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O Bushidô Por Nitobe: Uma Nova Identidade Para A Sociedade Japonesa Do Século Xx

This study presents the use of bushido, the ancient samurai code of conduct, by the intellectual Inazo Nitobe (1862-1922) as a tool for the creation of modern Japanese identity aimed at rapprochement with Western audiences and allowing the

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    III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE O BUSHIDÔ POR NITOBE: UMA NOVA IDENTIDADE PARA ASOCIEDADE JAPONESA DO SÉCULO XX Gabriel Pinto Nunes 1   Resumo Este estudo apresenta o uso do bushidô, antigo código de conduta dos samurais, pelointelectual Inazo Nitobe (1862-1922) como instrumento para a criação da identidade japonesa moderna visando à aproximação com o público ocidental e permitindo oestabelecimento de valores que ajudassem na formação do estado nacional. Palavras-chaves: identidade, ética, Japão. Abstract This study presents the use of bushido, the ancient samurai code of conduct, by theintellectual Inazo Nitobe (1862-1922) as a tool for the creation of modern Japaneseidentity aimed at rapprochement with Western audiences and allowing the establishmentof values that help in the formation of the national state. Keywords: identity, ethics, Japan. Introdução Uma característica dos primeiros anos do século XX comum a diversos povos nomundo foi a tentativa de concretizar os projetos de criação de nações, algo jáexperimentado por alguns povos europeus no século XIX. Os conflitos armados no lesteeuropeu como o ocorrido em 1992 na Bósnia mostram que este assunto ainda não estátotalmente resolvido e, possivelmente, nunca venha a existir uma situação na qual todosos povos possam ter sua autonomia, a busca pela soberania é algo constante em ummundo cheio de povos que sempre estão a buscar seu reconhecimento e autonomia.Hobsbawm na obra As Invenções das Tradições  (2008) 2   1 Mestrando do programa de Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo. indicou como se dá o processo 2 Refiro-me a seguinte passagem da obra: “Por “tradição inventada” entende-se um conjunto depráticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, denatureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através darepetição, o que implica automaticamente, uma continuidade com o passado. Aliás, sempre quepossível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.” (HOBSBAWM,2008, p. 9)    III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE seguido por grade parte dos países: a criação da identidade nacional baseada em umatradição inventada, em releituras de antigos costumes tomados como pertencentes adeterminados grupos humanos, mas que em sua maioria são abstrações de ideais ecostumes pré-concebidos pela classe dominante da região. Os homens entraram noséculo XX em busca de identidade, algo com o qual pudessem se identificar e seentendessem como parte do todo, não buscam apenas saber quem são, mas a qualgrupo pertencem.Nos países do extremo leste asiático o processo não foi diferente, porém amotivação se deu principalmente pela presença dos europeus que buscavam novosmercados consumidores e áreas para exploração de matéria-prima. Houve odesenvolvimento de agressivas políticas de colonialismo respaldadas pelo cientificismo,em especial das teorias raciais provenientes do evolucionismo social de pensadores comoHerbert Spencer. Se de um lado a ciência possibilitou a melhoria da qualidade de vida dealguns, por outro condenou milhares à fome e pobreza com argumentos científicos quevalidavam a existência de raças superiores, e essas deveriam ser beneficiadas parapromoverem o crescimento da humanidade. Temos os casos de fome que assolaram aÍndia no ano de 1857 quando em torno de 30 milhões de pessoas morreram devido aseca e a política imperialista britânica que voltava todos os recursos das produções paracumprir as metas de envio de alimentos ao Império, tirando o sustento de milhares depessoas que pertenciam a uma raça considerada inferior.Não se trata de um choque de civilizações, mas da imposição ideológica doseuropeus que na época, por meio da superioridade tecnológica em especial no campobélico, conseguiu difundir a ideia que a cultura europeia seria superior às demais porqueo homem europeu pertencia a uma raça superior dentro da humanidade. A imposição domodo de pensar europeu trouxe seríssimos problemas aos povos colonizados que viamsuas terras serem transformadas em protetorados das coroas europeias e que aindalutam para tentar corrigir o mal causado.Entretanto, alguns países puderam se preparar para absorverem a propostacapitalista e adaptaram-se de forma a serem parceiros econômicos, desta forma,evitaram serem tomados como mercados consumidores. Entraram na mesa denegociações com as potências mundiais não como fornecedores de matéria-prima e mão-de-obra ou colônias, mas como grandes mercados produtores que disputavam o espaçoeconômico mundial. O Japão figura entre estes povos que em poucos anos abandonou oseu sistema de produção similar ao feudalismo para adotar o liberalismo econômico etornar-se uma potência econômica, moderna e mundial.    III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE Os líderes Meiji habilmente mesclaram passado e futuro na estratégia deconstrução da modernidade japonesa. Em torno da concepção do Império doGrande Japão, sedimentaram-se ideologicamente os interesses da nação emformação em conformidade com os outros do Estado.Houve uma “capitalização do passado”, como diz Lévi-Strauss, no sentido deglorificar a história do povo japonês para fomentar o orgulho nacional. O alicerce daargumentação baseava-se na ideia da uniqueness  , exclusividade, da cultura japonesa e a história foi amplamente usada para justificá-la. (SAKURAI, 2008,p.146) Mas para conseguirem tal feito não modificaram apenas o sistema econômico,mudanças sociais e culturais foram necessárias. Uma cultura ( bunka  ) foi criada, algo quefornecesse identidade ao povo japonês, com o qual qualquer cidadão pudesse sereconhecer como parte. Veremos brevemente uma das propostas de criação deidentidade do povo japonês desenvolvida pelo intelectual Inazo Nitobe (1862-1933) edifundida principalmente em sua obra Bushido – The Soul Of Japan  (1900). Nitobe e sua proposta de identidade nacional O Japão por mais de duzentos anos impôs uma política isolacionista conhecidacomo sakoku  , similar a adotada pela Coréia do Norte contemporaneamente. Ninguémpoderia sair ou entrar do arquipélago sem autorização do governo, o que lhes permitiuviver sem a interferência das potências que procuravam novos mercados. A Pax Tokugawa  3  Com a abertura dos portos os japoneses foram obrigados a se repensarem, aconstituírem uma cultura que fosse tão forte e completa como as que eram apresentadaspelas novas nações com que iniciavam o contato. Diversos intelectuais se dispuseramneste trabalho de constituição da cultura e identidade japonesa, em repensar um modelosocial de cidadão que correspondesse às novas políticas adotadas pelo novo governo.Inevitavelmente os padrões adotados começaram a seguir os modelos europeus, emparte devido à propaganda da raça superior e pela eficiência demonstrada no campopolítico.findou com a chegada do comandante Perry ao Japão em 1853 com umacarta do presidente estadunidense endereçada ao Imperador japonês pedindo a aberturados portos para que navios baleiros pudessem aportar e serem reabastecidos antes deretornarem aos Estados Unidos. Este evento auxiliou o fim do xogunato que jádemonstrava desgaste pela política ultrapassada para a época. 3 O termo Pax Tokugawa, segundo Carol Gluck (1998, p. 281), foi usado por Taguchi Ukichi ao sereferir que no Período Tokugawa (1603-1858), no qual o poder político no Japão passou das mãosdo Imperador para o Xogum, o generalíssimo das forças armadas imperiais, havia uma paz internado arquipélago por haver a diminuição dos conflitos armados, mas que na posterioridade sofreucrítica por ser uma leitura que incentivava a criação fantasiosa do Período Tokugawa.    III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE Devemos ter claro que a identidade a qual nos referimos é a entendida segundo aconotação moderna atrelada a uma cultura que identifica um povo. Antes da aberturados portos ao final do século XIX entre os habitantes do arquipélago já existia aconcepção de identidade, porém muito mais restritiva na qual podemos entender que oindivíduo mantinha laços familiares com o han  4  Segundo Sonoda (1990), antes mesmo da redação da Constituição Japonesa de1889 já era discutido dentro do Parlamento o status que seria dado à espada, uma vezque os samurais estavam em vias de serem abolidos. Nestas discussões, chegaram àconclusão que ela deveria se tornar um símbolo do caráter dos samurais, visto que o seuuso no campo de batalha já estava descartado por sua ineficácia diante dos armamentosmodernos. O mesmo ocorreu com o samurai que foi transformado em um símbolo paragarantir a continuidade de valores considerados importantes para todo o povo japonês. Aespada simbólica era indestrutível, criada em um processo mítico no qual o armeiro davauma alma a cada espada, tornando-a um instrumento de vida único e inimitável. Osamurai heroicizado e criado pelos intelectuais não tremia de frio nem sentia fome e eraimpassível diante dos males carnais.em que vivia. Quem vivia no norte se viadiferente dos japoneses do sul, a grande questão era a ausência de unidade nacional e aproposta de Nitobe foi uma das que ajudaram na divulgação de algo nacional, umaidentidade que pudesse abarcar todos os povos sem que houvesse conflito. Essa imagemgenérica, mas sólida, também foi usada na propaganda externa como veremos maisadiante. Por otra parte, se aprecia igualmente el reflejo del Bushidô en la segunda norma decarácter fundamental, El Edicto Imperial de la Educación de 1890, querepresentaba la pervivencia de los valores neo-confucianos y de los valorestradicionales japoneses, tan fortalecidos durante el shogunato de Tokugawa; y queconstituía una especie de freno a la invasión masiva de la cultura y de la civilizaciónde Occidente. En el Edicto Imperial de 1890 se hace también una expresa alusión alsrcen divino del Emperador Meiji y presenta un modelo shinto-confuciano  deEstado-familia, lo que parece anacrónico y contradictorio con las ideasconstitucionales del Estado moderno. (NAVARRO, 2008, p.250) A difusão dos novos valores na sociedade se deu pelo Édito Imperial de Educaçãode 1890 que impusera aos japoneses uma educação pautada em valoresneoconfucionistas que de certa forma reinterpretava o código de conduta dos samuraisvisando à formação do caráter do cidadão ao mesmo tempo em que agia como barreirafrente à influência estrangeira na cultura nipônica. 4   Han  na sociedade japonesa feudal equivaleria ao feudo ocidental, o senhor feudal era conhecidocomo daimyo  .    III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE El Edicto Imperial de la Educación incorporaba los preceptos Morales neo-confucianos del nacionalismo moderno, tratando de hacer de estos principios losfundamentos de la educación. Así, los niños eran enseñados a transmitir la gloriadel carácter fundamental del Imperio, así como a captar y trasmitir las mejorestradiciones de los antepasados. Por lo que, era uma inconfundible reacción frente ala rápida occidentalización del país y un deseo de retornar a la pureza del Japón.(NAVARRO, 2008, p. 248) Inazo Nitobe (1862-1933) não foi um filósofo, mas tinha como preocupaçãoencontrar uma identidade para os japoneses no início do século XX. Se a época em queviveu foi um período com mudanças econômicas e sociais, a estrutura política manteve-se aparentemente inalterada. A ocidentalização da sociedade e da economia foiincentivada pelo governo por ser entendida como sinônimo de modernização, aocontrário de mudanças políticas que eram entendidas como indício de desestabilização,havendo a continuidade de alguns grupos políticos no poder. A necessidade de ummodelo nacional foi preenchida pela figura da recém-extinta classe social do Japão: osamurai.A concepção de identidade nacional proposta por Nitobe e apresentada ao públicoocidental por meio da obra Bushido – The Soul of Japan  (1900), era baseada na releiturado antigo código de conduta dos samurais (bushidô) associado com valores cristãos quedeveria ter como principal papel possibilitar a aproximação cultural entre ocidente eJapão, além de fornecer uma identidade nos moldes dos padrões europeus. O processopelo qual o Japão passou é similar ao que os povos europeus passaram para construir aideia de tradição. Bushido, then, is the code of moral principles which the knights were required orinstructed to observe. It is not a written code; at best it consists of a few maximshanded down from mouth to mouth or coming from the pen of some well-knownwarrior or savant. More frequently it is a code unuttered and unwritten, possessingall the more the powerful sanction of veritable deed, and of a law written on thefleshly tables of the heart. It was founded not on the creation of one brain, howeverable, or on the life of a single personage, however renowned. It was an organicgrowth of decades and centuries of military career. (NITOBE, 1972, p.25) A escolha do bushidô não foi aleatória, outros autores desenvolveram trabalhosparecidos com o de Nitobe, envolvendo outras concepções nipônicas – como OkakuraKakuzô com o chadô  (caminho do chá), mas o termo bushidô fornecia algumasparticularidades sendo a principal ser tomado como código ético. Isto permitiu que osvalores apresentados obrigatoriamente fossem exigidos pela sociedade e cobrados doshomens, ou seja, a honestidade foi tomada como um valor positivo tanto para o homemcomo indivíduo dentro da sociedade, como toda a sociedade deveria ser honesta quando