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LIBERATO, Chico. Boi Aruá. Brasil, 1984.

(desenho de animação)

Cantiga do Boi Encantado e outras cenas operísticas, de Elomar Figueira Mello

Resumo:
Trata-se de leitura crítica da Cantiga do Boi Encantado, do compositor baiano Elomar Figueira Mello, gravada no disco Sertania, de Ernest Widmer, trilha sonora do desenho de animação Boi Aruá, de Chico Liberato. A canção e as obras citadas recriam um romance popular cujo tema gira em torno do périplo do vaqueiro no sentido de dominar e pear a figura misteriosa e fantasmática do boi encantado. O motivo reaparece noutras peças musicais do autor que compõe densas imagens de um sertão mágico e fantástico. Palavras-chave: Cantiga do Boi Encantado; Elomar Figueira Mello; poéticas do sertão.

Abstract:
Simone Guerreiro1
This is a critical reading of the Song of the Enchanted Bull, by the poet and composer Elomar Figueira Mello, born in Bahia, recorded in the disc Sertania, by Ernest Widmer, used as sound track of the animation film Boi Aruá, by Chico Liberato. The song and other pieces recreate a folk story whose
Doutora em Letras pela Universidade Federal da Bahia, autora do livro Tramas do Sagrado: a poética do sertão de Elomar (Salvador: Vento Leste, 2007)
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REPERTÓRIO

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In: João David Pinto-Correia. The musical theme appears in other pieces by the author. na qual o autor diferencia o “romance tradicional” do “romance vulgar” e da “cantiga narrativa”. Destaco o tema boi encantado pela insistência com que a canção popular. O romance do boi encantado é uma narrativa popular do sertão brasi-leiro com mar-cas do imaginá-rio medieval heróico e guer-reiro presente nos antigos ro-mances de ca-valaria. entre outras denominações. “O boi tece a renda. a literatura de cordel. são decorados e divulgados. Qualificado de “aruá” – do tupi “arruá” (sel-vagem. para uma geografia e linguagem específicas: das margens do Rio do Gavião. feito que poderá ser logrado somente por um vaqueiro de características sobre-humanas. O tema é retomado pelo compositor baiano Elomar Figueira Mello. 1984). entre o final do século XIX e início do século XX. com dire-ção do artista plástico baiano Chico Liberato. os cantares de gesta franceses do ciclo carolíngio e os romances de tradição ibérica. Os cordéis de Lean-dro Gomes de Barros. Elomar Figueira Mello. cuja literatura constitui. pear e dominar a rês encantada. qualidades guerreiras e possuidor das faltas e atributos do herói grego. Cf. 2003.. leitura indispensável no sertão do Brasil. O essencial sobre o romanceiro tradicional. e que. e pelo fato de ter inspirado o de-senho animado de longa-metragem Boi Aruá 36 REPERTÓRIO 1 Entende-se aqui por romance “uma composição de manifestação linguístico-discursiva. na Cantiga do Boi Encantado e em duas cenas da ópera O Retirante apresentadas. é conhecido também como surubim. pelos cantadores nordestinos. Essa definição é ampliada em publicação posterior. O motivo principal do romance popular refere-se à jornada do herói-vaqueiro na tentativa de derrubar. feirantes e vaqueiros. no período do ciclo do gado. situada na literatura oral tradicional. município de Caetanos.9. No romance1 de tradição oral. para o qual foi composta a Can-tiga do Boi En-cantado. mais precisamente. a literatura oral e a canônica o narram. com o nobre e célere cavalo. de natureza poética (algumas vezes acompanhada de música). região da Serra da Carantonha. A renda é a representação da poética de Elomar. poéticas do sertão. Trata-se de um relato fantástico so­ bre um boi in-domável. cristãs e pagãs do sertão brasileiro. that together compose dense images of a magic and fantastic backland. cujas narrativas chegam ao Brasil através da colonização portuguesa. ainda. a singularidade com que são configuradas aponta. são rela-cionados às qua-lidades atribuí­ das aos heróis carolíngios e suas façanhas extra­ ordinárias. 1986. mandin-gueiro e misterioso. pelo difundido cordel do poeta popular Leandro Gomes de Barros (1868-1918). Os caracteres sobrenaturais do herói-vaqueiro destemido. especialmente. cuja tradição tem início nas áreas rurais do Brasil. locus de criação do compositor Elomar. com uma organização semântica narrativo­ dramática. Raymond Cantel (1993) observa semelhanças entre a lenda do boi aruá. de origem mais recente. Embora algumas delas sejam comuns na fábula sertaneja. popularizam-se. entre fins do século XVIII e início do século XIX. tem habilidade e destreza fantásticas e nem mesmo vaqueiros célebres e honrados conseguem alcançá-lo.Œ Proscênio (Brasil. theme is the wanderings of a cowboy who tries to subjugate and tame the mysterious and ghostly figure of the enchanted bull. p. João David Pinto-Correia. próxima à Chapada Diamantina. em 1998. o boi encantado é de espécie fantástica e numinosa. A figura do boi encantado é a que borda o tecido cujos fios são urdidos pelas tramas do sagrado. As imagens míticas e insólitas relacionadas à figura do boi encantado constituem uma trama a ser lida no sentido de compor um quadro representativo da diversidade da cultura brasileira. em decorrência das qualidades extraordinárias e natureza feroz. se insere no extracontexto da vida social quotidiana de uma comunidade popular (nos momentos de trabalho ou de lazer)”. de imediato. 8 . no interior do semi-árido da Bahia. emara­ nhada nas lendas e mitos das tradições popula­ res. .. no concerto Cenas Brasileiras e publicadas no Livro do Concerto. altamente variável (versões e variantes) em ambas as suas componentes textuais (na expressão e no conteúdo). lidos com fervor e admiração por sertanejos. motivada sobretudo. que não se deixa ferrar. cangaceiros. Mas a transposição do desafio beira os limites do impossível. Estória do Boi Misterioso. Key-words: Cantiga do Boi Encantado. A lenda do boi indomável perdura no ima­ ginário do serta-nejo. Componho essa alegoria para ilustrar como o motivo citado é recorrente nas canções de Elomar. nascido de vaca feiticeira. bravio) –. de Elo-mar. o roman­ ce tradicional. O Romanceiro Oral da Tradição Portuguesa.”. demonstrando a sua importância na cultura brasileira. vez que o animal.

diri-gido por escrito o lema: “Eu por primeiro. em Sertania . vê-se aruá. constituindo publicado em sua hybris . puluxia. po­ infanto-juvenil der e arrogância. comum na casa LIBERATO. desenho animado de 1984. Molda-do a partir de uma visão da arte Para vencer o boi aruá. o herói as “poéticas da voz”. um brasileira vozes e imagens do ser-tão: o sertanejo presságio. Na arte de novos criadores. denominados de “praticantes da voz“. não é unicamente para o cordel desenrolam numa dramaticidade progressiva até que o romance popular empresta matéria para atingir o clímax. os cantos tradicionais rela-cionados à figu-ra do boi. estabeleceu uma diferença entre oralidade e vocalidade. símbolo do egoísmo e centramento opus 138. “O boi chora. como as define Paul é o rico fazendeiro Tibúrcio. na individualidade. numa dinâmica através da qual a o boi. Contudo. derradeiro”. (desenho de animação) em 1956. “Roman­ desmedida. marães Rosa. o domínio do humano. os amigos por Chico Liberato. Desde então. Num Festa de Manu­ quadro pendu­ elzão”. apresenta o principal tema. do que foi de cordel foi. disco composto para do limite da cancela. a exemplo dos sintética inicia a história do boi que será tecida repentistas brasileiros. Inicialmente. restaurar a harmonia social e a fartura Leandro Gomes de Bar-ros. do romance. A cada terioso e encantado que nenhum vaqueiro novo desafio. Chico. Corpo de Baile . da presença ativa do corpo e da voz. a riqueza inspira­ exemplo: O Boi lhe sentimento aruá . de Elomar. Boi sertaneja. da performance. eu já vi chorar!”. músico suíço radicado na Bahia. a escassez aumenta. o fazendeiro empreende. ele persiste restabelecida. gestos e misterioso. A jornada Zumthor (2000) 2 . Entretanto. ço do Boi responsável pela Bonito”. 2 Paul Zumthor. e essas continuam a fazer empreendida por ele em busca de pegar o boi aruá consiste em vencer sete desafios que se interferências. vela “Uma Estó­ como na tragé­ ria de Amor – dia grega. violão e grande orquestra. interessado pelo folclore musical brasileiro. desconhecido. Sertania – Sinfonia do Sertão. Nessa versão. superar o gênio plástica. Cantiga do Boi espaço sagrado. a remodelado. O boi aruá aparece – para com participação da Orquestra Sinfônica da provar Tibúrcio – justamente nessa altura.conforme Câmara Cascudo (2000). em Performance. fragmentado. recriando. traz motivos presentes no livro infanto-juvenil de Luís Jardim. e os gêneros aos quais irá recorrer: o escrita popular acrescenta novos elementos para fantástico e o mara-vilhoso. desse modo. além de inovações no roteiro. recepção. os materiais para a subsistência de O filme Boi Aruá trata da lenda do boi mis­ toda a gente da região começam a faltar. valores. Essa fala importância no depoimento de narradores das tradições orais. REPERTÓRIO 37 . extraordinário. e aponta para dois aspectos: o primeiro diz 3 Ernst Widmer. relacionado ao aparecimento do boi como persona-gem principal. de Luís Jardim. de Gui­ rado na parede. atualizando o mito. o fazendeiro Tibúrcio vive um momento de apogeu financeiro.Sinfonia do Sertão. cantiga de roda – e simboliza o choro do boi e o segundo valida a também da Cantiga do Boi Encantado. Boi Aruá. na noqueda do herói. o que é en­ consegue pegar e traz para a cena cultural tendido pela comunidade como um sinal. sozinho. A literatura afirmação a partir do experienciado. tra-balha com ele-mentos do cor-del de daninho. além UFBA. do qual foi gravada a canção-tema. leitura. de Ernst Widmer3. 1984. Inicialmente. no espaço profano. por isso o associam ao demônio. de Elomar. o dialeto. registra his-tórias e econômica. fez. livro de orgulho. respeito ao elemento extraordinário que citações de canções populares – aboio. com uma foto publicada em do fazendeiro. veículo para difusão visto. sua 1940. enfatizando a composto por Chico Liberato e Alba Liberato. Brasil. Encantado. para voz. após o qual a harmonia é invenção. fronteira que divide o a trilha sonora do desenho animado citado.

uma coruja e espécies sobrenaturais e fantásticas. familiar e econômica. Quem pegar este bezerrinho tem tudo o que é bom e muita grandeza e muito gado no curral para enricar igual às estrelas no céu. capaz de restaurar a harmonia social.Œ Proscênio auxílio e misericórdia de Deus. A família de Tibúrcio preocupa-se com a saída do patriarca. quem havéra de pegá! Na mia vida de vaquêro vagabundo Já nem dô conta dos pirigo qui infrentei Apois das nação de gado qui hay no mundo Num tem um só boi qui num peguei [. planta comum nas regiões de seca. uma escuridão… Parecia o oco do mundo! Ninguém andava por ali. Cito falas expressivas da tensão que constitui esse desafio: o conselho da esposa (“Vá. chegando a cair numa cama de macambira. após metamorfose. no entanto. com a saída de casa da afilhada. raptada por um vaqueiro. ficando o fazendeiro em profundo desapontamento e tristeza. contudo. indicando para que ele desista da tarefa. a situação de penúria chega ao limite. meu filhinho. o fazendeiro entra na gruta onde o boi dissipara-se. lhe responde Tibúrcio: “Se aquieta. Tem tudo que é bom.. Mas as duas máscaras – que representam uma espécie de subcons-ciente do fazendeiro – avisam-lhe o contrário: “O Boi não morreu!”. então. nas quais estão inscritos os emblemas dos grupos participantes do folguedo. para as quais responde Tibúrcio. menino. todos frustrados. luas. tão esquilangado nessas montanhas? Tenha fé em Deus e paciência que você pega o bezerrinho.. mas deixa o orgulho. o mais dramático e de cores sombrias. insiste e a família desestrutura-se. prenúncio de término favorável para Tibúrcio.. porque.. Novamente. tá me arrenegano?! Tá me esconjurano?!”. estrelas. o que constitui uma afronta aos padrões machistas e patriarcais da cultura sertaneja. Nesse momento. boi incantado e aruá Ê boi. e toda a comunidade fica mobilizada diante daquela atitude. com REPERTÓRIO Agora. no quinto desafio. o que se vai fazê?”. toda grandeza de roça e toda a grandeza para o povo se manter com os poderes de Deus e a força da misericórdia do céu. o boi desaparece. deixa o boi pra lá!”). A comunidade vê o acontecimento trágico como outro sinal. comparando e igualando com as aves do campo. aquele que verdadeiramente provê: Ô Tibúrcio. Irritado. pai. sendo cantada por um deles. modelo de vidente e feiticeira – com função similar à do ajudante mágico dos contos de fadas – e lhe indica o caminho para alcançar a vitória. Necessário faz­ se. provedor do povo. dá a Tibúrcio a ilusão de tê­ lo vencido. a canção de Elomar – Cantiga do Boi Encantado – é inserida. Mas ainda não é dessa vez que consegue laçá-lo.. Segundo a fala da feiticeira. Tibúrcio? Acabou palma. assim. Chega à região outros bravos vaqueiros para a cavalhada. tem mandioca se Deus quiser e mandar misericórdia. […] Se ele morreu eu não sei! Sei que eu estou vivo!”. filho de Deus!) e o pedido do filho (“Vai não. uma grota. O desaparecimento do boi numa gruta.] Eu vim de longe. A saída é vista por todos como insistência vã. por conseguinte. grande! O lugar era uma loca. uma festa profana para comemorar a morte do boi e para os convidados narra uma história fantástica: “Era um boi brabo. do saci. teimosia. ao aproximar-se da chegada à fazenda de Tibúrcio: Ê Ê Ê Ê Ê Ê. seis primeiros desafios. não mais restando uma gota de água nas fontes. armados de lanças ornamentadas com bandeirolas. S. bem pra lá daquela serra Qui fica adonde as vista num pode alcançá Ricumendado dos vaquêro de mia terra Pra nessas banda eles nóis representá Alas qui viemo in dois eu e mais Ventania O mais famado dos cavalo do lugá Meu sabaruna rei do largo e do grotão Vê si num isquece da premeça qui nóis feiz Naquela quadra de ferra laço e moirão Na luz da tarde os olhos dela e meu cantá A mais bunita de Brumado ao Pancadão Juremo a ela viu ti pegá boi aruá [. com quem se casa. como é dito na fala de um dos vaqueiros da fazenda: “E agora. já que seu retorno é duvidoso.. encourados. ficando com todo o corpo espetado por espinhos. É nesse momento que surge uma velha sertaneja. tentando convencer-se: “O boi morreu!”. configurando uma situação caótica para a comunidade. um sexto desafio. Promove. caracterizada no desenho como um túnel.] De indubrasil nerol’ xuite guadimá Moura junquêro pintado nuve e alvação Junquêro giz peduro landrêis malabá Pintado laranjo rajado lubião Boi de gabarro banana mocho armado De curralêro ao levantado barbatão 38 . quem alcançar o boi será destacado como herói. capim. os gado tão morreno de sede. no qual figuram a imagem do diabo. porém. preparados para o combate. o que é que você tem que está tão judiado. A escassez.

representa a cena com luminosidade e colorido. inclusive a com sua lança a combater nas justas. a pretensa idéia de superioridade diante do porque a vitória fora prometida a uma poder do numinoso. boi incantado e aruá Ê boi. um bezerro inofensivo. ele é tomado persegue esse passado imemorial: “Alas qui por uma força e autode-terminação que o fazem viemo in dois eu e mais Ventania”. os fantasmas. sertão. cantá [.. Boi Aruá. o que Em seguida. chove donzela. epifania Canta o aboio. a mais bela de toda a região. A é para Tibúrcio canção de que o boi aruá Elomar inscreve­ vai se apresentar se num tempo LIBERATO. aquele que consegue pegar o boi aruá. si­ melodia lasti­ nal de possível mosa e ecoante.. O vaquei­ um homem de ro vem em busca natureza arro­ do combate no gante. quando é revelado o vaqueiro vitorioso. num no sertão. Cansado e triste diante daquela situação todos os tipos de bois. a do fazendeiro e partem ao amanhecer do dia em vaguear além do domínio das cercanias. as plantações florescem e o desenho instante fixado na memória do vaqueiro. com marido e filho. Isto explica o fato de ela deixar em aberto o fim da narrativa. impossível. abandonando o boi. não lhe afilhada fugida. projeção das suas angústias. Tibúrcio expressa sua dor com grande listagem: do curraleiro ao alevantado e lágrimas que simbolizam uma mudança de barbatão (rês atitude. Brasil. os quais enumera em de desordem. Pedidos que constitui a de clemência. herói medieval. após herói. uma “quadra perdida”. representado na figura fantasmática mourão/ na luz da tarde os olhos dela e meu do boi. (desenho de animação) e. através de confere dimensão sobrenatural ao vaqueiro­ metamorfose. nesse momen­ mítico e o dialeto to. em seu cavalo. que constitui pegar Tibúrcio conciliar-se à natureza. quem havéra de pegá! REPERTÓRIO 39 . os A Cantiga do Boi Encantado esboça a combatentes arrancham durante a noite na casa fala de um vaqueiro de vida errante. as imagens diabólicas da longe bem pra lá daquela serra/ qui fica consciência. Chegando na fazenda de Tibúrcio. A ordem é reinstalada na comunidade.. o nobre e afamado retorna o tempo de prosperidade e a inscrição De todos boi qui hay no mundo já peguei Afora lá ele qui tem parte cum cão O tal boi bufa cum este nunca labutei E o incantado qui distinemo a pegá Pra nóis levá pras terra daquela donzela Juremo a ela viu te levá boi aruá Ê Ê Ê Ê Ê Ê. certamente. faltando. inscrevendo-o em parece não ter fim. busca do boi encantado. criada no impossível para mato). vindos para a cavalhada. trégua com os a chamar o boi homens. Ao pegar o bezerro. no momento da chegada dos cavaleiros. Porém.]”. o boi revela-se. 1984. a família novamente se reúne.. entra numa gruta. Chico. Assim. num túnel que geográfico. expresso em imagens condensadas pela síntese momento catártico de purgação do elemento da lírica: “naquela quadra de ferra laço e maligno. geografia medos. A canção de Elomar é introduzida no desenho animado. ladain­ do vaqueiro: de­ has e uma breve safiar o boi chuva cai no encantado e aruá. maior empresa orações. na corrida para pegar o tenha como suporte o sertão histórico e boi. é também um testemunho de amor. da natureza. Embora investir. A prova de valentia.cavalo. nômade. unicamente. dos seus adonde as vista num pode alcançá”. busca transpô-lo. O personagem aproxima-se do modelo do cavaleiro andante. sendo este o sétimo enfrentando perigos sem conta e lidando com desafio. de nome altissonante e pomposo: Ventania. mas agora consegue vencer os geografia encantada e fantástica: “eu vim de vultos. antes bravia. Outra vez. encantado.

É evidente a influência exercida pela moral judaico-cristã na cultura sertaneja. DA MORTE – Que vida. entretanto. devendo dar provas de macheza. com direção geral de Elomar e regência de João Omar de Carvalho Mello. flauta transversal e orquestra. em 1998. Entre os ícones religiosos. um dos anjos anunciadores da seca. nas festas de apartação. DA MORTE – (irônico) . o gado e todos os bens num banco. 5 Apresentada no concerto de Elomar Cenas Brasileiras. representada no filme através da luta entre as forças contrárias do bem e do mal e da vitória como expiação dos pecados e culpas. constitui a conclusão da segunda cena da ópera citada. DA MORTE – Será?! FAZENDEIRO – As alma do boi pintado?! A. alucinado com a iminência da desvalia.Œ Proscênio vidro ou invisível).. aqui designado de boi pintado. recebe a visita do Anjo da Morte. trava-se uma batalha entre o boi e o fazendeiro. entidade imaginária da crença popular. as relações entre fazendeiro e vaqueiro.Será?! ô as alma do boi encantado?! FAZENDEIRO – Será?! (referindo-se ao facão) qui quero co’ esse na mão? ói eu errado ói eu in erro num é qui tô fazen’ asnêra! boi só se pega cum pitêra pau-de-ferro ô cum ferrão êh ê ê ê ê ê boi!4 no quadro pendurado na parede é alterada: “Os amigos por primeiro. um oratório. tempo de bonança. DA MORTE – que vida. no avançar da madrugada.Será o isprito do boi de vidr’?! A.. Quando perturbado com a iminência de perder as poucas terras e todos os bens que possuía. A chuva não vem e o fazendeiro recebe ameaça de penhora em virtude do descumprimento do acordo. que amor?! FAZENDEIRO – Eu te arrêquero. com a mudança de atitude do pai.. publicada em Livro do Concerto Cenas Brasileiras . integrando o que antes rejeitava por não se enquadrar no código moral conservador. peça camerística sinfônica para violão. líder religioso canonizado pelos sertanejos do Ceará e cultuado em todo o Nordeste brasileiro. a fim de obter empréstimo para desenvolvimento da lavoura. os valores de família. de fartura. que esperança Que triunfo. Composta para ser coreografada por um dançarino-vaqueiro. . em 1998. de quadra nova. imagens de santos católicos. A temática do boi encantado é retomada por Elomar em Boca-das-Águas. a alimentação. inicialmente. 4 40 . em destaque. nas vaquejadas. projeto que percorreu várias cidades brasileiras. com velas. presságio da ruína. pendurado na parede. surubim e de vidr’ (de REPERTÓRIO “Dança de Ferrão” 5 . eu por derradeiro. é empreendido contra as figuras do próprio imaginário. a socialização propiciada pela feira. encontram-se: um desenho da Virgem Maria com Jesus no colo. porém. em Fantasia leiga para um rio seco. armado com facão! O duelo. trocando o facão pela vara de ferrão. que amor?! FAZENDEIRO – Êh! quem é tu. a de Jesus crucificado e. conforme Câmara Cascudo Livro do concerto Cenas Brasileiras. o problema da seca. os antigos raptos de noivas. DA MORTE – Será?! FAZENDEIRO – O isprit’ do boi surubin?! A. nas quais eram narradas histórias de vaqueiros célebres e seus intrépidos cavalos. quem é lá?! Alguma alma penada que no céu num pôde entrá? A. remete para a antiga tradição sertaneja – hoje menos expressiva – da pegada de boi com vara de ferrão. no centro. latumia do raivoso sombração da mêa-noite arte do famaliá60 latumia do raivoso arte do famaliá. segunda cena da ópera O Retirante.. a de Padre Cícero.” O desenho animado Boi Aruá apresenta um amplo panorama da cultura sertaneja: a vestimenta do vaqueiro. O fazendeiro. ouve o canto do sapo­ ferreiro e o entende como prenúncio da chuva. O Anjo da Morte retorna. Impresso na Brasil Artes Gráficas. Mas esses elementos machistas da cultura sertaneja serão deslocados. formas de trabalho e subsistência. em 1998. que deixa de exercer domínio e mando arbitrários. A ópera trata da história de um pequeno fazendeiro que empenha a fazenda. a religiosidade popular. o que não se concretiza. que esperança que triunfo. representação da morte que ceifa os elementos vitais. A partir disso. O fazendeiro atira-lhe imprecações. a festa de São João. projeto Cancioneiro e Lírica. A figura do pai – constituindo o poder cerceador – é a autoridade máxima. e o fazendeiro confunde-o com o espírito do boi encantado. amaldiçoa-o e o vê como figura diabólica: A. Trata-se de um longo combate do fazendeiro com o Anjo da Morte ou boi encantado.

Selo Rio do Gavião e Discos Marcus Pereira.. a perda de todos os bens. o cavalo e o próprio homem – manifestações REPERTÓRIO 41 .).. que deverá ser combatido. n.Rimo da Amazônia Indústria e Comércio Fonográfico Ltda. em 1998. ______. Rio de Janeiro: Ediouro. Essa dinâmica evidencia-se na última fala do desenho animado Boi Aruá: “Mãe. Brasil. Performance. E o boi continua a tecer a renda.] derna o tempo de minino fazia pur brincadêra pegá bicho remeteno de mão pilunga ô pitêra dentro da venda em descursão entrô os vaquêro de lá pruns olhos bunito cum ferrão pulô a cerca Bragadá a noite intêra bebeu dançô na brincadêra nu Tomba Virô moça bunita laço de amô pelo triz de um momento da peleja in certa altura viu nos olhos da morena ispelhada u’a mancha iscura faca na venta o boi morreno Bragadá caiu no chão cum o vazí rasgado ’stremeceno parava o saingue c’as mão amô nun sei pru modi quê facilitei olhei você foi pur teus olhos pur a fulô pegava o boi boi me pegô é dura a sorte do pegadô morrê da morte chifrada amô [. vão compor a cena trágica. Isso significa a vitória do Anjo da Morte sobre o fazendeiro e a confirmação dos malditos presságios: a seca. Direção geral: Elomar. CASCUDO. é uma homenagem à figura do bravo vaqueiro nordestino e foi gravada no álbum Na quadrada das águas perdidas . (dir. O Essencial sobre o Romanceiro Tradicional. associados. Na quadrada das águas perdidas. Livro do concerto Cenas Brasileiras. 2003. Juazeiro do Norte. com função moralizadora. Luís Câmara. Cito um fragmento do texto: [. o fazendeiro esforça-se para dominar o boi invisível. Proprietárias: Filhas de José Bernardo da Silva. História de Vaqueiros . faixa 3. de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. profundamente religioso. observa nos elementos do mundo “natural” e profano – como o boi. entrelaçam-se a brincadeira da pegada do boi. que representa as gerações futuras voltando-se para o mito. e isto supõe prescindir da exaltação do “eu”. ZUMTHOR. 2000. Lado B. ______.. PINTO-CORREIA. Paul. uma mudança radical na postura diante da vida e do mundo. João David.. Rio Grande do Norte e Ceará. No caso em estudo.. In: WIDMER. que deteria o verdadeiro poder. Regência: João Omar de Carvalho Mello. canção de Elomar que também faz referência à pegada do boi com vara de ferrão. a desagregação da família dispersa na cidade grande e todos os outros eventos trágicos decorrentes desse acontecimento. Romanceiro Oral da Tradição Portuguesa – Apresentação Crítica. O homem do sertão. de 1978. leitura. ______. 20/01/ 1981. recepção. o mito. aquela imagem fantasmática se dissipa. LIBERATO. Documentário da Vida Rural. 1986. e anim. não se restringirá a essa face. Projeto cancioneiro e Lírica. CANTEL. Durante toda a noite. Antologia e Sugestões para Análise Literária. Embora transfigurado na imagem do Diabo cristão por necessidade de personificação do mal. expressa a necessidade do homem de reconciliar-se com a natureza. Boi aruá (desenho animado de longa-metragem). Paraíba.1918). Elomar Figueira. Nela. Cantiga do Boi Encanta­ do. porém. 9. Manaus: Sonopress . 1956. Poitiers: Centre de Recherches LatinoAméricaines. São Paulo: EDUC. Ernst. Vaqueiros e cantadores: folclore poético do sertão de Pernambuco. ______. mas também questionando sua historicidade e validade. Leandro Gomes de (1868 . atribuindo-lhes poder extraordinário. Impresso na Brasil Artes Gráficas.(2000). elementos que. As produções sobre o romance do boi encantado aqui analisadas são poéticas restauradoras que atualizam o mito como potencial simbólico de fundamental importância para repensar a identidade e a cultura brasileiras. 1993.. Tradições Populares da Pecuária Nordestina. a posterior retirada dos sertanejos.. La Littérature populaire brésilienne. do indivíduo. Sertania: Sinfonia do Sertão. 1983.Casa da Moeda. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura.] da sacralidade. Chico. é verdade que foi meu avô quem matou o boi aruá?”. MELLO. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia. Referências: BARROS. Trad. 1984. Raymond. 1 disco sonoro. a morte e o amor. Lisboa: Edições Duarte Reis. 1978. Estória do Boi Misterioso (cordel). ao amanhecer o dia. Lisboa: Imprensa Nacional . 2000.