófica, o tempo se apresenta como um tema difícil e complexo, sobre o qual se debruçaram muitos pensadores. Uma corrente filosófica que vem desde a Antiguidade, com Platão, Aristóteles e outros, formula um conceito de tempo, como sucessão e duração, como parte mensurável do movimento. Com algumas variantes, esse conceito se estende até a modernidade, com Descartes (1596-1650) e Hobbes (1588-1679). Outra concepção, difundida na filosofia ocidental por santo Agostinho (354-430), é a que considera o tempo como movimento intuído e vincula-se ao conceito de consciência com a qual o tempo é identificado. Essa idéia contrapõe-se ao conceito científico de tempo. Ao passo que essas duas correntes teóricas privilegiam, em geral, o presente, o tempo como uma totalidade presente, Martin Heidegger (1989) concebe o tempo como

estrutura das possibilidades, deslocando, assim, para o futuro o primado na interpretação do tempo. Com Heidegger, o tempo é reconduzido de estrutura necessária, a da causalidade, para a de possibilidade de muitas ordens. Entretanto, ele observa que dentre todas essas várias possibilidades, uma é diferente de todas as outras, à qual o homem não pode escapar: a morte. A morte se revela como a possibilidade humana mais própria, incondicionada e insuperável. Dessa forma, tempo e morte tornam-se categorias indissociáveis. A partir das reflexões sobre o tempo e sua estreita ligação com a finitude, há uma disposição profunda da natureza humana em tentar barrar o tempo e subtrair-se dele. A partir da experiência humana da precariedade da existência, da ação implacável do tempo, tenta-se buscar explicações que possam dar conta, dar sentido a essa experiência. A intuição do efêmero leva à consciência da caducidade das coisas, e o desejo de eternidade age como tentativa de refúgio no perene. A díade tempoeternidade, o co-pertencimento do eterno e do efêmero marca profundamente as produções artísticas da modernidade, a exemplo do romance escolhido para este estudo, Crônica da casa assassinada, que já em seu título traz a inscrição da morte e a estreita relação desta com o tempo. A percepção da passagem do tempo, da transitoriedade das coisas gera uma atitude melancólica que se reflete no fazer do artista. A emergência de uma sociedade de massa, a urbanização, a crise de valores, o conseqüente anonimato e a solidão são situações geradoras de uma arte que insiste em focalizar a questão do tempo, no que se refere ao efêmero e à consciência da morte. Assim, a melancolia, traço dominante na arte moderna, é decorrência dessa percepção da passagem inexorável do tempo que faz avolumarem-se as ruínas e aponta sempre para uma proximidade da morte certa e inevitável. O período pós-guerra, época em que Lúcio Cardoso escreveu parte significativa de sua obra, traz o sentimento da louca aventura, da imagem real de uma recente e desgraçada humanidade. Nesse contexto, o discurso literário apresenta-se como maneira privilegiada de tentar conviver com a idéia da inevitabilidade da morte, uma forma de manutenção, ainda que efêmera, da vida. Ao dizer a morte em obra, os autores modernos inauguram esta relação paradoxal: de combate contra a morte e ao mesmo tempo de convivência com ela. Crônica da casa assassinada é um olhar retrospectivo sobre fatos passados; a história acabou, já passou, mas adquire novas feições na rememoração, atualizada e transformada, de seus personagens-narradores. Nesse romance, a escrita da morte se materializa especialmente nas imagens de ruína, desolação, isolamento e frieza com que são figuradas certas personagens e os espaços que compõem o cenário em que elas se movimentam e, em especial, na marca de caducidade e destruição deixada pelo tempo. A escrita da Crônica, descontínua, fragmentada, liberta dos ideais de ordem e perfeição, apresenta o ser humano solitário, esfacelado, dividido, em conflito entre o bem e o mal, o pecado e a verdade. Essa incompletude, esse esfacelamento materializa-se na fragmentação do texto, nas lacunas dos relatos. Há, no romance, uma multiplicidade de narradores e diferentes pontos de vista, subvertendo o conceito de verdade e de completude, constantes retornos ao passado, imbricações de fatos e

entrecruzamento das histórias. Essas narrativas são moduladas pela memória, os fatos são reinterpretados no presente e sujeitos às fragilidades que o rememorar acarreta. O romancista toma a sucessão cíclica do tempo, representado pelas quatro estações do ano, destaca o verão e o escolhe como tempo objetivo, em seus aspectos físicos, para figurar como emblema às avessas em todo o romance. A escolha do verão como a estação em que se desenrolam os fatos marcantes da Crônica pode ser associada ao florescimento das paixões, à exacerbação da sensualidade. Por outro lado, o verão parece possuir uma função peculiar no romance, a de contrapor vida e morte, cor e opacidade, vigor e decomposição. Assim como o tempo, também o espaço é utilizado pelo romancista como figuração de destruição e ruína. Em nosso estudo, a obra de Gaston Bachelard, A poética do espaço (2003), é tomada principalmente como contraponto, uma vez que o autor dá ênfase especial às imagens da casa como local de refúgio e acolhimento, portanto com valor simbólico positivo, ao passo que as imagens da casa, encenadas em Crônica da casa assassinada, ao contrário das de que fala aquele teórico, são imagens de isolamento e frieza. Bachelard diz que “a casa remodela o homem” (2003, p. 63). Porém, em Crônica da casa assassinada, os Meneses remodelam a casa, criam a “alma” da residência. O casarão vai-se transformando juntamente com seus moradores. No pensamento benjaminiano, as ruínas tornam-se a presentificação sensível do passado no presente, isto é, no presente o passado se atualiza por intermédio delas (BENJAMIN, 1984, p. 199-204). Na mansão dos Meneses, através dos vestígios – dos móveis e pratarias ainda restantes, dos retratos antigos – é possível reconstruir, de certa forma, a história dessa família. A figuração da decadência também se evidencia no nome da cidade, Vila Velha, palco onde se encena a história dos Meneses. A casa adquire dos moradores a frieza, a indiferença e o desinteresse pela renovação da vida. Torna-se uma casa humanizada que, por isso mesmo, pode morrer. A chácara, na agonia da protagonista, Nina, também se prepara para o momento final: “[...] acesa, de janelas abertas, [...] era curioso de se ver, e havia certo encanto nisto – um sopro novo parecia alimentá-la e ela se erguia atenta, como na previsão de acontecimentos importantes. Não me lembrava de tê-la visto assim tão preparada” (CARDOSO, 2002, p. 410). Remetendo-nos ao ensaio de Benjamim sobre a autoridade do moribundo que, à hora derradeira, adquire forte lucidez e transmite aos que ficam os seus conselhos, assim também a chácara, ao pressentir o fim próximo, abre os olhos, como se, à maneira de “certos doentes graves, ela só abrisse os olhos para celebrar o próprio fim” (CARDOSO, 2002, p. 410). Percebe-se, dessa forma, a idéia da casa como corpo vivo, que se sacrifica: “dentro da chuva cerrada quase sentia procurar-me da distância o olhar do velho prédio sacrificado, com estrias de sangue que escorressem ao longo de suas pedras mártires” (CARDOSO, 2002, p. 245). As expressões “velho prédio sacrificado”, “estrias de sangue”, “pedras mártires” sugerem que a casa, humanizada, é testemunha e se imola pelos seus habitantes, numa imagem carregada do imaginário religioso, tão caro ao autor. Pode-se dizer que, na Crônica, a casa é um mundo construído e formulado poeticamente. Às avessas, mas poeticamente. Os termos relacionados à casa – desabamento, queda, vácuo, desastre, desintegração – pertencem ao campo

semântico de ruína e destruição. Por seu turno, o leitor é colocado diante de imagens que ostentam uma grande riqueza poética. Na casa dos Meneses não há sótão, mas há porões e quartos de despejo, imagem do mundo tumultuado, cheio de zonas sombrias e inabitáveis. A escada, que em geral é tomada como símbolo da verticalidade, da ascensão e da valorização, na mansão é referida para denotar a decadência dos Meneses. O próprio movimento dos móveis e adornos, como o divã e outros móveis encaminhados ao porão, simboliza declínio. O Pavilhão, onde se localiza o porão destacado no romance, cenário do envolvimento adúltero de Nina e Alberto e, quinze anos mais tarde, incestuoso com André, é referido pelos moradores como “lá”, “lá embaixo”, reforçando a idéia de lugar da transgressão, então proibido, que não se deseja nomear. Lúcio Cardoso faz a opção de escrever a morte através de imagens. No universo ficcional, a morte passa a ser encarada como possibilidade de ser pensada e, conforme tal ótica, expõe-se como presença constituinte na Crônica da casa assassinada. O romance se inicia com uma pergunta inquietante: “– (... meu Deus, que é a morte?)”, e o leitor é colocado não diante de teorizações acerca da morte, mas diante de imagens que lha apresentam e o levam a pensar a finitude. Como escrever a morte? Lúcio Cardoso nos responde com seu romance, repleto de imagens poéticas que tratam da efemeridade e da transitoriedade das coisas e sujeitos. No romance Crônica da casa assassinada, das imagens com que o romancistapoeta escreve a finitude, uma há que nos parece bastante representativa: a da porta fechada, que assume uma significação gradativa: vai da imagem do desconhecido, do segredo, passa pela idéia de interdição e de transgressão e, por fim, torna-se ícone da morte. A porta fechada que isola Nina agonizante em seu quarto é a imagem do desconhecido, da privação. A porta fechada do porão, cujas chaves Ana traz consigo, simboliza o desejo de manter sob segredo acontecimentos marcantes, como o adultério e o incesto. Por fim, a porta fechada inscreve-se como figuração da morte enquanto experiência sobre a qual o homem não tem conhecimento, contra a qual não tem armas nem defesas: “enquanto existisse proclamaria de pé que o gênero humano é desgraçado, e que a única coisa que se concede a ele, em qualquer terreno que seja, é a porta fechada” (CARDOSO, 2002, p. 404). Para as personagens da Crônica não há ressurreição. Parecem acreditar, contudo, numa espécie de ressurreição ou imortalidade no plano da imanência, o que se confirma pela importância dada, na narrativa, à escrita: os diários, as cartas, os depoimentos dos seus personagensnarradores. Em Crônica da casa assassinada, que tem sua epígrafe tirada do Evangelho de João que trata da ressurreição de Lázaro, Nina não pode vencer a morte. A porta fechada, em Lúcio Cardoso, aponta para a ausência de salvação, de redenção. Resta a escrita como possibilidade, uma espécie de ressurreição, uma fuga da morte. Crônica é exemplo do jogo infinito da linguagem. Conclui-se o romance sem que se definam, se firmem ou se harmonizem as várias narrativas que o compõem. Ao contrário, restam ao leitor a ambigüidade, a incompletude, próprias da escrita.

Abstract: This is a reading of the images of finitude present in Crônica da casa assassinada, by Lúcio Cardoso, to establish the elements of a poetics. The focus is tuned on the images that expose the decadence of spaces and subjects where time inscribes the mark of transience. Key-words: Lúcio Cardoso, Crônica da casa assassinada, Brazilian literature, poetics of modernity, finitude.

Referências BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. (Edição comemorativa de 40 anos da primeira publicação). HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte II. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1989.