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Duby, Georges, A História Continua I

Parte I

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  GEORGES DUBY   A HISTORIA CONTINUA ~ A S A I I T E R A T U R A   A hist6ria que  yOU  contar principia em 1942, no Outono. A guerraentrou na sua fase mais dura. Acabo de ser admitido no ensino. Douaulas de hist6ria e geografia, ajovens, num liceu de provincia. A minhafirme inten~ao e de nao ficar por aqui, e decidi preparar uma tese dedoutoramento. P<'Jrambi~ao: a tese, nessa epoca, permite aceder ao ensi-no superior. Mas tambem por prazer: de facto, ganhei gosto pelainvestiga~ao. Ando  a  procura de tema. Neste exacto momenta urn longotrajecto se inicia. Porque a escolha que fiz, lentamente, hesitando durantedois anos, delimitando pas so a pas so, quando tinha tempo para pensar nisso,  0 campo do meu futuro labor, determinou tudo  0 que se seguiu,orientou esta pesquisa levada por diante segundo essa mesma linha, e daqual nao vejo ainda  0 termo.Expus ja, num ensaio de «ego-hist6ria»,  0 que foi  0 meu itinenirio profissional, mas muito sucintamente, limitando-me as circunstiincias,sobre as quais nada tenho aqui a acrescentar, e sem verdadeiramente falar do meu offcio. Tento agora falar dele, sobriamente, familiarmente. Donosso offcio, alias, e do caminho que percorremos juntos, porquantocaminhamos todos lado a lado, n6s, os historiadores, na companhia deespecialistas de outras ciencias do homem. Na verdade, raros sao osinvestigadores que nas suas disciplinas se aventuram sozinhos para forados caminhosja trilhados. Outros se arriscam ao mesmo tempo que.eles,sem que por vezes  0 suspeitem. 0 mesmo vento nos impele e, geralmente,navegamos em conjunto. Por isto, esta hist6ria nao e apenas a minha.  E ,  prolongando-se por meio seculb, a da escola francesa de historia.  S ob a influencia de urn mestre, Jean Deniau, tinha-me, havia pouco,convertido  a  historia, mais precisamente  a  hist6ria da Idade Media.  Ai  iria instalar   0 meu posto. Mas trata-se de urn domfnio vastfssimo. Teriade decidir com exactidao onde situar-me. Na epoca a que me refiro, amaioria dos historiadores conceituados contentava-se ainda com  0 estudodo poder polftico, militar ou religioso, nas suas manifesta~6es exteriores.Dedicavam-se  a  reconstitui~ao de uma cadeia de acontecimentos, pequenose grandes, interrogando-se sobre as seus actores e sobre as suas causasacidentais ou, entao, atendiam  a  evolu~ao e aojogo formal das institui~6es.Todavia, uma frente pioneira se abrira desde  0 inicio dos anos trinta, soba choque do grande abalo que viera minar as alicerces da produ~ao e dastrocas na Europa. Historiadores mais arrojados, e que se multiplicavam,voltavam a sua aten~ao para as fen6menos econ6micos. Inspirando-seem modelos construfdos pelos economistas a partirdas no~6es simples decresci menta e de crise, procuravam distinguir a modo como no pass adohavia evoluido a valor das coisas, esfor~ando-se por determinar ciclos etendencias de longa dura~ao. Para isto, puseram-se a revolver, nos arqui-vas, fundos ate entao abandonados porque pouca informa~ao ofereciamacerca dos grandes feitos dos polfticos e dos militares. Recolhiam por entre as Iivros de contabilidade, as recenseamentos, as inventarios,maos-cheias de dados numericos e, para os tratar, recorriam a processos I estatfsticos ainda sumarios. Tais preocupa~6es traziam em germe~ naoapenas a imagem, proposta mais tarde por Fernand Braudel, num ar-tigo celebre, dos tres estados sobrepostos da dura~ao,  0 acontecimento,  a conjuntura e a estrutura (os acontecimentos,  a  superficie, como umaespuma, por cima das oscila~6es da conjuntura; suportando  0  todo,estruturas arras tad as de modo imperceptivel por movimentos muitolentos; os dois ultimos term os desta figura termiria, conjuntura e estru-tura, pedidos de emprestimo, sublinhe-se,  a  linguagem da economia),mas tambem uma vontade de medir, avaliar, quantificar a toda a for~a, aobsessao do numero, da medida, da curva, ou seja,  0 genero de historiachamada serial e cujo exito se deveria confirmar em Fran~a apos 1950,a proposito, nomeadamente, da demografia das epocas antigas.Certos periodos da historia prestam-se melhor do que outros a levar  por diante investiga~6es deste tipo. Sao aqueles em que  0 investigador,sem sucumbir sob uma documenta~ao super-abundante, pode extrair dostextos series continuas de numeros.  E  0 caso da epoca dita modern a, osseculos  XVI, XVII  e  XVIII;  mas a investiga~ao e igualmente possivel para aIdade Media tardia, a partir do momento,  0  limiar do seculo  XIV,  em queas gentes da pena e das contas se tornam numerosas junto dos principese come~am a fazer enumera~6es de todos os generos. Assim, algunsmedievistas mais velhos do que eu, dez, quinze anos, que acabavam dedefender as suas teses ou as concluiam, tinham ja enveredado pelahistoria economica. Observavam fundamentalmente os movimentos docomercio, logo,  0 meio urbano; Jean Schneider em Metz, Philippe Wolff em Toulouse, Yves Renouard nas cidades da Toscana, Michel MoUat nos portos da Normandia.  0 que conhecfamos dos seus trabalhos impunham--no-Ios. Naturalmente, eu estava decidido ajuntar-me a esta vanguarda. o  precursor, neste ponto, era  0  grande historiador belga HenriPirenne, cuja figura, quando eu era estudante, eclipsava ainda a de MarcBloch. Trabalhando num pais, a Flandres, onde  0 que podia existir comosentimento nacional buscava raizes nas velhas cidades comerciais, ligava--se  a  memoria de homens de negocios audaciosos que, seguros do seudinheiro, captando os favores de urn artesanato poderoso que  0 sucessodas suas empresas espalhadas pelos quatro cantos do mundo fazia viver,