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Os estudos pós-coloniais não constituempropriamente uma matriz teórica única. Trata-sede uma variedade de contribuições com orienta-ções distintas, mas que apresentam como caracte-rística comum o esforço de esboçar, pelo métododa desconstrução dos essencialismos, uma refe-rência epistemológica crítica às concepções domi-nantes de modernidade. Iniciada por aquelesautores qualificados como intelectuais da diáspo-ra negra ou migratória – fundamentalmente imi-grantes oriundos de países pobres que vivem naEuropa Ocidental e na América do Norte –, aperspectiva pós-colonial teve, primeiro na críticaliterária, sobretudo na Inglaterra e nos EstadosUnidos, a partir dos anos de 1980, suas áreas pio-neiras de difusão. Depois disso, expande-se geo-graficamente e para outras disciplinas, fazendodos trabalhos de autores como Homi Bhabha,Edward Said, Gayatri Chakravorty Spivak ouStuart Hall e Paul Gilroy referências recorrentesem outros países dentro e fora da Europa. A abordagem pós-colonial constrói, sobre aevidência – diga-se, trivializada pelos debatesentre estruturalistas e pós-estruturalistas – deque toda enunciação vem de algum lugar, suacrítica ao processo de produção do conhecimen-to científico que, ao privilegiar modelos e con-teúdos próprios ao que se definiu como a cultu-ra nacional nos países europeus, reproduziria,em outros termos, a lógica da relação colonial.Tanto as experiências de minorias sociais comoos processos de transformação ocorridos nassociedades “não ocidentais” continuariam sendotratados a partir de suas relações de funcionali-dade, semelhança ou divergência com o que sedenominou centro. Assim, o prefixo “pós” naexpressão pós-colonial não indica simplesmenteum “depois” no sentido cronológico linear; trata- RBCS Vol. 21 nº.60 fevereiro/2006 Artigo recebido em abril/2005 Aprovado em Agosto/2005 DESPROVINCIALIZANDO A SOCIOLOGIA A contribuição pós-colonial Sérgio Costa 118 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 N º. 60 se de uma operação de reconfiguração do cam-po discursivo, no qual as relações hierárquicasganham significado (Hall, 1997a). Colonial, porsua vez, vai além do colonialismo e alude a si-tuações de opressão diversas, definidas a partirde fronteiras de gênero, étnicas ou raciais.Delimitar o campo teórico preciso no qualse inserem os estudos pós-coloniais não é tarefafácil. Talvez não seja nem mesmo uma tarefa con-cretizável, uma vez que os estudos pós-coloniaisbuscam precisamente explorar as fronteiras, pro-duzir, conforme quer Bhabha (1994), uma refle-xão para além da teoria. Não obstante, não é difí-cil reconhecer a relação próxima entre os estudospós-coloniais e pelo menos três correntes ouescolas contemporâneas. A primeira é o pós-estruturalismo e, sobretudo, os trabalhos de Der-rida e Foucault, com quem os estudos pós-colo-niais aprenderam a reconhecer o caráterdiscursivo do social. A recepção do pós-estrutura-lismo, contudo, não é a mesma que fazem auto-res como Lyotard e outros expoentes da correntepós-moderna, segunda referência importante paraos estudos pós-coloniais que se quer destacaraqui. A rigor, a abertura para o pós-modernismo varia muito, conforme a abordagem que se tome.De forma geral, aceita-se falar da pós-modernida-de , como condição, isto é, como categoria empí-rica que descreve o descentramento das narrativase dos sujeitos contemporâneos. Recusa-se, contu-do, o pós-modernismo como programa teórico epolítico, visto que, para o pós-colonialismo, atransformação social e o combate à opressãodevem ocupar lugar central na agenda de investi-gação (Appiah, 1992; Gilroy, 1993, p. 107). Porúltimo, cabe a alusão aos estudos culturais, sobre-tudo em sua versão britânica desenvolvida princi-palmente no Birmingham University’s Centre forContemporary Studies. Talvez seja razoável dizerque a distinção entre estudos culturais, na versãobritânica, e estudos pós-coloniais seja apenas cro-nológica. Afinal, desde que Stuart Hall, figura cen-tral dos estudos culturais britânicos, desloca suaatenção, a partir de meados dos anos de 1980, dequestões ligadas à classe e ao marxismo paratemas como racismo, etnicidades, gênero e iden-tidades culturais, verifica-se uma convergênciaplena entre estudos pós-coloniais e estudos cultu-rais (Morley e Chen, 1996).O objetivo deste ensaio não é traçar umagenealogia dos estudos pós-coloniais, mas discu-tir a importância de sua contribuição para as ciên-cias sociais e para a sociologia, em particular.Trata-se de discutir, em primeiro lugar, o caráterda crítica que os estudos pós-coloniais endereçamàs ciências sociais. Em seguida, discute-se as alter-nativas epistemológicas que apresentam, conside-rando-se três blocos interrelacionados de ques-tões, a saber: a crítica ao modernismo comoteleologia da história, a busca de um lugar deenunciação “híbrido” pós-colonial e a crítica àconcepção de sujeito das ciências sociais. A con-clusão a que se chega é de que, a despeito de suacontundência e da suspeita de autores comoMcLennan (2003) de que a teoria pós-colonialimplode a base epistemológica das ciênciassociais, boa parte da crítica pós-colonial temcomo destinatário não o conjunto da teoria social,mas uma escola teórica particular, qual seja, a teo-ria da modernização, e se assemelha a objeçõeslevantadas por cientistas sociais que nada têm a ver com o pós-colonialismo. Outros problemaslevantados pelos estudos pós-coloniais não deses-tabilizam, necessariamente, as ciências sociais,podendo mesmo enriquecê-las. As ciências sociais e seus binarismos Não é sem razão que o livro clássico Orientalism do crítico literário palestino EdwardSaid (1978) é considerado o “manifesto de funda-ção” do pós-colonialismo (Conrad e Randeria,2002, p. 22). No livro, Said dá contornos a umaperspectiva que começara a ser delineada nosesforços pioneiros desenvolvidos pelo psiquiatrade Martinica Frantz Fanon (1965 [1952]), quandobuscou descrever o mundo moderno visto pelaperspectiva do negro e do colonizado.O orientalismo de que fala Said caracterizauma maneira particular de percepção da históriamoderna e tem como ponto de partida o estabe-lecimento a priori de uma distinção binária entreOcidente e Oriente, segundo a qual cabe àquelaparte que se auto-representa como Ocidente atarefa de definir o que se entende por Oriente. Oorientalismo constitui, assim, uma maneira deapreender o mundo, ao mesmo tempo que se DESPROVINCIALIZANDO A SOCIOLOGIA 119 consolida, historicamente, a partir da produção deconhecimentos pautados por aquela distinçãobinária srcinal. A inspiração que anima Said – e, como semostra mais adiante, boa parte dos autores pós-coloniais – é a crítica foucaultiana à “episteme”das ciências humanas (Foucault, 1972, pp. 418ss.).Trata-se de mostrar que a produção de conheci-mento atende a um princípio circular e auto-refe-renciado, de sorte que “novos” conhecimentosconstruídos sobre uma base de representaçãodeterminada reafirmam, ad infinitum , as premis-sas inscritas nesse sistema de representações. Oorientalismo caracteriza, assim, um modo estabe-lecido e institucionalizado de produção de repre-sentações sobre uma determinada região domundo, o qual se alimenta, se confirma e se atua-liza por meio das próprias imagens e dos conhe-cimentos que (re)cria. 1 O Oriente de Orientalism ,ainda que remeta, vagamente, a um lugar geográ-fico, expressa mais propriamente uma fronteiracultural e definidora de sentido entre um nós eum eles, no interior de uma relação que produz ereproduz o outro como inferior, ao mesmo tempoem que permite definir o nós, o si mesmo, emoposição a este outro, ora representado comocaricatura, ora como estereótipo e sempre comouma síntese aglutinadora de tudo aquilo que onós não é e nem quer ser.Stuart Hall (1996a) busca generalizar o casodo orientalismo, mostrando que a polaridadeentre o Ocidente e o resto do mundo ( West/Rest )encontra-se na base de constituição das ciênciassociais. O ponto de partida de Hall é igualmentea noção de formação discursiva, derivada deFoucault. Tratado nesses termos, discurso não seconfunde com ideologia, entendida como repre-sentação falseada ou falsificada do mundo. Nãocabe, por isso, discutir o teor de verdade dos dis-cursos, mas o contexto no qual eles são produzi-dos, qual seja, o “regime de verdade” dentro doqual o discurso adquire significação, se constituicomo plausível e assume eficácia prática. Essesregimes de verdade, ou na variação preferida porHall, “regimes de representação”, não são fecha-dos e mostram-se aptos a incorporar novos ele-mentos à rede de significados em questão, man-tendo um núcleo srcinal de sentidos, contudo,inalterado ( Idem , pp. 201ss.). 2 Valendo-se da idéia de Said de que os dis-cursos se servem de “arquivos” ou fontes deconhecimento comum para se constituir, Hallenumera os principais recursos que, ao longo doprocesso de expansão colonial, vão nutrindo econstituindo o discurso West/Rest , a saber: osconhecimentos clássicos, as fontes bíblicas e reli-giosas, as mitologias (Eldorado, lendas sexuaisetc.), além dos relatos de viajantes. A partir des-sas fontes constituem-se as polaridades entre oOcidente – civilizado, adiantado, desenvolvido,bom – e o resto – selvagem, atrasado, subdesen- volvido, ruim. Uma vez constituídos, tais binaris-mos tornam-se ferramentas para pensar e analisara realidade. Hall investiga obras de autores fun-dadores das ciências humanas em meados doséculo XVIII (basicamente Adam Smith, Henry Kame, John Millar e Adam Ferguson), mostrandocomo a polaridade West/Rest , contemporânea doIluminismo, se instala no interior destas.O discurso West/Rest , conforme Hall, não édominante apenas no âmbito desses primeiros tra-balhos das ciências humanas, ele se torna um dosfundamentos da sociologia moderna que toma asnormas sociais, as estruturas e os valores encontra-dos nas sociedades denominadas ocidentais comoo parâmetro universal que define o que são socie-dades modernas. Assim, sob a lente da sociologia,as especificidades das sociedades “não ocidentais”passam a figurar como ausência e incompletude,em face do padrão moderno, depreendido exclusi- vamente das “sociedades ocidentais”. Bons exem-plos da incorporação pela sociologia moderna dobinarismo West/Rest seriam, para Hall, categoriascomo patrimonialismo, em Weber, e modo de pro-dução asiático, em Marx, que, de formas distintas,fraseam o movimento interno de sociedades defi-nidas como não ocidentais na gramática implicita-mente comparativa que toma as sociedades euro-péias como padrão. A polaridade West/Rest encontra-se tambémna base da narrativa histórica adotada pelas ciên-cias sociais modernas e pela sociologia, em parti-cular. Trata-se de uma grande narrativa centradano Estado-nação “ocidental” e que reduz a histó-ria moderna a uma ocidentalização paulatina eheróica do mundo, sem levar em conta que, pelomenos desde a expansão colonial no século XVI,diferentes “temporalidades e historicidades foram 120 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 N º. 60 irreversível e violentamente juntadas” (Hall,1997a, p. 233). 3 Tal não significa, obviamente, queo autor acredite na simetria de poder e em iguaispossibilidades de influência mútua entre o“Ocidente” e o “resto do mundo”, implica, contu-do, que as partes representadas como opostas eseparadas, vale dizer, antinômicas, na verdade secompletam histórica e semanticamente. A metodologia da comparação implícita e otipo de narrativa histórica da sociologia modernafazem com que tudo o que é diverso no “resto domundo” seja decodificado como um ainda nãoexistente, uma falta a ser compensada por meio daintervenção social cabível em cada contexto e emcada época histórica: dominação colonial, ajudaao desenvolvimento, intervenção humanitária etc.Com isso, Hall não pretende naturalmente atribuira responsabilidade pelos colonialismos e imperia-lismos às ciências sociais modernas. Mostra, con-tudo, como as disciplinas desse campo reprodu-zem a perspectiva colonial, ao alimentar elegitimar o modelo dominante de representaçãodas relações entre a Europa e o resto do mundo. 4 As alternativas epistemológicas pós-coloniais A “desconstrução” da polaridade West/Rest constitui o termo comum que une os diferentesautores identificados com o marco pós-colonial. Éprecisamente essa identificação do viés colonialis-ta no processo de produção do conhecimentoque, como se afirmou mais acima, melhor defineo prefixo “pós” do termo pós-colonial. Afinal, doponto de vista cronológico, esse prefixo refere-sea ex-colônias com condições pós-coloniais radi-calmente distintas. 5 Interessa, por isso, abordaraqui o pós-colonial, a forma de “descontrução” dapolaridade West/Rest que se constitui, historica-mente, no âmbito da relação colonial, mas que seperpetua mesmo depois de extinto o colonialismo,como modo de orientar a produção do conheci-mento e a intervenção política. A tarefa que os autores pós-coloniais atri-buem a si é imodesta. Cabe, primeiro, mostrarque a polaridade Rest/West constrói, no plano dis-cursivo, e legitima, no âmbito político, uma rela-ção assimétrica irreversível entre o Ocidente e seuoutro, conferindo ao primeiro um tipo de supe-rioridade que não é circunstancial, histórica ereferida a um campo específico – material, tecno-lógico etc. Trata-se da atribuição de uma condiçãode superioridade que é ontológica e total, imutá- vel, essencializada, uma vez que ela faz parte daprópria constituição lógica e semântica dos ter-mos da relação. O segundo passo é mostrar quea polaridade West/Rest é inócua do ponto de vistacognitivo, uma vez que ofusca aquilo que supos-tamente busca elucidar, a saber, as diferençasinternas dessa multiplicidade de fenômenossociais subsumidos nesse outro genérico, bemcomo as relações efetivas entre o Ocidente imagi-nado e o resto do mundo.Tal esforço de desconstrução dos binaris-mos (coloniais) vem seguindo percursos diversosno âmbito dos estudos pós-coloniais e, pelomenos desde o importante ensaio de Spivak(1988), desfez-se a expectativa de que uma pers-pectiva epistemológica nova surgiria, dando-se voz ao (pós-)colonizado. A autora mostra que éilusória a referência a um sujeito subalterno quepudesse falar. O que ela constata, valendo-se doexemplo da Índia, é uma heterogeneidade desubalternos, os quais não são possuidores deuma consciência autêntica pré- ou pós-colonial,trata-se de “subjetividades precárias” construídasno marco da “violência epistêmica” colonial. Tal violência tem um sentido correlato àquele cunha-do por Foucault para referir-se à redefinição daidéia de sanidade na Europa de finais do século XVIII, na medida em que desclassifica os conhe-cimentos e as formas de apreensão do mundo docolonizado, roubando-lhe, por assim dizer, afaculdade da enunciação. Assim, no lugar de rei- vindicar a posição de representante dos subalter-nos que “ouve” a voz desses, ecoada nas insur-gências heróicas contra a opressão, o intelectualpós-colonial busca entender a dominação colo-nial como cerceamento da resistência mediante aimposição de uma episteme que torna a fala dosubalterno, de antemão, “silenciosa”, vale dizer,desqualificada.Cientes da impossibilidade constatada porSpivak, os estudos pós-coloniais buscam alternati- vas para a desconstrução da antinomia West/Rest que sejam distintas da simples inversão do lugar daenunciação colonial. Trata-se, portanto, não de dar voz ao oprimido, mas como definem Pieterse e