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Estudo Crítico Das Fontes Sobre O Ayllu No Século Xvi

ESTUDO CRÍTICO DAS FONTES SOBRE O AYLLU NO SÉCULO XVI

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  Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998 ISBN 85-903587-3-91 Estudo crítico das fontes sobre o ayllu no século XVI Ana Raquel M. da C. M. Portugal 1  Os materiais utilizados pelo historiador para exercer o seu trabalho são genericamenteconhecidos por fontes, sendo que existem outras expressões para traduzir a mesma realidade,como é o caso de vestígios, testemunhos, documentos e monumentos. Todos se acercam àidéia de documento histórico de Pierre Salmon, que o considera o intermediário entre opassado e o historiador, um espelho da verdade histórica e até, por vezes, um espelhodeformador 2 .Ao trabalharmos crônicas do século XVI, sabemos que lidamos com documentoshistóricos conscientes , que são “testemunhos redigidos por homens que declaram ter assistidoou participado nos factos ralatados ou que se julgam capazes de os narrar com exactidão” 3 .Cabe no entanto, realizar uma crítica histórica das fontes desde o momento heurístico, vistoque a “crítica é a parte da ciência histórica que tem por fim determinar o valor dosdocumentos e dos testemunhos” 4 , entendidos estes últimos, como informações, dados ouelementos fornecidos pelos documentos. Costuma-se designar a crítica em geral porhermenêutica e segundo Dilthey, “como a vida do espírito só na linguagem encontra aexpressão capaz de possibilitar a sua compreensão total, completa, e por isso objetiva, aexegese consuma-se na interpretação dos vestígios da existência humana contidos em escritos.Esta arte é a base da filologia. E a ciência desta arte é a hermenêutica” 5 .Nosso objetivo neste artigo é apontar algumas características do ayllu, bem como, asprincipais fontes onde poderemos encontrar dados sobre a representação auferida ao ayllu porcronistas do século XVI. 1 Doutoranda em História – UFF/RJ. 2 SALMON , Pierre.  História e crítica . Coimbra: Livraria Almedina, 1979, p.61. 3 Ibid., p.61. 4 REGO, A. da Silva.  Lições de metodologia e crítica históricas . Porto: Portucalense Editora, 1969, p.151. 5    Apud  Patrick Gardiner. Teorias da História .   Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969, p.270.  Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998 ISBN 85-903587-3-92 O  ayllu e seus significados  No período pré-colonial, o ayllu constituía um grupo ligado por sistema de parentescoque, geralmente, possuía um espaço territorial delimitado. Já no período colonial ocorre umatransformação conceitual devido à importância dada ao espaço físico, ao território, e o ayllu  transforma-se em comunidade, onde os laços de parentesco deixam de ser o traçocaracterístico dessa estrutura.Os cronistas espanhóis, ao tratarem o ayllu , o identificaram com genealogia, linhagem eterritório. Pressupomos que foi das propostas de reagrupamento indígena de Matienzo quesurgiu a identificação de ayllu, redução e comunidade, pois não era o sistema de parentescoque interessava, e sim, o aldeamento dos índios. Nas crônicas indígenas, é usual encontrarmoscategorias européias mescladas a padrões culturais andinos, porém tais cronistas interpretamconsensualmente o ayllu , como sendo uma estrutura baseada em laços de parentesco degrande importância para a organização do Estado Inca.Os estudos contemporâneos sobre a idéia de ser a comunidade indígena atual um frutoda colonização serviram para provar que a transformação do conceito de ayllu ocorreurealmente no período colonial, tendo como principal fonte a concepção de redução deMatienzo, mais tarde conferida ao ayllu , que passou a ser visto como um espaço físicorepresentado pela aldeia.A noção de territorialidade que cronistas europeus conferiram ao ayllu não confere, nasua totalidade, com a realidade andina do período da conquista, pois havia diversos ayllus  compostos por grupos migrantes e de artesãos e pescadores, que não necessariamentedetinham um espaço territorial 6 . Por outro lado, o território ocupado por um ou vários ayllus  se chamava suyu , que é o equivalente em quechua do vocábulo espanhol  parcialidad  . Adiferença é que o ayllu ... “ ... era una unidad de parentesco unida por un srcencomúm y mítico. En cambio el suyu o parcialidad indicaba las divisiones socio- políticas de los vários ayllus agrupados en bandos, ello facilitaba la organizaciónde los grupos humanos mayores. El suyu o parcialidad tenía la función de ser una partedentro de un todo...” (Rostworowski, 1981, p.43). 6 CANSECO, María de Rostworowski de Diez. La voz parcialidad en su contexto en los siglos XVI y XVII, p.42-43 e PEASE, Franklin. Ayllu y parcialidad, reflexiones sobre el caso Collaguas, p.21. In: Amalia Castelli etal.  Etnohistoria y antropología andina . Lima: Centro de Projección Cristiana, 1981.  Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998 ISBN 85-903587-3-93 Segundo John Murra, uma das instituições andinas mais debatidas e pior documentadasé o ayllu 7  . Existem estudos 8 que sustentam a idéia da existência do ayllu ou hatha (em  quechua ou aymara ) desde o período pré-incaico. Nesse período, o ayllu seria uma famíliaextensa de linha matrilinear, o que, conforme Carlos N. Anavitarte, explica a presença demulheres curacas 9 . Com o desenvolvimento da agricultura, os ayllus transformaram-se empatriarcados. Esses ayllus tinham por base estrutural, além dos laços de parentesco, o vínculoreligioso. Cada grupo tinha um antepassado comum e também seus próprios deuses e huacas 10   . O território pertencia a todos os membros do ayllu e a terra era cultivadacomunitariamente através da ajuda recíproca. A reciprocidade era a principal característicados grupos étnicos organizados em ayllus . Essa reciprocidade 11 inicial se dava entre osmembros do ayllu e o curaca , que era o responsável pela divisão da terra a ser cultivada epelo armazenamento da produção. Suas terras também eram produzidas, bem como as que sedestinavam à manutenção das huacas e o restante dos produtos eram redistribuídos entre ogrupo. Conforme María Rostworowski, baseando-se nesse tipo de reciprocidade, os incasformaram o seu império, o Tahuantinsuyu 12  , pois à medida que ampliavam suas conquistas, onúmero de curacas unidos ao Inca por reciprocidade e por laços de parentesco foi 7 MURRA, John. Temas de estructura social y economica en la etnohistoria y el antiguo folklore andino.  In : Folklore americano . Año X, n.10, Lima, 1962, p.233. 8 Ver por exemplo: UHLE, Max.  El aillu peruano . Lima: Boletín de la Sociedad Geoggafica, 1911;VALCARCEL, Luis.  Del ayllu al imperio . Lima: Editorial Garcilaso, 1925; CUNOW, Heinrich. El sistema de parentesco peruano y las comunidades gentilicias de los incas . Paris: ENCINAS, J.A.; JIMENEZ, J. A., 1929[1890], V.1;  Las comunidades de aldea y de marca del Perú antiguo . Paris: ENCINAS, J.A.; JIMENEZ, J. A.,1929 [1891], V.2;  La organización social del imperio de los incas . Lima: ENCINAS, J.A., 1933 [1895], V.3; H.STEWARD, Julian.  Handbook of South American Indians . New York: Cooper Square Publishers, INC, 1963;ANAVITARTE, Carlos N.  El ayllu y la marca en el antiguo Peru . Cuzco: Garcilaso, 1965; VALERA, JoséMejia, Organización de la sociedad en el Peru preincaico. Cuadernos Americanos . Año XXXV, vol. CCIV, n.1,ener-febr, México, 1976; LUMBRERAS, Luis G.  Los srcenes de la civilizacion en el Peru . 5. ed. Lima:BATRES, Milla. 1981; EICH, Dieter.  Ayllú und Staat der Inka; zur Diskussion der asiatischenProduktionsweise. Frankfurt: Vervuet, 1983. 9 “senor principal de un pueblo” CANSECO, María Rostworowski de Diez.  Historia del Tahuantinsuyu . 2.ed.Lima: IEP,1988a, p. 295; María Rostworowski afirma ainda que são “numerosas las referencias en documentosde archivos sobre la presencia de mujeres curacas que ejercían directamente el poder durante los siglos XV yXVI...”  La mujer en la época prehispánica . Lima: IEP: 1988b, p. 6-7; ANAVITARTE, ibid.,   1965, p.16, nota 8. 10 “o guaca, templo del ídolo o el mismo ídolo” Ibid., 1988a, p. 296, nota 6. 11 Para uma melhor compreensão do significado de reciprocidade, consultar as obras de Marcel Mauss. Sociologia e antropologia . São Paulo: EPU/EDUSP, 1974, v.II; SAHLINS, Marshall.  Economía de la edad de piedra . Madrid: Akal, 1977 e TEMPLE, Dominique.  Estructura comunitaria y reciprocidad;   del quid-pro-quohistorico al ecomicidio. La Paz: Hisbol-Chitakolla, 1989. Para Mauss as “prestações e contra-prestações sãofeitas de uma forma sobretudo voluntária, por presentes, regalos, embora sejam, no fundo, rigorosamenteobrigatórias...”  In : 1974, p.45. Na análise de Marshall Sahlins , é a necessidade de atender aos imperativos dosistema de reciprocidade que srcina o dom, In: 1977, p. 151. Já para Temple, o dom e o contra-dom funcionamcomo mecanismos propulsores da produção. In: 1989, p. 122. 12 “...(Tawantinsuyu = las cuatro partes del mundo = todo el mundo), llamado imperio de los incas por loscronistas del siglo XVI” PEASE, Franklin.  Los Incas . 2.ed. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú,1992, p. 35).  Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998 ISBN 85-903587-3-94 aumentando, o que resultou num crescimento da força de trabalho disponível 13 , aumentando aprodução e gerando o excedente necessário à manutenção das ligações recíprocas com os ayllus .A dificuldade em se analisar o ayllu em tempos pré-incaicos reside na falta de dadosarqueológicos que comprovem as informações. Uma das obras existentes sobre o assunto é Asto: curacazgo prehispánico de los Andes Centrales, de Daniéle Lavallée e MichèleJulien (1983) 14 . Essas duas arqueólogas mostraram como a família extensa utilizava umahabitação, conforme os resultados obtidos de um trabalho arqueológico que trata dereconstruir a ocupação de um sítio em função do agrupamento familiar.Para analisarmos o período pré-colonial, podemos utilizar as crônicas espanholas eindígenas do século XVI. O problema é que estamos trabalhando com representações e nocaso dos cronistas espanhóis, estes, ao se depararem com realidades distintas das suas,traduziram para sua linguagem os conceitos relativos à estruturação do mundo andino, omesmo ocorrendo em relação ao ayllu. O europeu da conquista via o que queria ver e rejeitavaaquilo para o qual não estava mentalmente preparado 15 . Não podemos nos esquecer que,apesar de pertencerem à Idade Moderna, esses homens que eram movidos pela ambição deriqueza, estavam imbuídos de categorias do medievo europeu, ligadas à religiosidade, onde omedo do desconhecido, do outro, levou-os a imaginar um paraíso além mar 16 e quando sedepararam com a América, assimilaram esse  Mundus Novus paulatinamente . Já nas crônicasindígenas, como na de Guaman Poma de Ayala (1615), embora não apareça uma definição de ayllu , encontramos um esquema de funcionamento dessa estrutura e informações sobre asmecânicas de reciprocidade que justificam o ayllu . Sendo estes cronistas espanhóis ouindígenas, o que nos fornecem são imagens do ayllu e não comprovadamente uma reproduçãoplena de tal estrutura, de qualquer forma, poderemos utilizar tais fontes para tentarcompreender a diferenciação entre o ayllu pré-hispânico e o colonial.   Na documentação do século XVI, lê-se que o Tahuantinsuyu nasceu da anexação dediversas etnias, baixo ao controle político-religioso do chefe Inca, pois este era o filho do deusSol. A reciprocidade, como já mencionamos, foi fundamental para a expansão do território 13 CANSECO, op. cit., 1988a, p.65, nota 6. 14 JULIEN, Daniéle Lavallée Michèle.  Asto: curacazgo prehispánico de los Andes Centrales . Lima: IEP, 1983. 15 ELLIOTT, J. H. O velho mundo e o novo; 1492-1650 . Lisboa: Querco, 1984, p.28. 16 Ver TODOROV, Tzvetan.  A conquista da América ; a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983;Fernando Silva-Santisteban. El significado de la conquista y el proceso de aculturacion hispano-andino. In:SOLANO, Francisco et al. Proceso Histórico al conquistador  . Madrid: Alianza Editorial, 1988; DELUMEAU,  Anais Eletrônicos do III Encontro da ANPHLAC São Paulo – 1998 ISBN 85-903587-3-95 inca, tanto que os povos que desconheciam esses sistema não aceitaram a dominação incaica.O Inca estabelecia ligações com os chefes de ayllus oferecendo presentes em troca de trabalhoou, como nos mostra John Murra, estabelecendo laços de parentesco, contraindo emcasamento filhas desses curacas 17  . Porém, esse sistema tornou-se impraticável devido àsgrandes dimensões do império. Desse modo, quando um grupo não aceitava o domínioatravés da reciprocidade, o Inca colocava um funcionário de sua confiança no lugar do curaca  local, estabelecendo assim, suas regras organizativas. O aumento do território e da populaçãoocasionou a necessidade de maior produção para ser redistribuída e atender ao sistema dereciprocidade.Karl Polanyi aplica os conceitos de reciprocidade e redistribuição no estudo depopulações africanas (1957) 18 e John Murra os reutiliza, caracterizando o Tahuantinsuyu  como sendo um Estado 19 redistributivo 20 , não porque fosse um Estado com fins humanitários,mas porque isso era essencial para manter a coesão do Império. Isso ocasionou mudanças naorganização produtiva dos ayllus , pois se antes a reciprocidade e a redistribuição se davam emfunção das relações de parentesco entre o chefe do ayllu e seus membros, agora passam aocorrer em função da relação político-religiosa estabelecida entre esses grupos e o Estadoinca 21 .Durante o domínio inca, os ayllus permaneceram como grupos ligados por laços deparentesco e aqueles que tinham a posse da terra, perderam-na, passando esta ao controle doEstado que, por sua vez, a dividiu em terra do Sol, do Estado e do povo. A cada ano era feita a Jean.    História do medo no Ocidente ; 1300-1800 uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989;O’GORMAN, Edmundo.  A invenção da América. São Paulo: UNESP, 1992. 17 MURRA, John. La guerre et les rébellions dans l'expansion de l'État inka.  Annales ; économies, sociétés,civilisations. 33e année, n.5-6, sep-déc, p.927-935, Paris, 1978, p.929. 18 POLANYI, Karl et al. Trade and Markets in the Early Empires . Illinois: The Free Press Glencoe, 1957. 19 Estado - “Desde el punto de vista antropológico, como político, y tal como lo define Kelsen, ‘el Estado es unasociedad políticamente organizada bajo un ordenamiento coercitivo’. Es exacta la definición del célebre jurista,puesto que al decir ‘políticamente organizada’ se está refiriendo a sociedades cuya organización incluye varioslinajes, clanes o tribus, y la organización ‘política’ empieza con la unión, domínio o cooperación de gruposdistintos por encima de los lazos de parentesco; y al decir ‘coercitivo’ alude a la característica fundamental delEstado señalada por Max Weber, quien lo definió como ‘la asociación humana que reclama para si, con éxito, elmonopolio legítimo de la fuerza física’. Como quiera que se lo interprete el Estado está relacionado con el poderpolítico y con el control de los excedentes de la producción” Fernando Silva-Santisteban. Desarrollo tecnologico,ideologia y espacios de poder en el Peru antiguo. In: Marco Curatola, Fernando Silva-Santisteban. (eds.)  Historia y cultura del Peru . Lima: Universidad de Lima/Museo de la Nacion, 1994, p.296-297. 20 MURRA, John Murra.  La organización económica del estado Inca . 3. ed. Mexico: Siglo XXI Editores, 1983,p.198. 21 GODELIER, Maurice.  Horizontes da antropologia . 2.ed. Lisboa: Edições 70, 1977, pp.336-337.