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Saúde Coletiva E Saúde Publica

Saúde Pública - SUS e saúde privada

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  DE B A T E DE B A T E  219 Saúde pública e saúde coletiva:campo e núcleo de saberes e práticas Public health and collective health:field and core area for knowledge and practice 1Departamento deMedicina Preventiva eSocial – FCM/[email protected] Gastão Wagner de Sousa Campos 1 Abstract This paper discusses collective health knowledge and practices field and its core based on a dialectics method,beyond positivism and structuralism,to carry out a critical view to-wards their trends in assuming a transcendent  position about the health field.From this analysis on,suggestions for debating are elabo-rated,taking the historical and social elements ofconcrete subjects,in their main relation to what is termed collective health. Key words Public Health; Collective Health;Constructivism Resumo O artigo discute o campo e o núcleo de saberes e de práticas da saúde coletiva a par-tir de um metodologia dialética,pensando-a  para além do positivismo e do estruturalismo e  fazendo uma crítica à sua tendência de assumir  posição de transcendência sobre o campo da saúde.A partir dessa análise são elaboradas su-gestões para debate,relacionadas centralmente com saúde coletiva entendida como construção sociohistórica de sujeitos concretos. Palavras-chave Saúde Pública; Saúde Coleti-va; Construtivismo       C   a   m   p   o   s ,    G .    W .    S . 220 Sinais de glória e sintomas de crise:algumas questões sobre a saúde coletiva Repensar a saúde coletiva,aproveitando-se dahistória e da tradição da saúde pública.Enten-dê-la tanto como um campo científico quantocomo um movimento ideológico em aberto,conforme sugeriram Almeida Filho e Paim(1999).Um movimento que,sem dúvida,noBrasil,contribuiu decisivamente para a cons-trução do Sistema Único de Saúde (SUS) e pa-ra enriquecer a compreensão sobre os determi-nantes do processo saúde e doença.Mas tam-bém reconhecer que o modo como vem ocor-rendo sua institucionalização tem bloqueado areconstrução crítica de seus próprios saberes epráticas,provocando uma crise de identidademanifesta em sua fragmentação e diluição co-mo campo científico.São estas as questões aquitratadas.As questões enunciadas têm como sintomasuma série de dilemas que vêm sendo analisa-dos pelos especialistas:a saúde coletiva teriacriado um novo paradigma,negando e supe-rando o da medicina e o da antiga saúde públi-ca? Saúde coletiva corresponderia a todo o cam-po da saúde,ou apenas a uma parte? A expan-são do SUS provocaria um crescimento auto-mático das práticas de saúde coletiva? Saúdepública abarcaria todo o sistema estatal de saú-de,indicando ser ela o lado contrário de práti-cas privadas? Ou nomearia também uma pro-fissão e um campo de práticas? A noção de pro-dução social da saúde,central à saúde coletiva,seria oposta ou complementar à de história na-tural do processo saúde e doença,adotada pelaclínica como modelo explicativo?Mais do que buscar definições formais,im-porta reconhecer que uma teoria e seus con-ceitos têm implicações,ainda que não absolu-tas,sobre as práticas sociais (Donnangelo,1983;Bourdieu,1983;Testa,1993).Busca-se,portanto,um método de reflexãopara analisar a saúde coletiva não somente ba-seado em a priori  teórico,mas também em com-promisso concreto com a produção de saúde, já que a produção de saúde é função e finalida-de essencial sem a qual não se está autorizado afalar em trabalho em saúde.Nesse sentido,aambigüidade e a ubiqüidade do conceito desaúde coletiva têm também contribuído para afragmentação e para o enfraquecimento do seucampo de saber e de práticas.Admite-se hoje a inevitável existência deuma certa sobreposição de limites entre as dis-ciplinas.O mesmo ocorrendo com os camposde prática.Nesses termos,quase todo campocientífico ou de práticas seria interdisciplinar emultiprofissional.Guattari e Deleuze (1976) nafilosofia,na política e na clínica,McNeill e Frei-berger (1993) na matemática,assim como vá-rios outros autores “pós-modernos”têm criti-cado o sentido absoluto com que se tomam al-gumas noções,como a de dentro e fora,identi-dade e diferença,coletivo e individual,macro emicro.Mesmo concordando com esses pensa-dores,parece que este borramento de limitesindicaria mais uma impossibilidade de fechar-se em copas do que a extinção,com a conse-qüente fusão,de todas as disciplinas,profissõese especialidades.Para escapar a este paradoxo – o do isola-mento paranóico ou o da fusão esquizofrênica –,um grupo de pesquisadores sugeriu alteraçõesnos conceitos de núcleo e de campo (Campos,et al.,1997).A institucionalização dos saberes esua organização em práticas se daria mediantea conformação de núcleos e de campos.Núcleocomo uma aglutinação de conhecimentos e co-mo a conformação de um determinado padrãoconcreto de compromisso com a produção devalores de uso.O núcleo demarcaria a identi-dade de uma área de saber e de prática profis-sional;e o campo,um espaço de limites impre-cisos onde cada disciplina e profissão busca-riam em outras apoio para cumprir suas tare-fas teóricas e práticas (Campos,2000).Esses conceitos diferem da elaboração deBourdieu (1983,1992) sobre campo ecorpus   jáque os autores modificaram o sentido polar eantagônico atribuído aos dois termos.ParaBourdieu campo intelectual se conformaria co-mo espaço aberto,ainda quando submetido aconflitos de srcem externa e interna.Entre-tanto,nos corpus verificar-se-ia o seu subse-qüente fechamento em disciplinas,quandoocorreria a monopolização do saber e da ges-tão das práticas por agrupamentos de especia-listas.A formação de disciplinas ( corpus  ) nocampo religioso,político ou científico,ocorre-ria com o fechamento ou institucionalizaçãode parte do campo,com a conseqüente criaçãode aparelhos de controle sobre as práticas so-ciais a ele referentes.Um núcleo,ao contrário,indicaria umaaglutinação,uma determinada concentração desaberes e de práticas,sem,contudo,indicar umrompimento radical com a dinâmica do cam-po.Igual à noção de corpus  ,a de núcleo tam-bém parte da necessidade,e da inevitabilidade  de se construírem identidades sociais para asprofissões e para os campos de saber.Mas,aocontrário,sugere a possibilidade de que essainstitucionalização poderia acontecer de modomais flexível e aberto (Onocko,1999).Enfim,não haveria como escapar-se à institucionaliza-ção do saber e à administração organizada daspráticas sociais.Porém,elas poderiam ser orga-nizadas de forma democrática,sendo estrutu-radas de forma a permanecerem abertas a dis-tintos campos de influência.O conceito de cor  -  pus  (disciplina) enfatiza a concentração de po-der e a tendência de fechamento das institui-ções.A noção de núcleo valoriza a democrati-zação das instituições,ou seja,ressalta sua di-mensão socialmente construída,sugerindoque a escolha de seus caminhos funcione co-mo uma possibilidade e não como uma ocor-rência automática.De outra forma,aos sujei-tos não restaria outra opção que a de perma-necerem em desestruturação à espera dos au-tomatismos dos campos em fase instituinte;ou,ao contrário a de se prenderem a discipli-nas fechadas.Tanto o núcleo quanto o campo seriam,pois,mutantes e se interinfluenciariam,nãosendo possível detectar-se limites precisos en-tre um e outro.Contudo,no núcleo,haveriauma aglutinação de saberes e práticas,com-pondo uma certa identidade profissional e dis-ciplinar.Metaforicamente,os núcleos funcio-nariam em semelhança aos círculos concêntri-cos que se formam quando se atira um objetoem água parada.O campo seria a água e o seucontexto.Partindo do marco conceitual exposto,se-ria pertinente perguntar qual a identidade dasaúde coletiva? Ou seja,qual o seu núcleo desaberes e de práticas? E mais,em que campo deinterinfluência ela estaria mergulhada? Em de-corrência,acrescem-se outros dilemas aos já ci-tados:quem é o agente que faz saúde coletiva?Haveria um agente especializado? Sem dúvida,médicos,a equipe de saúde,o governo,a comu-nidade,muitos,potencialmente,produzemsaúde.Todos que produzem saúde seriam agen-tes da saúde coletiva ou da saúde pública? Ha-veria um núcleo de saber especializado e umagente específico,nuclearmente encarregadode produzir ações de saúde pública? Haverianecessidade social de formá-lo? Haveria possi-bilidade histórica concreta de que seu trabalhofosse requisitado?A necessidade reflexiva autoriza a prosse-guir no esforço crítico dos que romperam com  C i   ê  n c i   a  &  S  a  ú  d  e  C  ol   e  t  i   v a  , 5  (  2  )   : 2 1  9 -2  3  0  ,2  0  0  0  221 o conceito tradicional da saúde pública e inves-tiram na construção da teoria e das práticas dasaúde coletiva.Apesar do que já se escreveu so-bre esta mudança e inclusive sobre as ambigüi-dades (Donnangelo,1983;Nunes,1986;Mina- yo,1991;Paim,1992) valeria ainda insistir napergunta:o que aquela troca de nomes reveloude novo? Que rupturas,de fato,aconteceram?O que existe de continuidade? Talvez seja o mo-mento de analisar algumas experiências cons-truídas pela velha saúde pública que o radicalis-mo inerente ao momento de fundação de umanova proposta impediu examinar com maiscuidado.Inclusive,é importante aprofundar osmotivos pelos quais,depois de tanto desenvol-vimento teórico e da incorporação de uma so-fisticada trama de categorias sociológicas,asaúde coletiva brasileira,ao propor modos deintervenção,continua tributária,não da teoriacrítica que construiu,mas de um pensamentosistêmico bastante pragmático e instrumental,muito à moda e gosto dos anglo-saxões. A saúde coletiva para além dopositivismo,do estruturalismo e de uma posição de transcendência sobre o campo da saúde Com certeza,não caberia abandonar a trilhados fundadores,mas seguir-lhes as pegadas,afinal foram pioneiros na crítica ao positivis-mo,constitutivo básico das práticas sanitáriastradicionais.Para Antônio Ivo de Carvalho(1996) a saúde coletiva nasceu da crítica ao po-sitivismo e...à saúde pública tradicional,consti-tuída à imagem e semelhança da tecno-ciência e do modelo biomédico. Pois bem,apesar dessasrcem,nota-se o recrudescer de um certo neo-positivismo,advogando-se como método detrabalho,versões mais ou menos sofisticadas dateoria de sistemas (OPAS,1992;Barata,R &Barreto,M,1996).Quer pela insuficiência do pensamento so-cial incorporado à saúde coletiva para impul-sionar práticas e projetos sanitários concretos,quer pela pressão exercida pelas agências finan-ciadoras e pela própria instituição universitáriano sentido de que a saúde coletiva adote,emsua construção teórica,normas e procedimen-tos padrões bastante assemelhados aos da me-dicina em particular ou aos da tecnociência emgeral,observa-se um crescimento de prestígiodo objetivismo na produção científica da área.Rever as relações entre sujeito e objeto (Carva-      C   a   m   p   o   s ,    G .    W .    S . 222 lho,1996) continua sendo ainda uma tarefa crí-tica contemporânea,portanto.Nunes (1996) descreveu que o termo SaúdeColetiva passou a ser utilizado,no Brasil,em1979,quando um grupo de profissionais,oriundos da saúde pública e da medicina pre-ventiva e social procuraram fundar um campocientífico com uma orientação teórica,meto-dológica e política que privilegiava o social co-mo categoria analítica.Agudelo e Nunes (1991),ainda que reconhecendo o papel decisivo domovimento da saúde coletiva no Brasil e emoutros países da América do Sul,na incorpora-ção do social à temática da saúde,não deixa-ram de apontar que tampouco esta expressão tem podido resolver totalmente a insuficiência das denominações em questão  .Para Carvalho (1996) a saúde coletiva,aoincorporar o social ao pensamento sanitário,tendeu a fazê-lo segundo cânones objetivistaspreconizados pela escola estruturalista e pelatradição marxista: a subjetividade aqui admiti-da é aquela que brota da necessidade coletiva e que se organiza em sujeitos coletivos – no Esta-do,no partido,nas organizações classistas e co-munitárias... De fato,apesar de autores tão influentes co-mo Testa (1993) e Donnangelo (1976) haveremdivulgado análises em que a saúde pública apa-recia como construção histórica e o exercícioprofissional como prática social,não há comonão concordar com Carvalho quando apontaque o saber dominante em saúde coletiva ten-deu a subestimar a importância dos sujeitos naconstrução do cotidiano e da vida institucional.Finalmente,caberia reconhecer a tendênciada saúde coletiva em confundir-se com todo ocampo da saúde.Tal tendência indicaria umavisão de mundo fundada em categorias absolu-tas e transcendentais.Para alguns,a saúde cole-tiva se constitui numa espécie de metadiscursosupostamente capaz de criticar e reconstruirsaberes e processos concretos de produção desaúde.Nesse sentido,ela forneceria metaexpli-cações auto-suficientes sobre a tríade saúde,doença e intervenção.Por outro lado,seu dis-curso constitutivo tenderia a hipervalorizar adeterminação social dos processos saúde/doen-ça,desqualificando os fatores de ordem subje-tiva e biológica.Neste caso,a saúde coletivanão é vista como um modo de intervenção so-bre o real mas como um novo paradigma ouum modelo alternativo aos demais.O modelo denominado de vigilância emsaúde (Mendes,1993),por exemplo,proclama-se vinculado a um novo paradigma,o da  pro  - moção à saúde  ,imaginando que a incorporaçãodo social à análise dos processos saúde e doen-ça criaria práticas distintas,senão antagônicas,àquelas baseadas na história natural.Um novomodo de se produzir saúde,que negaria o mo  - delo clínico  e não um modo entre outros nãonecessariamente equivalentes,porém úteis,ca-da uma dentro de seus limites e especificidade.Outro não tem sido o procedimento domi-nante na medicina,que desautoriza,em princí-pio,todo o saber e toda a prática sobre saúde,produzidos fora de sua própria racionalidade.Ao criticá-lo,com pertinência,a saúde coletivatende a adotar a mesma postura totalitária edisciplinar.Para diversos autores,a epidemiolo-gia e as ciências sociais explicariam o processosaúde/doença e fundariam um novo paradig-ma,com um modo de intervenção sobre a rea-lidade que superaria – sempre em princípio! –todos os outros existentes.De acordo com essaperspectiva a saúde coletiva não seria um saber,entre outros,sobre os modos como se produzsaúde e doença;mas,o saber.Quase um novoparadigma.Alguns autores e mesmo documen-tos de organismos internacionais chegaram aanunciar o surgimento de um novo  paradigma de promoção da saúde  que superaria a influên-cia do modelo clínico  na organização dos servi-ços e práticas (Mendes,1993;WHO,1991).Nesse trabalho não se sugere a possibilida-de de completa superação das tendências des-critas,o que significaria cair na mesma arma-dilha metodológica criticada.Tampouco pre-tende-se demonizá-las.Não há como se operarsem objetividade.As estruturas existem e in-fluenciam a produção do campo da saúde:nor-mas,saberes,culturas,sistemas,instituições.Além do mais,não há como desconhecer a im-portância (não a transcendência,apenas a im-portância) que saberes e práticas advindos dasaúde coletiva tiveram e têm para a reformula-ção da clínica,da reabilitação e dos sistemas desaúde em geral.Donnangelo (1983) já haviademarcado que a saúde coletiva influenciava eapoiava  práticas de distintas categorias e atores sociais, quer em temas ligados à organização daassistência,quer na compreensão dos própriosmeandros da produção de saúde.Busca-se,ao contrário,recuperar a velhadialética,verificando em que medida posiçõese pólos operam em regime de contradição oude complementaridade.Assim,à promessa deobjetivação asséptica do positivismo é precisocontrapor a subjetividade dos agentes sociais