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Parmênides - Da Natureza

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2 'd R M E"' José Trindade Santos Da natureza Parmênides ~ lHEsnunU~ &dito= © 2000 by José Trindade Santos Diagramação Victor Tagore Capa Leonardo Gonçalves Impressão: Thesaurus Editora S337d Santos, José Trindade Da natureza - Parmênides I José Trindade Santos.- Brasília : Thesaurus, 2000. 124 p. 1. Filosofia da natureza 2. Parmênides, filósofo grego I. Título CDU 113 CDD 113.2 Todos os direitos em língua portuguesa, no Brasil, reservados de acordo com a lei. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópi a, gravação ou informação computadorizada, sem permissão por escrito do autor. THESAURUS i::D!TORA DE BRASÍLIA LTDA. SIG Quadra 8, lote 2356- CEP 70610-400 - Brasília, DF. Fone: (61) 344-3738Fax: (61)344-2353 Composto e impresso no Brasil Printed in Bra~il r=re~:=.~ NP,j_t~-~-2:,. #,_;;:-·.,,~C..: ';:'f!!:--=.,·.· • ..:..::.-~"~..,. .· A Giovanni Casertano "Questa vita e um continuo sacrificio " Sumário PREFÁCIO ............................................. ..... ........................ 11 FRAGMENTOS ..... .............................................................. 15 33 O saber é coletivo e pessoal ........................................................... 34 O que há para saber? ............................................ ........................ 35 O peso da memória ....................................................................... 36 Transmissão e criação cultural na Antigüidade ............................... 39 PoR QUE SABER? ................................................... .. .. ....... . .............. . A ESCRITA ...................................... ..................................... ........ 40 A produção dos primeiros textos da Cultura Grega ........................ 43 A Cultura e Literatura gregas até ao séc. V .................................... 45 A formação da tradição filosófica grega ......................................... 4 7 INTERLÚDIO POLÍTICO ........ ..................................·................... 47 Política e Cultura ..................... .................... .... ....... ..... .;........ ........ 50 Os sofistas ....... ..................................................... .. ...................... . 51 A FILOSOFIA ..... .... .... .................................................................. 54 PLATÃO .......... . ............. . .................................................................. 54 ARISTÓTELES .............................................. . .... ... .... . ....................... . 56 O Poema de Parmênides ................................................................ 57 INTRODUÇÃO À LEITURA DO POEMA DE PARMÊNIDES .... . ..... ........ .. 59 História das cópias do poema ................. ....................................... 60 O texto do poema ................ ... ............................. .. ............ ... ........ 63 Sentido desta edição do Poema de Parmênides ............................... 64 INTERPRETAÇÃO DO POEMA DE P ARMÊ 1. IDES ........ . ............ 65 o PROÊMIO .. .. .. .. .. .. ... .. .. ............... ..... .... . ............ ........................ 65 1.1 As PALAVRAS DE ACOLHJME ;TO AO JOVE.\1. .... . .......... .................. 68 1.2 REALIDADE E APARÊ CIA ........................... ......................... ..... 69 2. A via da Verdade .......................... .... .................... ..................... 76 2.1 OS DOIS CAMINHOS ........................................ ......................... 76 NoTA sOBRE ALÊTHEIA . ............. ........... ........................................ 87 A LOCALIZAÇÃO DOS FRAGS. 4 E 5 .. ....................... ......... .. .. ........... 88 2. 2 DESENVOLVIMENTO DO ARGUMENTO : A NOVA VIA ...................... 90 3. A Via da Opinião ... ................... ................. ....... . ......... . .. ... ...... 3. 1 0 ALCANCE DA V IA DA VERDADE .. . ....................................... 3. 2 As DUAS FORMAS ........................................................ . ....... 3. 3 A POSITIVIDADE DA OPINIÃO .............. . ................................. , 3. 4 ASTRONOMIA E FISIOLOGIA .. . ................................................ 3. 5 0 PENSAMENTO E A MISTURA....................................... . .... . .... 3. 6 A OPINIÃO E OS NOMES ......................... ............................ ... 101 102 104 107 108 111 112 4. Parmênides e a herança eleática .. .............................................. .4. 1. 0 FRAG . 2 REVISITADO .......... .. ............................................ 4. 2 A CRÍTICA À SOFÍSTICA ............................................. ........ .... 4. 3 0 SABER DOS SOFISTAS .. .. .. . .. .. .. . .. . .. .. .. .. .. .. .. .. .. . .. .. . .. . .. .. .. .. .. .. . 4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE OS SOFISTAS ............ .. ... . ............ 4.5 CONCLUSÃO : NÓS E PARMÊNIDES ............................................ 113 114 117 122 125 126 PREFÁCIO Esta obra apresenta, uma tradução anotada e um comentário seqüencial do Poema de Parmênides, acompanhando uma versão do texto Grego. A tradução é precedida de UI\1 ensaio dedicado à abordagem da questão do saber. O trabalho dirige-se especialmente aos estudantes e procura provê-los com uma versão cientificamente aceitável de um dos textos capitais da Cultura Ocidental, à qual agrega alguns instrumentos de trabalho, com a finalidade de facilitar a sua compreensão. Como se explicará adiante, e pelas razões aí apresentadas, esta versão não pode confundir-se com uma edição do poema. Apoia-se na edição realizada por Hermann Diels, Parmênides' Lehrgedicht, griechisch und deutsch, Berlim, 1897. Não parte, portanto, de um cotejo das fontes manuscritas e das respectivas variantes, ou mesmo das principais edições do poema, às quais se refere incidentalmente e de passagem, só quando é preferida uma lição divergente da acima citada. Este esclarecimento é importante pelo fato de a tradução apresentada ser devedora do trabalho de análise filológica e crítica realizado por muitas outras edições e traduções do poema, em diversas línguas, às quais não faz a referência devida. Menciono apenas, e porque seria grave não o fazer, a dívida para com duas traduções do poema: em Português, a de Maria Helena da Rocha Pereira, in Hélade, Cohnbra, 1959 (1 a edição), e, em Italiano, a edição e comentário de Giovanni 11 Casertano, Parmenide il metodo la scienza l'esperienza, Napoli, 1978 ( 1o edição). A estes estudioso quero aqui acrescentar, ao meu agradecimento, a minha homenagem. Como é de esperar, .um texto com a en ergadura do Poema de Parmênides tem vindo a merecer, especialmente ao longo do séc. XX, a detida atenção da crítica, atravé da apre entação de muitas edições e comentários, tanto globais, quanto centrado numa ou noutra questão do argumento. A finalidade e ambição de te trabalho não justificam a referência a essa monumental tarefa, nunca acabada, para a qual contribuirá apenas na medida das limitações já expressas. Esta advertência é ditada não apenas pelo rigor e exigência do trabalho científico, mas sobretudo para que se tome manifesto que a interpretação aqui apresentada carece da referência ao acervo de bibliografia filológica e crítica, sem a qual nunca teria chegado a poder ser formulada 1 • A única justificação que se oferece para essa falta reside na finalidade que presidiu à sua concepção e redação. O diálogo com a tradição multissecular de interpretação crítica do Poema de Parmênides pesaria enormente sobre a sua compreensão, sobretudo àqueles que o vão abordar, pela primeira- e talvez última - vez. Para benefício desses, passo agora a sugerir o modo como devem realizar a tarefa de se apropriarem das indicações e pistas aqui semeadas. 1. A versão bilíngüe do texto do poema, que inicia a obra, deve ser utilizada sobretudo como referência e oportunidade de visualização global do texto. Para além das poucas divergências assinaladas, limitase a seguir a edição de Diels, no texto estabelecido e na ordem pela qual são apresentados os fragmentos. Essa ordem, que a tradição impôs, 5 Ainda assim, as pouquíssimas referências bibliográficas feitas , de todo indispensáveis, não devem ser confundidas. De um lado, acham-se as fontes-. textos antigos-, com os quais se estabelecem relevantes relações; do outro, os comentadores que se pode ignorar. Em qualquer dos casos, a função que desempenham no texto é secundária: ou servem de apoio a um argumento, ou tese apresentada; ou apontam uma via de investigação possível. As personagens referidas e as siglas das suas obras acham-se explicadas em qualquer obra de introdução ao estudo do pensamento antigo, como o clássico de G. S. Kirk e J. E. Raven, The Presocratic Philosophers, Cambridge, 1966 (trad. port. Os filósofos pré-socráticos, Gulbenkian, Lisboa, 1979). 12 u~~;vEr~sír:\~~~~~-~~-< _':__ .-· ~. · ,.-.,t · •· r -~r-- • ~ será questionada adiante, mas nunca alterada. Isto ~ignifica, por exemplo, que, apesar de se propor a sua localização entre os fragmentos 1 e 2, o fragmento 5 nunca deixa de ser referido por esse número; e assim para os casos análogos. Na parte dedicada ao comentário, a tradução do poema será repetida pari passu. Tanto aí, como na tradução inicial, é da maior importância a habituação da referência aos fragmentos, identificados pelo respectivo número, seguido de um ponto '.', quando precedem a indicação de versos. Estes podem aparecer sozinhos, ou emparelhados por um hífen '-', ou uma vírgula ','. Por exemplo: 8 (ou B8, adiante explicado) refere esse fragmento; 8. 2, o verso 2 do fragmento 8; 8. 3441 a seqüência de oito versos, habitualmente referida como o "sumário da via da verdade"; 8. 38, 53, os dois versos do frag. 8 em que aparecem formas do verbo onornazein (nomear). 2. O ensaio sobre o saber deve ser encarado como uma introdução temática ao texto e ao seu comentário. Debate, de modo superficial e sem pretensões, a constituição da questão do saber na Grécia clássica, procurando evocar a adesão simpática dos leitores, a quem porventura nunca terá sido proposta nesta perspectiva. A pouco frequente intrusão da linguagem poética pelo discurso de divulgação científica constitui uma opção de incerta eficácia. Também aqui se calou a oportuna referência a muita e variada bibliografia de difícil acesso a estudantes. Para facilitar a leitura e compreensão, esse texto é dividido em curtas seções, com titulação centrada. Essa decisão traduz e· pretende sugerir que não reproduz um argumento seqüencial. É antes constituído por um percurso, quase caleidoscópico, onde se vão descobrindo tópicos que convergem numa visão panorâmica da Cultura de uma época, convocada de uma pluralidade de perspectivas. Deve ser encarado mais como matéria para meditação e reflexão pessoal do leitor do que como abordagem dogmática e científica do tema tratado. Para os que quiserem entrar imediatamente no texto do poema, esse capítulo poderá ser abordado depois do comentário. 13 - 3. A última parte do texto é integralmente dedicada ao comentário do poema. Começa por uma curta introdução que descreve sucintamente as vicissitudes pelas quais o texto passou até atingir a forma com que é hoje apresentado ao público. A entrada no poema é assinalada pela paragrafação numérica, inserida à margem, de forma a salientar a integração dos tópicos, na ordem pela qual são abordados. Estes são quatro: as três partes em que consensualmente se divide o poema, seguidas de um comentário ao modo como este foi recebido pelos filósofos e pelos sofistas gregos - 1. O proêmio; 2. A via da Verdade; 3. A via da opinião; 4. Parmênides e a herança eleática (cada um deles articulado e subdividido em parágrafos distintos). A repetição dos algarismos iniciais significa que o parágrafo seguinte faz parte do anterior, enquanto a mudança indica a passagem à outra questão. A inclusão de notas com titulação centrada quer dizer que estas devem ser lidas como apêndices ao que se disse na seção em que se acham, mas que a sua relevância para o argumento é marginal. Devo ainda uma palavra de agradecimento a todos aqueles que 1n:e auxiliaram com a leitura atenta de alguma das sucessivas versões por que foi passando o texto, até atingir a forma atual. Começo por Adriana Nogueira, que me auxiliou em inúmeras revisões do texto, e não posso deixar de mencionar Maria José Figueiredo, Helena Ramos, Pedro Vidal e Graça Pina, além do revisor, cuja competência e acribia já se tornou entre nós lendária, Senhor Manuel Joaquim Vieira. Devolhes a chamada de atenção para muitas passagens duvidosas, erradas e imprecisas, que afetavam a sua compreensão do texto. José Trindade Santos 14 FRAGMENTOS Bl '(rrrrm Tal J.l.E Époumv, oaov T' E:rrl. 8uJ.l.OS' Í.Kávm, TTÉJ.l.TTOV, ETTEL 11, ES ó8ov ~f)aav TTOÀÚTJJ.l.OV ayouam 8aLJ.l.ovos-, ~ KaTà rrávT' aCJTTJ EpÓJ.l.llV" T~l yáp !J-E TTOÀÚpaCJTOl ÉpOV 'L-rTTTOL 5 apJ.l.a TLTa(vovam, KOUpm 8' ó8àv ~'YEJ.l.ÓVEVOV . . ã~wv 8' E:v XVOLTJLCJLV '(EL aúptyyos àvT~v at8ÓJ.l.Evos- (8oLOí.s yàp E:rrEC yETo 8wwToíaLv KÚKÀOLS' àlloTÉpw8Ev), OTE CJTTEPXoLaTo TTÉJ.l.TTELV 'HÀ.Lá8Es- Koupm, rrpoÀL rrouam 8wJ.l.aTa NuKTÓS, ·lO ELS' áos-, waáJ.l.EVm KpáTwv arro XEPCJL KaÀÚTTTpas-. Ev8a TTÚÀm NuKTÓS' TE Kal. "HJ.l.aTÓS' dm KEÀEÚ8wv, Ka[ aas- ÚTTÉp8upov clj.lLS' EXEL Kal ÀálVOS' ov8ós-· mJTaL 8' aL8ÉplaL TTÀf)VTaL J.l.EyáÀOLOl 8upÉTpms· Twv 8E_ ~LKTJ rroÀúrrowos- EXEL KÀTJL8as- àJ.l.m~oús. 15 T~v 8~ rrappa8Éws-, ws- aáTO KGL 11-E 1Tpü0"f1Ú8a. WKOVp' à8avÚTOWL auváopo:;- ~VLÓXOWL lJ, 25 '( nrroLs- Ta[ aE Épouaw iKáv<,Dv ~flÉTE pov 8w, xa'Lp ', ETTEL OUTL O"E f.!.Ôl pa KaKi] TípOÜTTE ~ TTE VÉECJ8m T~v8' ó8óv (~ yàp àTT' àv8pwTTwv EKTOS' TTÚTou E.aTív), àÀÀà 8ÉfHS' TE 8LK"f1 TE. XPEW 8É CJE TTÚvTa TTu8Éa8m ~f.!.EV 'AÀ"f18d TlS' EUTTEL8Éos- àTpE 11-ES ~Top 30 ~8E ~poTwv 8óÇaç, TaL:;- ouK EVL TTLO"TLS' àÀ"f18~ç. àÃÀ' Ell-TTTJS' Kal. TaÚTa 11-aS~aEm, ws- Tà 8oKoÚvTa xp~v 8oKLJ.lWS' ELVaL 8Là TTaVTC)Ç TTÚVTa TTEpwvTa. BZ EL 8' ãy' E.ywv EpÉw, KÓf.!.LCJaL 8E au !1-U8ov àKoÚaas-, a'( TTEP ó8ol. JlOVVaL 8L(~0LÓS' da L voflam · ~ JlEV cmwç EO"TL\J TE Kal WS' OUK EO"TL 11~ EllJaL, TIEl8ous- E.an KÉÀEu8oç ('AÀT)8ELT]L yàp ÓTT"flbEL), 5 ~ 8' WS' OUK EO"TLV TE KGL WS' XPEWV EO"TL 11~ ELVaL, T~v 8~ TOL pá(w TTavaTTEU8Éa EJ.lJ.lEV àTapTTóv· oihE yàp v yvo[ T]S' TÓ YE 11- ~ EOV (ou yàp àvuaTÓV) oÜTE , auTàp E1TEL T' àno T~S'. ~v 6~ ~pOTOL ELDÓTES' OUOEV 5 nÀáTTOVTaL, 6(KpavoL · cXfl.TJXUVLT) yàp Êv auTwv ar~6EoLV L8úvEL 1TÀaKTOV vóov· oí. OE cpopouvTm KWcpOL ÓflWS' TUcpÀOL TE, TE6T)1TÓTE S', aKpl Ta cpuÀa, ots- To nÉÀELV TE Kal ouK ELVaL TauTov VEVÓfl.WTaL Kou TauTóv, návTwv 6E naÀL vTponós E:an KÉ ÀEu8os. 20 B3 [... ] pois o mesmo é pensar e ser. B4 Nota também como o que está longe, pela mente se toma firme mente presente: pois não separarás o ser da sua continuidade com o ser, nem dispersando-o por toda a parte segundo a ordem do mundo, nem reunindo-o. B5 [ ... ]para mim é o mesmo por onde haja de começar: pois aí tomarei de novo B6 É necessário que o ser, o dizer e o pensar sejam; pois podem ser, enquanto o nada não é: nisto te indico que reflitas. Desta primeira via de investigação te 3 , e logo também daquela em que os mortais, que nada sabem, 5 vagueiam, com duas cabeças: pois a incapacidade lhes guia no peito a mente errante; e são levados, surdos ao mesmo tempo que cegos, aturdidos, multidão indeci sa,que acredita que o ser e o não-ser são o mesmo e o não-mesmo, para quem é regressivo o caminho de todas as coisas. 3 Reconstituição conjecturai de Di eis - dpyw (eirgô) - "afasto" (termo que ocorre em 7.2). Nesta situação, em que qualquer opção é consentida ao intérprete, são-lhe exigidas boas razões para apresentar uma nova sugestão. Por exemplo, N .-L. Cordero Les deux chemins de Parménide Paris, 1984, 24, 132-144, propõe apl;EL (arxei) "começarás", para argumentar que na Via da Verdade a deusa aponta apenas dois caminhos: "que é" e "que não é". Mas a interpretação não colheu grande apoio entre os estudiosos. 21 ll7-llS 7.1 OU yàp fl~TTOTE TOUTO bO!lTJl Ell'Ql llll EOl'Ta· à H à a TTja6' cicj)' ó6ou 6L( ~aw;- E1pyE t•<'rrwa fJ.JlbÉ a' E:8oç n oÀÚTTELpcw ó6(w KaTà T~l'bE ~Láa8cu, v .... ,, 1• .. ' , ' , l'l•J!la!' aaKOTTOl' OllllCl KQL TJXT)EO"O"al 1 OKOUT]l' .'i KCÚ yÀ.t0craav. KpLl'aL 6E. À.Ôyt·JL noÀubTJPll ' D.Eyxm· H.l E-Ç EflÉ8Ev pT]8Él'Ta . // f.l<Íl'OS' 6' ETL f-!.U8oç cJ6oí:o ÀELTTETQL l:JS' EaTll'" TOÚTT)l 6' ETTL O"~ f-l. O T ' EaaL TTOÀÀà flá À', l;JS' ciy ÉVJlTOl' EC)ll KOL cil 1l•JÀE8pÓl 1 EO"Tll', EaTL yàp ouÀOflEÀÉS' TE Kal. ciTpEflES' ~6' ciTÉÀEaTol'· .'i ou6É mn' ~v ou6 ' EaTm, ETTEl l'Ul' EO"Tll' ÓflOU TTât•. É!v, auvEXÉs-· T(va yàp yÉt•l'av 6L(~aEm m'nou: TT~l TTÓ8El 1 auÇT]8Év: ou6' EK fl~ EC,ll'TOS' E-ácrmu cj)áa8m a' ou6E l'OEll' . OU yàp cj)aTÓl' OUbE l'OT)TÓl' ECJTLL' é)muç OUK EO"TL. TL 6' fllV KOL XPÉOS' t0paEl' 10 ÜCJTEpov ~ npóa8Ev, Tou fl.T)6Evóç cipÇáfJ.El'Ól', cj)uv: OÜTlo.lS' ~ TTáflTTClV TTEÀÉvm XPEloJl' EaTLl' ~ ouxl. ou6É TTOT' EK fl~ EÓVTOS' E-cj)~aEL TTLaTLOS' Laxús)'L)'VEa8aL TL nap' auTó- TOU évEKEV OUTE yEvÉa8m OUT' ÔÀÀua8m àviiKE Êl.LKJl XOÀ.áacwa TTÉbT)LaLV, !.'i Ó.À.À., EXEL. ~ 6E: KpLCJLS' TTEPL Toúnuv E-v TL0L6' E:crnv· E:anv ~ ouK EGTLv- KÉKpLTm 6' ovv, t~)crnEp àváyKT], av T~V flEl' Eâl' àVÓT]TOl' àl'l•Jl'U!lOl' (ou yàp àÀ.T)8~ç ECJTLv ó6cíç), T~v 6' l,]crTE TTÉÀELV Kal. ET~TUflOV Elvm. m;Jç 6' av ETTE lT, à TTÓÀ.OL TO E<Íl': TTl;JS' 6' v .KE yÉ VOLTO; .20 EL yàp E)'EVT ', OUK EaT(L), ou6' EL TTOTE flÉÀÀEL ECJECJ8m. a TL;JS' )'Él'EGLS' f-J.El' ànÉa~ECJTQL KOL aTTUCJTOS' ()À.E8poç. ou6E: 6LatpETÓV EO"Tll ' , ETTEL nât• EaTLl' hj.Hílm·· OUbÉ TL T~L flâÀ.ÀOl', T<'J KEl' Elp)'OL flll' CJUVÉXEa8m. ou6É TL XELPÓTEpcw. TTâl' 6' Ef-J.TTÀEÓV ECJTll' EÓVTOÇ. 25 n0L ÇuvEXES' nâv E-anv· E-cw yàp EÓI'TL TTEÀ.á(EL. auTàp ciKLVT)TOV fJ.EyáÀt•Jl 1 El' TTELpOCJL 6Eaf-J.l;ll 1 ECJTLV avopxol' GTTOUCJTOl', ETTEL )'Él'EaLç KCÚ tÍÀE8poç 22 B7-B8 7.1 Pois nunca isto será demonstrado: que são as coisas que não são; mas afasta desta via de investigação o pensamento, não te force por este caminho o costume muito experimentado, deixando vaguear olhos que não vêem, ouvidos soantes 5 e língua, mas decide pela razão a prova muito disputada 8.1 de que falei. I I Só falta agora falar do caminho que é. Sobre esse são muitos os sinais de que o ser é ingénito e indestrutível, pois é compacto, inabalável e sem fim; 5 não foi nem será, pois é agora um todo homogêneo, uno, contínuo. Com efeito, que origem lhe investigarias? como e onde se acrescentaria? Nem do não-ser te deixarei falar, nem pensar: pois não é dizível, nem pensável, visto que não é. E que necessidade o impeliria 10 a nascer, depois ou antes, começando do nada? E assim, é necessário que seja de todo, ou não. Nem a força da confiança consentirá que do não ser nasça algo ao pé do ser. Por isso nem nascer, nem perecer, permite a Justiça, afrouxando as cadeias, 15 mas sustem-nas: esta é a decisão acerca disso é ou não é - ; decidido está então, como necessidade, deixar uma das vias como impensável e inexprimível (pois não é via verdadeira), enquanto a outra é autêntica. Como poderia o ser perecer? Como poderia gerar-se? 20 Pois, se era, não é, nem poderia vir a ser. E assim a gênese se extingue e da destruição se não fala. Nem é divisível, visto ser todo homogêneo, nem num lado é mais, que o impeça de ser contínuo, nem noutro menos, mas é todo cheio de ser 25 e por isso todo contínuo, pois o ser é com o ser. Além disso, é imóvel nas cadeias dos potentes laços, sem princípio nem fim, pois génese e destruição foram afastadas para longe, repelidas pela confiança verdadeira. 23 30 TTJÀE !J.áÀ' É1TÀáX8T]aav, ámDGE bE 1Tl0TLS' áÀT]8f]s-. TalJTÓV T' EV TalJTWL TE !J.ÉVOV Ka8' ÉaUTÓ TE KELTaL xoihwc;- EIJ.1TE8ov au8L !J.ÉVEL. KpaTEP~ yàp 'AváyKT] rrdpaToc;- E:v 8Ea!J.o'iaw EXEL, TÓ IJ.LV àwpls EÉpyEL, oüvEKEv ouK àTEÀEÚTTJTov To E:ov 8É!J.LS' Elvm · E0TL yàp OUK E:m8EUÉS'" [!J.~ ] E:ov 8' rraVTOS' E:8ELTO. TavTov 8' EGTL vod TE Kal. oÜvEKEV EGTL VÓT]IJ.a. ou yàp Õ.vEu To E:óvTos-, E: v l~ll rrETÉptuv, ETTEL ov8ETÉPL•JL flÉ Ta flflbÉv. BIO ELGflL 8' ai8Ep(av TE OTV)'EpülO TÓKOU KQL JlLÇLOS' GPXEL TIÉIJ.noua ' ãpaEvL 9iiÃu l-HYTJV TO •' E:vavT[ov auTLS' apO"ElJ 8i}, UTÉpwl. BU TipWTLaTOV flEV ~ [(X•JTQ 8EwV flf)TL O"QTO TIÓVTlLllJ lll.J VUKTtaES' TTEpt yataV áÀtÚIJ.EVOV áÀÀ.ÓTpLOlJ 61 , e logo também daquela em que os mortais, que nada sabem, J j vagueiam, com duas cabeças: pois a incapacidade lhes guia no peito a mente errante; e são levados, surdos e cegos, a um tempo, estupefatos, multidão indecisa, que acredita que o ser e o não-ser são o mesmo e o não-mesmo, para quem é regressivo o caminho de todas as coisas. E eis que subitamente uma terceira via se ab're, para logo se fechar. Aquela em que "vagueiam os mortais", que ainda não aprenderam a respeitar a oposição do ser ao não-ser e por isso os confundem. O argumento da deusa regressa à eliminação da via negativa e às conseqüências dela decorrentes. Os insultos de que os homens são alvo operam em dois registos. De um lado, os que denunciam a sua dupla natureza (que o frag. 16 irá aprofundar): "duas cabeças", "mente errante", "multidão indecisa", que confunde o ser com o não-ser ora sustentando que é, ora que não é. Do outro os que evidenciam as causas da sua incapacidade: surdos, quando julgam ouvir, cegos, quando crêem ver, estupefatos, quando imaginam que, falando, dizem alguma coisa. 61 Se aceitarmos a reconstituição proposta por Diels, não é muito clara a referência à "primeira via de investigação". Qual é ela? Suponhamos que se trata da via negativa, aceitando a conjectura consensualmente aceite. Um modo mais claro de dizer seria: "esta é a primeira via de investigação de que te afasto, mas logo também daquela ... " 91 De início tanta veemência é surpreendente. Depois, com a continuação da leitura do poema percebemos que desde sempre foi aqui que a deusa quis chegar. A eliminação da segunda via, do não-ser, não é mais do que o instrumento que lhe vai permitir chegar às crenças dos mortais, à explicação de por que é que "passam todas através de tudo" e finalmente à lição que lhes possibilitará a correção do erro em que laboram. De resto, a radical alternativa entre os dois caminhos esboçados no frag. 2 seria bastante para excluir um meio termo: a aparência, "que é e não é". fragmento 7-8 Pois nunca isto será demonstrado: que são as coisas que não são; mas afasta desta via de investigação o pensamento, não te force a este caminho o costume muito experimentado, deixando vaguear olhos que não vêem, ouvidos soantes e a língua, mas decide pela razão a prova muito disputada de que falei. [. .. ] De novo volta a deusa à proibição de toda a mistura entre as duas primeiras vias, agora claramente apontada à terceira, na qual vagueiam os mortais. B7. 2 é importante por manifestar na proibição a forma "afasta", da qual Diels colheu a sugestão para preencher a lacuna de B6. 3. Mas os três últimos versos de B7 acrescentam duas importantes novidades à mensagem da deusa. 2.2 2 SENSIBILIDADE E RAZÃO A primeira reside na perfeita caracterização da "via da opinião", como é tradicionalmente conhecida. Trata-se de uma prática induzida pelo "costume muito experimentado" do exercício da sensibilidade: a visão, o ouvido e a comunicação verbal. Neste contexto, os versos replicam, ponto por ponto e pela mesma ordem, as admoestações expressas em 6. 7, de forma a impedir qualquer confusão. 92 Mas B7. 5 confere à injunção divina um contorno inteiramente novo, também ele inesperado. Contra a entrega ao costume da prática sensível advoga a deusa o exercício da razão, através da "prova muito disputada" (é evidente - e pretendemos mantê-lo na tradução- o paralelo da expressão com o "costume muito experimentado" de 7. 3). A lição é de enorme alcance. Levanta, porém, nada menos de três questões de tradução, que convém esclarecer previamente. A primeira tem a ver com "decide" (krinai) . A 'decisão' desempenha uma função capital na economia da mensagem divina. Em B6. 7 a "multidão indecisa" (akrita phyla) é a que hesita entre o ser e o nãoser, confundindo um com o outro. Em B8. 15-16, a "decisão" (krisis) consiste precisamente na oposição do ser ao não-ser, com que é mister contrariar a '"mistura' (krasis) dos membros errantes" de B16. 1. A segunda é a 'razão'. O termo usado é lagos. A oposição· à sensibilidade sugere encontrarmo-nos perante o apelo à faculdade raciocinativa, à qual caberia a correção dos costumes dos homens. Esta interpretação enquadra-se perfeitamente no rigor da estratégia argumentativa atrás desenvolvida, completamente violentadora das experiências sensíveis (como o frag. 4 em síntese comenta, através da oposição "do que está longe" àquilo que pela mente se toma presente). Mas o termo grego evoca outras conotações, que cumpre manter vivas, pelo menos pelo seu poder sugestivo. Lagos é também 'argumento', 'argumentação', sempre raciocinada. Pelo que só ganhamos potenciando cada um dos sentidos através do outro62 • 2. 2. 3 A FUNÇÃO DO DEBATE NA REFLEXÃO E NA BUSCA DO SABER A terceira reporta-se à "prova muito disputada", que também pode ser entendida como "originando muitas disputas" (uma vez mais, a característica poética adequa-se bem à manutenção de ambas as leituras). 62 De resto o uso do dativo instrumental consente ambas as leituras. O dativo é, em Grego, o caso (aspecto da flexão nominal) que inclui os diversos complementos circunstanciais: o "instrumento" é um deles. 93 I I J I I I I I I l Levando inteiramente a sério a exortação divina, o que, na complexidade dos sentidos que permite, o verso sugere é que o jovem se deve entregar à defesa do argumento (que argumento? Aquele "de que falei" - B7. 6a) através do debate. Não é possível exagerar a importância e as conseqüências deste conselho. O que a deusa está a aconselhar o jovem a fazer é a confrontar-se pelo debate com todos aqueles que contrariem a força do argumento expendido. E a entrada direta no assunto, ao longo de todo o frag.8, enuncia as principais teses às quais há que opor a força da razão/argumentação. 2. 2. 4 Os SINAIS DO SER Terminado o argumento que dirigiu aos mortais, a deusa procede de seguida à caracterização do tipo de debates a que acabou de exortar o jovem. Partindo da premissa inicial "é:', desenvolve quatro argumentos, tendentes ao estabelecimento de outras tantas teses sobre o ser. O seu objetivo último é definir as linhas de refutação de algumas posições comummente defendidas nas discussões entre "homens sabedores" (sophoi). Nesse sentido, é natural supor que os seus destinatári·os serão, como o jovem virá a ser, figuras ilustres da tradição reflexiva grega (nomeadamente os Pitagóricos a quem Parmênides poderia estar associado) 63 • 2. 2. 4. 1. 0 SER É INGÊNITO E INDESTRUTÍVEL [. ..] . Só falta agora falar do caminho que é. Sobre esse sãp muitos os sinais de que o ser é ingénito e indestrutível, pois é compacto, inabalável e sem fim; 5 não foi nem será, pois é agora um todo homogéneo, uno, contínuo. Com efeito, que origem lhe invest-igarias? Como e onde se acrescentaria? Nem do não-ser te deixarei 63 Vide Kirk & Raven, The Presocratic Philosophers, Cambridge, 1966, 264-5. 94 falar, nem pensar: pois não é dizível, nem pensável, visto que não é. E que necessidade o impeliria 1O a nascer, depois ou antes, começando do nada? E assim, é necessário que seja de todo, ou não. Nem a força da confiança consentirá que do não ser nasça algo ao pé do ser. Por isso nem nascer, nem perecer, permite a Justiça, afrouxando as cadeias, 15 mas sustem-nas: esta é a decisão acerca disso é ou não é - ; decidido está então, como necessidade, deixar uma das vias como impensável e inexprimível (pois não é via verdadeira), enquanto a outra é e é autêntica. Como poderia o ser perecer? Como poderia gerar-se? 20 Pois, se era, não é, nem poderia vir a ser. E assim a génese se extingue e da destruição se não fala. A argumentação da deusa sobre a impossibilidade de geração e destruição do ser, embora assente na estrutura atrás desenvolvida, apresenta algumas novidades momentosas. B8. 4 enuncia três características do ser, que só poderemos interpretar fisicamente: é "compacto, inabalável e sem fim" 64 • Estes três "sinais", atributos, indicam que o ser não tem soluções de continuidade (não admite o vazio), não pode ser movido, ou deslocado, e não começa, nem acaba, no espaço e no tempo 65 • Esta última idéia é desenvolvida pela continuação do argumento: o ser é um eterno presen64 Alguns intérpretes interpretam "sem fim" (ateleston) como "infinito", com o sentido que habitualmente atribuímos hoje a esta noção (por exemplo, R. Mondolfo, El Infinito en el pensamiento de la Antiguedad Clásica, 1942 trad. port. : O Infinito no Pensamento da Antiguidade Clássica, S. Paulo, 1968, 101, 344-8). Não podemos estar de acordo, por razões textuais e culturais. Em primeiro lugar, por entrar em contradição (apesar do que sustenta Mondolfo) com outros atributos do ser, expressos mais adiante: ouk ateleutêton : "não incompleto" (B8. 32; tetelesmenon pantothen, "completo por todos os lados": B8. 42-3. Finalmente, por, com excepção de Melisso (por isso criticado por Aristóteles, que, na Física A, recorre a ele para refutar o ele~tismo : vide Sobre a geração e a corrupção, A 8, 325 a3 segs.), a generalidade dos pensadores gregos encararem o infinito negativamente, como uma carência de forma, de fim. 65 Se não acaba, não tem fim. Logo é infinito. A contradição com o que sustentámos na nota anterior é aparente e será resolvida mais adiante (vide B8. 43 segs). 95 te, uno, homogêneo e contínuo. Sem admitir outro além dele, e, no seu seio, pregas, ou partes. A novidade surge agora, com a interrogação sobre as razões que justificariam uma qualquer origem, ou fonte de alterações de que o ser seria produto. Não pode haver nenhuma. Porque a única que se imaginaria só podia ser o não-ser. Todavia, a indizibilidade e impensabilidade deste, justificada pela sua impossibilidade, impedem-no. O questionamento das razões para que algo seja, ou melhor, a idéia de que para tudo tem de haver uma razão de ser, manifesta a primeira aparição de um "princípio da razão suficiente". A falta de uma razão suficiente, na duração (8. 10) e no lugar (8. 13), proíbem a origem e a destruição do ser. Ou seja, carecendo de razão para nascer, ou morrer, num qualquer momento, ou determinado lugar, impedem-nos de pensar que foi gerado, ou será destruído. Ficará, pois, contido num eterno presente, sem passado nem futuro, de onde não pode sair. 2. 2. 4. 2 É INDIVISÍVEL. Nem é divisível, visto ser todo homogéneo, nem num lado é mais, que o impeça de ser contínuo, nem noutro menos, mas é todo cheio de ser 25 e por isso todo contínuo, pois o ser é com o ser. A mesma razão que não consente o vazio é válida para a afirmação da indivisibilidade do ser. Dividi-lo implicaria torná-lo discreto (uma sucessão de partes, ou pontos insusceptíveis de divisão). Mas o ser é contínuo. E cheio, pleno66 • 66 A idéia de qt1e o ser é pleno recorre na tradição pós-eleática, com a única excepção dos Atomistas (para quem a realidade era composta de átomos e vazio) . Pelo contrário, a tese aristotélica de que "a natureza tem horror ao vazio"- que em nada se afasta do aproveitamento que, no Timeu 57 c, Platão faz do pleno para explicar a perpetuidade do movimento - invade toda a Física medieval, passando daí para a filosofia moderna. A tenacidade com que o vazio foi negado deve-se à argumentação eleática, bem como à identificação, operada por Aristóteles na sua crítica aos Atomistas, do vazio com o não-ser. É ainda com base numa argumentação análoga que Descartes vai identificar extensão e corpo, negando consequentemente o vazio. Leibniz e Kant sustentarão essa mesma tese, porém, com argumentos sintéticos, derivados da experiência. 96 vNíVEHStD:-\L!:: t;: ~. P;:Ri 2. 2. 4. 3. É f:~)Tt::Cl~ C: ..~(.j·~ t. IMÓVEL. Além disso, é imóvel nas cadeias dos potentes laços, sem princípio nem fim, pois génese e destruição foram afastadas para longe, a convicção verdadeira as repeliu. O mesmo em si mesmo permanece e por si mesmo repousa, 30 e assim firme em si fica. Pois a potente Necessidade o tem nos limites dos laços, que de todo o lado o cercam. A imobilidade deve ser entendida em duas dimensões: no espaço e no tempo. E conseqüentemente em dois aspectos: o do movimento e o da mudança. Tal como se deu em relação à impossibilidade de um momento, ou de um lugar (como já vimos), em que comece ou acabe, ao ser é impossível qualquer alteração. E porquê? De novo tornamos ao primeiro argumento, com a menção da ingenitura e indestrutibilidade do ser. E, no entanto- vejase o que dissemos acima-, a ausência de um fim não o impede de estar "cercado". O alcance da tese é enorme. O ser não pode de alguma maneira "sair de si" (é isso mesmo que atesta 8. 29). Pois como poderá continuar a ser, se minimamente não é o mesmo, "como", ou "o que" antés era, ou depois será? E por que "antes", ou "depois" etc.? 2.2.4.3.1 IMOBILIDADE E IMUTABILIDADE NOS SEGUIDORES DE PARMÊNIDES Pela violência que exerce sobre a sensibilidade, a tese da imobilidade e imutabilidade do ser é aquela em torno da qual os pensadores pós-eleáticos mais se dividirão. É também aquela que exigirá mais da imaginação filosófica. Os Eleatas - Zenão e Melisso - sustentam-na até ás últimas conseqüências. O segundo contrapondo-lhe o ser, que "nada tem mais for- 97 te" que ele (DK30B8) 67 • O primeiro com uma série de argumentos que atestam as impensáveis conseqüências da adf!lissão do movimento e da mudança68 • Todavia, a experiência do movimento e da mudança é demasiadamente frequente para poder ser erradicada da mente. Na tradição reflexiva, três pensadores vão tentar acomodá-la à veemência do interdito eleático: Empédocles, Anaxágoras e Demócrito. Reinterpretando poeticamente o ser na forma de quatro elementos divinos e eternos, Empédocles explica movimento e mudança como a "dupla história" da mistura e separação destes. O àrtifício reside na preservação da identidade de cada um dos elementos de cuja combinação deriva a ordem do mundo em que vivem os homens. Enquanto estes se mantiverem unos e imutáveis, as conseqüências da violação do argumento da deusa não se tornarão efetivas. Torna-se assim possível conceber toda uma teoria do devir. Embora a difícil coabitação da razão e da sensibilidade se faça com o sacrifício da visão ingênua do mundo 69 • Análoga reinterpetação do ser eleático é levada a cabo por . Anaxágoras e pelos Atomistas: para o primeiro, o ser é constituído por partículas infinitamente divisíveis, nas quais se acham todas as coisas; para os segundos, por mínimos indivisíveis: os átomos. Postulando a infinita divisibilidade das suas partículas, Anaxágoras adia indefinidamente o problema da sua identificação: resolve assim a mudança na suspensão da identidade (se uma coisa não é isto, ou aquilo, também não deixa de o ser). Mais fecunda é a solução atomista, que explica a diversidade pelo número infinito e pela não menos infinita variedade de átomos, cujas propriedades resultam exclusivamente da sua forma, e da posição e disposição com que se combinam uns com os outros. Ao moverem-se 67 Ver a análise deste argumento em Kirk & Raven, Op. cit. 315; ou em José Trindade Santos, Op. cit. 193-5. 68 Vide Kirk & Raven, Op. cit., 299-305; J. T. Santos, Op. cit., 188-92. 69 Vide J. T. Santos, Op. cit., 214-8. 98 no vazio, os átomos chocam e emaranham-se, dando origem aos mundos e a tudo o que neles há. Como se vê, a proibição eleática não é violada, uma vez que a contrariedade qualitativa fica subsumida na unidade física (os átomos são compostos sempre pela mesma "matéria"), e a mudança ocorre sem que a identidade do ser seja beliscada. 2. 2. 4. 4. É COMPLETO. Portanto não é justo que o ser seja incompleto: pois não é carente; ao [não-] ser, contudo, tudo lhe falta. Sem origem, nem fim, indivisível, imóvel, ao ser nada falta (ao contrário do que acontece ao não-ser) . Está, portanto, completo. O que significa que se não acha em processo, à espera do que quer q~e seja que se lhe acrescente, ou seja retirado. A tese da completude do ser complementa a da sua imobilidade e imutabilidade. A influência que exerce na tradição é, como se viu, decisiva. Todavia, as mais ambiciosas teorias sobre o movimento e a mudança no pensamento grego são as de Platão e Aristóteles, cada uma das quais exigiria não menos de um livro para poder ser apresentada. 2. 2. 5 SUMÁRIO Concluída a exposição das quatro teses, o argumento sobre os sinais do ser é interrompido para a apresentação de duas sínteses. A primeira constitui um sumário. de toda a "Via da Verdade". A segunda funciona, por assim dizer, como uma ilustração, uma representação visível, do ser. O mesmo é o que há para pensar e aquilo por causa de que há pensamento. Pois, sem o ser- ao qual está prometido70 -, ° Como uma noiva a um noivo, é a idéia expressa pela utilização do verbo phatizô. 7 99 - I não acharás o pensar. Pois não é e não será outra coisa além do ser, visto o Destino o ter amarrado para ser inteiro e imóvel. Acerca dele são todos os nomes que os mortais instituíram, confiantes de que eram reais: "gerar-se" e "destruir-se", "ser e não ser", "mudar de lugar" e "mudar a cor brilhante". É imensa a importância desta passagem do poema e diversos os problemas que contém. Começa com uma reavaliação do argumento explanado nos frags . 2, 3 e 6, que pode ser lida como uma expansão das identidades de B3 e B6.1. A medida da identidade entre o ser e o seu correlato, o pensamento, alargou-se até não ser possível um sem o outro. Tornando à solenidade do pronunciamento adotado no proêmio, a deusa legitima todo o argumento tanto pela força do raciocínio (que o discurso divino converte em norma), quanto pelo Destino cósmico a ordem inabalável do todo- que enlaçou um no outro. 2. 2. 5. 1 0 PENSAMENTO E OS NOMES Que dizer então daquilo a que os mortais chamam 'pensar'? Antes da explicação do frag. 16, uma única observação é oportuna. Todos os nomes inventados pelos homens são sobre o ser. E, entre estes, o punhado respigado como exemplo atesta múltiplas violações: da ingenitura e indestrutibilidade (vide 8. 3-21), da irreversibilidade (6. 89) e imobilidade (8. 26-31) do ser. O tópico é de uma importância a que a passageira referência não faz justiça. Se todos os nomes são sobre o ser (é o que afirma 8. 38), todos eles não poderão senão referi-lo (função denominativa), ou descrevê-lo (função descritiva): ou seja, de "o ser" afirmar "é". Ora estes nomes começam por não ser do ser (por dizerem coisas que o ser não é), sendo, portanto, de nada. Além disso, afirmam impossibilidades (entre aquelas que os argumentos do frag. 8 sucessivamente refutaram). E a denúncia não vai por ora mais longe. 100 2. 2. 6 A ESFERA Visto que tem um limite extremo, é completo por todos os lados, semelhante à massa de uma esfera bem rotunda, em equilíbrio do centro a toda a parte; pois, nem maior, 45 nem menor, aqui ou ali, é forçoso que seja. Pois nem o não-ser é, que o impeça de chegar até ao mesmo, nem é possível qlfe o ser seja maior aqui, menor ali, visto ser todo inviolável: pois é igual por todo o lado, e fica igualmente nos limites. Todos os atributos do ser, deduzidos da sua afirmação, e da sua irredutível oposição ao não-ser, são agora condensados numa imagem visível. Ora aquela que mais adequadamente reflete a dupla identidadeformal e material- do ser é a de uma esfera: pela regularidade, perfeição e plena coincidência consigo mesma. Percebemos agora o possível sentido do "sem fim", e "sem princípio nem fim" (8. 4, 27). A perfeita regularidade da esfera permite que cada um dos pontos da sua circunferência seja simultaneamente princípio e fim. (É isso mesmo que o frag. 5 sustenta). Fica desta maneira resolvida a aparente contradição entre a afirmação da infinidade do ser e a declaração dos seus limites. 3. A Via da Opinião Com esta imagem do ser conclui a deusa a sua síntese da cadeia de argumentos em que ficaram expostos os sinais do ser. Num certo sentido, a mensagem da deusa chegou ao fim. E, no entanto, não tinha ela no início advertido o jovem de que teria de "tudo aprender" (1. 28)? Tendo então cessado o seu "discurso fiável", "digno de confiança" (piston logon), o que é que a leva a abordar o estudo das "crenças dos mortais"? 101 3. 1 Ü ALCANCE DA VIA DA VERDADE Onde quis a deusa chegar com a enumeração dos sinais do ser? Será que alguém poderia seriamente acreditar que no mundo em que vivia não havia nascimento e morte? Ou que toda a divisão era impossível? Ou pluralidade? Que era completamente destituída de qualquer forma de movimento e mudança? Ou de crescimento? Não é obviamente possível responder com certeza a qualquer destas perguntas. E, contudo, a oposição do "caminho muito experimentado" (B7. 3) à "prova muito disputada" (B7. 5) não pode ser mais funda. Como ultrapassá-la? 3. 1. 1 A RELAÇÃO ENTRE A REALIDADE/VERDADE E A APARÊNCIA Se aceitarmos que a afirmação do ser conduz à rejeição das crenças dos mortais, temos todas as razões para questionar a veracidade da experiência sensível. Daí à introdução de significativas alterações no quotidiano dos homens vai uma enorme distância. A autenticidade da identi~icação do ser com o pensar não pode ser posta em causa. Mas não será por isso que os homens terão de passar a ignorar os fatos do movimento e da mudança, do nascimento e da morte, e assim por diante. O que o argumento introduz é um insanável conflito entre a experiência sensível e a realidade pensável. Conflito que deverá ser resolvido através da reflexão, e que não poderá deixar de ocupar uma posição fulcral nas tentativas feitas para alcançar o saber. Não será, portanto, caso para considerar falsas e destituídas de sentido todas as formas de experiência sensível (apesar de, durante quase um século, alguns dos mais ilustres comentadores do poema o terem sustentado 71 ). Nem para nos 71 Mesmo depois da aparição da, atrás refetida, obra de Giovanni Casertano- a primeira a defender o valor positivo da doutrina parmenídea sobe a doxa -,os estudiosos preferem não se pronunciar sobre esta questão de vital importância para a compreensão do poema: afinal quais são as consequências da refutação das crenças dos mortais, ou que sentido atribuir ao tratamento que lhes é conferido, após a sua tão completa rejeição? 102 tiF.J~\/~T<.StG.6; --~.J.=:. {=-~;;_·· ---. --~ .. i.: r:·- _ ~,.-~ ·~_"}1.-F< -!·_ ~ • • entregarmos à defesa integral de uma concepção de saber que ignore a sensibilidade. O sentido da crítica eleática- não só o do poema de Parmênides, mas o dos argumentos de Zenão, de Eleia, e do poema de Melisso, de Samos -,reside na dupla chamada de atenção para a autenticidade do pensamento e para a correlativa impensabilidade da experiência sensível. Cada um destes fatos tem de ser compreendido e a compatibilização de um com o outro terá de constituir a finalidade última de toda a concepção que se pretenda constituir como "saber". Explicar a aparência, integrá-la num quadro concetual pensável, defme então uma exigência mínima de rigor e coerência do pensar. De outro modo, o saber dos mortais não mais deixará de oscilar entre a hesitação acrítica e a estática aridez da defmitiva constatação de que"o ser é". Ou seja, é tão insentata a tentativa de encontrar no sensível um saber autêntico, que pretenda atin~ o ser, quão inútil ficar pela encantatória repetição do único saldo positivo do argumento da deusa: "é". Não pode ser mais clara a exortação dirigida ao jovem, na conclusão do argumento contra a doxa : "decide pela razão a prova muito disputada de que falei", ou" ... pelo argumento a refutação que dá origem a muitas disputas" (qualquer das traduções é correta). Foi assim que Parmênides foi entendido por quantos se lhe seguiram na tradição reflexiva grega 72 • Passarão séculos até que o neoplatonismo e o neopitagorismo ensaiem uma aproximação do saber que ignore de todo a via da opinião. 3. 1. 1. 1 ÜS DESTINATÁRIOS DA MENSAGEM DA DEUSA Mas então é impossível pensar que o poema não visa nenhum dos que, antes de Parmênides, se entregaram à busca do saber. Durante muitos anos, explorando uma coincidência superficial com Heráclito, 72 Como vimos, Zenão e Melisso aprofundaram as conseqüências da sua mensagem. Empédocles, Anaxágoras e os Atomistas reinterpretaram-no (conferindo novos sentidos ao ser). Platão e Alistóteles construíram amplas sínteses do saber grego, a partir da aceitação da identidade do ser e do saber. Os sofistas entragaram-se à desvalorização do saber (Górgias), ou à reabilitação da aparência (Protágoras). 103 além de uma oposição de fundo nas obras dos dois pensadores 73 , tornou-se habitual afirmar que o poema visava, na realidade, as doutrinas do Efésio. Mas já muito poucos sustentam hoje essa tese. Não é, porém, forçoso personalizar a questão. Mesmo sem ter de pensar nesta ou naquela figura da tradição, não há dúvida de que o poema . critica todos aqueles que- e quantos o não fizeram?- antes de Parmênides apontaram uma origem para o cosmo. Ou os que consentiram uma emergência dos contrários (Anaximandro: DK12A9; vide Aristóteles Física A 4, 187 a20 segs.; Pseudo-Plutarco Strômateis 2). Mas decerto a denegação de alcance epistêmico às conjecturas dos mortais não podia deixar de visar as discussões entre intelectuais, que terão constituído o verdadeiro suporte para a transmissão oral das opiniões "dos que primeiro filosofaram". Para todos esses, e ainda naqueles em quem, como em Parmênides e Aristóteles, é notável a indistinção entre "fatos" e "ditos'~ (para o Eleata vide atrás 1. 2. 2; para Aristóteles Metafísica B 174 ), a investiga73 A contradição de fundo reside na radical oposição entre uma defesa da identificação da realidade com o movimento- "tudo flui" (Platão Crátilo 440 c)- e com o repouso (Parménides frag. 8. 26 segs); a coincidência superficial é entre a palintonos [ou palintropos] harmoniê de Heraclito ("Não compreendem como o que difere consigo mesmo concorda: como a harmonia de tensões opostas [ou reversível] entre o arco e a lira": BSl) e o palintropos keleuthos (o "caminho reversível") de Parménides B6. 9. 74 "Em relação à ciência que estamos a investigar [a Metafísica], é necessátio examinar primeiro as apórias (aporêsai) que começam por se nos apresentar, as que acerca dessa questão outros consideraram, bem como o que fora delas terá sido omitido. Os que querem ultrapassar as a porias (euporêsai) hão-de começar por explorá-las bem (diaporêsai kalôs), pois a posterior ultrapassagem das a porias (euporia) resulta de se desenvencilharem das aporias anteriores (lysis tôn proteron aporoumenôn), e não se desenvencilha quem desconhece o nó, além de que a aporia da reflexão aponta para a da coisa, visto que quem está na aporia (aparei ) fica imobilizado, como quem está amarrado: um e outro são incapazes de avançar em frente. Por isso se torna necessário contemplar primeiro todas as dificuldades, não só pelo que foi dito, mas porque os que investigam sem terem explorado antes as apotias (diaporêsai prôton) são semelhantes aos que ignoram onde devem it; por nem sequer saberem se encontraram o que buscavam; pois a finalidade [da investigação] só é manifesta a quem previamente considerou as a porias (proêporêkoti) . E ainda é necessário que se ache em melhor situação para decidir aquele que- como se de litigantes se tratasse - deu ouvidos a todos os argumentos opostos". (Aristóteles, Metafísica B 1, 995 a23-b3). Para além de outros aspectos não menos importantes, o texto evidencia a importância das "apotias" (note-se a repetida referência ao tetmo, através dos compostos do verbo aporein) no método de investigação de Aristóteles, justamente designado de "diaporemático". Ora o que é uma apotia? Uma dificuldade, um problema que deixa o investigador embaraçado, e para o qual ele apresenta uma solução, pelos outros considerada insatisfatótia (por isso, apresentam, também eles, as suas soluções). É surpreendente que Aristóteles se proponha a investigar a realidade, considerando-a partir do estudo das apatias, ou seja, das dificuldades que persistem nas opiniões daqueles que o antecederam. Deverá começar por considerar as aporias (aporêsai) com que os outros se confrontaram, isolá-las, explorá-las bem (diaporêsai kalôs: estudando-as noutros que sobre elas se debruçaram) e finalmente resolvê-las (euporein) . Uma vez mais, saber e ser coincidem. 104 ção do ser- o saber- não pode separar-se da recuperação crítica, polêmica mesmo, das opiniões dos que os antecederam. Neste sentido ainda, a intenção controvesa de 7. 5 constitui não só o único meio de advogar a entrega à busca do saber, como também a forma de, por excelência, promover a sua manutenção e divulgação, assegurando ainda a educação das novas gerações: sempre, como hoje, atraídas por todas as formas de exibição pública de capacidades, como forma de afirmação pessoal e social. Todas estas intenções se acumulam então na dedicatória crítica às opiniões dos mortais. Convergem deste modo duas finalidades: por um lado, são expostas as opiniões dos que o antecederam na tradição; por outro, é denunciado o erro em que caíram e apontado o remédio para ele. Mas há ainda algo de muito importante a acrescentar, a que já fizemos referência e a que tomaremos quando chegarmos aos frags. 9, 16·e 19. A estes conferiremos, portanto, redobrada atenção. Mas voltemos pela última vez ao frag. 8. 3. 2 As DUAS FORMAS 50 Nisto cesso o discurso fiável e o pensamento em torno da verdade; depois disso as humanas opiniões aprende, escutando a ordem enganadora das minhas palavras. E estabeleceram duas formas, que nomearam, das quais uma não deviam nomear - e nisso erraram -, 55 e separaram os contrários como corpos e postaram sinais, separados uns dos outros: aqui a chama do fogo etéreo, branda, muito leve, em tudo a mesma consigo, mas não a mesma com a outra; e a outra também em si contrária, a noite sem luz, espessa e pesada. 60 Esta ordem cósmica eu te declaro toda plausível, de modo a que nenhum saber dos mortais te venha transviar. 105 Os versos 50-2 declaram o fim do discurso verdadeiro e anunciam o início da chamada "via da opinião". A caracterização das "crenças dos mortais", feita através da indicação das "duas formas" ... "que nomearam", começa com uma nota crítica: "... e nisso erraram". Erraram porque nomearam "duas", quando já ficou sobejamente demonstrado que só deviam ter nomeado uma, visto que só "o ser é" e" ... a ele se referem todos os nomes que os mortais instituíram, convencidos de que eram reais ..." (8. 39). Depois disso separaram os contrários: um identificado com o fogo (ou o sol), outro com a noite (as trevas). A crítica visa aqui implicitamente a tese, tipicamente jônica75 , da constituição das coisas através da mistura (krasis) das qualidades opostas que suportavam. Assim, de um lado estava o fogo, sumamente quente e raro, do outro a terra, fria e densa. No meio, achavam-se o ar - quente e rarefeito - e a água - fria e pouco densa. A mistura destas qualidades era produzida, e explicada, pela mistura física, das substâncias materiais que as suportavam. É isso mesmo que a deusa afirma em 8. 56-9. Os dois últimos versos criticam este ensinamento e indicam a sua justificação. A plausibilidade, verosimilhança, desta ordem cósmica foi transmitida ao jovem para que este ~o se deixe enganar por nenhuma outra tentativa empreendida pelos mortais. Talvez este dado, prestado de forma aparente casual, constitua um indício precioso sobre a finalidade da via da opinião. Neste sentido, ela conteria menos um ensinamento positivo do que uma súmula crítica do saber dos físicos, que o jovem deverá desaprender. No entanto, como veremos, o tom de muito do que se segue excede esta visão limitada. 3. 2. 1 DIALÉTICA E ERÍSTICA fragmento9 Mas, uma vez que tudo é chamado luz ou noite e o conforme a estas potências é dado a isto e àquilo, 75 Os pensadores jônicos, a que Aristóteles chamará "físicos", ou "fisiólogos", por se dedicarem ao estudo da natureza e do movimento, são Tales, Anaximandro e Anaximenes, de Mileto. Tradicionalmente, o seu "florescimento" estende-se ao longo do séc. VI. 106 tudo é igualmente cheio de luz e de noite obscura, 4 ambas iguais, visto cada uma delas ser como nada. A veia dialética do frag. 8 continua no 9 . Estes quatro versos prestam-se a diversas leituras: todas elas jogando sobre a ambiguidade e o carácter vago e equívoco com que certas expressões são usadas. Por exemplo, qual é o referente do "tudo" de 9. 1? É "todas as coisas", real ou aparentemente? Se é realmente, então a atribuição é errada, porque só um nome lhe conviria, não dois. Mas, se é aparentemente, então o erro manifesta-se mais adiante. Porque "tudo é igualmente cheio de luz e de noite obscura, ambas iguais". Aqui de novo como deve ser lido o "tudo"? Se realmente, é errado como acima. Mas, se aparentemente, então não "é"; ou, se" ... é igualmente cheio de luz e de noite escura, ambas iguais", como é que podem ser iguais, se são diferentes (têm nomes diferentes)? Ou ainda, são duas e diferentes, mas também iguais, porque cada uma delas é nada. Mas então não podem ser nem sequer uma. Este tipo de refutação mostra como a dialética (e a erística: arte da disputa verbal) é uma criação eleática. A tese é demonstrada pela exibição das contradições, do absurdo, a que conduz a defesa da antítese (a doutrina que se lhe opõe). É esta dimensão da influência eleática que os sofistas mais nitidamente explorarão. Voltaremos a este tópico. 3. 3 A POSITIVIDADE DA OPINIÃO Fragmento 1O E conhecerás a natureza do éter e no éter de todos os sinais e dos raios da pura lâmpada do sol as obras destruidoras, e de onde nascem, e conhecerás as obras que rodam em torno da lua de olho redondo e a sua natureza, e saberás do céu que os tem à volta, 107 I e de onde nasce, e como guiando-o a Necessidade o obriga a conter os limites dos astros. O fragmento 1O parece exteriorizar uma atitude bem diferente da expressa nos dois fragmentos anteriores, transmitindo a sensação de haver um ensinamento real acerca da aparência. Mas aqui é a natureza fragmentária em que nos chegou o poema que impede uma decisão nítida. E será assim para todos os fragmentos que estudarmos a seguir, como dissemos, com a exceção de B 16 e B 19. É chamada a atenção para o espaço cósmico em que se acham localizados o Sol e a Lua. E para os efeitos destes astros sobre a vida na Terra. Alude-se finalmente a uma ordem que explica a regularidade dos movimentos dos astros. Sabemos da importância que a astronomia caldaica, e depois a grega, vão conferir ao estudo destes movimentos irregulares, conspícuos (bem visíveis), salientes, na regularidade das estrelas do céu. Mas será preciso esperar pelo Timeu platônico para chegar a um discurso coerente e informativo sobre a astronomia grega clássica. 3. 4 ASTRONOMIA E FISIOLOGIA fragmento 11 ... como a terra e o sol e a lua e o éter que a tudo é comum e a via láctea e o Olimpo extremo e o calor ardente dos astros forçados a nascer. Nada de interessante parece dever ser acrescentado a esta sumária descrição dos céus. O "calor ardente dos astros forçados a nascer" só parece poder conter uma referência ao Sol. 108 fragmento 12 1 Pois as coroas mais estreitas enchem-se de fogo sem mistura e as que vêm à noite depois destas, mas com elas lança-se uma parte de chama. No meio delas está o espírito que governa tudo; pois em tudo comanda o parto doloroso e a mistura, impelindo a fêmea a unir-se ao macho, e ao contrário o macho à fêmea. Aqui, contudo, achamo-nos diante de um ensinamento positivo, claramente identificado com a transmissão de um saber humano. Parece estarmos perante uma doutrina que explica o ordenamento cósmico e a união sexual dos humanos. Há "um espírito que governa tudo", que "comanda ... a mistura", tanto dos seres humanos, quanto a dos astros, cujas coroas se enchem de fogo, umas "de fogo sem mistura", outras com " ... uma parte de chama". Talvez a imperceptível doutrina vise a caracterização das circunstâncias em que se pode falar de mistura, ou das suas conseqüência físicas e fisiológicas. Particularmente da mistura dos sangues, responsável pela geração dos seres. A este ponto, o frag. 18 tem algo a acrescentar. fragmento 18 Quando a mulher e o homem juntos misturam as sementes de Vênus, a força que se forma nas veias a partir de sangues diversos, mantendo o equilíbrio, gera corpos bem formados. Se, contudo, misturados os sémens, as forças se opõem, e não fazem unidade, misturados no corpo, cruéis, atormentam o sexo da criança com o duplo sémen. O fragmento parece imputar às "forças que se opõem" a responsabilidade pelas malformações das crianças e os sofrimentos de que são vítimas. 109 r fragmento 13 Primeiro que todos os deuses Eros foi concebido. Nada de novo também aqui. A referência a Eros traduz habitualmente a emergência de uma força atrativa entre os seres, que os leva à reprodução. fragmento 14 Facho noturno, em torno à terra, alumiado a uma luz alheia O que constitui "um dos mais belos versos da literatura grega76 " designa evidentemente a Lua e pode bem acoplar-se ao fragmento seguinte. fragmento 15 Sempre à espreita dos raios do sol. fragmento 15a Parmênides no poema diz que "a terra tem raízes na água". Uma afirmação, respigada de um escólio de Basílio. É interessante na medida em que evidencia um sinal da carreira de Parmênides como "físico" (investigador da natureza). fragmento 17 À direita os machos, à esquerda as fêmeas 76 Jean Beaufret, Parménide. Le poeme, Paris, 1955, 8. 110 I \ !J ftFlt~f~~S-COt~r~r ·F·f.:~ ·-.· r~ :.-~! .i(_: ,r~r~4\ ~- ·~ I I Provavelmente uma teoria sobre a formação dós sexos no útero materno. Veja-se o paralelo com as tábuas dos pitagóricos: de um lado o Limite, ímpar, uno, direito, macho, em repouso, retilíneo, luz, bom, quadrado; do outro, o Ilimitado, par, múltiplo, esquerdo, fêmea, em movimento, curvo, obscuridade, mau, oblongo (vide Aristóteles Metafísica A 5, 986 b23-6). I I I I I I 3. 5 Ü I PENSAMENTO E A MISTURA I fragmento 16 I I Pois, tal como cada um tem mistura nos membros errantes, assim aos homens chega o pensamento; pois o mesmo é o que nos homens pensa, a natureza dos membros, em cada um e em todos; pois o mais [o pleno] é o pensamento. ~ Pode ser que não tenha qualquer significado especial. Todavia, depois de não ter usado uma única vez, nos fragmentos que possuímos do poema, o termo 'homem' (anthrôpos ; para se referir ao gênero humano recorre sempre a brotos : "mortal"), Parmênides usa-o duas vezes neste fragmento (e de novo em B 19. 3). De resto, a importância deste fragmento é enorme, lançando uma nova luz sobre a origem e o sentido da sensibilidade e das crenças dos mortais. Os frags. 8 e 9 tinham-nos já despertado para as "duas formas" contrárias, da mistura das quais, presume-se (com alguma base em B12 e B18), nascerão os homens e provavelmente todos os seres, animados e inanimados.· Ficamos agora a saber que - tal como permeavam a natureza do cosmos (poderá ser esta a chave para a compreensão de B 1. 32: "passando todas através de tudo") - as duas formas se combinam no homem ('membros' é um termo poético para designar o inexistente "corpo", ou até os sentidos). 111 Ora, tal como são constituídos pela mistura, assim os homens perct:bem a mistura77 • E, no entanto- e aqui o jogo entre os sentidos contrauitórios quase atinge o paroxismo-, nos homens é o mesmo que pensa (o paralelismo com B3 não pode ser fortuito): "a natureza dos membros". Mas então está a justificar com a mistura a percepção da mistura? E/ou a celebrar a natureza do mesmo? "Pois o mais é o pensamento" coroa tanto equívoco: não se percebe se está apenas a exaltar o pensamento, ou a acenar ao pleno (recordando a necessidade de uma natureza única e de um único pensamento: "é"). Pode até suceder que a equivocidade se manifeste como uma forma de comentar a ambivalência da mistura e das conseqüências que engendra: a regressividade, a hesitação. etc. 3. 6 A OPINIÃO E OS NOMES fragmento 19 Assim, segundo a opinião, as coisas nasceram e agora são e depois crescerão e hão-de ter fim . A essas os homens puseram um nome que a cada uma distingue. O fragmento 19 encerra provavelmente o percurso pela via da opinião. As coisas, diferentemente nomeadas pelos homens, nascem, vivem e hão-de morrer. Esses são os nomes com que os homens (de novo anthrôpoi) as designam e lhes descrevem as aparências. Subjacente achase a idéia de que tudo isto é enganador, pois, como provou a via da verdade, só o ser é. Note-s~, porém, a nota, que só Górgias dignamente acentuará (DK82B3; Sexto Empírico, Adv. math., 83-6 - ver adiante 4. 77 A semelhança com Empédocles Bl 09 (ou possível influência neste) é notória: "Pois com a terra vemos a terra, com água a água, com ar o ar brilhante, com fogo o fogo ardente, com amor vemos o amor, e com ódio o ódio terrível". 112 2. 2): são os nomes postos pelos homens que as distinguem. A diferença não está "nelas" (que razão poderá haver para falar de uma pluralidade?), mas apenas nos nomes (B8. 38; B9. 1 seg.) que os homens (sem propriedade/autenticidade?: Bl. 30-2) lhes atribuem, e com os quais as distinguem, "confiantes de que eram [são] reais": (B8. 39). 4. Parmênides e a herança eleática Tivemos 'a trás a oportunidade de chamar a atenção para a influência do Poema de Parmênides no pensamento grego anterior a Sócrates. Aludimos então ao papel de transmissores e críticos da mensagem eleática desempenhado pelos dois maiores filósofos gregos da Antiguidade: Platão e Aristóteles. Só agora, porém, podemos completar o quadro geral que evidencia a importância de Parmênides na tradição filosófica, elucidando as leituras divergentes que a Filosofia e a sofística78 fizeram do Poema. A análise já feita permite-nos avaliar o alcance do interdito em que a tradição condensou todo o impacto da dialética eleática: "não é possível conhecer, ou dizer, o que não é" (B2. 7-8). Será a diversa reinterpretação desta tese que irá dividir os maiores representan.tes do pensamento grego. É com essa sumária consideração que concluiremos a nossa viagem ao longo do poema. 78 Falar de 'sofística' não implica que a acção dos sofistas se possa, ou deva, entender como um movimento concertado, mais do que como o fenómeno da convergência para Atenas das figuras mais representativas da cultura grega da época. A primeira alternativa levanta problemas difíceis de resolver: da datação dessa convergência (estende-se ao longo de mais de um século), da diversa origem, estatura intelectual e posição ideológica de cada um dos sofistas e da significativa degradação do ambiente que a sua presença foi provocando. Levanta ainda uma dificuldade que se reflecte sobre a dependência em que nos achamos das fontes pelas quais nos chegaram informações sobre os sofistas: para além da evidente parcialidade, gira sempre em torno de personalidades concretas. Embora nos concentremos sobre a presença da mensagem eleática nas obras dos dois maiores sofistas - Protágoras e Górgias -,não poderemos deixar de considerar as informações prestadas por Platão no Eutidemo (condensada em torno de Eutidemo e Dionisodoro, personalidades cuja importância real se desconhece). Outros sofistas- Trasímaco, Hípias, Pródico e até, mais tarde, Isócrates- poderiam ser referidos, mas neles o efeito da dialética eleática não é notável. 113 4. 1. Ü FRAG. 2 REVISITADO A proposição "não é possível conhecer, ou dizer, o que não é" consente uma constelação de divergentes leituras, motivadas pelas muitas ambiguidades, de diversa natureza, que contém. Comecemos pelas ambiguidades sintáticas79 • "Não é possível conhecer, ou dizer... " pode ser interpretada como uma proibição (no sentido de "não dirás, ou conhecerás ... "), ou como uma advertência ("se disseres, então ... "). Mas não só uma tem conseqüências muito diferentes da outra, como interagem de maneira diversa sobre cada uma das ações: "dizer", ou "conhecer". E, se não, vejamos. Enquanto "não digas" remete para uma interdição imediata, "não conhecerás" pode ser lida tanto como uma ordem - "não tentes conhecer" -, quanto como uma advertência "mesmo que tentes, não conseguirás" -, ou ainda "o que julgas conhecer não é um conhecimento (saber) autêntico". Esta última acepção há-de inevitavelmente reflectir-se sobre o dizer, no sentido de "o que disseres, não estás ria realidade a dizer" (são palavras .ocas, ou meros sons). E, na verdade, a contaminação entre estas duas interpretações manifesta-se pela retroacção da segunda sobre a primeira: a interdição acaba por ser lida como a declaração de uma impossibilidade efetiva. Passemos agora às ambiguidades semânticas, que são já nossas conhecidas, residindo na pluralidade de leituras de einai. "O que não é" pode ser interpretado nos sentidos predicativo, identitativo e existencial. O problema, note-se, tal como vimos atrás, não tem tantas conseqüências na interpretação do poema, quanto nos diferentes contextos em que vai emergir. "O que não é" pode ser lido como o que não é "isto ou aquilo", o que não é "igual a si próprio", ou ainda "o que não existe". 79 O nível sintático refere as relações formais entre os termos; o semântico remete para as relações materiais entre os sentidos dos termos, ou das expressões. 114 4. 1. 1 DA AMBIGÜIDADE AO SOFISMA Mas as dificuldades não ficam por aqui, uma vez que de novo se verifica a contaminação entre os dois tipos de ambiguidade, a qual é forçoso encarar numa perspectiva histórica. É natural pensar que o primeiro sentido das palavras da deusa constituam uma interdição: "não dirás",;não conhecerás". Todavia, se assim fosse, a própria deusa não poderia com legitimidade proferir a expressão "o que não é", ou mesmo qualquer declaração na forma negativa. Esta primeira leitura a proibição da negativa - pode, portanto, considerar-se violada pela própria proposição que a declara. Mesmo assim, a interdição poderá ser invocada para justificar a rejeição de qualquer declaração negativa80, ou dar origem a uma cadeia de aporias que afundam o discurso no infinito regresso81 ·82 . Há, portanto, razões para privilegiar a adv:ertência contra a interdição. Esta possibilidade vai, contudo, dar origem a novos e inesperados problemas. Cruzando de novo o sintáctico com o semântico, a advertência sobre a impossibilidade de declarações negativas equivale a sustentar que nenhuma delas terá sentido, como se dizer - "x não é ... ", ou "não-x .. ."- fosse o mesmo que não dizer nada, ou nem sequer falar, produzir sons sem nexo- gargarejos, assobios, fungadelas, ataques de tosse, etc.-, ou até gestos obscenos. 80 E não só declarações, como também termos negativos, por exemplo: "não-cavalo", ou, como veremos adiante, a propósito da interpretação existencial, termos que referem entidades inexistentes, como 'Pégaso', ou 'Quimera'. 81 Com esta expressão caracteriza-se uma situação indecidível, porque susceptível de se prolongar indefinidamente, como no exemplo do ovo e da galinha. 82 Por exemplo no seguinte diálogo: - "Não chovendo" -"Não podes dizê-lo! " -"Porque?" - "Porque não é possível dizer o que não é" -"Mas posso!!" -"Porque?" - "Porque então também tu não poderias proibir-me!!" - "Nem tu impedir-me dê o fazer!!!" . E a dificuldade torna-se ainda mais complexa se fizermos retroagir o nível semântico sobre o sintático, sustentando que negar "não está a chover" equivale a afirmar "está chovendo"). 115 Já ultrapassamos o limiar da gargalhada. Mas é só o começo. A entrada em cena da ambiguidade semântica de einai vai engrossar muitÇ> a lista de aporias resultantes da interdição divina. Por exemplo, nas interpretações predicativa e identitativa, equivale a proibir, ou desclassificar, qualquer forma de movimento ou mudança (como B8. 26-31 demonstra), e também de geração e de corrupção (B8. 6-21). Como é que "isto" poderá alguma vez tomar-se "aquilo" (vide B8. 40-1)? Portanto, de o que quer que seja só poderá afirmar-se que é isso mesmo: "o que quer que seja" (o que é o mesmo que limitar toda a predicação à identidade83 ). A interdição da negação da existência vem acrescentar um toque de paradoxo a esta inextrincável cadeia de aporias. Não se pode falar de seres inexistentes, como vimos, tal como negar a existência do que quer que seja. Esta nova impossibilidade vais dar origem a duas inesperadas complicações. Primeira, a que resulta do cruzamento das leituras. Por exemplo, a negação de um predicado pode ser interpretada como a negação da existência do sujeito ("Sócrates não é meu pai", é o mesmo que afirmar "Sócrates não existe"). Por conversão, do que não existe nada poderá ser afirmado, nem sequer que não existe (visto nada se poder dizer de "o que não é"). · Mas também, pelo seu lado, a segunda complicação vem baralhar toda a confusão já criada. Resulta ela de se encarar o discurso como um fato, talvez uma outra, espécie de ser. O que acontece então, se pensarmos que, ao violar cada um dos interditos acima explicitados, estaremos não a negá-los, mas a cair numa incontornável aporia? Vejamos. Não é possível dizer o que não é. Portanto, se o posso dizer (basta-me dizer: "o não ser... "), então é porque é. Uma vez mais a retroação do semântico sobre o sintático produziu inéditas dificuldades. Isso significa que o fato linguístico da negação a torna tão possível e legítima quanto a correspondente afirmação. 83 Naturalmente que esta dificuldade não terá qualquer conseqüência para quem se limitar a falar do ser, afirmando "é". Afeta, contudo, qualquer referência a alguma entidade, fato, ou qualidade do mundo em que vive. Por exemplo, a proposição "o homem é bom" torna-se impossível, ou destituída de sentido, uma vez que do homem só poderá afirmar-se que "é homem" e do do bom que "é bom". 116 E assim chegamos à aporia final. A impossibilidade de dizer o que não é pode ser também lida como a concessão da garantia da verdade a toda a declaração afirmativa (em todos os sentidos acima enunciados), a qual acarretará a da correspondente falsidade de todas as declarações negativas. De resto, a leitura veriditiva de "é" (ver atrás 2. 1. 6) atesta isso mesmo, ao interpretar "é" como "é verdade". Todavia, uma vez mais a inegável evidência do discurso recairá sobre esta interdição, implicando que, na medida em que se declara o que quer que seja, essa declaração, pelo simples fato de poder ser feita, é verdade. E é-o apenas pelo fato de ter sido proferida. Duas conseqüências decorrem daqui: a impossibilidade da falsidade, bem como a da contradição. Se eu digo "é verde", então é verdade que é verde, pelo simples fato de o estar a dizer. Mas, se digo "não é verde" também é verdade, porque acabei de o dizer. Portanto, se faço uma afirmação e a ·seguir a nego, nem por isso me contradigo, visto que tanto uma como outra são verdades (ou seja "verdade"). 4. 2 A CRÍTICA À SOFÍSTICA As interpretações acima sumariadas, além de muitas outras indiretamente relacionadas com a eleática interdição de dizer "o que não é", não são fruto da desenfreada imaginação de nenhum estudioso da cultura grega. Acham-se, todas elas, apontadas por Platão e Aristóteles, no diálogo Eutidemo, e no tratado intitulado As refutações sofísticas, respectivamente. Mais do que isso, é possível encontrar as mais interessantes no fragmento que conhecemos do tratado de Górgias Da natureza ou do não-ser. Não é difícil calcular o efeito paralisante que tiveram, e ainda hoje podem ter, sobre o pensamento. Não será então difícil entender a mistura de ironia·e desprezo com um fundo sentimento de impotência com que a Filosofia as encara (nenhum texto documenta este sentimento dúbio melhor de que o Eutidemo). Mas há também que atender a razões habitualmente pouco consideradas. É que os sofistas são talvez 117 os últimos e mais brilhantes representantes de um mundo que Platão e Aristóteles ajudaram a sepultar: o da oralidade. Para o amante do saber, como para aquele que se dedica à exaustiva tarefa de o registar, criticar e sintetizar em textos escritos, destinados a serem usados criticamente pelas gerações futuras, o calor das disputas erísticas (combates verbais em que o que interessava era vencer o opositor), a mera valorização do sucesso, a expensas da investigação da verdade, não só são destituídas de sentido, como constituem o maior obstáculo aos seus propósitos. Assim se·explica a atitude que o levará a excluir os sofistas da autêntica tradição filosófica. É compreensível. Todavia, uma tão severa crítica não passaria de parcialidade, se não fosse compensada por um esforço efetivo, no sentido de emancipar o saber filosófico do atoleiro de sofismas em que os erísticos tinham deixado a tradição reflexiva grega. Mas os sofismas, como vimos, limitam-se a explorar as ambiguidades consentidas pelo grego corrente. Para além dos rigorismos éticos e da sobranceria política, a tarefa prioritária residirá em conseguir despistá-las e resolvê-las cabalmente. Essa será, antes de todos, a missão de Platão. 4. 2. 1 PLATÃO Pela associação expressa do interdito eleático (B2. 7-8; vide República V 4 76 e-77) à conclusão retirada da exclusão da via negativa- "o mesmo é ser e pensar" (B3; vide República 4 77 a sqq.) -,Platão concebe uma filosofia que explora a cisão entre a realidade (o ser e o saber) e a aparência (a experiência sensível e a opinião). Esboça então um duplo movimento. Por um lado a profunda a cisão, argumentando que enquanto o saber é matéria de ensino e aprendizagem, a opinião não pode ser transmitida senão pela persuasão (Timeu 51 e). Por outro comp-=11sa-a, promovendo o acesso ao saber através de um método que ensina, através de uma prática dialética assente sobre princípios rigorosos, a questionar os dados colhidos pelo exercício da sensibilidade. 118 ', .' }. ·~ ~ Esta estratégia terá efeitos revolucionários, condicionando a formação da atitude e modo de vida designado pelo nome 'Filosofia', que a captação da tradição pela escrita (vide atrás:) converterá em disciplina. A constituição do saber passa primeiro pelo estabelecimento da distinção entre matéria e forma: de um lado, acha-se "aquilo" que se sabe e aquilo "de que se sabe", do outro as regras que condicionam formalmente o saber, enquanto saber (irrefutabilidade, infalibilidade, unicidade, imutabilidade etc. 84 ) . Depois é esboçada a estratégia de definição de urna síntese de ambas, que aproveita a informação material proporcionada pela aparência, submetendo-a ao rigor introduzido pelas exigências racionais do saber. Só assim o saber consegue atingir a estabilidade que o elevará acima dos processos do ensino tradicional, pelos quais o mestre se limitava a instilar as suas convicções na mente dos discípulos, forçados a recebê-la passivamente (é isto que o filósofo designa de "persuasão"). É contra esta situação - toda ela herança da tradição oral - que Platão se revolta. O seu programa está concebido a partir da mensagem eleática. Todavia, para que este possa ser levado a cabo com êxito será necessário nela introduzir significativas modificações. É isso que Platão fará no Sofista. Mas para as compreendermos há que enveredar pela Filosofia da Linguagem, pensando nos fatos linguísticos responsáveis pelas interpretações do frag. 2 do poema, acima inventariadas. 4. 2. 1. 1 NEGAÇÃO Para Parrnênides, "é" é o contrário de "não-é", portanto, a afirmação e a negação são contrários. Platão vai mostrar que embora possa ser esse o caso, não tem de ser, e na maior parte das situações nem sequer é assim. 84 Se houvesse mais do que um saber, se estivesse sujeito a alterações, se pudesse ser refutado, não se poderia legitimamente considerá-lo saber. As duas primeiras exigências derivam da natureza do ser (unicidade, imutabilidade, eternidade etc.). As duas outras são específicas do saber e condicionarão o seu modo de fixação e transmissão. 119 • O "bom" é o contrário do "mau", o "justo" do "injusto", e assim por diante. Todavia, entre um e outro extremos podemos pensar em muitas outras possibilidqdes: o "indiferente", o "aceitável", o "suficiente", etc. Mas, se em vez de valores, ou de adjetivos, pensarmos em substantivos, a objecção toma-se ainda mais pertinente. Qual é o contrário do "vermelho"? Nalguns sentidos poderemos falar do "verde". É, contudo, evidente que este tipo de contrariedade en nada se assemelha à dos adjetivos citados acima. Portanto, o que é o "não-vermelho"? Alguma cor especial? Já vimos que não. É a gama infinita das cores e tonalidades distintas do vermelho. Por essa razão, devemos encarar o 'não' não como significando contrariedade, mas alteridaêle. A negação de algo não é um não-algo no sentido absoluto, mas outra coisa, que apenas sabemos não ser "algo". 4. 2. 1. 2 NÃO-SER Daí resulta que o não-ser não é o contrário do ser. É apenas outra coisa diferente do ser. No sentido predicativo - por exemplo, "Carlos é amável"-, "Carlos não é amável", ou "Carlos é não-amável", significa que no sujeito em causa não se manifesta a amabilidade. Mas não implica que ele seja grosseiro, rude, ou mal-criado. Não implica um defeito real, mas tão-só a ausência de uma qualidade. No sentido existencial (o identitativo não acrescenta aqui nada ao já dito), a questão é ainda mais momentosa. Vejamos a mais extensa de todas as proposições: "o ser é". Significará a sua negação a inexistência do não-ser? De modo nenhum. Se 'não' significa "outra coisa", no sentido existencial o não-ser existe, porém, com uma existência diferente da do ser. E o sentido predicativo esclarece precisamente de que tipo de existência se está a falar: da do bom, do vermelho, etc. Quer isso dizer que não se pode falar do não-ser como inexistente? Claro que pode. Mas aí teremos de conceder toda a razão a Parmênides: pode-se falar, mas dele nada se poderá dizer. 120 4. 2. 1. 3 ' fALSIDADE Se é assim, também uma falsidade não é o contrário de uma verdade, mas apenas uma outra coisa, diferente dela. Nessa medida, não só é possível dizer falsidades (violando o interdito "dizer o que não é"), como é o que acontece sempre que uma descrição de um estado de coisas não coincide com esse estado de coisas: por exemplo, afirmar "esta é uma moeda de cinco escudos", quando se trata de uma de dez escudos, ou uma de cinco escudos falsa. É outra coisa, mas não coisa nenhuma. 4. 2. 1. 4 VERDADE Nesse sentido, 'verdade' não é mais do que a qualidade de uma proposição que descreve um estado de coisas tal como ele é: se é, afirmando que é, se não é, negando-o. 4. 2. 1. 5 APARÊNCIA E a aparência? Essa será a situação proposta por uma proposição que descreve um estado de coisas que parece, mas não é de fato, o estado de coisas descrito. É o que se passa quando alguém se assusta ao avistar um animal que avança na sua direção e foge gritando: "Lobo!" Para parar daí a pouco, ao perceber que o animal que corre ao seu lado é o cão de um vizinho. 4. 2. 1. 6 OPINIÃO E opinião será então a designação conferida a uma proposição, efetivamente enunciada por um sujeito, o qual, de acordo com a informação colhida por via sensorial, faz uma afirmação ou uma negação. Sujeito que pode estar certo ou enganar-se, pois essa é a natureza da opinião, e que diz a verdade quando acerta, e uma falsidade quando erra, mente, ou se engana. 121 A opinião tem uma natureza escorregadia, variável, passível de ser avaliada de muitos pontos de vista diferentes. E é por isso mesmo que não se pode confundir com o saber. Mas não será por isso que o saber pode de todo dispensar a opinião. Pelo contrário, serve-se dela como matéria sobre a quallabora. Mas terá de a submeter a uma consideração refinada para poder apurar o que da opinião se poderá converter em saber e o que não passa de confusão, erro, ou ilusão. 4. 2. 2 ÀS CONSEQÜÊNCIAS DA CRÍTICA DE PLATÃO Através destas precisões e especificações, Platão conseguiu retirar da mensagem de Parmênides o que lhe interessava, libertando-se das conseqüências indesejáveis que acarretava. Mais ainda. Esclarecendo as circunstâncias em que o verbo ser pode ser interpretado nos seus sentidos predicativo, identitativo e existencial, fixa definitivamente as modalidades que determinam a realidade e o discurso acerca dela: os cinco gêneros supremos - o ser, o mesmo e o outro, o movimento e o repouso. O ser diz-se das coisas que existem; o mesmo daquilo que elàs são identitativamente; o outro das que existem e se dizem diferentemente das ditas 85 ; o movimento das coisas que se movem e mudam; o repouso das que permanecem. 4. 3 0 SABER DOS SOFISTAS Em que consistia então o saber dos sofistas e de que modo interpretavam eles o interdito eleático? Comum a todos eles era a dedicação ao estudo das questões da linguagem. As finalidades deste trabalho, contudo, pouco teriam a ver com o interesse pela investigação e pelo aprofundamento do saber. Es85 Como, por exemplo, em "o movimento participa do ser" (ou "o movimento existe"); ou na afirmação de que qualquer gênero participa do mesmo em relação a si próprio; ou ainda "o movimento participa do outro em relação ao repouso" ("o movimento é diferente do repouso"). 122 tavam primariamente voltadas para a prática e para a preparação e apetrechamento intelectual de todos os envolvidas na vida política. e, numa cidade como Atenas, nos anos que se seguiram ao triunfo sobre os Persas, esses eram potencialmente todos os cidadãos. Como interpretaram os sofistas a mensagem eleática? 4. 3. 1 PROTÁGORAS O decano de todos os sofistas (nascido por volta de 490) comportava-se de modo prudente e moderado. Por aquilo que Platão nos deixa perceber dele, o Abderita (originário de Abdera, no Norte da Grécia) era um homem de saber com muito prestígio. Dele não conhecemos qualquer virtuosística exploração das ambiguidades consentidas pelo eleatismo. Pelo contrário, a essência da sua doutrina reside no respeito pelo saber, que nele passa pela dignificação da opinião, conseguida através do refinamento dos produtos da sensibilidade e pelo apuramento da capacidade de ajuizar as contradições e conflitos com que a vida corrente nos confronta. É a atitude de um relativista, para quem "o homem é a medida de todas as coisas". Pode este princípio querer dizer que o que quer qualquer homem afirme o afirma pelo fato de, para ele, ser verdade. Mas isso não implica que de fato assim seja. Este nível de identificação da verdade com o ser e o saber é exatamente aquele que o sofista rejeita, ou que prefere não considerar. Sobre se é, ou não, de fato, verdade, nada arrisca, mas apenas que "sobre todas as coisas são possíveis raciocínios contraditórios" "um forte, outro fraco" (DK80B6a, 6b86 ). Aqui se manifesta o relativismo de Protágoras, com um pendor nitidamente agnóstico. O sofista não 86 O sentido desta contradição, bem como a diferença entre os raciocínios "forte" e "fraco" acha-se elucidado nos Argumentos Duplos (DK90). Por exemplo, a chuva é boa para os agricultores e má para os comerciantes; pois aos primeiros aumenta a colheita e aos segundos diminui os lucros, tal como com a seca acontece o inverso. É oportuno notar não só que o número de casos semelhantes a estes é potencialmente infinito, como ainda que consubstanciam o tipo de conflitos emergentes da vida em sociedade. Esta nota atesta ainda o sentido eminentemente político do ensino dos sofistas, 123 nega diretamente valor ao saber, pelo contrário. Limita-se a não se pronunciar sobre ele, desconfiando das capacidades humanas para o atingir (posição susceptível de conduzir a um ceticismo moderado). 4. 3. 2 GóRGIAS Mas o mais brilhante, prestigiado e influente de todos os sofistas foi Górgias, de Leontinos (na Sicília, que chegou a Atenas em 427, no ano em que nascia Platão). O seu ataque a Parmênides foi devastaddr. Com o já citado tratado Da natureza ou do não-ser combateu cada uma das teses eleáticas, sustentando esta cadeia de teses paradoxais: '~Nada é; [mas] ainda que alguma coisa seja, não é compreensível ao homem; [e] se ainda assim for compreensível, é por certo incomunicável e inexplicável a outros". O modo como chega à demonstração destas teses não pode ser outro que o da sistemática e repetida exploração das ambigüidades contidas no frag, 2. 7-8 de Parmênides, tal como acima as enunciamos. Jogando as ambiguidades umas contra as outras, consegue desenvolver sofismas em virtude dos quais atinge sempre conclusões simultaneamente absurdas e contraditórias. O saldo poderá ser para muitos inteiramente negativo: o da afirmação da impossibilidade do ser e da inutilidade do saber. Para o próprio Górgias, porém, não era assim. Mesmo que o ser seja impossível e o saber inatingível, a vida neste mundo é indiferente a esse fato. E é melhor vivê-la bem do que mal. A marca do sucesso de um homem reside então no seu poder, e este depende da sua capacidade de influenciar os outros. Essa capacidade, por fim, assenta toda, ou em boa parte, no domínio do discurso. E é essa a receita de Górgias para o sucesso. Se não é possível ser sábio, então a única sabedoria consiste na capacidade de cada um se fazer respeitar, obedecer, temer até. Só o poder confere a um homem essa condição. E o poder, antes de mais, político, pode ser atingido através do correto exercício do discurso. Não basta falar bem. É preciso ser eficaz sobre as audiências, persuadi-las 124 a agirem no sentido dos nossos interesses. Para o conseguir, porém, são necessárias qualidades naturais e conhecimento técnico das regras da oratória. Os seus dois mais famosos discursos que chegaram até nós: os elogios de Helena e de Palamedes (duas figuras que qualquer Grego consideraria indefensáveis) demonstram isso mesmo: como através do discurso se constrói a realidade, realidade que, sem ele, de todo nos escapa. A funda relevância desta consideração final é inegável. Todavia, o desprezo manifestado em relação ao saber, obriga o filósofo, para quem estas considerações levantam questões pertinentes, a ignorá-lo. É aqui que Platão e Aristóteles pecam por parcialidade87 • 4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE OS SOFISTAS É fácil compreender as razões do desprezo e dos insultos que os filósofos lançaram sobre os sofistas: levá-los a sério implicaria invali87 Para o compreender bastará ler o final do Da natureza ou do não ser. Vale a pena a longa citação. "Uma vez que as coisas que são são visíveis e audíveis, e, em gênero, sensíveis, na medida em que são externas a nós, e, de essas, as visíveis são perceptíveis por meio da vista, e as audíveis pelo ouvido, e não simultaneamente, como poderemos exprimir um [sentido] pelo outro? Pois o meio com que nos expressamos é a palavra (lagos); e a palavra não é a coisa, o que .realmente é; portanto, não é a realidade existente... " (ta hypokeimena kai anta; note-se a recusa em aproveitar aqui a ambiguidade de einai) " ... , mas outra coisa. Do mesmo modo então, o visível não pode tornar-se audível, e viceversa; de tal modo que assim o ser, na medida em que é coisa exterior a nós, não pode tornar-se na nossa palavra. Porque a palavra, diz Górgias, é expressão da ação que exercemos sobre os fatos externos, isto é, as coisas sensíveis. Por exemplo, do contato com o sabor, tem origem em nós a palavra conforme a esta qualidade; e do encontro com a cor, a palavra conforme à cor. Posto isto, resulta ser a palavra que explica o dado externo, mas é o dado externo que confere significado à palavra. E, contudo, também é possível dizer que, do modo que existem (hypokeitai) as coisas visíveis e as audíveis, assim também a palavra; contanto que, existindo ela também como coisa, tenha a propriedade de significar as coisas existentes. Pois, admitindo-se que a palavra seja coisa, ela diz, embora difira das outras coisas; e sobretudo diferem das palavras os corpos visíveis; visto ser um o órgão com que percebe o visível, e outro aquele com que se aprende a palavra. Portanto, a palavra não pode expressar a máxima parte das coisas, tal como nenhum destes pode revelar a natureza do outro." (Sexto Empírico Adv. Math. VII 83-6). A instituição de uma tão funda cisão entre as palavras e as coisas, a par da correspondente conferência de um estatuto ontológico ao discurso, não agrada decerto a Platão e a Aristóteles, que consagraram o trabalho das suas vidas a anulá-la. Mas não será por isso que este texto deixará de exibir uma qualidade genuinamente filosófica. É que a lição de Górgias é tão clara quão problemática: as palavras não "são" as coisas que referem; só que isso não as faz menos "coisas" (terem uma menor dignidade) que elas. por outro lado, sem as palavras não teríamos qualquer forma de acesso às coisas. 125 dar o próprio propósito que anima o amor ao saber. Esta justificação torna-se ainda mais forte se pensarmos que, além dos mais ilustres sofistas, de que acabamos de falar, outros haviam, uma chusma deles, que vivia alimentada pela ignorância e inveja da multidão. Tanto teria bastado para que o sentido aristocratizante de Platão e o genial bom-senso de Aristóteles lançassem sobre eles um anátema que ainda hoje perdura. Mas isso não significa que os ensinamentos dos sofistas não tivessem tido uma importância transcendente E ainda menos que alguns, pelo menos Protágoras e Górgias, não tivessem razão. E ela está aí aos olhos de todos. Na verdade, quem triunfa nos dias de hoje são os sofistas e não os filósofos, se de todo há alguns. Seja como for, o nosso papel não será tanto julgar uns e outros, quanto tentar compreendê-los. De todos somos descendentes: de sofistas e de filósofos, e de pessoas ignorante, bem como de quantos aproveitaram para o bem, ou para o mal, as lições que deixaram. Mas uma verdade há que repetir. Acima de todos eles -e também de nós- paira ainda o vulto tutelar de Parmênides. Nunca poderemos cc,mceder-lhe atenção demasiada, nem respeito que seja imerecido. 4.5 CONCLUSÃO: NÓS E p ARMÊNIDES Que ressonâncias têm ainda hoje a mensagem eleática? Muitas. Tão profundas, porém, que dificilmente as poderemos captar. Ao contrário do sucedia na Antiguidade, o saber é hoje um imenso edifício, compartimentado em disciplinas aparentemente estanques, embora isso resulte do modo como são ensinadas, por ora ainda indiferente ao estágio de desenvolvimento que atingiram. Se interrogássemos qualquer cientista anônimo sobre a relevância do eleatismo para a sua área de estudos, muito provavelmente responder-nos-ia com uma vaga generalidade, pouco esclarecedora, senão com o desinteresse que a genuína ignorância motiva. E, no entanto, a estrutura do saber atual respeita ainda a funda cisão no saber que o argumento da deusa instituiu. Notamo-lo na dis- 126 tinção entre "ciências puras, exatas" e "ciências aplicadas": enquanto as primeiras privilegiam o método dedutivo, a priori, as segundas optam por proceder indutivamente, a posteriori (respeitando a oposição da unidade pensável do ser à diversidade da aparência) . Por outro lado, a evidência do progresso tecnológico, proporcionada pelas ciências experimentais, quando confrontada com a incerteza da reflexão, bem como com os novos campos de aplicação, fornecidos pela atividade humana, sugeriu a oposição, introduzida no séc. XIX por Dilthey (hoje já ultrapassada), entre "ciências do espírito" e "ciências da natureza". Mas há mais. A constelação de problemas filosóficos expressa pelas múltiplas contraposições históricas -do Idealismo ao Racionalismo e ao Empirismo, do Realismo ao Nominalismo - reflete ainda o modo eleático de colocar o problema do saber. O fato de a maior parte destas distinções - outrora tidas por definitivas - se acharem hoje ultrapassada, ou pelo menos sujeita a incessante revisão, obscurece a sua derivação da problemática introduzida pelo eleatismo. Bastará, porém, um estudo superficial do poema para mostrar a influência que produziu nas mais brilhantes mentes da Grécia clássica, quase incompreensível, perante a indiferença a que é votado hoje. Como explicar esta divergência de posições? Naturalmente, pela diferença dos contextos culturais e também pelo contraste evidente nas concepções de saber em presença. 4. 5. 1 A EVOLUÇÃO DO SABER O saber é um fato com que cada um de nós foi confrontado, feito e pronto a aprender. Um imenso reportório de informação, acumulada ao longo de milênios, exposta na evidência cósmica, e conservada em dispositivos naturais, ou divisados para essa finalida~e: enciclopédias, museus, monumentos, memórias humanas e artificiais, etc. Para os Gregos, o saber era, por um lado, parte da sua própria natureza, para alguns constituía mesmo a sua natureza autêntica. Por 127 outro, copw problema, seria uma novidade, um jogo, uma charada ... Como é que a um mortal era concedido esse dom da infalibilidade que era a marca distintiva do saber? Como é que ela havia de se manifestar a não ser pela exigência de irrefutabilidade que afetava todos os pronunciamentos epistêmicos, tudo o que aspirava a valer como saber? Todo o saber atual se diz por escrito, ou em relação à escrita. Pelo contrário, na Atenas clássica, como vimos, a escrita é uma recémchegada. E a sua relação com o saber é altamente ambivalente. Tendo começado a carreira como mero instrumento de fixação da informação, cedo manifesta as suas potencialidades como meio de reprodução de mensagens, para acabar por se converter na tecnologia vocacionada, por excelência, para a produção, seleção, fixação e circulação das mensagens culturalmente significativas. É por essa razão que, antes de chegar à escrita, o saber realizou uma muito longa caminhada no mundo da oralidade88 • Ora é sobre os momentos finais desta marcha que as disputas sofísticas, as peças da oratória grega, os escritos deXenofonte, os diálogos de Platão, nos documentam89 • E o espanto que a todos percorre e permeia deixa-se condensar em três versões, ou fases, de uma única interrogação. Como é que a perfeição imutável do saber, infalível e irrefutável, consente caber: primeiro, num único homem?; segundo, nas suas efémeras palavras?; terceiro, no sistema de sinais convencionais que mecanicamente as perpetua (as letras)? Toda a filosofia grega, até Platão, se deixa enquadrar neste aparentemente simples percurso. A primeira versão da pergunta está volta88 Aqui residindo a natureza paradoxal de todas as tentativas de compreensão da questão da oralidade; pois é bem claro que nunca teríamos chegado a ter notícia das declarações orais se a escrita não tivesse delas guardado qualquer espécie de memória. Nessa medida, é possível imaginar como aquilo que é memória escrita de um tempo e de um mundo passados, marcados pela oralidade, nos aparece como criação original de um autor que escreve sobre o seu tempo. Esta tendência é sobremaneira evidente em Platão. Só com esforço somos capazes de distinguir nos diálogos o que é memória de outro tempo - seja recordação de debates orais, seja mensagem conservada por antiquíssima tradição- do que é reflexão própria, que o autor converte em texto. 89 O mesmo sucederá com toda a produção em prosa deste período, nomeadamente as obras dos historiadores: Heródoto (que viveu entre as duas guerras) e Tucídides (que escreveu sobre a segunda). Mas aí é a própria natureza histórica dos fatos narrados que impede a confusão temporal. 128 ---------------------------------------~- da para, e inclui, a própria tradição, gradualmente desembocando na segunda, que é aquela com que aparece em Sócrates, nos sofistas e no mundo oral que os suportava. A terceira contém o percurso realizado nos diálogos platônicos. Este sutil deslizar pode até notar-se pelo jogo entre dois termos aparentados, à medida que o sophos (sábio), de figura terrível do passado, se volve em polêmico herói do dia, para vir · a ser capturado pelo philosophos (filósofo), perseguidor incessante de um saber que sabe nunca poder atingir, ou ignorado pelo sophi~tês (sofista), que tudo sacrifica ao sucesso imediato. Por esta razão, para um Grego, até Aristóteles, digamos, o saber é essencialmente uma questão em aberto, matéria e terreno para muitas disputas (Parmênides B7. 5). Mas essa dimensão reflexiva, questionante, enigmática até, que inaugura o saber, começará logo a contrair-se assim a escrita o captar, fixar e exprimir. A escrita vai, portanto, provocar uma profunda cisão no mundo até aí unificado do saber90 • Dominadora de todas as questões, ficará a Filosofia - identificada com a vocação espontânea e original para o saber -,que muitos séculos depois se irá fragmentando no edifício mutável das disciplinas científicas. Esse é o domínio do conhecimento, que a Escola passageiramente conquistou para si. A mais prestigiante de todas as suas frentes, captora da antiga dimensão reflexiva, é a da fronteira do saber: de um lado a investigação científica, do outro a Cultura91 • 90 Como já provocara na língua corrente, falada no quotidiano, ao fixar o vocabulário em terminologias. As disputas sofísticas, ao interessarem-se pela correção da linguagem, começam por levantar o problema do significado dos termos, para o qual só a definição de um vocabulário dos termos relevantes constituirá adequada resposta. O que distingue os Gregos, e a sua Cultura, da de todos os outros povos é o fato de terem sido os criadores originais do vocabulário do saber, construído- para usar a expressão de E. A. Havelock - "como um enclave de discurso forjado na fala do quotidiano". É desse vocabulário, que o Latim traduzirá e que a partir daí passará para todas as línguas novilatinas, que hão-de derivar as linguagens da Ciência e da Cultura. 91 Fronteira em que a qualidade e a quantidade duplamente se confrontam e potenciam. Saber mais é também saber melhor. Quantos mais homens souberem, mais capaz a Humanidade será de superar os desafios que se lhe deparam. A crise de todas as crises que ameaçam a vida no planeta poderá residir apenas no aprofundar da diferença que separa as curvas do crescimento quantitativo e qualitativo da Humanidade (agravada pelo abaixamento da taxa de natalidade e envelhecimento da população nos países desenvolvidos). O saber é o único fator que verdadeiramente as poderá afastar. 129 Por baixo ficam os cacos do espelho quebrado do saber, de que sobraram muitos e dispersos reflexos. Primeiro virá a dimensão pessoal, a "experiência", o autoconhecimento, o pronunciamento sapiencial, oracular, refugiado na criação artística, na literatura - ficção, poesia, prosa reflexiva, epistolografia (literatura de cartas) -, que volta à vida no diálogo íntimo, na análise clínica, na conversa entre amigos. Depois vem o universo da crença e da sabedoria tradicional: a fé, superstição, as práticas de vida, o folclore, a relação de cada um com os grupos em que se integra. E a última degradação do saber é a "cultura geral", reaparecida em vestes lúdicas em concursos e jogos, em que se busca e preserva a informação trivial (é isso que significa Trivial Pursuit). Todo esse repositório da memória humana é essencialmente comum. E, no entanto, aparece ao estudante como o produto de uma penosa conquista pessoal. Poucas noções parecerão tão estranhas ao escolar recém-formado quanto a idéia platônica de anamnese. A peregrinação da alma de corpo em corpo, o contato anterior (e interior) com as verdades eternas, a caracterização da aprendizagem como recordação, nada lhe parecerá mais fantasioso e destituído de sentido. E, no entanto, se a estas concepções retirarmos os ecos religiosos, se consegUirmos enquadrá-las no contexto cultural atual, conseguiremos compreender muitos fatos dificilmente explicáveis da prática epistêmica. Como se estabelece o acordo entre mentes essencialmente incomunicantes? Sobretudo, como se passa do que se sabe ao que se não sabe, como se pode descobrir novas verdades a partir das antigas? 4. 5. 2 A HERANÇA DE PARMÊNIDES E assim as mais recentes interrogações das ciências cognitivas retornam à fonte a que, ao longo dos séculos, não cessam de ir beber. O saber eleático desempenha nesta evolução o papel de inaugurador. "O jovem" é o primeiro a advertir os mortais da dupla dificuldade da demanda a que se lançaram. Considerando as perguntas e as respostas, há que atender à natureza material das questões, mas também à exi130 gência de rigor formal das declarações que as substanciam. O que faz a verdade das respostas que a Humanidade encontra para as interrogações que a perseguem não é a dignidade da voz que fala, nem a inspiração a que obedece (a divindade atestará sobretudo a presença da tradição), nem sequer a especificidade das perguntas e das respostas. É, antes de mais, a natureza do produto concebido: o saber! É como saber que perguntas e respostas começam por ser apreciadas. Mas não basta. A forma das respostas, o método que as estrutura e lhes define os contornos, também é relevante: o fato de estas se manifestarem como um argumento. Finalmente, a dignidade epistêmica reflete-se na exigência crítica que alimenta e suscita a atitude polêmica. Ou seja, não há apenas que encontrar uma resposta e afirmar que está certa. É preciso mostrar como, porquê e com que conseqüências. A História da Filosofia ilustra o modo como os Gregos honraram esta ' . obrigação e depois todos os outros a respeitaram, embora reconfigurando-lhe os termos. 4. 5. 2. 1 "NÃO DIRÁS O QUE NÃO É" A ordem cósmica é a um tempo o alvo das perguntas e a substância das respostas, o fato que há a explicar. Ora o argumento da deusa começa por mostrar que a ordem, enquanto fato, se exprime na evidência de si própria, pela via do pensar, como ser. Da inquestionável realidade do ser resultará então a sua posição como saber, como simples conseqüência da identificação de um com o outro. A seguir se mostra como esta é a única possível posição correta do problema, à qual o pretenso saber dos homens, mesmo aquele que a tradição regista, tem de se subordinar. Daqui resultarão depois: 1) o exame do argumento paradigmático (exemplar), de que dependem todas as polêmicas; 2) o percurso crítico pelo saber tradicional. E é tudo. Quem não perceber este raciocínio (susceptível de ser interpretado de muitos outros modos), quem não compreender o que são o ser e 131 o saber e de que modo se enlaçam um no outro, nada compreenderá da Filosofia. Porque a Filosofia começa e acaba aqui. Pode preferir uma ou outra via, escolher a finalidade que melhor lhe aprouver. Mas não pode deixar de partir daqui, para de novo aqui tomar (frag. 5). Esta é a a crise (krisis) que comanda todas as decisões (kriseis). Depois a Filosofia voltar-se-á para muitos outros objetos e definirá muitos outros programas. Todos eles, porém, partem de Parmênides e a ele tomam: ao ser e ao saber. Quem não o compreender prefere a companhia da "multidão acéfala, acrítica, sem discernimento ... ". Todos os insultos merecem os mortais para quem tanto vale fazer uma afirmação como o seu contrário. Muitas serão depois as vozes dissonantes, os seus protestos ainda hoje se ouvem. Mas o eco da terrível advertência divina continua a ressoar nos nossos ouvidos: "Não dirás o que não é". 132 0 POEMA DE PARMÊNIDES, A OBRA FUNDADORA TRADIÇÃO DA FILOSÓF I CA OCIDENTAL, É COMENTADO E INTERPRETADO BRASIL TRINDADE PROFESSOR PARA POR O .JosÉ SANTOS , DE FILOSOFIA ANTIGA DA FACULDADE DE LETRAS DE LISBOA . .(