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ética E Estética Em Nietzsche - Ernani Chaves

ÉTICA E ESTÉTICA EM NIETZSCHE: CRÍTICA DA MORAL DA COMPAIXÃO COMO CRÍTICA AOS EFEITOS CATÁRTICOS DA ARTE.1 ERNANI CHAVES à Marco Brusotti. RESUMO O presente artigo trata das relações entre arte e moral no pensamento de Nietzsche, tomando como referência a questão da catarse. Procura-se mostrar em que medida a crítica de Nietzsche aos efeitos moralizantes da tragédia e da arte em geral acompanha a trajetória de seu pensamento, culminando, em especial a partir do Zaratustra, com a crítica da mor

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  45  É  TICA    E  E  STÉTICA    EM  N   IETZSCHE  : CRÍTICA    DA   MORAL    DA   COMPAIXÃOCOMO   CRÍTICA    AOS     EFEITOS CATÁRTICOS     DA    ARTE  . 1  ERNANI CHAVES à Marco Brusotti.  R  ESUMO O presente artigo trata das relações entre arte e moral no pensamento de Nietzsche, tomando como referência a questão da catarse. Procura-se mostrar em que medida a crítica de Nietzsche aos efeitos moralizantes da tragédia e daarte em geral acompanha a trajetória de seu pensamento, culminando, emespecial a partir do  Zaratustra , com a crítica da moral da compaixão emSchopenhauer.  P   ALAVRAS  - CHAVE  : tragédia, catarse, compaixão, identificação, empatia.  A  BSTRACT  This article deals with the relations between art and moral in the thought of  Nietzsche taking as a reference the theme of catharsis. Therefore, it intendsto show in which way Nietzsche’s critique to the moralizing effects of tragedyand art in general follows the trajectory of his thought, particularly after   Zaratustra , reaching its highest level on the critique of the moral of compassionin Schopenhauer.  K   EY  W  ORDS  : tragedy, catharsis, compassion, identification, empathy. IRetomo neste artigo, aquele que é, seguramente, um dos temas do pensamento de Nietzsche, que mais chamou a atenção dos intérpretes.Um velho tema, portanto, que espero, não frustre demasiadamente o 1 Este artigo foi escrito a partir de material recolhido entre janeiro e março de2003, durante temporada de estudos em Weimar, na Alemanha, dentro doPrograma de Intercâmbio de Cientistas DAAD/CAPES, a quem agradeço. Alémdisso, ele se insere na pesquisa desenvolvida como Bolsista de Produtividade doCNPq, acerca do conceito de catarse no pensamento de Nietzsche.  46 ETHICA R  IO   DE J ANEIRO , V .11,  N .1 E 2, P .45-66, 2004 leitor. Isto porque, creio que a expectativa quando se trata do tema da“ética”, é hoje - mesmo em se tratando de Nietzsche - bem diferente daque me proponho aqui. Refiro-me, em especial, aos desdobramentosdo pensamento de Kant na filosofia contemporânea, em pensadorestão diversos como o francês Paul Ricouer, o alemão Jürgen Habermase o norte-americano John Rawls, apenas para citar alguns. Umadiscussão, onde Nietzsche em geral, ou é desconsiderado ou assumeo papel de “advogado de um diabo” bem específico: o do irracionalismoou o do inimigo da democracia. Com esta observação inicial, eu gostariatambém de demarcar, com a maior clareza possível, os limites desteartigo: permanecerei no interior do pensamento de Nietzsche, de seustextos, de suas provocações.Entretanto, talvez para me auto-consolar e não parecer tãoanacrônico, tentarei mostrar a velha questão das relações entre arte emoral em Nietzsche, a partir de um ponto de vista pouco ou quasenunca explorado pelos intérpretes, qual seja, a partir da questão dacatarse. Uma questão que atravessa, de ponta a ponta a sua obra, do  Nascimento da Tragédia ao  Anticristo . O fragmento intitulado “  L´art  pour l´art  ” do Crepúsculo dos Ídolos ou seja, de um texto tardio,datado de 1887, começa colocando a questão, ou melhor recolocandoa questão, presente desde muitos anos antes, no seu primeiro livro:“O combate contra a finalidade na arte é sempre o combate contra atendência moralizante na arte, contra sua subordinação à moral”. 2 Ora, a questão da “tendência moralizante da arte”, de que fala Nietzsche, está diretamente relacionada à difusão e à recepção da  Poética , de Aristóteles, desde a Renascença. A famosa passagemsobre a finalidade da tragédia como sendo a catarse da compaixão edo medo suscitados pelo espetáculo trágico, provocou inúmeras ediversas interpretações. Dos eruditos da Renascença, passando pelosdramaturgos franceses Corneille e Racine e sua luta contra Shakespearee chegando à Alemanha, através de Lessing, Goethe e Schiller, Herder e Hölderlin, Hamann e Lenz, Hegel e Schopenhauer, acrescido dointenso debate nos círculos dos filólogos, esta é uma das questõesmais candentes da História da Estética. Tratava-se de decidir sobre a 2    Kritische Studienausgabe , Berlin/München, Walter de Gruyter/DTV, 1988,vol. 6, p. 127 (doravante citada como KSA, seguida do volume e da página).Trad. bras.: Obras Incompletas , trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho, 2ª. ed.,São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 337.  R  IO   DE J ANEIRO , V .11,  N .1 E 2, P .45-66, 2004   ETHICA 47 verdadeira interpretação do termo “catarse”: se purificação (Reinigung)e, com isso, sairia fortalecida a tendência moralizante, se purgação(Purgation) ou simplesmente descarga (Entladung) dos afetos emquestão, o que produziria um “alívio” (Erleichterung) prazeroso.A posição de Nietzsche no interior deste debate, sempre foi do ladodos críticos da tendência moralizante. Uma posição que lhe rendeu,desde O Nascimento da Tragédia , as mais severas reprimendas.Lembremos que uma das acusações do jovem filólogo em ascensão,Ulrich von Willamowitz-Möllendorf dirigidas ao livro, foi a de que Nietzsche “barateava Aristóteles”, ao deixar de lado o problema dacatarse 3 . Lembremos ainda que na defesa de Nietzsche, seu amigo-filólogo Erwin Rodhe afirmava, que a presença de Aristóteles no livronão poderia ser avaliada pelo número explícito de citações aoEstagirita. Rodhe criticava “os que se prendem de maneira pusilânimea Aristóteles, como faz uma criança nas saias de sua mãe” 4 . E maisainda: insistia, ao contrário de Willamowitz, em vincular Nietzsche àmelhor tradição de estudos filológicos sobre a  Poética , onde sedestacava Jacob Bernays, que como Nietzsche fora também ligado aFriedrich Ritschl e indicado pelo mestre para uma cátedra de Filologia,desta feita na Universidade de Breslau. Rohde, inclusive, citaexplicitamente Bernays, que em 1857, publicara um longo estudo sobreo problema da catarse em Aristóteles 5 . 3 Cf. Querelle autour de ‘La naissance de la tragédie’. Nietzsche, Ritschl, Rohde,Willamowitz, Wagner  , Paris: Vrin, 1995, p. 123. 4 Idem, p. 212. 5 Trata-se do “Grundzüge der verlorene Abhandlung des Aristóteles über dieWirkung der Tragödie”. Nietzsche emprestara este texto da Biblioteca daUniversidade da Basiléia em 1871, isto é, em plena elaboração do  Nascimentoda Tragédia , mas já o conhecia desde seus tempos de estudante de Filologia. Otexto de Bernays foi reeditado em 1968 pela Wissenschfatliche Buchgesellschaft,de Darmstadt. Ver a respeito das relações entre Bernays e Nietzsche: CarloGentilli, “Bernays, Nietzsche e la nozione di trágico: alle srcine di uma nuovaimagine della Grecia”.  Rivista di Litterature moderne e comparate , Vol. XLVII,Fasc. 1, gennaio-marzo 1994; Lucas Crescenzi, “Philologie und deutsche Klassik. Nietzsche als Leser Paul Graf Yorck von Wartenburg” in Centauren-Geburten.Wissenschaft, Kunst und Philosophie beim jungem Nietzsche . Berlin/New York,Walter de Gruyter, 1994; Barbara von Reibnitz,  Ein Kommenter zur Friedrich Nietzsche „Die Geburt der Tragödie aus dem Geist der Musik” , Stuttgart, Metzler,1992; J. Glucker et A. Lakas (ed.),  Jacob Bernays. Un philologue juive , Lille,Press Universitaire du Septentrion, 1996; Karlfried Günter, „Jacob Bernays unddie Streit über die Katharsis” (1968) in M. Luserke (Hrsg.),  Die Aristotelische Katharsis. Dokummente ihrer Deutung im 19. und 20. Jahrhundert  , Hildesheim/  48 ETHICA R  IO   DE J ANEIRO , V .11,  N .1 E 2, P .45-66, 2004 O argumento fundamental de Bernays que Rohde retoma, é ade que o enigma da catarse se resolve, em grande parte, no Livro VIIIda  Política , onde Aristóteles trata, em franca e direta oposição à  República platônica, do papel da música na educação dos jovens enão na passagem tão comentada da  Poética . Uma idéia que não énova, que já é considerada na Renascença, mas que é utilizada por Bernays de maneira inversa à tradição de estudos sobre a  Poética ,que insistia na tendência moralizante. Desta perspectiva, Aristóteles,ao utilizar-se de um termo médico, transportando-o para a música (noLivro VIII da  Política ) e, ao mesmo tempo, ao atribuir à tragédia osmesmos efeitos “catárticos” dos “cantos sagrados”, “espera – escreveRodhe na esteira de Bernays - que seus leitores se aproximem destasimpressões musicais, a partir de uma disposição de fato trágica”. Assim,tornar-se-ia explicável – a idéia é ainda de Bernays – que tanto amúsica quanto a tragédia, pudessem produzir o mesmo efeito“purgativo”. Com isso, Bernays criticava abertamente a tradução de“katharsis” por   Reinigung  , “purificação”, proposta por Lessing na  Dramaturgia de Hamburgo , preferindo  Entladung  , ou seja, conformedissemos acima, a “descarga” da compaixão e do medo que elevadosà máxima excitação, deveriam conduzir após este ápice bastante perigoso para o indivíduo, a um “alívio” prazeroso 6 . Rohde acreditavaencontrar esta mesma posição em Nietzsche.Como podemos ver, a questão da catarse já estava presentedesde a primeira grande polêmica em torno da obra de Nietzsche. Nãose pode deixar de observar, que Rohde viu bem o quanto Nietzscheestava afastando-se dos preceitos metodológicos que se consagraramna Filologia da época e recolocando as questões filológicas a partir deum outro referencial. De fato, a única menção explícita à catarse, nocapítulo 22 do  Nascimento da Tragédia , é antecedida, no capítulo 20,não por acaso certamente, de uma crítica aos “filólogos universitários”.Incapazes, no seu afã de nos devolver o “ser helênico”, de se afastaremdas vias abertas pela “nobilíssima luta de Goethe, Schiller e Zürich?New York, Georg Holms Verlag, 1991 e Maris Cristina Franco Ferraz,„Katharsis e Arte no pensamento de Nietzsche” in  Nove variações sobre temasnietzschianos , Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002. 6 Jacob Bernays “Grundzüge...”, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,1968, caps. 1 e 2. Bernays acrescentava que o teatro não poderia ser visto como„uma casa de correção moral” ou como uma “dona de casa” (Hausfrau)encarregada de sua limpeza (Reinigung) diária.