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Ecos Do Brasil

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  ECOS DO BRASIL Ecos do Atlântico Sul: representações sobre o terceiroimpério português, de Omar Ribeiro Thomaz. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002, 360 pp. João Vasconcelos Como anuncia seu subtítulo, o livro de OmarRibeiro Thomaz — versão ligeiramente modificadada tese de doutorado em Antropologia Social quedefendeu na USP em 1997 — tem por objeto centrala análise de representações produzidas em Portugalacerca do "Terceiro Império". Essa designação foiconsagrada pelo historiador Gervase Clarence-Smithpara referir o último ciclo da expansão imperialportuguesa. O Terceiro Império começou a esboçar-se após a independência do Brasil, colônia queconstituíra o sustentáculo do Segundo Império nodecurso dos séculos XVII e XVIII, e concretizou-se noesforço de ocupação colonial efetiva de territóriosafricanos nos quais, até então, o domínio portuguêsse limitara essencialmente às praças comerciais dolitoral. A viragem para a África demorou longas dé-cadas e atingiu seu apogeu durante o regime dita-torial do Estado Novo (1933-74). Mas foi tambémnesse período que o império africano começou avacilar, a partir dos anos 1950, com a eclosão de mo-vimentos independentistas nas colônias e o acúmulode pressões internacionais a favor da descolonização.Em 1961, dois acontecimentos marcaram o prin-cípio do fim do império: a tomada pela índia daspossessões quinhentistas de Goa, Damão e Diu e adeflagração de uma desgastante guerra colonial na206 NOVOS ESTUDOS N.° 66África, que duraria mais de uma década. A revoluçãode 25 de abril de 1974, levada a cabo por oficiaisintermédios do exército português, pôs fim ao EstadoNovo e à guerra colonial e desencadeou a indepen-dência política dos territórios africanos de Angola,Guiné e Moçambique e dos arquipélagos atlânticosde Cabo Verde e São Tome e Príncipe. Bem mais aoriente, o fim da ditadura precipitou a anexação pelaIndonésia da metade leste da ilha de Timor, que eraentão colônia portuguesa. O Terceiro Império che-gava dessa maneira ao fim. A soberania de Portugalficou confinada ao retângulo ocidental da PenínsulaIbérica, aos arquipélagos dos Açores e da Madeira eà cidade chinesa de Macau, que se conservou sobadministração portuguesa até 1999 1 .No primeiro capítulo do livro, Omar Thomazensaia uma síntese do processo de gestação dessaderradeira aventura imperial. Trata-se no essencialde um capítulo de revisão historiográfica, escoradoem trabalhos de estudiosos do império africanoportuguês como Clarence-Smith e Valentim Alexan-dre, que oferece ao leitor brasileiro uma introduçãocompetente à matéria. Como refere o autor, muitoembora o "sonho africano" tenha começado a confi-gurar-se em Portugal após a abertura dos portosbrasileiros ao livre-comércio e sobretudo depois daindependência do Brasil, várias circunstâncias o pro-telaram durante décadas. Thomaz realça duas delas: (1) Não sendo portanto "uma cidade chinesa ainda sob adminis-tração lusitana", como por lapso se escreve em Ecos do Atlântico Sul (p. 273). O intervalo de cinco anos entre aconclusão da tese e sua publicação em livro explicam esselapso: em 1997 Portugal ainda administrava Macau, mas em2002 a China adquiriu soberania sobre o território.  a persistência até o terceiro quartel do século XIX dolucrativo comércio atlântico de africanos escraviza-dos e o fato de o Brasil independente ter continuadoa sorver o grosso da emigração portuguesa. Essestrânsitos persistentes entre Portugal e a antiga colô-nia sul-americana consumiram boa parte dos capitaise recursos humanos que seriam necessários encami-nhar para a nova colonização africana.A transição do Segundo para o Terceiro Impérionão foi portanto imediata; bem ao contrário, foi umainflexão lenta e recheada de impasses, hesitações eprojetos políticos que esbarravam com interessesadversos. Mas a verdade também é que a viragem dePortugal para a África não ocorreu com grandedefasagem em relação às dos restantes países euro-peus que se perfilavam como potências coloniais naregião no último quartel do século XIX — Grã-Bretanha, Alemanha, França e Itália. Até a década de1870 a presença européia na África tinha um carátersobretudo mercantil, confinando-se ao controle deentrepostos comerciais costeiros 2 . Foi no decursodaquela década que a integração da África no sistemacapitalista se intensificou por via de um novo tipo decolonização, que implicava a ocupação efetiva dosterritórios. Ao mesmo tempo, foi-se esboçando adoutrina segundo a qual a legitimidade do domíniocolonial se fundava precisamente na ocupação econtrole efetivos das possessões ultramarinas, doutri-na que se tornou particularmente influente após aConferência de Berlim de 1884-85, da qual resultou oplano de uma nova partilha do continente africanopelas potências européias.Omar Thomaz salienta o papel determinanteque a conjuntura política internacional do final doséculo XIX desempenhou no empurrão de Portugalpara a África. No momento em que se jogava apartilha do continente africano, Portugal detinha"direitos históricos" que advinham de uma presençade cerca de quatro séculos nas costas de Moçambi-que, Angola e Guiné e nos arquipélagos de São Tomee Príncipe e Cabo Verde. Todavia, com uma econo-mia assente numa agricultura em crise e um desen-volvimento industrial incipiente, encontrava-se numasituação francamente desfavorável para competir (2) Cf. Teixeira, Nuno S. "Colônias e colonização portuguesa nacena internacional (1885-1930)". In: Bethencourt, Francisco eChaudhuri, Kirti (orgs.). Do Brasil para África (1808-1930). Lisboa: Círculo de Leitores, 1998 (  História da expansão portu-guesa, vol. 4), p. 498. CRÍTICA com o investimento colonial que um país como aGrã-Bretanha, por exemplo, estava em condições delevar a cabo. Não obstante, no rescaldo da Conferên-cia de Berlim, Portugal avançou com um projeto deconstituição de uma colônia gigantesca que abarcariao território compreendido entre a costa atlântica deAngola e a contra-costa indica de Moçambique, quedeveria vir a chamar-se África Meridional Portuguesa.Esse projeto — que ficou conhecido como "MapaCor-de-Rosa", por causa da cor que se usou pararepresentar a área reclamada — foi apresentado em1886. E deparou-se de imediato com a oposiçãointransigente da Grã-Bretanha, uma vez que a faixaterritorial que os portugueses pretendiam estorvavaa pretensão britânica de controlar um corredor denorte a sul do continente entre as cidades do Cairo edo Cabo. Perante o ultimato britânico de 1891, e apóscinco anos de conflito diplomático entre Lisboa eLondres, Portugal acabaria por abdicar da desejadaÁfrica Meridional e resignar-se a possuir os territórioscujas fronteiras correspondem sensivelmente às dosatuais Estados de Angola e Moçambique.O ultimato de 1891, e depois os acordos de 1898e 1912-13 entre a Grã-Bretanha e a Alemanha comvista à partilha entre ambas das colônias portuguesas,tiveram grande eco em Portugal e foram sentidoscomo ultrajes à dignidade e à integridade nacionais.Como assinala Omar Thomaz, retomando uma teseenunciada por Valentim Alexandre, a ameaça dasgrandes potências européias do final do século XIXsobre as colônias portuguesas promoveu uma fortemobilização nacionalista na qual as idéias de "nação"e "império" se soldaram, formando um compostomaciço e duradouro que atravessou a Primeira Repú-blica portuguesa (implantada em 1910), a ditaduramilitar (1926-33) e o Estado Novo 3 . A integridade doImpério tornar-se-ia um assunto praticamente indis-cutível até a eclosão dos movimentos independentis-tas africanos em meados do século XX.A implantação do colonialismo moderno naÁfrica e a cobiça dos potentados europeus pelascolônias portuguesas não foram os únicos fatores daconjuntura internacional que impeliram Portugal arealizar o sonho africano. Thomaz destaca tambéma importância da relação tensa entre Portugal e a vi-zinha Espanha. Em ambos os países havia setores (3) Alexandre, Valentim. Origens do colonialismo portuguêsmoderno, 1822-91. Lisboa: Sá da Costa, 1979, p. 6.JULHO DE 2003 207  CRÍTICA intelectuais e políticos que defendiam uma uniãoibérica — nos moldes de uma confederação deEstados — como panacéia para a decadência que osdois povos peninsulares vinham experimentandocom a perda das respectivas colônias sul-americanas.Esse sonho iberista, contudo, deparava-se com forteresistência em Portugal. O iberismo tendia a serencarado como uma ameaça de transformação dopaís numa província da Espanha e como uma reedi-ção da união dos reinos de Portugal e de Castela eLeão que vigorara entre 1580 e 1640 e que eracorrentemente representada como uma usurpaçãoespanhola. O nacionalismo que acabou por vingar àsombra dessas ameaças envolvia um forte sentimen-to antiespanhol. E, como observa Thomaz, o anties-panholismo do final do século XIX e começo do XXconstituiu um combustível adicional para a fusãoentre nacionalismo e imperialismo: "o dilema que secolocava então — 'império' ou 'província' — associ-aria definitivamente a 'nação' ao 'império'" (p. 56) 4 .Apresentado o cenário da gênese do terceiroimpério português, o segundo capítulo de Ecos do Atlântico Sul conduz-nos à matéria que constitui ocerne do livro: a imaginação do império, em particu-lar as representações que foram produzidas e circu-laram entre as décadas de 1930 e 40. Ou, noutrostermos, a constituição durante esse período daquiloque Omar Thomaz designa de forma feliz como uma"cultura do império". Começando por apresentar ohistorial de duas instituições basilares na produçãode saberes coloniais — a Sociedade de Geografia deLisboa (fundada em 1875) e a Escola Superior Co-lonial (fundada em 1906) —, o autor dedica a maiorparte desse capítulo a resumir e analisar os conteú-dos dos discursos apresentados em dois colóquiosimportantes: as Conferências de Alta Cultura Colonialde 1936 e o Congresso Colonial de 1940, que decor-reram em Lisboa.Nos discursos dos participantes das Conferên-cias de 1936 Thomaz identifica regularidades taiscomo a apologia da expansão portuguesa em virtudeda sua contribuição para o incremento do conheci-mento do mundo; a referência ao "espírito cristão" doempreendimento imperial; a observação do para-doxo da coexistência da expansão imperial com a (4) A defesa das possessões africanas e da independência emface da Espanha foi um dos principais motivos que levaramPortugal a entrar na I Guerra ao lado da Grã-Bretanha e seusaliados.208 NOVOS ESTUDOS N.° 66 pobreza do colono e da pátria portuguesa, e a suaexplicação teleológica como fruto do "gênio portu-guês" ou mesmo em termos de missão divina; ainterpretação da mestiçagem como demonstração dainexistência de preconceito racial entre os portugue-ses ou a defesa da brandura relativa da escravidãopraticada pelos colonizadores portugueses em com-paração com a de outros colonizadores e a dospróprios africanos.O ano de 1940, quando se realiza o CongressoColonial, pode ser considerado o momento deapogeu da idéia imperial moderna em Portugal. OCongresso Colonial foi uma das nove subdivisões doCongresso do Mundo Português, que decorreu du-rante a Exposição do Mundo Português (analisada noquarto capítulo). Esta foi o ponto alto das come-morações do denominado "duplo centenário": ooitavo centenário da fundação da nacionalidadeportuguesa e o terceiro da restauração da inde-pendência após sessenta anos de domínio espanhol.No Congresso Colonial, os temas mais visitados pelosdiscursos dos participantes foram a mestiçagem(avaliada de forma ambivalente, consistindo a ten-dência dominante em vê-la como positiva no Brasilmas a evitar na África) e o trabalho compulsivo dosindígenas (em relação ao qual também não haviaconsenso). Segundo o autor, esses desacordos "nãopunham em questão, contudo, a necessidade inalie-nável de Portugal manter-se no ultramar. A cultura doimpério assim o exigia: é da essência de Portugal edos portugueses transpor-se para corpos e terrasdistantes; quanto à melhor forma de concretizar a'antropofagia' lusitana, para isso se reuniam osintelectuais nos congressos" (p. 144). Tanto nasConferências de 1936 como no Congresso de 1940,"expansão e colonização eram representadas comomovimentos que diziam respeito à essência danacionalidade portuguesa" (p. 143).Parece-me importante salientar aqui que nem oconsenso quanto à missão imperial dos portuguesesna África nem as divergências quanto às formas dasua concretização constituem um corpo de idéias quedeva se circunscrever às décadas de 1930 e 40. Nãohá dúvida de que é nesse período do Estado Novoque a "cultura do império" alcança maior popularida-de, por razões que Omar Thomaz assinala e das quaisfalaremos em seguida. Mas as convicções, as varia-ções e as incertezas que configuram essa culturaprolongam no essencial aquelas que vinham circu-lando pelo menos desde o tempo do ultimato brita-  nico. O historiador Yves Léonard é um dos estudio-sos que sublinha a continuidade da ideologia coloni-al de 1890 a 1930 durante o Estado Novo, descreven-do-a como uma ideologia complexa e múltipla, que"oscila entre um humanismo eivado de ideais filan-trópicos e um colonialismo pragmático marcado porum 'darwinismo social'" 5 . Ao discutir a idéia imperi-al, elemento-chave dessa ideologia, João Carlos Pau-lo mostra-se igualmente contrário às teses que nelavêem "uma criação do Estado Novo, nalguns casoscom filiações em correntes conservadoras e autoritá-rias do republicanismo, noutros por importação dasteses do imperialismo fascista italiano", argumentan-do, sem negar a importância dessas influências, que"a visão imperial do colonialismo português se en-contra latente na cultura colonial portuguesa queantecede o Estado Novo".Isso não obsta a que as décadas de 1930 e 40devam ser encaradas, como justamente o são porOmar Thomaz, como o período "da afirmação domoderno império colonial português" (p. 85). Énesse período que finalmente se concretizam velhosmas até então sempre gorados planos de colonizaçãobranca de Angola e Moçambique. Nunca a idéiaimperial fora tão urgente, e ao mesmo tempo tãoverossímil, como nessa conjuntura em que o Estadoconseguia por fim conduzir dezenas de milhares deportugueses a materializarem-na em suas própriasvidas, embarcando voluntariamente para a Áfricacomo colonos. Thomaz relaciona convincentementeo avanço da colonização branca de Angola e Moçam-bique com o incremento da produção e difusão desaberes coloniais sobre a África, e sobretudo com aproliferação dos dois tipos de representações doImpério: a chamada "literatura colonial" e as expo-sições coloniais, que constituem os objetos dos capí-tulos 3 e 4, respectivamente.A emergência de um gênero literário específicodenominado "literatura colonial" ou "ultramarina" éuma novidade indiscutível desse período histórico.Como escreve o autor, "é a partir da década de 1930que prolifera esse 'novo' tipo de literatura aferrada ao'exótico' das terras africanas, às aventuras próprias do (5) Léonard, Yves. "A idéia colonial, olhares cruzados (1890-1930)". In: Bethencourt e Chaudhuri (orgs.), op. cit., p. 521.(6) Paulo, João Carlos. "Cultura e ideologia colonial". In:Oliveira Marques, AH. (org.). O império africano, 1890-1930. Lisboa: Editorial Estampa, 2001 (  Nova história da expansão portuguesa, vol. 9), pp. 87-88. CRÍTICA continente, à caça e ao suposto cosmopolitismo doimpério. [...] Seu herói: o colono português" (p. 155).Os surgimentos simultâneos de uma literatura quetem como herói o colono português e de colonatosbrancos em Angola e Moçambique não são meracoincidência. Em vez de intentar fazer um retrato deconjunto da literatura colonial portuguesa, OmarThomaz opta por se concentrar na obra de um dosseus mais notáveis e fecundos representantes: Henri-que Galvão (1895-1971).Galvão foi uma pessoa singular. Militar de carrei-ra, entrou na vida política fazendo parte do "grupo deentusiasmados jovens nacionalistas que viu na ditadu-ra militar e no Estado Novo nascente a concretizaçãode suas aspirações: transformar Portugal novamentenuma grande nação, ciente da sua missão e senhor deum grande império" (p. 158). Imperialista convicto,organizou a Primeira Exposição Colonial Portuguesa(Porto, 1934) e a Exposição Colonial de 1940. Nodecurso dos anos 1940, todavia, suas opções políticasderam uma guinada radical: Galvão tornou-se umdos mais carismáticos anti-salazaristas e anticolonia-listas do seu tempo, e em 1961 protagonizou o qui-xotesco seqüestro do paquete Santa Maria, que tevepor objetivo denunciar ao mundo a falta de liber-dade política que reinava no Portugal salazarista 7 .A exposição e a análise da obra literária do"primeiro" Henrique Galvão que Omar Thomaz em-preende no capítulo 3 proporcionam ao leitor umaviagem extremamente instrutiva e sensual pelo ima-ginário do Império. Nesse capítulo eu destacaria aleitura que o autor faz de "O paraíso das quarento-nas", uma das crônicas publicadas no livro Em terrade pretos (1929). Trata-se de uma crônica satírica,escrita nos alvores da colonização branca de Angola,na qual Galvão propõe que ela se faça com o ex-cedente de mulheres velhas, feias e solitárias dametrópole, que na colônia passariam por mais novase seriam muito desejadas por causa da brancura desua pele. Essa crônica, escreve Thomaz, é reveladorada visão imperial de Portugal que Galvão acalentava:"Da mesma forma que para as mulheres feias, velhase estrábicas o único futuro possível feliz era a África,também para Portugal sua única realização eram as (7) O leitor interessado em saber mais sobre a vida e opensamento de Henrique Galvão poderá complementar aleitura do capítulo que Thomaz lhes dedica com o estudo deLuís Farinha: "Henrique Galvão e o império". História. Lisboa:Publicultura, nº 21, 2000, pp. 18-28.JULHO DE 2003 209  CRÍTICA colônias africanas. [...] Tal como uma quarentena queaparenta haver perdido o seu vigor sexual, Portugalna África retomaria o seu vigor" (p. 174).Não me parece inoportuno comparar essa ima-gem de uma África pulsante de sexo que vem re-vitalizar a metrópole senil com uma outra fantas-magoria de Galvão: a do canibalismo africano, desen-volvida no livro Antropófagos (1947). A aceitaçãoacrítica por Galvão e outros europeus das acusaçõese confissões de canibalismo que ouviam na África —que eram no mais das vezes fruto de traduçõesdesgraçadamente literais da metáfora do "comer",central no idioma da baixaria — os levava a fixar-seno alegado canibalismo dos africanos com um des-lumbramento horrorizado. E essa animalização dosafricanos por meio do canibalismo funcionava, con-forme a análise de João Pina Cabral, "como umavalidação para as atitudes repressivas do podercolonial" 8 . A África libidinal e a África canibal con-figuram duas fantasmagorias distintas mas têm umdenominador simbólico comum: em ambas estamosperante um excesso de natureza, ou uma naturezaem excesso. Esse excesso pode regenerar (umanação exaurida ou velhas solteironas, por exemplo),mas pode também destruir a humanidade, tornando-se imperativo nesse caso a sua repressão.No capítulo 4, Omar Thomaz faz de ciceronenuma visita ao último dispositivo de imaginação doImpério que é contemplado no livro: as exposiçõescoloniais. Inaugurado com a Exposição Universal deLondres de 1851, esse tipo de evento, afirma o autor,"foi ganhando particularidades e as diferenças entreos distintos projetos coloniais se explicitaram cadavez mais". Assim, "se o exotismo e a alteridade re-presentaram o aspecto central de todas as exibições,no caso francês e também no caso norte-americano(e, como veremos, no caso português) procurou-se,com o tempo, enfatizar a assimilação dos nativos. Osucesso da missão colonial francesa e do colonialismointerno norte-americano estava diretamente relacio-nado à assimilação cultural: expunham-se, nos pavi-lhões, nativos vestidos à moda européia e com há-bitos ocidentais, o que era motivo de estranheza paraos visitantes britânicos" (pp. 206-207).Focando o caso português, Thomaz detém-seem duas exibições: a Exposição Colonial do Porto de (8) Pina Cabral, João de. "Galvão na terra dos canibais: aconstituição emocional do poder colonial". Novos Estudos, nº57, 2000, p. 139. 210 NOVOS ESTUDOS N.° 66 1934 e a Exposição do Mundo Português de 1940.A elucidação das orientações ideológicas, das estra-tégias expositivas e da recepção pública (tal como aimprensa a ecoou) dessas exibições é complementa-da com uma iconografia abundante. Reproduções depostais, cartazes e fotografias das exposições auxili-am o leitor a melhor imaginar a "cultura do império"da época salazarista. Em ambos os empreendimentosThomaz descortina uma combinação tensa entreexotização e assimilação dos sujeitos coloniais. Essacombinação relaciona-se com uma das idéias fortesque vai sendo retomada ao longo do livro e que ficabem clara nas considerações finais do capítulo 5. Oautor identifica aí o seguinte paradoxo constitutivodo colonialismo português na África nas décadas de1930 e 40: "Se a 'razão de ser' de Portugal era a'transfusão de almas' para gentes exóticas, esta nuncadeveria se realizar plenamente. O Estado Novo ga-rantia, assim, na fixação dos 'usos e costumes' dosindígenas os mecanismos que impediriam sua 'assi-milação total'. Tal procedimento poderia, contudo,colocar em risco a 'auto-imagem' do projeto civiliza-dor português — afinal, se não se ensina nada aosindígenas, ou muito pouco, não seria a colonizaçãoportuguesa um fracasso? Tratou-se, então, de valori-zar os 'usos e costumes' nativos e transformá-los em'riqueza' (de Portugal). Buscava-se dessa forma per-petuar o império — e sua estrutura hierárquica — e,assim, garantir, no gradualismo da 'transfusão dasalmas', a própria existência da nação portuguesa nosquatro cantos do mundo" (p. 277).O gradualismo da "transfusão das almas" de quese fala aqui era aquele consagrado pelo regime doindigenato que vigorou até 1961 nas colônias afri-canas (com exceção de Cabo Verde). O indigenatoexcluía da cidadania portuguesa a larga maioria dosafricanos, mas admitia a possibilidade de que estes aadquirissem por meio da "assimilação". Era por isso,em teoria pelo menos, escreve Thomaz, uma solução"gradualista" e não radicalmente segregacionista. Aoscilação entre um registro exotizante e um registroassimilacionista nas representações do Império podeentão ser entendida como correlata dessa ambivalên-cia escorregadia entre segregação e cidadania que ca-racterizava o regime do indigenato.Na comparação que faz da exposição de 1934com a de 1940 o autor identifica também algumasdiferenças. Na primeira, destaca como motivo forte acelebração da capacidade que a colonização por-tuguesa teria de tornar portugueses gentes de todas