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Os Desenhos Do Cronista Guaman Poma De Ayala E A Discussão Da Alteridade

OS DESENHOS DO CRONISTA GUAMAN POMA DE AYALA E A DISCUSSÃO DA ALTERIDADE

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  OS DESENHOS DO CRONISTA GUAMAN POMA DE AYALA E ADISCUSSÃO DA ALTERIDADEAna Raquel Portugal 1 Resumo Guaman Poma de Ayala foi um cronista indígena que escreveusua obra entre 1567 e 1615 e nela inseriu vários desenhos baseados natradição oral dos povos andinos. O uso do recurso visual junto com oescrito foi a forma por ele encontrada de melhor se comunicar com oespanhol, ou seja, com o “outro” que ele tentava dissuadir decontinuar praticando atrocidades contra seu povo. Seus desenhosrepresentam então, o processo de alteridade vivido noencontro/desencontro desses povos em que era necessário recorrer aimagens familiares aos dois mundos para poder defender os índios docolonialismo espanhol e ajudar no resgate de sua identidade e de umlugar dentro da nova sociedade colonial. Palavras-chave Guaman Poma de Ayala; alteridade; crônicas.Em 1615, Felipe Guaman Poma de Ayala terminou de escrever sua crônica intitulada Nueva Corónica y buen gobierno 2 para o rei Felipe III da Espanha. Tratava-se de uma cartacom 1.189 páginas solicitando ajuda para acabar com os males da colonização, que foramobservados por ele ao longo de suas viagens pelo território andino. Visando facilitar acomunicação com seu receptor europeu, Guaman Poma adicionou 398 desenhos a sua carta, pois conforme Sabine Fritz, o diálogo no contexto da Conquista espanhola implicou nanecessidade de uma mediação não só entre diferentes idiomas, mas também entre diferentesvisões de mundo e distintas formas de codificação cultural (2005: 74). Guaman Poma na suaobra transmitiu pesar diante de fatos que não podiam mais ser modificados. Para tal, usou aexpressão "mundo al revés"  em todas as passagens que mostravam seu repúdio pela desgraçaocorrida em sua época. Para Roger Zapata, esse comportamento reflete o desencanto deGuaman Poma em relação ao Outro representado pelo europeu, o que o levou a buscar a 1 Professora de História da América – UNESP/Franca - BRASIL. 2 http://www.kb.dk/elib/mss/poma/  solidariedade de seus irmãos de raça e a denunciar os maltratos recebidos das mãos deespanhóis (1992: 205).Guaman Poma era índio puro srcinário de Huamanga, região hoje conhecida por Ayacucho e que fica na parte sul dos Andes peruanos. Levou uma vida itinerante e, entreoutras coisas, foi auxiliar do Visitador de Idolatrias Cristóbal de Albornoz, com quemaprendeu os códigos culturais europeus. Utilizou tais códigos para obter prestígio junto aosespanhóis e poder pleitear seus direitos por ser descendente da nobreza Yarovilca, que haviaantecedido aos Incas e como filho e neto de homens que haviam servido em importantes postos aos senhores Incas do Tahuantinsuyu 3 (ROLENA, 2001: 4).Em sua crônica, Guaman Poma mencionou que o Tahuantinsuyu teria sido doado aosespanhóis, negando que os povos andinos tivessem sido dominados em uma guerra justa, esim, que teria havido a busca do estabelecimento de relações de reciprocidade entre eles(PEASE, 1994: 317). Ele entendeu a dinâmica do mundo colonial através de estruturasmentais indígenas, procurando transformar a sociedade em que vivia.Por ser  índio ladino , ou seja, índio alfabetizado e cristianizado pelos espanhóis, nossocronista expôs em sua carta muitas histórias bíblicas, como por exemplo, a de Adão e Evacomo sendo o casal srcinal do mundo andino. Nesse período, os homens teriam tido maior conhecimento do verdadeiro Deus e com o passar do tempo teriam deixado essa crença,tornando-se idólatras. Mesmo diante desse pensamento cristão, podemos afirmar que nossoautor não esqueceu sua identidade andina, pois sua obra trata-se de um diálogo entre doismundos, em que essa história bíblica se confunde com a visão milenarista e cíclica do tempoandino. Assim, ele acreditava que o mundo ocidental tinha quatro idades antes de Cristo comono mundo andino antes dos Incas, ou seja, a primeira idade, a de Adão e Eva; a segunda, a de Noé; a terceira, a de Abraão; e a quarta, a de David; e Cristo simbolizaria a quinta idade, bemcomo, os Incas na civilização andina (YARANGA VALDERRAMA, 1991: 70). Na primeira parte de sua crônica, intitulada a Nueva Coronica, Guaman Pomadescreveu tais idades da criação dos índios; abordou a história dos reis Incas, das coyas (rainhas), dos comandantes; tratou dos meses do ano, dos ritos e cerimônias; dos enterros edas acllas (“escolhidas” para servir aos templos); da justiça, das festas e da organização dogoverno incaico; e por fim, escreveu sobre a conquista do Tahuantinsuyu por Pizarro e asguerras civis. Na segunda parte, com o título de Buen Gobierno , tratou dos governos dosnove primeiros vice-reis e dos grupos sociais que havia na época, como por exemplo, osreligiosos, os funcionários da Audiência, os corregidores, os soldados, os encomendeiros, os 3 Império dos quatro quadrantes. 2  curacas 4 , índios comuns e escravos negros. Traçou também considerações a respeito da política colonial e propôs novas soluções.Guaman Poma passou muitos anos escrevendo sobre seus antepassados baseado natradição oral, que recolheu durante suas viagens por todo o Tahuantinsuyu . Discorreu sobre as primeiras gerações de índios, que segundo o cronista, eram seres que não sabiam se vestir eviviam em cavernas. Passado algum tempo, aprenderam a plantar e a irrigar a terra.Trabalharam-na e construíram casas e fortalezas. Também conheceram o ouro e a prata, queusavam para fazer enfeites. Depois de terem domesticado alguns animais, passaram a criar  llamas , alpacas e guanacos, dos quais aproveitavam a lã para fazer roupa. A populaçãomultiplicou-se e conquistou toda a região andina muito antes dos Incas, os últimosgovernantes dessas terras antes da chegada dos espanhóis. Dedicaram-se a observar os astros para controlarem os períodos de semeadura e colheita, já que eram povos agrícolas. SegundoGuaman Poma, esses conhecimentos foram passados de geração a geração. Por serem muitotrabalhadores havia comida e gado em abundância.O hatun runa ou homem comum, ao casar-se recebia um tupu para o sustento de suafamília. Maria Rostworowski num estudo sobre os sistemas de medições no mundo andinoconcluiu que um tupu era o lote de terra suficiente para a subsistência de um casal sem filhos(1993: 178). Guaman Poma coloca que quando nascia uma criança, esta recebia um nome eera apresentada ao ayllu (grupo ligado por laços de parentesco), que se encarregava da suaalimentação e educação, pois também tinha direito a um pedaço de terra.Guaman Poma elogiou a administração incaica por partilhar terra entre toda a população, não deixando que ninguém ficasse sem ter onde produzir. Conforme o calendárioincaico, no mês de julho, os funcionários do Inca visitavam todos os ayllus para redistribuir aterra e isso era amplamente festejado. Naquele tempo, segundo Guaman Poma, não havia ladrões, mentira, inveja, preguiça,nem dívidas, porque havia muita justiça. Na época dos Incas cuidava-se dos pobres e fracos enão havia fome.Guaman Poma descreveu todas as festas realizadas ao longo do ano, sendo que a principal era o  Inti Raymi , que acontecia em dezembro. Era a festa do deus Sol em que sefaziam muitos sacrifícios, inclusive humanos.Este cronista relatou todas as instâncias da organização incaica, mas usou categoriaseuropéias, tanto religiosas como administrativas. Por isso, quando documentou a lista defuncionários do Inca, deu-lhes a denominação espanhola e indígena, agindo como grande 4 Chefe local. 3  tradutor do mundo andino. Por exemplo, alguns cargos como o de "Corrigidor. Tocricoc; ouo (...) Administrador. Suyuyoc"  (GUAMAN POMA, 1993: 262 e 265). Isso demonstra sua preocupação em promover o encontro das duas culturas através do domínio do espanhol, do quechua , do aymara e outros dialetos que utiliza ao longo de sua carta.Guaman Poma demonstrou que o governo dos Incas funcionava, porque ninguém podia ficar na ociosidade. Toda a população do Tahuantinsuyu tinha que trabalhar em suascomunidades e para o Estado.Ao longo de sua crônica, aproveitou para deflagrar severas críticas aos espanhóis,expondo seu descontentamento em relação ao cotidiano colonial e pedindo soluções a FelipeIII. Guaman Poma representou seu mundo não só por intermédio da escrita, mas tambématravés dos desenhos oriundos da mescla de traços culturais andinos a concepções mentaiseuropéias. O resultado desse encontro/desencontro cultural está expresso nos desenhos queespelham os anseios de um povo em defender-se das atrocidades praticadas por umasociedade totalmente distinta da sua. Desse modo, desenvolveu o que François Hartog chamade retórica da alteridade, pois “se a narrativa se desenvolve entre um narrador e umdestinatário implicitamente presente no próprio texto, a questão é então perceber como ela‘traduz’ o outro e como faz com que o destinatário creia no outro que ela constrói”(HARTOG, 1999: 228).Os desenhos de Guaman Poma foram feitos com traço firme e de grande expressão.Muitos consideram que seu estilo tinha influência européia e no que se refere a seus desenhosem que aparecem santos ou ilustrações cristãs, não há o que negar. Porém, há estudos que provam que seus desenhos eram iguais aos produzidos por artesãos andinos nos keros 5  (BALLESTEROS GAIBROIS, 1978: 41 ) . Significa que ele utilizava um estilo próprio paratentar familiarizar-se com a cultura espanhola e poder defender os índios do colonialismo eajudar no resgate de sua identidade e de um lugar dentro da nova sociedade colonial.Analisando alguns de seus desenhos, como por exemplo, o da portada de sua crônica, percebemos que ele distribuiu hierarquicamente a figura do Papa, que fica no alto e àesquerda, a do rei, que está ligeiramente mais abaixo e à direita e, por último, ele próprio de joelhos em postura de respeito frente à autoridade religiosa e real. Dessa maneira, eledemonstrou conhecer a distribuição de poder segundo as normas européias. No centro, eleapresentou os símbolos das coroas de Castela e Aragão e do lado esquerdo na parte inferior dodesenho as suas iniciais em destaque. Figura 1 5 Vasilhames de cerâmica pintada. 4  El primer Nueva Corónica y Buen Gobierno compuesto por don Felipe Guaman Poma deAyala Sacra Católica Real Magestad Su Santidad [Monograma F.G.P] Ayala       principe El reino de las Indias.  6 O episódio da conquista espanhola em Cajamarca foi descrito e desenhado em detalhes por Guaman Poma. O encontro de Francisco Pizarro e Atahualpa ocorreu em 1532 e começoucom uma tentativa de reciprocidade, prática amplamente conhecida pelos Incas, mas terminouem guerra. O motivo para o início da batalha sangrenta teria sido o fato de Atahualpa ter  jogado a bíblia sagrada ao chão. Ofendido, o Frei Vicente Valverde, queixou-se a Pizarro, queimediatamente ordenou o ataque. Atahualpa foi prontamente capturado e o alvoroço foitremendo. Índios correram para todos os lados, fugindo dos tiros de arcabuzes e das patas doscavalos e outros ficaram paralisados pelo terror. A grande maioria das pessoas que seencontrava na praça de Cajamarca, pereceu aí mesmo (XEREZ,   1985: 112-113) . Na segundafigura aqui analisada, o Inca aparece em posição de destaque, pois até o momento anterior aoataque espanhol ele ainda é o senhor dessas terras. Com o uso do interprete começam asnegociações entre os grandes senhores. Figura 2 6 Figura extraída do site http://www.kb.dk/elib/mss/poma/; Descrição retirada de GUAMAN POMA DE AYALA, 1993, Portada. 5