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Amaral, Francisco - Direito Civil - Introdução

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Introdução Este livro traduz uma experiência de quase duas décadas no campo do ensino e da investigação científica, nos cursos de graduação e de pós-graduação das Faculdades de Direito em que tenho tido a honra de lecionar. Ao elaborá-lo, sempre tive em mente produzir um instrumento de trabalho que fosse útil ao estudo, à pesquisa, ao raciocínio e à reflexão jurídica dos estudantes, a quem o dedico e ofereço como reconhecimento ao incentivo que deles sempre recebi. Justifica-se, assim, a minha preocupação em oferecer não só um texto claro e conciso, embora sem concessões à superficialidade, como também atualizada informação jurisprudencial e bibliográfica que permita conhecer os modos de realização prática do direito e o processo de renovação científica por que passa o direito civil contemporâneo. Sendo uma introdução ao estudo do direito civil, tem como objetivos básicos: a) iniciar no estudo e na análise das noções, categorias e princípios estruturais que formam a doutrina do direito civil; b) orientar no conhecimento da técnica jurídica, isto é, na arte de aplicar o direito civil aos problemas da vida real, procurando integrar o conhecimento científico com a prática de nossos tribunais; c) contribuir para a formação jurídica do aluno, por meio de uma perspectiva interdisciplinar que possa facilitar a compreensão do fenômeno jurídico; d) suscitar uma reflexão teórica sobre a necessidade de renovação do direito civil, acompanhando o processo de mudança por que passa atualmente o direito, por força das transformações econômicas e sociais que se processam na sociedade contemporânea. O direito civil é o direito comum, é o direito que se aplica à generalidade das pessoas e das relações jurídicas de natureza privada. Compreende uma parte de direitos pessoais, que protegem a pessoa humana e sua família, uma parte de direitos patrimoniais, pertinentes à atividade econômica, à propriedade dos bens e à prestação de serviços, e ainda uma terceira, de importância crescente na teoria e na prática, que é da responsabilidade civil, cujas normas disciplinam a indenização do dano alheio. Configura-se, portanto, como a regulamentação jurídica da sociedade civil, assim entendido o universo social em que se desenvolvem as relações de natureza familiar e econômica, com base na igualdade jurídica e no poder de autodeterminação das pessoas, com as limitações decorrentes da atuação jurídica dos demais componentes sociais. O seu estudo científico, indispensável à atividade dos profissionais de direito, deve levar em conta, porém, as condições políticas, econômicas e sociais que determinaram ou influíram no seu processo de formação histórica e cultural, assim como as funções que pode desempenhar na solução dos problemas típicos de uma sociedade em desenvolvimento, tendo presentes os valores e os princípios que lhe servem de fundamento e lhe conferem legitimidade. E por isso conveniente, se não necessário, articular a ciência do direito, e, particularmente, o direito civil, com as demais ciências sociais, de modo a compreender melhor o que realmente seja o direito civil. E, nesse processo interdisciplinar, ressalta a importância da história das instituições jurídicas, pois quem não tiver a percepção do sentido histórico do direito só pode ter dele uma visão estática. O direito é uma regulamentação da vida que arranca da realidade, inter-relacionando-se com outros sistemas de valores para a solução dos conflitos de interesses. O recurso às ciências sociais, por meio de um processo interdisciplinar, permite ainda inserir o direito civil, que é um direito de formação histórica e jurisprudencial, em uma perspectiva global da cultura, superando-se, desse modo, o mito da neutralidade científica tão caro ao positivismo e ao formalismo, tradicionalmente imperantes em nossos meios jurídicos. E também se aproxima o direito da realidade concreta, donde provém e à qual se destina, como um dos mais credenciados instrumentos de transformação social de que o homem dispõe. Essa articulação do direito, enquanto ciência relativamente autônoma, com a história e as demais ciências sociais (sociologia, economia, antropologia), leva também a urna percepção crítica do fenômeno jurídico, no sentido de o jurista considerar as condições políticas, econômicas e sociais que determinam ou condicionam as normas jurídicas, do que resulta poder verificar-se a sua adequação aos modelos da sociedade contemporânea. Coerentemente com tal concepção, conjugam-se neste livro: a) uma perspectiva científica, segundo a qual o direito civil se estuda por meio dos seus conceitos, categorias e estruturas fundamentais, assim como na realização de suas normas; b) uma perspectiva sociológica, que considera as funções do direito civil na sociedade contemporânea e c) uma perspectiva filosófica, que identifica os valores e os princípios que o fundamentam e legitimam. Tais dimensões permitem ao estudioso aprender de modo abrangente e aprofundado a experiência jurídica no campo do direito civil, entendendo-se como tal o conjunto de manifestações jurídicas com que se têm solucionado, no curso de sua existência, os conflitos de interesses que a vida em sociedade faz nascer. No que, particularmente, diz respeito à vertente científica, preocupa-se o autor em expor a matéria que constitui a chamada teoria geral do direito civil, e que se concretiza nas normas e institutos da Parte Geral do Código Civil, com a jurisprudência que resulta de sua aplicação concreta aos casos da vida real. No desenvolvimento dessa matéria adotam-se orientações metodológicas consagradas, segundo as quais pode-se estudar o fenômeno jurídico sob a perspectiva da norma jurídica, da relação jurídica e da instituição jurídica, integrando-as, porém, na visão global e mais elevada, que é a da experiência jurídica, expressão nacional do modus vivendi da nossa sociedade, no curso de sua existência. Para os que adotam a primeira perspectiva, o direito é essencialmente norma, regra de comportamento criada pelo Estado para resolver conflitos de interesses. O direito vale porque imposto pelo Estado, considerado como sua fonte exclusiva. Teoria mais identificada com o direito público, tem conotação essencialmente política, devendo refutar-se no que tem de extremado quando considera o Estado como fonte exclusiva da criação jurídica, concepção monista há muito superada. Para a teoria da relação jurídica, que preferencialmente se adota, embora consciente de suas limitações críticas, o direito é um sistema de relações juridicamente disciplinadas e ordenadas pelas regras jurídicas. Seu conceito fundamental é a relação intersubjetiva, que tc'in como idéia-chave a autonomia privada, poder dos particulares dr criar relações jurídicas e estabelecer-lhes o respectivo conteúdo (direitos e deveres). A teoria da instituição é outro endereço metodológico de estudo do fenômeno jurídico, também afim ao direito público. Para seus defensores (Hauriou, Renard, Santi Romano, etc.), o direito é, essencialmente, organização, estrutura, enfim, instituição, que se define como grupo social, dotado de uma ordem jurídica e uma organização específica. A instituição nasce de uma idéia que se realiza através de uma ordem e de uma organização jurídica, tendo uma existência objetiva e concreta, exterior e visível1. A concepção do direito como experiência jurídica, compreensiva das demais perspectivas, traduz a atividade humana em todos os sentidos e em todas as manifestações que configuram o lado humano da história, e representa o esforço máximo realizado pelo pensamento jurídico mais atual, para reunir e organizar o que se costuma chamar de vida do direito.2 Pode-se, assim dizer, que nenhuma dessas perspectivas anula as demais, sendo apropriado salientar que elas não se excluem, antes se completam, constituindo-se, porém, a norma de direito em condição necessária e suficiente para o relacionamento jurídico das pessoas e a organização e disciplina da sociedade. Tratando-se aqui de uma introdução ao direito civil, segue, entretanto, este livro, a perspectiva ainda dominante nessa matéria, que é a da relação jurídica, embora ciente das críticas atuais a tal conceito, que tem como referencial básico a experiência privada, "na qual a vida jurídica se apresenta, principalmente, como um conjunto de relações que a norma jurídica estabelece de modo típico e comum, e das quais a autonomia dos particulares estabelece o conteúdo preceptivo".3 A ordem seguida na explanação da matéria é coerente com a perspectiva adotada. Tomando-se por base a relação jurídica, expõem-se os respectivos aspectos doutrinários e normativos que se -------1 Santi Romano. L'ordre Juridique (Paris, Dalloz, 1975) p. 26. 2 Ricardo Orestano. Inlroduzione alio studio dei diritto romano (Bologna, II Mulino, 1987) p. 360. 3 Sergio Costa. Prospective di Filosofia del direito. 2. ed. (Torino, Giappichclli, 1974 n. 50. -------sistematizam em torno dos seus elementos fundamentais, a saber: os sujeitos, o vínculo, o objeto e a sua causa determinante, os fatos jurídicos. O primeiro capítulo contém noções de sociologia e de filosofia do direito, dedicando-se ao conceito e às funções do direito em geral e, particularmente, às do direito civil, explicitando os seus valores fundamentais. O segundo capítulo dedica-se à teoria geral da norma jurídica de direito privado, expondo as diversas concepções teóricas acerca de sua natureza, estrutura, aplicação e classificação. O terceiro capítulo apresenta verdadeiramente o direito civil, estudando-o na sua gênese, caracterização e processo evolutivo, indicando-se ainda o seu conteúdo, isto é, as instituições fundamentais que sua disciplina contém. O capítulo quarto dedica-se à relação jurídica de direito privado, desenvolvendo-se como o estudo pormenorizado do seu conceito, fundamento doutrinário, importância atual, estrutura, conteúdo e espécies. Os capítulos subseqüentes dizem respeito aos elementos da relação, vale dizer, os sujeitos (as pessoas), o objeto (os bens), assim como os acontecimentos que os determinam (os fatos jurídicos), formulando com os princípios fundamentais que lhes são inerentes, uma teoria da personalidade, uma teoria do patrimônio e uma teoria do negócio jurídico. Com esse material doutrinário, que deve alimentar-se permanentemente com a consulta ao código e à jurisprudência, em um processo de enriquecimento recíproco da teoria com a prática jurídica — pois o direito é expressão inseparável da vida social, a cuja organização e disciplina se destina — acredito poder colocar à disposição dos meus alunos e dos estudiosos em geral um instrumento de trabalho para a pesquisa e a reflexão científica sobre o direito civil, que ainda se constitui na principal esfera de afirmação da personalidade humana e de realização dos seus mais legítimos anseios de liberdade e de igualdade material. CAPÍTULO I O Direito. Estrutura. Funções. Fundamento. Sumário: 1. O direito. Significados e perspectivas de estudo. 2. O direito. Gênese e estrutura. 3. As funções do direito. 4. O fundamento do direito. Os valores. 5. A justiça. 6. A segurança. 7. O bem comum. 8. A liberdade. 9. A igualdade. 10. A teoria do direito civil. 11. O direito civil como norma jurídica. 12. O direito civil como relação jurídica. 13. O direito civil como instituição. 14. Apreciação crítica. 15. O direito como sistema. O sistema de direito civil. 16. O método adotado. 17. O direito e a justiça. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. 18. A metodologia da realização do direito. A decisão justa do caso concreto. 1. O direito. Significados e perspectivas de estudo. A palavra direito pode ter vários significados. É um termo po-lissêmico, donde a dificuldade de uma definição única1. --------------l Definir o direito não é tarefa do jurista, mas do filósofo. Do primeiro espera-se que declare o que é direito (quid iuris), do segundo, o que é o direito (quid ius). Cfr. Alain Seriaux, in Droits, n2 10, p. 85. E útil, porém, ao civilista, fornecer algumas noções básicas e introdutórias, como é o conceito de direito, pressuposto de sua exposição. Cfr. Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, p. 16, Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao Estudo do Direito, p. 47. O problema da dc-l inição do direito surge na cultura jurídica moderna, como resultado do processo de posilivação, c ligiulo il idéia de que o direito pode ser estudado e classificado por meio de instrumentos análogos aos que estudam e classificam os fenômenos naturais. Cfr. Giorgio Rebuffa, Dirino, in Digesto delle Discipline Privatistiche, p. l e segs. 2 Manuel Atienza, Juridicité, in Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie du droit, p. 322; Luiz Dicz Picazo, Experiências Jurídicas y Teoria dei Derecho, 1993, p. 6. André — Jcan Arnaud / Maria Josó Farinas Dulce, Sistemas Jurídicos: Elementos para uma análise sociológica, p. 250. --------------Na acepção mais comum e freqüente, usa-se para designar o conjunto de prescrições com que se disciplina e organiza a vida em sociedade, prescrições essas que encontramos formuladas e cristalizadas em regras dotadas de juridicidade, isto é, de caráter jurídico, o que as diferencia das demais regras de comportamento social e lhes confere eficácia garantida pelo Estado. A juridicidade, conceito novo na ciência do direito, significando o atributo que diferencia a regra do direito das demais regras de comportamento social, serve de fronteira entre o jurídico e o não jurídico, caracterizando as normas que pertencem aos sistemas de direito, conjuntos de princípios e regras dotadas de legitimidade e obrigatoriedade2. Essas regras ou normas estão nas leis, nos costumes, na jurisprudência, nos princípios gerais do direito, constituindo o chamado direito objetivo, de ob + jectum, exterior ao sujeito, e positivo, no sentido de que é posto na sociedade por uma vontade superior. E o ius in civitate positum. E neste sentido que se utiliza para designar o direito vigente, por exemplo, o direito brasileiro, o direito civil, o direito penal etc. Toma-se aqui o direito corno conjunto de regras jurídicas. Em outra acepção, ligada à primeira e dela dependente, direito designa um poder que o sujeito tem de agir e de exigir de outrem determinado comportamento. É o chamado direito subjetivo, de sub + jectum, reconhecido e garantido pelo direito objetivo, como por exemplo, o direito de propriedade, o direito do consumidor, o direito do inquilino, do credor, do possuidor, etc. Em perspectiva mais idealista e menos freqüente, traduz um sentimento de justiça. Quem diz "não é direito o que fazem comigo", ou "isso não está direito", referese a um comportamento injusto. Neste caso, direito é expressão de justiça. Em outro sentido, ainda, designa a ciência jurídica, o conjunto de conhecimentos teóricos e práticos que têm como objeto o próprio direito como ordem social, na sua estrutura e função, nos seus métodos de elaboração e realização e nos seus fundamentos, enfim, na fenomenologia da sua existência, validade e eficácia3. Essa polissemia, que produz uma certa ambigüidade, dificultando uma definição precisa do direito, revela a complexidade do mundo jurídico, que é plural e diverso, como se pode verificar no curso de sua história, sendo exemplo, no ordenamento medieval, o direito dos feudos e das corporações, e hoje em dia, a multiplicidade de fontes, de sistemas e de meios de solução de conflitos (direito comunitário, direitos especiais etc.). Notas incontroversas do direito são o seu caráter humano e social4 porque ele existe em razão dos homens que se relacionam entre si. Onde houver sociedade, lá estará o direito (ubi societas, ibi ius] que, reciprocamente, também a pressupõe (ubi ius, ibi societas), sendo inconcebível uma regra jurídica que não a tenha como referência. Regulando os comportamentos humanos e sociais, é também modelo de organização social que se formaliza e estrutura segundo determinados critérios, os chamados valores, dos quais o mais importante é, para nós, a justiça. A par da humanidade e da socialidade, uma outra característica é a sua normatividade, isto é, o direito como regra ou norma5 dotada de juridicidade, própria da concepção normativista que domina a teoria jurídica, e orienta o raciocínio dos juristas que buscam soluções para os conflitos de ------------------3 Reale, op. cit., p. 61/64, Simone Goyard — Fabre, Lês grandes questions de Ia phílosophie du droit, p. 9. Maria Helena Diniz, A ciência jurídica, p. l e segs. 4 Digesto, 1.5.2. "... hominum causa omne ius constitutum sit, ..." 5 Ângelo Falzea, Introduzione alie scienze giuridiche, p. 16. A opinião amplamente dominante na doutrina é a da norma como sinônimo de regra. Cf. Reale, op. cit., p. 65/67; Mario Jori, Norme, e Jerzy Wroblewski, Règle, in Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie du droit, p. 399 e 520; Ricardo Guastini, Norma giuridica, in Digesto delle Discipline Privatistiche, XII, p. 155. Norberto Bobbio, Norma giuridica, in Novíssimo digesto italiano, XI, p. 330 e segs.; Franco Modugno, Norma giuridica. Teoria generale, in Enciclopédia dei diritto, XXVIII, p. 238; Jacques Guestin et Giles Goubeaux, Traité de Droit Civil. Introduction Generale, p. 5, nota 7, onde se reafirma que norma e regra usam-se como sinônimos, embora possa reconhecer-se na regra um caráter mais geral e abstrato, e na norma uma dimensão mais individual e concreta. Cfr. ainda, Jean François Perrin, Règle, in Archives de Philosophie du Droit, tome 35, p.245, e Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 1991, p.297 e segs. (há tradução portuguesa de José Lamego, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991), o Álvaro D'Ors. Una inlroducción ai estúdio dei de.recho, p. 24. ------------------interesses, e constróem, com o seu trabalho, a chamada experiência jurídica de um povo.6 O direito apresenta-se, então, como um ordenamento jurídico, um conjunto de normas que rege uma comunidade7 impondo ou oferecendo modelos de comportamento. Se a polissemia do termo torna difícil uma definição única do direito, pode-se, todavia, tentar compreendê-lo no processo de sua formação histórica. O direito, particularmente o direito civil, vem se formando ao longo dos séculos como inerente à vida e à cultura dos povos, tendo como sentido e razão de ser a solução de conflitos, do que resulta o caráter de sua problematicidade, vale dizer, a sua função de pensamento chamado a resolver questões jurídicas concretas.8 É um produto histórico, que se forma ao longo dos tempos, corno cultura e como processo de solução de controvérsias, que vai da previsão dos conflitos, pela tipicidade estabelecida nas regras, até chegar a uma institucionalização dos órgãos e dos critérios de decisão, critérios esses ditados pela ética da comunidade a que se destina. Como cultura, exprime valores espirituais da sociedade humana, sendo por isso, também, fenômeno cultural. Como processo de solução de conflitos, é uma técnica a serviço de uma ética. Para a concepção normativista (o direito essencialmente como norma), surgem várias perspectivas de estudo. Tem-se, em primeiro lugar, a perspectiva científica, a da ciência do direito, "conjunto de conhecimentos ordenados segundo princípios" e com método próprio. Ocupa-se da estrutura do direito, vale dizer, de suas normas, institutos, conceitos e categorias, material com que trabalha a doutrina jurídica no processo de análise, interpretação e aplicação das regras. Estuda o direito que é, o direito positivo. Em segundo lugar, ------------6 Reale. O Direito como Experiência, p. XXXII, e segs; Diez-Picazo, op. cit. p. 10; Ricardo Orestano, Introduzione alio studio dei diritto romano, p.357. 7 A crítica que se faz hoje a essa concepção, o direito como norma, é no sentido de que nos revela algo já pré-estabelecido, as regras jurídicas, e posto como ponto de partida para a técnica de aplicação do direito. A essa concepção contrapõe-se a idéia de que o direito é mais do que normas, é uma prática social, um processo permanente de construção, sob a influência de considerações ético-jurídicas. Cfr. Ronald Dworkin, Talking Rights Seriously London, 1977; Francisco Viola, // diritto come pratica sociale, 1990, p. 159. 8 Antônio Castanheira Neves, Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, p. 71. ------------a perspectiva sociológica, da sociologia do direito, que estuda a relação direitosociedade, preocupando-se com a eficácia e as funções das normas jurídicas, mais propriamente, com a análise sociológica dos sistemas jurídicos, o que lhe permite apreciar o sistema em sua totalidade e em relação com o seu contexto.9 Interessa-se pelo que o direito deve ser. Em terceiro lugar, a perspectiva filosófica, que se ocupa dos fundamentos da ordem jurídica, vale dizer, dos valores que lhe dão sustentação e legitimidade, e dos quais, os mais importantes são a justiça, a segurança e o bem comum. Estuda o fundamento do direito, dando ênfase à justiça como especial valor a realizar. E ainda a perspectiva histórica, que permite conhecer a gênese e evolução das instituições jurídicas, matéria objeto da história do direito. Estuda como o direito se formou, ao longo dos séculos. Temos ainda, diretamente relacionada com a ciência e a filosofia do direito, a perspectiva metodológica, com importância crescente no estudo dos processos de aplicação e de realização do direito. A metodologia jurídica, não como disciplina autônoma,10 mas como proposta de reflexão filosófica sobre o processo de realização do direito, não procura somente definir técnicas ou estabelecer regras instrumentais para aplicá-lo, mas também refletir sobre ele de modo crítico, vendo-o mais como prática social e prudência! do que como conjunto de regras vigentes em determinada sociedade. Para seus cultores, o direito é um pensamento que se destina a resolver problemas práticos, configurando-se mais como "ciência de decisão" do que como "ciência do conhecimento". Estuda como o direito se realiza. De tudo isso conclui-se que o direito, na ambigüidade e na polissemia do seu termo, e na sua própria natureza histórico-cultural revela, mais do que uma configuração técnico-científica, uma natureza problemática e uma função prática que exigem do jurista não só o conhecimento mas, principalmente, a compreensão do seu sentido e significado, e da sua importância como instrumento de organização e disciplina social e como expressão da cultura e da experiência jurídica de um povo. O direito não é, assim, um dado, mas um processo que permite reunir as suas diversas perspectivas ---------------9 André — Jean Arnaud / Maria José Farinas Dulce, op. cit., p. 26. Elias Diaz, Sociologia y Filosofia dei Der acho, p. 60. 10 Nelson Saldanha, Dt.i teologia à metodologia, p. 104. ---------------em uma construção permanente, in fieri, das normas jurídicas, superando-se a distinção entre o ser e o dever ser. São essas as perspectivas que hoje mais interessam e que, neste livro, se pretende observar, como introdução ao estudo do direito civil, na sua formulação mais teórica e geral, na compreensão de seus princípios e valores, no conhecimento das suas estruturas e de suas funções, e no processo de sua realização prática. 2. O direito. Gênese e estrutura. Ao longo do seu processo de evolução histórica, o direito vem se apresentando como um conjunto de normas que têm por objetivo a disciplina e a organização da vida em sociedade, resolvendo os conflitos de interesses e promovendo a justiça. Justifica-se, assim, o predomínio da concepção normativa do direito. A compreensão do que realmente seja o fenômeno jurídico não deve partir da visão do direito como simples conjunto de normas ou como determinado procedimento de solução de conflitos de interesses, mas da certeza de ser ele produto de uma realidade complexa e dinâmica, que é a vida em sociedade, com seus problemas e controvérsias. Disso lhe advém a já referida natureza problemática e o reconhecimento de sua função prática. Como produto histórico e, conseqüentemente, cultural, o direito resulta de um processo de institucionalização de práticas e de comportamentos típicos, de órgãos e de critérios de decisão, que a sociedade e o Estado estabelecem, para o fim de dirimirem conflitos de interesses, previsíveis e tipificados. Como diz Reale11, "o direito surge quando os jurisconsultos romanos, com sabedoria empírica, quase intuitiva, vislumbraram na sociedade "tipos de conduta" e criaram, como visão antecipada dos comportamentos prováveis, os estupendos modelos jurídicos do direito romano". Esses modelos jurídicos, que funcionam como "diretivas para a ação", fins ou valores a realizar, formalizam-se em estruturas jurídicas, compreendendo as normas, os institutos, as instituições, os conceitos, a.s categorias, enfim, todos os elementos que, de natureza essencialmente técnica e formal, ajudam a construir o sistema de direito. -------------11 Reale, Liçõfis Preliminares de. Diniito, p. 185. -------------As normas jurídicas são públicas (quando contidas nas leis, sentenças, atos administrativos) e privadas (quando nos contratos). Os institutos são conjuntos de normas que disciplinam uma determinada relação jurídica (exemplo, o casamento, a propriedade, a filiação, o contrato etc.). As instituições, termo de natureza sociológica, são grupos sociais dotados de uma determinada ordem e uma organização interna, que se criam e se justificam por um fim comum, como a família, a empresa, o Estado. Instituto é uma construção técnico-jurídica, enquanto instituição é um grupo social, dotado de ordem e organização. Conceitos e categorias são instrumentos que o jurista utiliza no seu trabalho de elaboração jurídica, isto é, na sua atividade de criação de normas e de elaboração dos sistemas e da própria terminologia da ciência do direito. Os conceitos são representações mentais de objetos, indivíduos ou fenômenos. Sua função é a de descrever, classificar ou organizar os dados da experiência concreta, no caso, a jurídica, permitindo estabelecer conexões de natureza lógica, e facilitando o raciocínio jurídico. Produto de uma atividade de abstração, o que, por vezes, os leva a desligarem-se demasiadamente da realidade, são elementos fundamentais do sistema e da ciência do direito. Sua utilidade está, no fato de permitir, não só o conhecimento teórico, indispensável à reflexão crítica, como também a subsunção de todos "os objetos que apresentam as mesmas notas compreendidas no conceito", com a formulação de regras para tudo o que se compreender no seu âmbito de aplicação. É o que se verifica, por exemplo, com os conceitos fundamentais de domicílio (C.C. art. 70), de empresário (C.C. art. 966), de pessoa, bem, relação jurídica, capacidade, contrato, direito real, direito de crédito etc., que, inseridos no sistema jurídico (na teoria ou na parte geral do Código Civil), permitem estabelecer a disciplina básica que irá reger todos os casos que venham a subsumir-se nas hipóteses conceitualmente estabelecidas, evitando repetições supérfluas12. Distinguem-se, nos conceitos, a compreensão e a extensão. Compreensão é o conjunto de notas ou características que o conceito encerra. Por exemplo, o conceito de cidadão brasileiro, compreende as características de homem, de nacionalidade brasileira, e titular de direitos de cidadania. Extensão é o conjunto de objetos ou -------------12 Laurenz, op. dl. p. 536. -------------indivíduos que o conceito abarca. Por exemplo, no Código Civil, art. l2, o conceito de pessoa abrange todos os indivíduos da espécie humana. Entre os conceitos estabelecem-se relações de coordenação e de subordinação. Nestas, submetem-se os conceitos que se põem sob outros mais amplos (os subordinantes). Na subordinação há que distinguir o gênero, da espécie e do indivíduo. Gênero é conceito subordinante que compreende conceitos subordinados. Indica um conjunto de espécies de características comuns. Espécie é conceito subordinado de menor extensão que o gênero. Significa um conjunto de indivíduos, da mesma natureza. Indivíduo é o ente singular que pertence, como unidade, a uma espécie. Estas noções têm utilidade nas classificações jurídicas. Nos bens jurídicos, por exemplo, bem é gênero, móvel é espécie, e livro é indivíduo. Nos contratos, a compra e venda é um ato que se subordina às regras da espécie contrato (C.C. art. 488) que, por sua vez, se subordina às do gênero negócio jurídico. Os gêneros supremos, isto é, os conceitos mais universais, chamam-se categorias, "quadros em que se agrupam, por afinidade, os elementos da vida jurídica"13 e fora dos quais não se reconhece eficácia jurídica. São conceitos universais, por exemplo, os de direito subjetivo, de direito pessoal, de direito real, de dever, de relação jurídica, de sanção, de pessoa etc. Aplicação prática disso está por exemplo no fato de que, tendo os direitos do consumidor uma disciplina específica, basta qualificar um direito como tal, para que lhe seja aplicado o respectivo regime. Sistematizando-se tais modelos ou estruturas, chega-se na matéria civil, à construção do Código Civil, conjunto unitário e logicamente ordenado das relações jurídicas de direito privado. O Código Civil Brasileiro é uma lei que disciplina as relações entre os particulares, contendo 2.046 preceitos que se aglutinam em cinco institutos fundamentais: a pessoa ou sujeito de direito, a família, a propriedade, o contrato e a sucessão. Por influência de Teixeira de Freitas, primeiro, e depois do direito alemão, o Código divide-se em uma Parte Geral, que reúne os princípios e regras aplicáveis à generalidade das pessoas, bens e fatos jurídicos, e uma Parte Especial, que compreende o direito de obrigações, o direito de empresa, o direito das coisas, o direito de família e o direito das sucessões. --------------13 Orlando Cioiws, Introduçtlo no tlin-ito civil, p.9. --------------É, assim o Código Civil, um conjunto formado de subconjuntos, ou se quisermos, um sistema composto de sub-sistemas, cada qual dedicado a uma das matérias ou institutos tradicionais do direito civil. As regras têm lugar próprio nesse sistema. Encontrá-las é determinar-lhe a natureza jurídica, tarefa preliminar da técnica de realização do direito. 3. As funções do direito. Uma outra perspectiva de estudo do fenômeno jurídico, de particular interesse para o civilista atento às transformações da ordem jurídica privada, é o das funções que o direito pode ter na sociedade contemporânea, problema teórico da sociologia do direito. Nesta perspectiva enfatiza-se a dimensão social do direito, que focaliza a relação entre ele e a sociedade, suas recíprocas influências e modificações. Considera-se, aqui, função, a tarefa, ou conjunto de tarefas que o direito desempenha, ou pode desempenhar, na sociedade humana14. ----------14 André-Jean Arnaud/Maria José Farinas Dulce, Sistemas Jurídicos: Elementos para un análisis sociológico, p. 133 e segs. A idéia de função exprime o conjunto de tarefas que se espera realizar com o direito, de acordo com os objetivos e propósitos de ação dos sujeitos jurídicos, que formulam, aplicam ou se utilizam do direito na sua experiência de vida em sociedade. Nesse sentido, as principais funções do direito seriam as de resolver conflitos, as de regulamentar e orientar a vida em sociedade e as de legitimar o poder político e jurídico. Quanto à primeira, o direito atua para solucionar o conflito de interesses ou restaurar o estado anterior. O direito seria, então, um instrumento de integração e de equilíbrio, oferecendo ou impondo regras de comportamento para a decisão que o caso sugere. O exercício dessa função não levaria, porém, ao desaparecimento dos conflitos, que são inerentes à sociedade. O direito não é uma ordem de paz, mas de conflitos. Desaparecidos estes, desnecessário seria o direito (cf. no direito brasileiro a lei 9.307, de 23.9.96, lei da arbitragem). O direito serve também para orientar o comportamento social, visando evitar os conflitos. O caráter persuasivo das normas jurídicas leva-nos a agir no sentido dos esquemas ou modelos normativos do sistema jurídico. O direito visto desse modo surge como organizador da vida social e como instrumento de prevenção de conflitos. O direito tem ainda a função de organizar o poder da autoridade que decide os conflitos, legitimando os órgãos e as pessoas i. um poder de decisão o estabelecendo normas de competência e de procedimento. Por exemplo, o juiz, o árbitro, os pais, os diretores de pessoas jurídicas são legitimados a agir na forma de ordem jurídica. Outras FunçOes que se atribuem ao direito como a distributiva e a promocional, são tipos que surgiram com o advento do Estado social. Função distributiva é aquela por meio da qual se atribuem os recursos econômicos e não econômicos aos membros do grupo social. Função promocional é aquela que visa encorajar determinados comportamentos socialmente desejados. Realiza-se por meio de técnicas de incentivo, e é própria do Estado pós-liberal, assistencial. Cfr. Bobbio. Dalla strutura alia funzione. P. 103 e p. 26. Superado o Estado Social, reduziu-se a importância da função promocional. 15 Miguel Reale, O Direito como Experiência, p. 25 e segs., Antonio-Enrique Pérez Luno, Teoria dei Derecho. Una concepción de Ia experiência jurídica, p. 42; Tércio Sampaio Ferraz Jr, Introdução ao Estudo do Direito, p. 88; Castanheira Neves, Fontes do direito, in Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, II, p. 1.546; Luiz Diez Picazo, Experiências Jurídicas y Teoria dei Derecho, Barcelona, p. 6 e segs. Eurico Opocher, Esperienza giuridica, in Enciclopédia dei diritto, XV, p. 735 e segs.; Giusepe Capograssi, II problema delia scienza dei diritto, p. 25 c segs. Simone Goyard-l-abrc i-t Reno Sève, Lês grandes questions de Ia philosophie du droit, p. 23 i% sc^s.; Micliel Miaillc, Urna Introdução Crítica <4o Direito, p. 21. ----------Dentre as várias funções que se podem atribuir ao direito, destaque-se, pela importância no direito civil, a de resolução de conflitos de natureza privada, quer pelos meios formais de procedimento judicial, quer por meio de mecanismos alternativos e informais, como a mediação e a arbitragem. Dá-se a mediação quando as partes aceitam ou solicitam a intervenção de terceiro neutro, não se obrigando a acatar sua opinião, e a arbitragem quando as partes elegem um árbitro, obrigando-se, previamente, a aceitar a sua decisão. (Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996). A vivência social que interessa ao direito, a chamada experiência jurídica, é uma concreta experiência de conflitos de interesses que o direito é chamado a disciplinar no exercício de uma das suas mais importantes funções, a de resolver tais problemas, visando garantir a realização dos ideais humanos de ordem, justiça e bem comum. Considera-se assim experiência jurídica, a concepção do direito como experiência da vida social e histórica, que se conhece e explica a partir da vivência, não de categorias lógicas, formais e abstratas. Conhecemos o direito porque o experimentamos, porque o utilizamos para garantir nossos bens e realizar nossos fins, umas vezes; porque o sofremos ao ter que adaptar novos atos a seus preceitos, outras; e porque o vivemos sempre."1" Como se realiza essa função? A vida em sociedade desenvolve-se sob a disciplina e a orientação de regras da mais variada espécie. São regras morais, religiosas, sociais, costumeiras, jurídicas, que constituem, em conjunto, vasto sistema de controle social.16 Regras, ou normas, procuram estabelecer uma determinada ordem para o comportamento dos indivíduos e dos grupos, fixando critérios de solução para as questões que se apresentam, inevitavelmente, no curso da convivência social. Surgem tais conflitos quando duas ou mais pessoas revelam pretensões antagônicas sobre o mesmo bem17, disputando a sua posse ou propriedade. A reiteração desses conflitos e a necessidade de sua solução fazem com que se estabeleçam normas definidoras do que é lícito ou ilícito, tipificando os fatos que interessam ao direito e institucionalizando os órgãos e os critérios de decisão respectiva. O conjunto dessas normas, que se dirigem ao comportamento humano e que têm no Estado a garantia de sua existência e eficácia, vem a constituir o direito, o mais institucionalizado sistema de organização e controle social, e como um dos seus mais importantes ramos, se não o mais importante, pelo menos o mais antigo, profundo e tradicional, o direito civil, conjunto de normas que protegem os interesses individuais, de natureza econômica e familiar. O direito surge, assim, ao longo de um processo histórico, dialético e cultural, como uma prática social que utiliza uma técnica, um procedimento de solução de conflitos de interesses e, simultaneamente, como um conjunto sistematizado de normas de aplicação mais ou menos contínua aos problemas da vida social, fundamentado e legitimado por determinados valores sociais. É, assim, a expressão ile um modo de vida de um povo e de sua cultura. -------------16 Controle Social é o conjunto da influências interiorizadas e ou restrições c-x ternas que a sociedade faz pesar sobre os comportamentos individuais e que justificam a ordem social; Franco Garelli, Controle social, in Dicionário de Política, p. 238 e segs., Elias Diaz, Sociologia y Filosofia dei Derecho, 1984, p. 14; Jean-Guy Ih-lley, Controle social, in Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie dii droit, pp. 112-116. 17 l,ui/. Diez Picazo, op. cit, p. 12. A perspectiva dos conflitos de interesse < nino ponto de partida para o estudo do fenômeno jurídico é de natureza socio-Ittyjc a, enquanto que a perspectiva da norma jurídica é o enfoque tradicionalmente l*uoiit;írio. Conforme a primeira, Jean Carbonnier Flexible droit. Textes pour une sociologia du droit sans rigueur, p. 58 e segs.; Konstantin Stoyanovitch, Lapensée nnti\.i\l. Classificação das normas jurídicas. Classificar é distribuir em classes ou grupos, de acordo com determinados critérios de ordem teórica ou prática. Existem vários critérios para a classificação das normas jurídicas como, por exemplo, o sistema a que pertencem, a fonte de que emanam, o âmbito especial, temporal, material e pessoal de validade, a sua hierarquia, a sua sanção, a sua qualidade, e sua relação com a vontade dos particulares.18 Outro critério são os elementos estruturais da norma jurídica, a hipótese de fato e o efeito jurídico.19 Respeitando os critérios estabelecidos, selecionamos as espécies que mais importantes nos parecem para o estudo do direito civil, iniciando com a tradicional distinção entre as normas de direito público e as de direito privado. 7. Normas de direito público e normas de direito privado. Critérios distintivos. A distinção entre as normas de direito público e as de direito privado é tradicional, clássica, e tem utilidade didática para o estudo e compreensão dos sistemas jurídicos de base romana, européia e continental, como é a do nosso direito. O direito comum de origem inglesa não conhece tal distinção. Inexiste critério único para essa dicotomia. Os mais aceitos pela doutrina são o do interesse dominante na relação jurídica, o da natureza dos sujeitos, o do vínculo de subordinação entre eles e o da finalidade ou função do direito. Pelo critério do interesse dominante, a norma jurídica é de direito público ou de direito privado conforme seu objetivo seja proteger os interesses da sociedade ou dos indivíduos.20 Com efeito, o direito privado visa assegurar, ao máximo, a satisfação dos interesses individuais, enquanto o direito público, proteger os interesses da sociedade. Tal critério é insuficiente. As normas jurídicas destinam-se, em sua generalidade, à proteção de todos os interesses, sendo que os dos particulares são também de natureza pública, tendo em vista o bem comum. Talvez se possa dizer que o direito público protege, de modo imediato e direto, os interesses gerais, enquanto que o direito privado o faz de modo indireto. Quando a lei determina a escritura pública para a venda de imóveis acima de certo valor (CC, art. 108) ou impõe uma forma para o casamento (CC, art. 1.533), a adoção (CC, art. 1.623), o testamento (CC, art. 1.862) etc., por meio de norma de direito privado, visa também proteger o interesse geral, que é a segurança das relações jurídicas. Segundo a natureza dos sujeitos, o direito público disciplina a atividade do Estado, e o direito privado, a dos particulares. Esse critério é, também, insuficiente, pois nem sempre o Estado atua como titular do poder público. Coloca-se, muitas vezes, em plano de igualdade com os particulares, principalmente nos atos de gestão patrimonial, isto é, nos atos normais de administração, quando se submete às normas de direito privado. Basear-se nesse critério seria conferir à vontade estatal valor jurídico superior à dos demais sujeitos, o que, em um Estado de direito, é inadmissível. Pelo critério da relação de coordenação ou de subordinação em que os agentes se coloquem, as normas de direito privado dirigem-se a pessoas no mesmo plano de relação jurídica, enquanto as de direito público pressupõem um vínculo de subordinação. É a teoria do ius imperium, para a qual o direito público regula as relações do Estado e de outras entidades com poder de autoridade, enquanto o direito privado disciplina as relações particulares entre si, com base na igualdade jurídica e no poder de autodeterminação. Ocorre que, perante o direito, todos são iguais, particulares e Estado, como já assinalado. Além disso, se adotado o critério da autoridade, veríamos que no direito privado também existem relações de subordinação, como acontece no direito de família, entre pai e filhos, tutor e tutelado, curador e curatelado, e no direito societário, nas relações entre sociedades ou associações e seus membros. Finalmente, para o critério da função, o direito privado teria o objetivo de "permitir a coexistência de interesses individuais divergentes, por meio de regras que tornem menos freqüentes os confli------------------ 18 Eduardo Garcia Maynez. op. cit., p. 78; Tércio Sampaio Ferraz Jr., p. 118 e segs.; Paulo Dourado de Gusmão, p. 118 e segs.; Paulo Nader, Introdução ao Estudo do Direito, p. 106 e segs.; Carlos Santiago Nino, op. cit., cap. II. 19 Irti, op. cit., pp. 161/171; De Los Mozos, op. cit., p. 393 e segs. 20 Diziam os romanos que Publicum jus est quod ad statum rei romana spectat; privatum, quod ad singulorum utilitatem, Ulpiano, Digesto, l, l, l, p. 2 Cf. Anacleto de Oliveira Faria, Direito público e direito privado, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 28, pp. 40/47. -----------------tos", enquanto ao direito público caberia a lunção de dirigir interesses divergentes para um fim comum, por meio de regras imperativas e geralmente restritivas.21 E, segundo as mais recentes concepções da teoria do direito e da sociologia jurídica, as funções do direito seriam as de reprimir os comportamentos socialmente perigosos, promover a justa distribuição dos bens e organizar os poderes do Estado e da administração pública. De qualquer modo, a distinção é difícil e de pouca nitidez, pela inexistência de critérios absolutos. A doutrina dominante, porém, inclina-se pela teoria do ius imperium. Direito público seria o que regula as relações em que o Estado intervém com poder de autoridade, enquanto direito privado seria o que regula as relações dos particulares entre si ou com o Estado, com base na igualdade jurídica e no seu poder de autodeterminação. A conclusão a que se chega é a de que nessa matéria, como em qualquer outra de natureza social, confrontam-se dois pólos opostos, da sociedade como um todo e dos indivíduos entre si, o social e o individual, cada um a sobressair em sua importância conforme o enfoque ideológico da análise jurídica. Quando, por exemplo, Kelsen defende que o direito é uma técnica de organização social, cuja função é promover a paz, situa-se no ponto de vista da sociedade como um todo. Quando Ihering afirma ser o direito a garantia das condições de existência em sociedade, põe-se no ponto de vista dos indivíduos.22 Ora, o fim primordial do direito deve ser a realização da justiça como forma específica de garantir a segurança existencial.23 A importância dessa distinção manifesta-se em alguns aspectos práticos: a) nas normas de direito privado, sua aplicação é deixada à iniciativa individual, cabendo ao interessado pedir a tutela do Estado, enquanto nas de direito público, esse impõe, por si só, a respectiva observância, além do privilégio de poder tomar decisões unilaterais obrigatórias para os administradores (desapropriação, servidão pública, ocupação temporária, requisição de bens etc.); b) os contratos de que o Estado participa (contratos administrativos) contêm, muitas vezes, regras derrogatórias do direito comum; c) a propriedade dos bens do Estado constitui domínio público, e tais bens são inalienáveis e insuscetíveis de aquisição pela usucapião; d) a responsabilidade civil do Estado é disciplinada por normas especiais; e) a competência para julgar conflitos em que o Estado intervém é privativa de órgãos especiais (Justiça Federal no âmbito federal, Varas de Fazenda Pública, no âmbito estadual). 8. Crítica à dicotomia direito público-direito privado. Uma perspectiva histórica facilita a compreensão da origem e significado da dicotomia direito público-direito privado. Essa distinção foi um dos postulados básicos do Estado liberal, assim como o da divisão dos poderes (executivo, legislativo e judiciário) e o do caráter abstrato e geral das normas jurídicas. O direito público era o conjunto de normas com que o Estado se organizava e regulava as relações entre si e os particulares, visando proteger os indivíduos, não a coletividade. A separação dos dois ramos correspondia à existente entre os sistemas da política e da economia, com outra característica, a da abstenção do Estado em intervir na segunda. Contrapunha-se, desse modo, a sociedade civil, que era a natural, dirigida pelas suas próprias leis, emanadas da natureza ou da razão, ao Estado, que era o organismo mantenedor da ordem econômica e social.24 Tal distinção já existia em Roma, sendo certo que os seus termos ius publicum e ius privatum não correspondiam à divisão atual.25 Ius publicum era o direito derivado do Estado, obrigatório para a comunidade, incluindo setores hoje considerados como direito privado. Ao contrário, o ius privatum representava as relações que os indivíduos estabeleciam entre si, no exercício de sua autonomia. Essa diferença perde sentido na Idade Média, ressurgindo com a revolução comercial do século XV e reafirmando-se com o direito da revolução francesa, correspondendo, na época moderna, à separação Estado---------------21 Bobbio. Dalla strutura alia funzione, p. 118. 22 Bobbio, op. cit., p. 112. ?3 Sérgio Cotta. Prospettive di filosofia dei dirítto, p. 14. 24 Pietro Barcelona. Dirítto privato e processo econômico, p. 38; Francesco Cialgano Publico e privato nella regolazione dei rapponi economici, in Trattato di diritto commerciale e di diritto publico deli economia, volume primo, La costi-tuzione econômica, p. 60. 25 Max Kazer. Derecho Romano Privado, p. 27. Álvaro D'Ors, De Ia "Privata Lex" ai derecho privado e ai derecho civil, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 24, 1949, pp. 29/46. ---------------sociedade civil, representando esta o conjunto das relações econômicas. Posteriormente, a interferência do Estado na economia contemporânea, causada pela concentração capitalista dos meios de produção,26 conduz a uma interpenetração de ambas as esferas e a uma superação da tradicional dicotomia. E uma das provas mais consistentes desse processo é o surgimento de um novo direito, o direito da economia, que combina processos jurídicos, institutos e conceitos de direito público e de direito privado. Com ele, o Estado intervém na economia, órbita tradicional do direito privado, utilizando-se do instrumental jurídico deste ramo, como a técnica de constituição das pessoas jurídicas e os atos jurídicos. Com o direito público ficaria assim a função de organizar atividades políticas e sociais do Estado, e com o direito privado, as atividades econômicas, quaisquer que fossem,27 correspondendo isso à passagem do Estado liberal para o Estado social, do Estado da ordem pública para o Estado promotor do bem-estar social. A distinção, a dicotomia direito público-direito privado, tem, assim, caráter manifestantemente ideológico.28 O direito privado permanece, portanto, como direito comum das pessoas e da economia, disciplinando as relações jurídicas comuns de ordem pessoal e patrimonial, enquanto o direito público disciplina relações jurídicas especiais e autoritárias, criadas em função de uma atividade dirigida a fins de interesse geral. 9. Normas privadas e normas públicas. As normas de direito privado, quanto à sua fonte de produção, vale dizer, quanto ao poder que as cria, dividem-se em normas privadas e normas públicas. As primeiras são produto da autonomia privada, poder que os particulares têm de estabelecer por si só, embora respeitando os critérios de sua validade e eficácia, estabelecidos por normas públicas superiores (como as que estabelecem os elementos e requisitos do ato jurídico), as regras disciplinadoras de sua própria atividade, de seus interesses. A autonomia privada é a mais importante manifestação do princípio da liberdade jurídica, um dos princípios fundamentais do direito civil. Seu instrumento de realização é o negócio jurídico. As normas privadas são autônomas no sentido de que são os próprios particulares, interessados, que as estabelecem.29 As normas públicas, ou heterônomas, são as que se contêm nas leis, elaboradas pelos órgãos legislativos competentes para a disciplina e organização da vida em sociedade, como as de organização e funcionamento das pessoas jurídicas de direito privado. Normas privadas e normas públicas não se confundem com normas de direito privado e normas de direito público pelos critérios já apontados. Além disso, as normas privadas são, geralmente, individuais e concretas como as que nascem dos contratos, enquanto as normas públicas são gerais e abstratas como as contidas nas leis. 10. Normas gerais e normas singulares. As normas gerais prevêem, como agente da ação prevista na hipótese de fato, uma classe de sujeitos (por exemplo, o art. 186 do Código Civil refere-se à generalidade das pessoas), enquanto as normas singulares indicam determinadas pessoas, como ocorre nas autorizações, nas concessões, nos privilégios, nas sentenças, nos tratados internacionais, nos contratos. As normas de direito singular não devem produzir outros efeitos além dos que especificamente visados. As normas singulares podem ser privadas e públicas, conforme derivem da vontade particular (contratos, testamentos), ou da atividade das autoridades (decisões judiciais e administrativas). 11. Normas abstratas e normas concretas. As normas abstratas são as que prevêem, como hipótese de aplicação, uma categoria de fatos (por exemplo, o ato ilícito, em -------------26 Gérard Farjat. Droit économique, p. 143. 27 Galgano, op. cit., p. 123. 28 Bobbio, op. cit., p. 154; Stefano Rodotà. H diritto privato nella società moderna, p. 9. 29 Miguel Reale, op. cit. p. 137 e 179.;Manuel Garcia Amigo, op. cit., p. 58. O Código de Processo Civil referia-se expressamente, no art. 1.100, V, a normas contratuais, na matéria referente ao juízo arbitrai, hoje revogada pela lei da arbitragem (Lei 9.307, de 23.9.96). -------------geral CC, art. 186). São universais com respeito à ação. Normas concretas são as que prevêem um determinado fato (compra e venda de objeto determinado).30 É no campo do direito civil que se encontram, por excelência, as normas jurídicas individuais e concretas, como as que nascem, por exemplo, dos negócios jurídicos. 12. Normas rígidas e normas elásticas. Normas rígidas são aquelas em que a hipótese de fato é bem determinada pelo legislador, não permitindo maior amplitude na apreciação dos fatos e na determinação de suas conseqüências, como ocorre, por exemplo, com o que se dispõe sobre o estado e a capacidade das pessoas (CC, arts. 32 e 42), os prazos de prescrição (CC, art. 206), a fixação dos juros de mora (CC, art. 591) Quando a lei estabelece os requisitos do testamento (CC, arts. 1.864, 1.868, 1.876), a validade desse ato depende da estreita observância dessas disposições legais. Normas elásticas são as que permitem maior liberdade ao intérprete na avaliação dos fatos, por utilizarem conceitos de conteúdo variável, como os de eqüidade, dolo, culpa, fraude, boa-fé, ilicitude, ordem pública, bons costumes, diligência de bom pai de família, abuso de direito, justo preço, justa indenização etc. São os chamados standards jurídicos ou conceitos em branco, que servem para adequar a generalidade da norma à singularidade dos casos distintos e individuais.31 13. Normas cogentes e normas não-cogentes. As normas cogentes são as que se impõem de modo absoluto, não sendo possível a sua derrogação pela vontade das partes. São imperativas (determinam uma ação) ou proibitivas (impõem uma abstenção). Regulam matéria de ordem pública e de bons costumes, entendendo-se como ordem pública o conjunto de normas que reguiam os interesses fundamentais do Estado ou que estabelecem, no direito privado, as bases jurídicas da ordem econômica ou social.32 A ordem pública compreende o que é indispensável à organização social, isto é, as normas referentes à liberdade e à igualdade dos cidadãos, ao direito de associação, à liberdade de trabalho, à responsabilidade civil, ao estado e capacidade das pessoas, aos efeitos do casamento, ao pátrio poder, à proteção dos incapazes, à obrigação alimentar, ao estado civil, à propriedade, às sucessões, à proibição de anatocismo, à prescrição e decadência. Ordem pública não se confunde com direito público. Bons costumes são o aspecto moral da ordem pública, são o conjunto de regras morais de um povo. As normas não-cogentes, ou permissivas, são aquelas que permitem o livre exercício da vontade individual na disciplina dos interesses particulares. Distinguem-se em dispositivas, quando permitem que os sujeitos disponham como lhes aprouver, e supletivas, quando se aplicam na falta de regulamentação privada, preenchendo, no exercício de uma função integradora as lacunas por ela deixadas. As normas cogentes predominam, em matéria privada, no direito de família, no das sucessões e nos direitos reais. As normas supletivas aplicam-se, principalmente, no campo das obrigações, na ausência de manifestação de vontade das partes. As normas cogentes aplicam-se em qualquer hipótese, enquanto que as não-cogentes só se aplicam na ausência da regulamentação privada. A distinção das normas em cogentes e não-cogentes baseia-se, portanto, na eficácia da vontade particular em face das normas jurídicas que emanam do Estado, tendo grande importância nos países de direito codificado, pois não existem nos países de Common Law. Importância prática dessa distinção está no fato de que a manifestação da vontade privada contrária à norma cogente é nula, não produzindo efeitos, em princípio. Também os direitos reconhecidos pelas normas imperativas são, no mais das vezes, irrenunciáveis, por exemplo, os efeitos do casamento (CC, art. 1.566), o direito a alimentos (CC, art. 1.694). Poderíamos ainda referirmo-nos à norma semi-imperativa, própria da legislação de direito social, a qual, para proteger a parte considerada mais fraca no contrato, estabelece a sua inderrogabili-clade, salvo no caso de beneficiar essa parte, como se encontra na lei do inquilinato e na legislação trabalhista.33 14. Normas interpretativas e normas integrativas. As normas interpretativas estabelecem os critérios a seguir na pesquisa do sentido da norma (CC, art. 112) ou fixam-lhe previamente o sentido. Normas integrativas são as que se compõem com outras normas, preenchendo-lhes as lacunas. Por exemplo, nos contratos, deixando os contratantes de fixar o local de pagamento, aplica-se a norma do art. 327 do Código Civil, que dispõe: "Efe-tuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente, ou se contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias." 15. Normas perfeitas e normas imperfeitas. Quanto à sanção, a norma pode ser perfeita, mais-que perfeita, menos-que-perfeita e imperfeita (lex perfecta, lexplus quam perfecta, lex minus quam perfecta, lex imperfecta). A norma perfeita estabelece, como sanção, a inexistência ou a nulidade do ato (exemplos: CC, arts. 1.548, 1.749); a mais-que-perfeita estabelece duas sanções, como, por exemplo, a Lei n2 5.478, de 25.07.68 (Lei de Alimentos), no art. 19 e seu § l2. A menos-que-perfeita estabelece sanção diversa da nulidade, permitindo a eficácia do ato (CC, art. 1.641). A imperfeita não tem sanção (ex.: obrigação natural aquela em que o credor não dispõe de ação para compelir o devedor ao pagamento), sendo mais freqüente no direito público, nas leis de organização e no direito internacional. 16. Normas de direito comum, normas de direito especial e normas de direito excepcional. Relativamente aos princípios do sistema jurídico, as normas ainda se dividem em comuns, especiais e excepcionais. Normas comuns ou gerais são as que se aplicam a um determinado sistema de relações, como as de direito privado. Normas especiais, as que se aplicam a certas relações jurídicas de direito comum, regulando-as diversamente, como ocorre com as de direito comercial ou da previdência social. O direito especial afasta-se das regras de direito comum e destina-se a classes especiais de pessoas, coisas e relações. Enquanto o direito comum destina-se a regular a realidade jurídica e social considerada em sua totalidade, o direito especial forma-se de normas que se destinam a determinadas relações. São normas especiais as que formam o Código Comercial, a lei dos registros públicos, a lei do condomínio, a lei do inquilinato, a lei da propriedade intelectual etc. Direito comum e direito especial não são contrários. Este desenvolve os princípios daquele, sendo o direito comum supletivo do especial. O direito civil, por exemplo, é o direito privado comum, supletivo do comercial, que é direito especial. O direito excepcional aparece como contrário aos princípios que informam o sistema jurídico. Suas normas regulam de modo diverso ao estabelecido no direito comum, fatos ou relações jurídicas que, por sua natureza, estariam nele compreendidos. O direito excepcional não produz mais efeitos do que os estabelecidos na lei, não admitindo, por isso, interpretação extensiva nem aplicação por analogia. São exemplos de normas excepcionais as que consagram a responsabilidade civil objetiva, contrariamente ao princípio geral e secular da culpa, e as que se inserem no CC, arts. 1.647, 1.749, 497. 17. Fontes das normas jurídicas ou fontes de direito. A compreensão da natureza e eficácia das normas jurídicas pressupõe o conhecimento da sua origem ou fonte, isto é, dos mecanismos institucionais que fixam o modo como se produzem e manifestam as regras de direito. E uma questão política e sociológica, na medida em que envolve o reconhecimento de um âmbito de poder em que se confrontam grupos sociais diversos, na defesa de seus interesses. A expressão fonte de direito tanto significa o poder de criar normas jurídicas quanto a forma de expressão dessas normas. No primeiro caso, as fontes dizem-se de produção e, segundo a estrutura ------------30 V. nota 11. 31 Gerd Willi Rothmann. Standard jurídico, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 70. pp. 487/501. 32 Henri de Page. Traité élémentaire de droit civil belge, I. p.s Ghestin. Traité de droit civil, La formation du contrai, p. 104. 33 Cfr. Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, que dispõe sobre a locação dos imóveis urbanos. ------------de poder que representam, são o poder legislativo, o poder judiciário, o poder social (os usos e costumes) e o poder dos particulares. A fonte de direito consiste assim em um ato de vontade, da sociedade, por seus poderes de natureza executiva, legislativa e judiciária, ou de grupos sociais ou instituições, ou até dos próprios indivíduos no exercício de um poder que lhes é reconhecido pela ordem jurídica, que é a chamada autonomia privada.34 Em todos esses poderes existe um fator comum, que é a vontade, social ou individual, exercitável na forma e nos limites que o sistema jurídico estabelece, obedecendo à escala de competências instituídas, e também a uma identidade de propósitos, que é a eficácia jurídica, a produção de efeitos jurídicos. É por isso que a doutrina realista de Duguit, Jéze, Bonnard, unifica as diversas fontes de produção jurídica em uma só manifestação, o ato jurídico, distinguindo-o em quatro espécies: ato-regra, ato subjetivo, ato-condição e ato jurisdi-cional, de acordo com a origem da vontade e os efeitos produzidos. O ato-regra é o gênero que reúne todas as espécies de lei, em sentido amplo, a lei, o decreto, as resoluções. O ato subjetivo seria a manifestação de vontade individual, apta a produzir efeitos juridicamente reconhecidos. Constitui a espécie de maior interesse para o direito civil, que estabelece a respectiva disciplina legal de sua existência, validade e eficácia e que tem no negócio jurídico a sua mais relevante espécie. O ato-condição é manifestação de vontade de órgão público ou de particular, destinada a inserir um indivíduo em uma situação jurídica própria, como ocorre, por exemplo, com a naturalização, a nomeação de funcionário público, o casamento, a separação judicial, a admissão de pessoa como empregado.35 O ato jurisdicional compreende as decisões dos juizes e tribunais. No segundo caso, isto é, a idéia de fonte de direito como forma de revelação desse direito, as fontes dizem-se de cognição, constituindo-se no modo de expressão das normas jurídicas, e são a lei, compreendendo a Constituição e suas leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as medidas provisórias, os decretos legislativos e as resoluções (CF, art 59), o estatuto social, o negócio jurídico, o costume, os princípios jurídicos e a sentença judicial. A lei é um conjunto ordenado de regras que se apresenta como um texto escrito. Caracteriza-se por ser estatal, obrigatória, geral e permanente. Estatal, no sentido de ato do Estado, pelo seu poder legislativo; obrigatória, porque se impõe à vontade dos destinatários, que a devem observar e respeitar, sob pena de sanção; geral, porque se dirige a todos e a cada um indeterminadamente; permanente porque dispõe para o futuro, em princípio sem limitações de tempo. A lei é, assim, um ato do poder legislativo que estabelece normas de comportamento social. Para entrar em vigor, deve ser promulgada e publicada no Diário Oficial. Em matéria de direito civil, a lei básica, geral, é o Código Civil, que se complementa com leis e decretos de natureza especial, referentes a institutos que, por sua importância, têm merecido particular atenção do legislador, como a locação, o parcelamento do solo urbano, o condomínio, os direitos autorais, a separação judicial e o divórcio, os registros públicos etc. A autonomia privada é o poder que a pessoa tem de regular seus interesses, estabelecendo as normas de seu próprio comportamento. Seu instrumento é o negócio jurídico, declaração de vontade destinada a produzir efeitos que os declarantes pretendem e o direito protege.36 O negócio jurídico é, assim, modo de expressão das regras jurídicas criadas pela vontade dos particulares. Suas normas têm as mesmas características das que emanam do Estado, a saber, a bila-teralidade e a coatividade. No mais das vezes, são individuais e concretas (eventualmente gerais e abstratas, como o estatuto das grandes associações, empresas, clubes etc.). Do mesmo modo que as estatais, as normas particulares estabelecem direitos e deveres (bilateralidade), apresentam-se como juízos hipotéticos (abstração) e estabelecem sanções (coatividade). O poder judiciário realiza o direito nos casos concretos, solucionando os conflitos de interesses e concretizando a justiça. Por meio de suas decisões, as sentenças, estabelecem normas individuais e concretas. A reiteração desses julgados no mesmo sentido, criando uma orientação geral para os tribunais, forma a jurisprudência. --------------34 Miguel Reale. Lições Preliminares de Direito, p. 141 e O Direito como Experiência, p. 167 e segs. "Fontes do direito é uma expressão metafórica devida a Cícero (De Legibus I, 5-6) e utilizada com maior insistência a partir do século XVI", Castabheira Neves in Digesta, volume 2°, p. 9 35 Caio Mário da Silva Pereira, op. cit., n2 9; Orlando Gomes, op. cit., n£ 34. 36 Do Autor. A autonomia privada como poder jurídico, in Estudos Jurídicos em Homenagem ao Professor Caio Mário da Silva Pereira, pp. 286-313. --------------As fontes do direito civil brasileiro são assim, basicamente, o Código Civil e a legislação complementar, os negócios jurídicos, as decisões que formam a jurisprudência uniforme, expressa nas súmulas, e os costumes. Quanto a estes o próprio Código permite a sua aplicação em determinadas matérias (arts. 1.297, § 1°, 372, 569, II, 596, 597, 615, 965, I), como também dispõe a Lei de Introdução ao Código Civil, art. 4°. Há que se considerar, porém, a incidência da Constituição no direito civil. O Código Civil, por força das transformações políticas, jurídicas e sociais que vêem marcando a sociedade contemporânea, perdeu a posição central que ocupava no sistema de fontes do direito moderno em favor da Constituição Federal, que passou a ser a fonte suprema do processo de criação e de cognição jurídica. A Constituição incorporou ao seu texto os valores, princípios e institutos básicos do direito civil, como a liberdade, a segurança, a igualdade (no Preâmbulo), a dignidade humana e a livre iniciativa (no seu art. l2), os direitos da personalidade (art. 52, X, XI, XII, XIIX), o direito de propriedade (art. XXII], o direito da herança (art. 5°, XXX), a proteção à família (arts. 203 e 226), dotados, não obstante o seu caráter prograrnático, própria de sua naureza constitucional, de eficácia imediata e direta. A constitucionalização desses princípios e institutos de direito civil deu azo à defesa de um novel Direito Civil Constitucional,37 que é materialmente direito civil e formalmente direito constitucional, sistematizado em três blocos, o direito civil constitucional da pessoa, o da família e o do patrimônio. Em face disso, pode reconhecer-se que as normas constitucionais têm uma função de produção jurídica e de transformação dos institutos tradicionais do direito civil38 e devem constituir o ponto de partida para o seu estudo e aplicação, já que, embora dirigidas ao legislador, têm aplicação direta e imediata, pelo menos em matéria de direitos fundamentais (C.F., art. 5°, par. 1°). A aprovação do Código Civil de 2002 (Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002), que incorpora, desenvolve e regulamenta as disposições constitucionais de natureza civil, isto é, os princípios e institutos supra mencionados, permite reconhecer, porém, nesse diploma uma nova posição central do Código Civil no ordenamento jurídico brasileiro, "como lei básica, mas não global, do direito privado", a par das leis especiais vigentes não incluídas na sistemática do código. 18. A realização do direito. O raciocínio jurídico. O direito existe para realizar-se39, o que se obtém por meio de uma série de atos que, em seu conjunto, constitui a realização do direito. A finalidade da lei é permitir a elaboração de uma norma, e é para isso que ela se cria.40 Pensada como simples regra geral, não passa de mera abstração. O direito é geralmente cumprido por seus destinatários. Quando impossível a composição privada dos interesses em conflito, intervém os órgãos qualificados do Estado (juizes e tribunais) que relizam o direito no exercício da chamada função jurisdicional do Estado, ou jurisdição. As normas jurídicas apresentam-se como já assinalado (p. 56) sob a forma de proposições, gerais e abstratas, enquanto que na realidade social surgem problemas especiais e concretos. Torna-se, portanto, necessário estabelecer uma relação lógica entre o preceito e o caso particular, inferindo-se a norma adequada à solução do problema. A realização do direito é, assim, um processo técnico de elaboração, a partir do sistema jurídico, da norma adequada ao problema concreto. Para a perspectiva normativista e lógico-formal do direito, a realização deste consiste em uma atividade lógica, a subsunção do caso concreto da vida à lei, por meio de um silogismo em que a premissa maior é a regra, a menor é o fato e a conclusão, a sentença do juiz. A realização do direito seria, assim, o procedimento técnico com que se conectam os fatos concretos da vida real com a regra jurídica adequada à solução do problema. Como diz Larenz, o direito só se realiza quando aplicado ao caso e convertido em sentença.41 Acerca de tal matéria confrontam-se duas concepções teóricas. Para a teoria clássica, própria do modelo de interpretação jurídica surgido com a Revolução Francesa, distingue-se a criação da aplicação do direito. A primeira seria da competência do poder legislativo, a segunda, do poder judiciário, que utilizaria um procedimento lógico de subsunção, um silogismo no qual a premissa maior seria a regra legal, e a premissa menor, o^fato fixado pelo juiz ou intérprete. A conclusão seria automática. E a posição do formalismo jurídico. O juiz seria apenas a boca que pronunciasse as palavras da lei. Para outra teoria, contemporânea, mais desenvolvida e adotada nos países de Commom Law, inexiste oposição entre criação e aplicação do direito. Esta seria necessariamente uma criação jurídica ou judiciária, de acordo com os textos legais. A realização do direito pressupõe o raciocínio jurídico, pois é por meio deste que aquela se realiza. Podemos definir o raciocínio como a operação intelectual pela qual passamos de uma coisa conhecida para outra desconhecida. Consiste em um processo por meio do qual de uns juízos ou proposições (antecedentes, premissas) dadas, inferimos outro juízo (conclusão). O raciocínio pode ser dedutivo e indutivo. O raciocínio dedutivo é aquele em que se parte de juízos gerais ou universais para descobrir outros mais particulares ou individuais. Seu instrumento técnico é o silogismo, que se exprime ou manifesta pelo argumento, utilizado no diálogo ou no debate jurídico para convencer. A arte do diálogo chama-se dialética. O raciocínio indutivo ou empírico é aquele que se desenvolve a partir do conhecimento das coisas, fatos ou fenômenos, para alcançar os princípios ou construir teorias. Liga-se às práticas jurídicas de natureza sociológica, como as que se verificam, por exemplo, no processo de elaboração das leis ou das regras jurídicas. A contraposição entre os raciocínios dedutivo e indutivo, na determinação do direito, não tem hoje, porém, maior sentido, em face do pluralismo metodológico que domina a ciência jurídica atual. Nos casos de realização do direito, o raciocínio dedutivo desenvolve-se por meio do silogismo jurídico, que permite passar da norma geral e abstrata ao caso individual e concreto. O conhecimento da estrutura da norma jurídica ajuda a compreender o seu mecanismo de aplicação, que consiste, basicamente, no seguinte: a) verificando-se determinado fato, por exemplo, um atropelamento, um acidente, uma agressão etc., que configure a hipótese de ato ilícito, como descrito no art. 186 do Código Civil (ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, de que resulte dano); b) surge determinada conseqüência, que é a obrigação de reparar esse dano. Esse esquema lógico caracteriza assim o silogismo jurídico ou judiciário, que é, na sua forma mais simples, um raciocínio de subsunção,42 em que a premissa maior é a questão de direito (a condição de aplicação da regra), a premissa menor é a questão de fato (o caso da vida real), e a conseqüência, o preceito contido no art. 186 referido, como se pode exemplificar: a) aquele que, por ação ou omissão voluntária, ou negligência, ou imprudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano (questão de direito); b) A causou prejuízo a B, na forma do art. 186 (questão de fato); c) A fica obrigado a reparar o dano causado (conseqüência). Para a concepção tradicional, aplicar a norma jurídica seria, portanto, transportar para o caso particular a decisão que o dispositivo contém em abstrato, o que depende de se verificar a circunstância para a qual o legislador criou a norma.43 Aplicar o direito seria, assim, encaixar o caso da vida real na hipótese, no figurino, na ---------37 Cf. Maria Celina Bodin de Moraes, A caminho de um direito civil constitucional, in Direito, Estado e Sociedade, n° l, 1991, p. 59 e segs. 38 Pietro Perlingieri, H diritto civile nella legalità costituzionale, p. 189 e segs.; Joaquim Arce y Flórez-Valdés, El derecho civil constitucional, p. 173 e segs. Guido Alpa. Introduzione alio studio crítico dei diritto privato, p. 10. 39 Rudolf von Ihering, Uesprit du droit romain, Tome Troisième, p. 17. 40 Paul Orianne, in Xavier a Interessen jurisprudenz, apud Menezes Cordeiro. Da Boa-Fé no Direito Civil, p. 360. 42 Larenz, op. cit., p. 279, para quem subsunção é o "silogismo de determinação da conseqüência jurídica", que se traduz na "passagem mecância, passiva, do fato para a previsão normativa, de modo a integrar a premissa menor do silogismo judiciário"; Ludwig Enneccerus-Hans Carl Nipperdey, Allgemeiner Teil dês Bür-gerlichen Rechts, p. 191. Todavia, "a vida é tão complicada que não é possível, apenas pela subsunção, resolver todos os problemas que apareçam. Em duas situações a subsunção torna-se-ia impossível: quando o legislador utilize expressões gerais, corno boa-fé, bons costumes ou fundamento importante, e quando a ordem jurídica compreenda, em uma área carecida de regulamentação, uma lacuna", Philip Heck Begriffsbildung una Interessen jurisprudenz, apud Menezes Cordeiro. Da Boa-Fé no Direito Civil, p. 360. 43 Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 6. ---------previsão que a norma contém, o que se faz por meio de uma série de medidas que em conjunto caracterizam a técnica jurídica.44 Este processo decorre do entendimento de que qualquer problema jurídico apresenta uma questão de fato (quaestio facti), que é um acontecimento da vida real, por exemplo, um acidente, o descumprimento de um contrato, uma infração dos deveres conjugais, um desrespeito à propriedade etc., e uma questão de direito (quaestio iuris), que consiste no problema de se escolher a norma jurídica aplicável ao caso. Na primeira, indaga-se o que e como efetivamente aconteceu, e, na segunda, qual a norma adequada à solução do problema e como aplicá-la. Na primeira fase fixam-se os fatos que constituem o fato concreto, por meio de um relato. Diz-se, por isso, que todo caso jurídico é uma história que se conta ao advogado, ao promotor, ao juiz, ao jurista enfim.45 Aplicar a norma jurídica é, assim, enquadrar o fato concreto na hipótese legal (Tatbestand, fattispecie), o que se chama de qualificação, do que logicamente decorre a conseqüência jurídica. Transporta-se para o caso particular a decisão que abstratamente a norma contém. Deve advertir-se, porém, que essa operação lógica, o silogismo de subsunção, funciona apenas nas questões mais simples, em que se pode facilmente precisar a questão de fato e a questão de direito, combinando-se em um simples raciocínio de lógica formal. A concepção silogística do raciocínio jurídico serve apenas para as exposições mais elementares: por exemplo, se o art. 5- do Código Civil dispõe que a maioridade se atinge aos dezoito anos completos, e Antônio completou essa idade, essa pessoa é, logicamente, maior de idade. É muito raro, porém, que o raciocínio jurídico possa conduzir-se, assim, de modo tão simples, como nas demonstrações mate-máticas.40 Predomina, hoje, o pluralismo metodológico, (diferentes métodos de raciocínio jurídico) segundo o qual, no raciocínio da determinação do direito, conjugar-se-iam as diversas dimensões das normas, a jurídica (validade), a sociológica (eficácia) e a filosófica (legitimidade), em uma "dialética concreta de dedução-indução, isto é, uma dialética entre a norma, o fato-social e o valor.47 Contesta-se, assim, a concepção tradicional segundo a qual "existe ao nosso dispor uma ordem jurídica pronta e acabada, e que o juiz não teria mais do que aplicar ao caso concreto, para dela deduzir, por subsunção, a decisão concreta". 19. Crítica ao silogismo de subsunção. O raciocínio jurídico não costuma ser assim tão simples, (se B é C e A é B, logo A é C), pois a vida real é muito mais complexa do que o direito pode prever, exigindo uma lógica específica, a chamada lógica dialética ou lógica da argumentação, que opõe ao pensamento baseado na idéia de sistema o pensamento problemático, ou tópica, que é uma técnica de pensamento por problemas. Contesta-se, assim, que a sentença seja um mero silogismo.48 O raciocínio dedutivo da lógica jurídica tradicional nasce com o positivismo, que acentuou o aspecto sistemático e o pensamento axiomático-dedutivo do direito no raciocínio judicial.49 "As regras de direito seriam deduzidas dos princípios gerais dos sistemas jurí-------------44 Entende-se tradicionalmente como técnica jurídica o conjunto de meios e de procedimentos que tornam possível a realização do direito em casos concretos. As questões preliminares e fundamentais que enfrenta são: a interpretação, a integração e a vigência temporal e espacial das normas jurídicas. Cfr. Paulo Nader, op. cit. p. 261 e Garcia Maynez, Introduccion ai estúdio dei derecho, p. 317. Czaba Varga, Tecnique juridique in Dictionnaire enciclopédique de théorie et de socio-logie du droit, p. 605. 45 Diez-Picazo, op. cit., p. 215. Para uma crítica à distinção questio facti — questio iuris, cfr. Castanheira Neves, Questão de Facto — Questão de Direito, ou o O Problema Metodológico da Juridicidade, Coimbra, Levraria Almedina, 1967. 46 Moacyr Amaral Santos. Comentários ao Código Civil de Processo Civil, vol. IV, p. 458. Binder, apud Larenz, p. 133; Jacques Ghestin et Giles Goubeaux. Traitê de droit civil, introduction generale, p. 39 e segs.; João Batista Machado. Prefácio a Karl Engish, op. cit., p. 11; Chaim Perelman. Logique juridique, p. 17. 47 Miguel Reale, Fontes e Modelos do Direito, p. 108 e segs. Elias Diaz, op. cit., p. 124. 48 Wilson de Souza Campos Batalha, op. cit. p. 318. 49 Jacques Ghestin, op. cit., p. 25. Atribui-se a Kant a teoria da aplicação do direito por meio da subsunção do caso concreto da vida à norma jurídica, por meio do silogismo, cuja premissa maior é a lei, a menor o fato, e a conclusão, a sentença judicial. A realização do direito é, porém, operação muito mais complexa. José Castan Tobenas. Teoria de Ia aplicacion y investigación dei derecho, pp. 12/13; José Luiz de los Mozos. Derecho civil espanol, I, p. 543; Luiz Fernando Coelho. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis, 1981. -------------clicos e as decisões judiciárias seriam deduzidas das regras jurídicas por uma série de silogismos sucessivos." Os abusos e os limites da lógica formal, denunciados, porém, desde o começo do século por Geny, levaram à tendência, hoje dominante, de ver no raciocínio jurídico um produto da lógica dialética ou da argumentação, em que a lógica é utilizada, não para demonstrar, mas para convencer. A lógica desempenha, assim, importante papel na decisão judiciária, que surge como produto de um raciocínio, permitindo conhecer como o juiz chega à sua decisão.50 Na lógica jurídica a lógica formal é útil mas não é absoluta, pois a aplicação do direito e a passagem da regra abstrata ao caso concreto não é um simples processo dedutivo, senão uma adaptação constante das disposições legais aos valores em conflito na controvérsia judicial, razão por que se constata a presença de fatores irracionais no raciocínio jurídico e se afirma serem "escolhas ideológicas fundamentais que determinam não somente a legislação mas também sua aplicação às situações particulares".51 Em conclusão, a tendência atual, embora reconheça a importância da lógica formal no raciocínio jurídico, é para combater "a concepção mecânica do silogismo", aceitando a contribuição da lógica dialética ou lógica de argumentação, que contesta uma aplicação rígida e inflexível das leis, respeitando a dupla exigência do direito, uma de ordem sistemática, que é a criação de uma ordem coerente e unitária, e outra de ordem pragmática, que é a busca de soluções ideologicamente aceitáveis e socialmente justas.52 20. Interpretação da norma jurídica. A complexidade da vida social e a necessidade de sua disciplina e organização fazem com que o direito seja constantemente realizado pelas pessoas nos atos de sua existência diária, prevenindo ou solucionando conflitos, ou organizando sua própria vida, aplicação essa de modo imperceptível e até inconsciente. É, porém, na solução das controvérsias que a atuação do direito se faz presente de modo mais evidente. E o advogado, o juiz, o promotor, o defensor, enfim, o interessado na realização do direito terá de criar a norma ou as normas jurídicas para o caso concreto. Tal escolha pressupõe conhecer o sentido e o alcance da norma jurídica adequada, que se apresenta em uma ou várias proposições lingüísticas, cujo texto pode comportar vários significados. A atividade que se desenvolve para compreender-se o exato significado da norma legal escolhida chama-se interpretação.53 Interpretar é descobrir o sentido e o alcance da regra jurídica. Com o termo sentido, queremos nos referir ao significado dos conceitos, das fórmulas verbais constantes da norma, e com o termo alcance, queremos dizer o âmbito de aplicação, a extensão, os casos individuais abrangidos pelo conceito.54 Para realizar-se o direito é necessária prévia interpretação de suas normas, pois sua concretização depende do seu exato sentido e significado. Aplicar e interpretar o direito são atividades de íntima conexão, pois só pode ser aplicado o que é compreendido. É por isso que se considera a interpretação o problema central da metodologia jurídica, não tendo mais sentido a tese de sua exclusão quando o texto for claro e inequívoco (in claris nonfit interpretatio). A determinação do direito exige sempre interpretação. Sendo a matéria tão importante, foi necessário estabelecerem-se critérios orientadores da atividade do intérprete, garantindo uma certa uniformidade nas soluções, indispensável à segurança jurídica. A ciência que estuda e sistematiza os processos interpretativos chama-se hermenêutica jurídica.55 O problema da interpretação "reflete a concepção fundamental do direito de cada época e pressupõe o contexto cultural" em que o direito se situa.56 Seu objeto (o que se interpreta) é não só o ------------50 Ghestin, op. cit, p. 43. 51 Perelman, op. cit., pp. 114, 115, 129 e 228. 52 Lei de Introdução ao Código Civil, art. 52. 53 Interpretar, de inter e pars, entre as partes. Intérprete é o que se põe entre as partes para facilitar o entendimento. José Puig Brutau, op. cit., p. 302 e segs. A concepção tradicional, que vê a interpretação jurídica como um simples processo semântico, passa hoje por uma radical revisão, no sentido de considerá-la não mais como simples análise de textos legais, mas como decisivo ato de criação normativa. Cfr. Castanheira Neves, O Atual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica, I, p. 6 e segs. 54 Engish, op. cit., p. 99. 55 Carlos Maximiliano. Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, p. 9: Rubens Limongi França. Formas e Aplicação do Direito Positivo, p. 41. 56 Castanheira Neves, Interpretação jurídica, in Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. 3. p. 651. ------------texto da lei, como a doutrina tradicional defendia, e era próprio do positivismo jurídico, mas principalmente a regra que esse texto contém. Mas seu objetivo (o fim que, com a interpretação, se procura alcançar) suscita três orientações distintas, a da interpretação subjetiva, a da interpretação objetiva e a da livre pesquisa do direito. Para os adeptos da interpretação subjetiva, historicamente a primeira, o que se pesquisa é a vontade do legislador (voluntas legislatoris] expressa na lei. Sendo esta uma obra do poder legislativo, o sentido é o que o autor pretendeu dar-lhe.57 Nesse caso, teriam grande importância os trabalhos preliminares à promulgação da lei. Tal concepção tem graves inconvenientes. Quando a norma aplicável é antiga, conservada pela tradição, a vontade do legislador originário está, normalmente, superada. Quando o legislador da norma é um colegiado, o Congresso Nacional, por exemplo, a vontade do legislador é uma ficção. Para os seguidores da interpretação objetiva, cada vez mais aceita, não é a vontade do legislador que se visa, mas a vontade da lei (voluntas legis]. Na verdade, não a vontade, pois a lei não tem vontade, mas o sentido da norma. A lei, promulgada, separa-se de seu autor e alcança uma existência objetiva.58 Para outra concepção, a da escola da livre pesquisa do direito (Freirecht), o juiz deve ter função criadora na aplicação da norma, que deve ser interpretada em função das concepções jurídicas, morais e sociais de cada época.59 A interpretação jurídica é uma atividade criadora da norma, critério ou diretiva para a solução do caso. O trabalho do jurista, dirigido à solução de problemas concretos, não é uma tarefa mecânica, mas um raciocínio prático vinculado a um marco normativo.60 A interpretação jurídica não é, assim, de natureza hermenêutica, mas sim normativa. 21. Espécies de interpretação. A interpretação pode classificar-se em várias espécies, de acordo com os agentes e os elementos que utiliza, segundo o modelo tradicional elaborado por Savigny. Quanto aos agentes da interpretação, ela se diz autêntica, se realizada pelo próprio legislador, o que é raro; judicial, quando feita pelos tribunais; e doutrinária, se feita pelos cientistas do direito. As duas primeiras têm caráter oficial. Quanto aos elementos de que se utiliza, a interpretação pode ser gramatical, lógica, sistemática, histórica e teleológica. Interpretação gramatical ou literal é a que se processa apenas no campo lingüístico, procurando o sentido e o alcance das palavras, dos conceitos da norma. Seria a primeira fase do processo interpre-tativo. A interpretação lógica utiliza as regras do raciocínio para compreender o significado da norma, procurando a coerência, a conexão com outros preceitos. Com ela afasta-se a interpretação que leva a um "resultado contraditório" com o disposto em outras normas. Diretamente ligado à interpretação lógica temos a interpretação sistemática, com que se relaciona a norma visada com as que compõem o mesmo instituto jurídico, levando-se em conta o contexto legal em que a norma se inscreve, considerando-se o livro, o título, o capítulo, a seção, o parágrafo. Nesse sentido, diz-se que as palavras da lei devem relacionar-se com o contexto em que se situam, pelo que muitos juristas preferem denominá-la de interpretação lógico-sistemática.61 A interpretação histórica vê a norma na dimensão temporal em que ela se formou, pesquisando a occasio legis, as circunstâncias que presidiram à sua elaboração, de ordem econômica, política e social, o que se reflete particularmente no direito civil, um direito de formação histórica e jurisprudência!, profundamente influenciado por tais elementos. ----------57 É a teoria da escola tradicional, a Escola da Exegese, para a qual o direito está todo na lei escrita, cabendo ao jurista extraí-lo pesquisando a vontade do legislador. Cf. Jacques Ghestin et Gilles Goubeaux, op. cit., p. 108. É a escola de Savigny, Windscheid, Regelsberg, Enneccerus. 58 Diez-Picazo, op. cit., p. 185. 59 Ghestin, op. cit., p. 115; Castanheira Neves, op. cit., p. 682. Hoje em dia, "toda interpretação jurídica é de natureza teleológica (finalística), fundada na consistência axiológica (valorativaj do direito". Reale, op. cit., p. 293. 60 Ricardo Guastini, in Interprétation et Droit, p. 101. 61 Castan Tobenas, op. cit., p. 247; Miguel Reale, op. cit., p. 375; Engish, op. cit., p. 111. Exemplos de interpretação lógico-sistemática estão nas afirmações tradicionais de que "a lei que permite o mais, permite o menos; a que proíbe o menos proíbe o mais; a que permite o fim, permite os meios necessários à sua consecução; a que proíbe os fins, proíbe os meios que necessariamente a eles conduzem; a que permite os meios, permite os fins a que eles necessariamente conduzem"; Tércio Sampaio Ferraz Jr., op. cit., p. 262. ----------Temos ainda a interpretação teleológica, que investiga a finalidade social da lei, isto é, os interesses predominantes ou os valores que, com ela, se pretende realizar: a justiça, a segurança, o bem comum, a liberdade, a igualdade, a paz social, como aliás dispõe o art. 52 da Lei de Introdução ao Código Civil. Tais processos, indissociáveis, são, porém, gradativos. O intérprete procura, inicialmente, compreender o significado das palavras que formam o enunciado da proposição, dando-lhe sentido jurídico, não vulgar. Se necessário, passa à pesquisa do espírito da lei, identificando a relação de autonomia ou subordinação com as diversas normas do mesmo ordenamento. Aplica as regras da lógica jurídica, recusando a interpretação que leve a resultado contrário a outras normas ou ao próprio sistema, ou que conduza à conseqüência absurda, levando em conta o contexto histórico de sua elaboração e os fins sociais a que se destina. Quanto aos resultados, a interpretação é declarativa, extensiva e restritiva. Interpretação declarativa é aquela em que o texto legal corresponde ou coincide com a mens legis, o espírito da lei. Interpretação extensiva, ou ampliativa, quando a fórmula legal, a letra, é menos ampla que o espírito, a mens legis. Interpretação restritiva, quando a letra da lei é mais ampla que o espírito, o sentido da norma.52 As regras jurídicas de direito excepcional, as que impõem sanções ou concedem privilégios, as limitadoras da capacidade, não são suscetíveis de interpretação extensiva, exigindo, de regra, uma restritiva. A interpretação declarativa ainda se diz estrita ou lata, conforme dê sentido limitado ou amplo à expressão que tem vários significados. Por exemplo, o parentesco pode significar apenas consangüinidade, como também abranger a afinidade e a adoção (Código Civil, art. 1.591 e segs.) em uma concepção lata. A interpretação extensiva e a restritiva implicam uma correção do texto legal para modificar-lhe o alcance, ampliando-o ou restringindo-o. Alguns critérios interpretativos têm sido tradicionalmente observados pela doutrina e jurisprudência.63 22. A interpretação no Código Civil brasileiro. O Código Civil brasileiro não dispõe de normas gerais sobre a interpretação legal, contendo disposições apenas quanto à interpretação das normas decorrentes da autonomia privada (arts. 112, 114 e 1.899), com o predomínio de critérios objetivos, pois dispõe no art. 112, que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem. Tratando-se de testamento, prevalece o critério subjetivo (art. 1.899)." Ainda em matéria de autonomia privada dispões o Código que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração (CC. art. 113). A Lei de Introdução ao Código Civil dispõe, todavia, como já referido, no art. 5- o seguinte: "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais do direito e às exigências do bem comum". Não obstante a referência à aplicação, tal dispositivo compreende também a interpretação, inserida esta no conjunto de processos pelos quais o direito se aplica. Consigna-se, então, de modo expresso, o recurso ao critério teológico, ao referirse o dispositivo aos fins sociais do direito e às exigências do bem comum, valores que o legislador considerou primordiais e que representam o predomínio do social sobre o individual. -------------62 Exemplo de interpretação ampliativa é a do art. 1.911 do Código Civil, em que a cláusula de inalienabilidade compreende também a incomunicabilidade e a impenhorabilidade (CPC, art. 649-1). Nela se pode utilizar o argumento a fortiori, segundo o qual quem pode fazer o mais, pode fazer o menos. Exemplo de interpretação restritiva é a que se faz no caso do art. 1.700 do Código Civil, em que a obrigação de prestar alimentos refere-se apenas a decorrente vínculo de parentesco (CC, art. 1.694), ou ainda no caso do art. 932, I, quando por filhos menores se deve entender os menores de 16 anos. 63 a) na interpretação deve sempre preferir-se a inteligência que faz sentido à que não faz: b) deve preferir-se a inteligência que melhor atenda à tradição do direito: c) deve ser afastada a exegese que conduza ao vago, ao inexplicável, ao contraditório e ao absurdo: d) há de se ter em vista o quod plerumque fit, isto é aquilo que ordinariamente sucede no meio social: e) onde a lei não distingue, o intérprete não deve igualmente distinguir: f) todas as leis excepcionais ou especiais devem ser interpretadas restritivamente: g) tratando-se, porém de interpretar leis sociais, preciso será temperar o espírito do jurista adicionando-lhe certa dose de espírito social, sob pena de sacrificar-se a verdade à lógica: h) em matéria fiscal a interpretação se fará restritivamente: i) urge se considere o lugar onde estará colocado o dispositivo, cujo sentido deve ser fixado, apud Washington de Barros Monteiro. Curso de Direito Civil. Parte Geral, p. 37. -------------23. Integração da norma jurídica. A analogia e suas espécies. Quando o intérprete não encontra no sistema jurídico a norma aplicável à questão de fato, verifica-se na lacuna um vazio, melhor seria dizer, uma imperfeição ou falta de regra específica. A lacuna é a ausência de norma jurídica adequada ao acaso concreto. E como o juiz não pode eximir-se de proferir decisão quando chamado a intervir (CPC, art. 126),64 constatando esse vazio deve recorrer à integração, processo da técnica jurídica com o qual se preenchem as lacunas mediante a aplicação de outras normas ou dos princípios do sistema jurídico. A própria lei, prevendo a possibilidade de omissão, indica ao juiz o meio de supri-la, prescrevendo o recurso à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito.65 Acerca das lacunas de direito existem duas concepções doutri-natárias: a que reconhece existirem lacunas em todos os sistemas jurídicos, pela impossibilidade de se prever a totalidade das situações de fato que a vida oferece, e a que defende a inexistência de tais vazios, em face da plenitude de ordem jurídica. Se existem lacunas na lei, no direito não podem existir, e por isso, para os juristas que contestam a existência de lacunas, o direito, concebido como sistema, dispõe de princípios gerais dos quais sempre se poderá deduzir uma solução.66 A integração realiza-se pela analogia, que consiste em aplicar a caso não previsto a norma legal concernente a uma hipótese prevista e, por isso mesmo, tipificada.67 Seu fundamento jurídico-filosófico é o princípio da igualdade de tratamento, segundo o qual fatos de igual natureza devem julgar-se de igual maneira, e se um desses fatos já tem no sistema jurídico a sua regra, é essa que se aplica. "Ubi eadem est legis ratio, ibi eadem legis dispositio."68 Há limites, porém, para o recurso à analogia, não podendo aplicar-se analogicamente normas criadas para determinada hipótese excepcional, aos casos que não apresentem tal característica (singularia non sunt extendenda}69 Há duas espécies de analogia: a legal e a jurídica. A primeira consiste em obter a norma adequada à disciplina do caso, de outro dispositivo legal; na segunda, infere-se a norma de todo o sistema jurídico, utilizando-se a doutrina, a jurisprudência e os princípios que disciplinam a matéria semelhante ou até os princípios gerais de direito. Na analogia legal, parte-se de norma jurídica isolada para aplicá-la a casos idênticos. Há uma conexão lógica do particular para o particular. Na analogia jurídica, parte-se de uma pluralidade de normas jurídicas e com base nelas, por indução, chega-se a um princípio aplicável ao caso, não-previsto em nenhuma hipótese legal. A diferença é de grau. São pressupostos da analogia legal: a) o caso deve ser absolutamente não previsto em lei; b) deve existir, pelo menos, um elemento de identidade entre o caso previsto e o não previsto; c) a identidade entre os dois casos deve atender à ratio legis.10 Quanto aos seus limites de aplicabilidade no direito brasileiro, não se admite analogia nas leis penais, salvo na hipótese de beneficiar o réu, nas normas excepcionais e nas fiscais que impõem tributos.71 A analogia difere da interpretação extensiva. A primeira implica no recurso às normas do sistema jurídico, em face da inexistência de norma adequada à solução do caso concreto, enquanto a segunda realiza-se no âmbito de aplicação da mesma norma. Poderíamos dizer -----------------64 Os juizes são os homens condenados a saber o direito que a lei todavia não soube formular. Puig Brutau, op. cit., p. 237. 65 Lei de Introdução ao Código Civil, art. 4°. 66 Wilson de Souza Campos Batalha, op. cit., pp. 407/409; Engish, op. cit., p. 277 e segs.; Larenz, op. cit., pp. 286 a 333; Roberto Vernengo, op. cit., p. 354 e segs.; Carlos Cossio. La plenitud dei Qrdenamiento Jurídico, p. 19 e segs. 67 Carlos Maxmiliano, op. cit., n- 238; Tércio Sampaio Ferraz Jr., Analogia in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 6,p.363; Rubens Limongi França, Aplicação do Direito Positivo, vol. 7, p. 201; Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil, I, p. 53. 68 "Quando se verifica a mesma razão da lei, deve haver a mesma disposição legal." 69 "As leis restritivas de direito e garantias não podem receber ampliação da parte dos intérpretes" — RT 152/666. "Tratando-se de lei excepcional a interpretação de seus dispositivos deve ser a mais restrita possível, no sentido de somente compreender o que especificou de modo positivo. Assim não se lhe pode alargar o âmbito de aplicação dos seus provimentos" — RT 148/42. 70 Maria Helena Diniz, p. 54. Ratio legis é a razão da lei, o seu espírito. Exemplo de aplicação analógica de normas jurídicas: na hipótese de responsabilidade pré-contratual, inexistindo no Código Civil brasileiro disposição expressa, poderão aplica-se os art. 186 e 187 que estabelece a regra básica da responsabilidade civil. 71 Código Tributário Nacional, art. 108, I, § l2. -----------------que, na interpretação extensiva, estende-se a aplicação da norma a casos não previstos na sua fórmula legal mas compreendidos pelo seu espírito, enquanto na analogia, ou aplicação analógica, aplica-se a norma a situações não-compreendidas em seu espírito. Não há, porém, limites, nem solução de continuidade, entre interpretação jurídica e integração. 24. Os costumes e os princípios gerais do direito. Características. Natureza. Validade. Funções. Fontes extralegais do direito são os costumes e os princípios jurídicos. O costume é a prática reiterada e uniforme de um comportamento (elemento material) que gera a convicção de sua obrigatoriedade, a "opinio júris et necessitatis" (elemento psicológico). Difere da lei no fato de que esta nasce de um processo legislativo tendo origem certa e determinada, enquanto o costume tem origem incerta e imprevista. Também quanto à forma, a lei apresenta-se sempre como texto escrito enquanto o costume é direito não-escrito, salvo no caso de sua consolidação, como ocorre, por exemplo, com os usos reconhecidos pelas juntas comerciais. Os princípios jurídicos são pensamentos diretores de uma regulamentação jurídica72. São critérios para a ação e para a constituição de normas e modelos jurídicos. Como diretrizes gerais e básicas, fundamentam e dão unidade a um sistema ou a uma instituição. O direito, como sistema, seria assim um conjunto ordenado segundo princípios. Dado o seu caráter indeterminado, os princípios são de difícil conceituação, donde a necessária referência às suas concretizações, como, por exemplo, o princípio da autonomia privada, o da boa-fé, o da confiança, o do consensualismo, o da força obrigatória do contrato etc. Os princípios diferem dos valores pelo fato destes apresentarem maior grau de generalidade, enquanto aqueles, "por conterem um pensamento jurídico diretor ou condutor", já indicam a direção em que se situará a regra que se há de encontrar. Por exemplo, a Constituição Federal, no seu art. 227, p. 6-, ao estabelecer a igualdade dos filhos, já se constitui no "primeiro passo para a criação da norma jurídica adequada a eventual questão envolvendo pretensões de filhos havidos dentro e fora do matrimônio". Diferem também das normas jurídicas porque não têm a estrutura típica delas, a hipótese de fato e o dispositivo ou conseqüência jurídica. Não podem, assim, constituirse em premissa maior de um silogismo de subsunção. Podem, todavia, adquirir natureza normativa, se expressos em texto legal ou reconhecidos pela jurisprudênica. Os princípios têm função positiva, por influenciarem decisões jurídicas, constituindo-se em critérios orientadores para a criação das normas jurídicas, e função negativa, no sentido de excluírem decisões contrárias. Como precisam ser concretizados, a função positiva é indeterminada, o que não ocorre na função negativa. É, assim, mais fácil dizer-se que isto ou aquilo é injusto, inadequado, desproporcional, do que dizer que é precisamente justo, adequado ou proporcional. Os princípios ocupam um posto intermediário entre o valor e o conceito, aquele mais genérico e abstrato, este já uma definição. Os princípios jurídicos positivos distinguem-se em princípios constitucionais ou superiores, e princípios institucionais, que fundamentam e sistematizam determinados institutos ou instituições jurídicas. No direito brasileiro são princípios constitucionais, superiores, fundamentais, os referidos no art. l2 da Constituição Federal: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político. Têm força normativa, são Constituição, tendo aplicação preferencial sobre qualquer norma ordinária que se lhes oponha ou contradiga. São princípios institucionais, ou legislativos, no direito de família, o princípio da igualdade dos cônjuges (C.F. art. 226, par. S2-}, o princípio da igualdade dos filhos (C.F. art. 227, par. 6-}. Nos direitos reais, o princípio da função social da propriedade (C.F. art. 170, III). No direito contratual, os princípios da autonomia da vontade, da boa-fé, da força obrigatória dos contratos, do consensualismo, da relatividade dos efeitos. Os princípios classificam-se ainda, quanto ao direito positivo, em princípios gerais do direito e em princípios gerais do ordenamento jurídico. Os primeiros são os grandes princípios, como o da justiça, o da liberdade, o da igualdade, o da dignidade da pessoa humana, "aqueles sobre os quais a ordem jurídica se constrói". O adjetivo geral significa que não têm "um campo de aplicação definitiva a priori", e que dizem respeito a todo o direito. Os segundos são os princípios jurídicos positivados na legislação vigente, de modo constitucional, ou superior, e de modo institucional, se pertinentes à legislação específica, como os princípios de direito de família, ou o da autonomia da vontade, ou o do enriquecimento sem causa. O Código Civil de 2002 elaborou-se sob a égida de três princípios fundamentais, o da sociabilidade, o da eticidade e o da operabilidade (v. adiante, item n° 25). Introduziu também, de modo expresso, o princípio da boa-fé, nos arts. 113 e 422 (v. adiante p. 424). Os princípios gerais de direito são diretivas básicas e gerais que orientam o intérprete ao criar o direito no caso de omissão do texto legal.73 São valores não expressos em lei, nem sob a forma de costumes, que se utilizam para o preenchimento de lacunas, e dos quais nos servimos para realizar integralmente a tarefa de interpretar o direito. Constituem-se, em critérios de conduta de observância variável que se impõe por sua própria importância sem referência a pressupostos concretos de aplicação. Estão presentes em todos os setores do direito, desde o direito constitucional, como o princípio da soberania popular, o da democracia parlamentar, o do Estado social na Constituição alemã, o do laicismo na Constituição francesa até o direito civil, como o da autonomia da vontade, que traduz o da liberdade individual e do respeito à pessoa humana, ou, ainda, o princípio da legalidade que expressa a "idéia da submissão do Estado ao direito". Os princípios gerais de direito constituem-se em recurso último para o caso de o ordenamento jurídico ser incompleto, lacunoso, não dispondo da norma jurídica aplicável ao caso material surgido. Sua utilização caracteriza então a chamada analogia iuris quando, "esgotado o império da lei, e na falta de costume se passa a outra norma de direito supletório, os princípios gerais de sistema de direito vigente". Nesse particular são autênticas normas de direito. Tendo sido acolhidos, expressa e formalmente, pela primeira vez no Código austríaco de 1811, por inspiração do jusnaturalismo, têm sido reconhecidos nas legislações subseqüentes, como se observa no texto dos Códigos Civis em vigor.74 Quanto às suas características, os princípios gerais de direito distinguem-se por três notas específicas: a principalidade, a generalidade e a juridicidade.75 Principalidade como símbolo de fundamento, causa final, tendo-se em vista que a sua realização constituiria a finalidade do sistema jurídico e, nesse caso, estaríamos muito próximos dos valores ou a eles eqüivaleriam. Generalidade no sentido de variedade e pluralidade, uma vez que os princípios gerais do direito são múltiplos, próprios dos diversos ramos do direito, e em escala variável de importância. Juridicidade no sentido de que são reconhecidamente direito aplicável, como fonte supletória, nos casos de omissão da lei ou do costume. Quanto à sua natureza, duas concepções doutrinárias têm marcado uma disputa tão acadêmica quanto inútil. Para a primeira, filosófica ou jusnaturalista, os princípios são de direito natural, um direito superior a todas as ordens jurídicas, sem "formalização positiva" nem sanção estatal, mas de inequívoca vigência, validade e obrigatoriedade.76 A segunda, positivista ou histórica, considera-os específicos de cada ordenamento jurídico, resultando de um processo gradativo de generalização e abstração, chegando a ser princípios científicos ou sistemáticos dos quais se deduziriam as normas jurídicas do mesmo sistema. Seriam, assim, os "antecedentes do ordenamento positivo", inspiração do próprio legislador. É a concepção adotada pelo Código Civil italiano.77 Tais concepções, contraditórias, não se excluem, são comple-mentares. A doutrina moderna vê nos princípios gerais de direito ------------72 Florez-Valdés, op. cit. p. 119; Karl Larenz, Richtiges Recht. Grundzüge einer Rechtsethik, (Derecho justo. Fundamentos de ética jurídica), p. 92 e 33; Claus-Wilhem Canaris, Systemdenkenundsystembegriffinderjurisprudenz. (Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito), p. 86. 73 Rubens Limongi França. Princípios Gerais de Direito, 1971, p. 135 e segs.; Bobbio Príncipi generali di diritto, in Novíssimo digesto italiano, vol.XIII, p. 887 e segs. José Puig Brutau p. 217 e segs.; Diez-Picazo, Experiências Jurídicas y Teoria dei Derecho, p. 196 e segs.; J.Mans Puigarnau, Los Princípios Generales dei Derecho (Repertório de Regias, máximas y aforismos jurídicos), p. XVIII e segs,: Karl Engish, p. 240 e segs.; Karl Larenz, pp. 482 e segs. e 569 e segs.; Sérgio Bartole, Príncipi dei diritto, in Enciclopédia dei diritto, vol. XXXV, 1986, p. 529. Cuido Alpa, /principi generali, p. 105 e segs. Ricardo Guastini, Príncipi di diritto, Digesto, XIV, p. 351. 74 Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro, art. 4S; Código Civil italiano, art. 12, n2 2; Código Civil egípcio, art. l2, § 2£; Código Civil espanhol, art. l2. 75 Puigarnau. op. cit., p. XXVII. 76 Diez-Picazo y Gullon, op. cit., p. 161. 77 Código Civil italiano, art. 12, n- 2. ------------- uma fórmula que, por sua amplitude, abrange tanto os princípios superiores de justiça, como os que informam o ordenamento jurídico do País. Não sendo normas jurídicas, apresentam-se como orientadores da política legislativa com valor de critérios ou diretrizes para a criação do direito, como, por exemplo a proibição de enriquecimento ilícito, ou de prejudicar terceiros (neminem laedere). Quanto à sua validade, os princípios gerais de direito valem na medida em que servem de fundamento e inspiração para a decisão do juiz, relacionando-a com o espírito de ordenamento jurídico, fixando, também, um limite para o seu arbítrio. Podem constituirse, sim, na ratio legis de um possível direito positivo, através do exercício das funções legislativas ou judicial. Por tudo isso pode se dizer, com Bobbio, que os princípios gerais do direito têm múltiplas funções: a interpretativa, à medida que forneçam os critérios para a solução de dúvidas quanto à interpretação da norma de direito positivo, como, por exemplo, os princípios de natureza constitucional; a integrativa, no sentido do art. 4- da Lei de Introdução ao Código Civil, quando se utilizam no preenchimento de lacunas da lei; a diretiva ou programática, como a dos princípios de organização constitucional do País,78 ou ainda os que decorrem do sistema constitucional brasileiro, como do sistema federativo, o do estado de direito, o do sistema democrático, o do sistema econômico e social, e os que têm uma função construtiva, no sentido de garantir certa unidade sistemática ao direito, ordenando-o segundo orientações fundamentais e impedindo-o de transformar-se em um "mosaico de textos legais incoerentes e de decisões judiciárias esparsas".79 Poder-se-ia também dizer que os princípios jurídicos têm uma função metodológica, quando se usam para orientar o conhecimento, interpretação e aplicação das normas; uma função antológica quando se constituem em fonte de direito (LICC, art 4°), e uma função axiológica quando exprimem valores fundamentais que inspiram e legitimam o direito positivo (justiça, segurança, bem comum etc. Para finalizar, cumpre dizer que os princípios gerais de direito não se confundem com as máximas jurídicas, os adágios ou brocardos reunidos pelos juristas romanos no livro do Digesto De diversis regulis iuris antiqui (D. 50. 17. 1), que nada mais são do que fórmulas concisas representativas de uma experiência secular, sem valor jurídico próprio, mas dotados de valor pedagógicos. Algumas dessas máximas podem conter princípios gerais de direito, como por exemplo: Ninguém pode transferir a outrem mais direito do que tenha;80 Não obra com dolo quem usa de seu direito;81 Ninguém pode receber um benefício contra sua vontade;82 A negligência se equipara à culpa;83 No todo está contida a parte;84 No direito civil, toda definição é perigosa porque é difícil que não possa ser alterada;85 A ninguém é dado desconhecer o direito;86 O direito extremado pode extremar a injustiça;87 É pai o que demonstra as justas núpcias;88 A afinidade não gera afinidade;89 O acessório segue o principal;90 A propriedade nada tem de comum com a posse;91 A indivisão é a mãe das desavenças;92 Os pactos, por mais que sejam simples, são de observar-se;93 ------------78 Constituição Federal, arts. \- a 4S. 79 Bobbio, op. cit, p. 889. 80 Nemo plus iuris ad alium transferre potest, quam ipse haberet. Ulpiano, D. 50, 17, 54. 81 Nullus videtur dolo facere, qui suo iure utitur. Galo, D. 50, 17, 55. 82 Invito beneficium non datur. Paulo, D. 50, 17, 69. 83 Imperitia culpae adnumemtur. Gaio D. 50, 17, 132. 84 In totó et pars continetur. Gaio D. 50, 17, 113. 85 Omnis definitio in iure civili periculosa est, rarum est enim ut non subverti posset. Jovoleno, D. 50, 17, 202. 86 Nemo ius ignorare censetur. 87 Summum ius, summa iniuria. Cícero, De officis. I. 10. 88 Pater est, quem iustae nuptiae demonstrant. Paulo. D. 2,4,5. 89 Affinitas non parit affinitatem. 90 Acessorium sequitur principale. 91 Nihil commune habet proprietas cum possessione. Ulpiano. D. 41, 2, 12, p. 1. 92 Communio est mater rixarum. 93 Pactum, quantum cumque nuda servanda sunt. ------------Uma só testemunha não é nenhuma;94 O que é anterior no tempo é preferido no direito.95 25.Oi Princípios Jurídicos do Código Civil de 2002 Se o Código Civil de 2002 foi fiel ao sistema lógico-formal do Código de 1916, mantendo, sempre que possível, as suas disposições e enriquecendo-o com as contribuições da doutrina e da jurisprudência nacionais ao longo de oito décadas, o que o torna legítima expressão da experiência jurídica brasileira no campo do direito civil, sua principal característica é constituir-se em um sistema aberto, no sentido de ser uma ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos gerais^. Esses princípios compreendem, além dos princípios de direito civil, como o da liberdade, o da igualdade e o da dignidade da pessoa humana, os critérios com que o legislador quer orientar o intérprete na tarefa de construir a norma jurídica adequada ao caso concreto que porventura se lhe apresente. Esses critérios, que dão flexibilidade ao sistema e exigem do jurista, advogado e magistrado, preparo e responsabilidade na construção da norma, são os princípios da socialidade, da eticidade e o da operabilidade. O princípio da socialidade orientou o legislador no sentido de superar o individualismo que marcava o Código de 1916, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana97. Com esse sentido, superou-se o patriarcalismo dominante na sociedade doméstica, expresso no absolutismo do poder marital e do pátrio poder, já revogados pelo princípio da igualdade dos cônjuges e dos filhos, estabelecido na Constituição Federal art. 226, par. 5° e art. 227, par. 6°, passando o pátrio poder a denominar-se poder familiar. A influência do princípio da socialidade fez também surgir um novo conceito de posse, a posse-trabalho, em virtude do qual o prazo de usucapião de um imóvel é reduzido, de 15 para 10 anos, se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caracter produtivo (C.C. art.1238, parágrafo único). O princípio da socialidade ainda se concretiza nos limites intrínsecos que o Código de 2002 estabelece para o exercício de direitos subjetivos, particularmente os direitos absolutos, entre os quais a propriedade. Sendo esta um dos elementos fundamentais dos sistema de direito civil patrimonial, o direito subjetivo por excelência, o mais complexo e absoluto, a pedra de toque dos códigos civis da modernidade, é nas suas disposições gerais que o código mais enfatiza esse princípio, ao dispor que o direito de propriedade deve ser exercido com as suas finalidades econômicas e sociais, e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, o ambiente, o equilíbrio ecológico e o patrimônio artístico, bem como evitada a poluição do ar e das água (C.C. art. 1.228, par. 1°). E mais se enfatiza ainda ao dispor que o proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa fé, por mais de 5 anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante (C.C. art. 1.228, par.4°). O princípio da eticidade privilegia os critérios éticos-jurídicos aos critérios lógicoformais no processo de realização do direito, a chamada concreção jurídica^. Implica isso um maior conhecimento teórico do direito, na medida em que uma das funções da doutrina é precisamente auxiliar o juiz e o legislador na criação normativa,e também um maior grau de poder e de responsabilidade do juiz, chamado não a aplicar o direito, mas a criar o direito para o caso concreto. Desse modo, o novo código confere ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto,de conformidade com valores éticos. A referência a este princípio pelo legislador demonstra a sua não aceitação do dogma da plenitude da ordem jurídica, vendo-a como um sistema aberto, flexível e lacunoso, donde a necessidade de recurso à integração e a conseqüente importância dos princípios jurídicos. Mas o significado desse princípio jurídico é mais extenso, não se limita à crítica da sistematicidade lógico-formal do positivismo. Represente ele também a crença de que o equilíbrio econômico dos contratos é a base ética de todo o direito obrigacional" o que o aproxima do princípio da boa-fé, (v. p. 424) no seu sentido ético, objetivo. Aplicações do princípio da eticidade encontram-se, por exemplo, no art.157 do Código Civil que, inovando relativamente ao Código de 1916, introduz a lesão no elenco dos defeitos do negócio jurídico, tornando-o anulável. A lesão como prejuízo econômico resultante da desproporção entre as prestações de uma relação contratual, recebendo uma das partes mais do que efetivamente dá. Instituto já conhecido no direito romano, que previa uma ação de rescisão no caso de venda de imóvel em que o vendedor recebesse menos da metade do preço justo (laesio enormis), não foi acolhido no código de 1916, mas sim na legislação especial que se lhe seguiu, particularmente em matéria de locação, usura, tabela-mento de mercadorias etc, com a finalidade de proteger a parte contratual mais fraca. Nesse sentido, dispõe o Código Civil que ocorre a lesão, quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta (C.C. art. 157). Ainda no campo dos defeitos do negócio jurídico, também o estado de perigo, que se configura quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa (C.C. art.156), se constitui em exemplo da aplicação do princípio da eticidade. Também de modo coerente com tal princípio, no sentido de um equilíbrio econômico contratual, prevê o código a possibilidade de resolução contratual por onerosidade excessiva, dispondo que, nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato(C.C. art. 478). Ainda em matéria contratual, outro limite que o mesmo princípio estabelece para o exercício dos direitos subjetivos patrimoniais, é a função social do contrato prevista no art.421, assim como as disposições pertinentes ao contrato de adesão, segundo as quais deve adotar-se interpretação mais favorável à parte aderente no caso de cláusula ambígua ou contraditória, e também que são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada de direito resultante da natureza do negócio (C.C. arts. 423 e 424). Finalmente, o terceiro princípio enunciado pelo legislador100, é o princípio da operabilidade ou se quisermos, o princípio da con-cretitude ou concretudem ,que é essencialmente um princípio de hermenêutica filosófica e jurídica, mais propriamente de metodologia cie realização do direito. Sendo uma das tarefas da metodologia jurídica explicitar a estrutura de concretização da norma no caso particular, o princípio da operabilidade, ou da concretude, traduz o critério metodológico que o legislador aponta ao intérprete do Código Civil: a interpretação jurídica não tem por objetivo descobrir o sentido e o alcance da regra jurídica, mas sim, constituir-se na primeira fase de um processo de construção ou concretização da norma jurídica adequada ao caso concreto. Enquanto que as regras jurídicas se apresentam como proposições lingüísticas de caracter geral, a partir do seu texto deve o intérprete construir uma norma-decisão concreta e específica para o caso em tela102. De igual modo, deve o legislador ter em vista o ser humano in concreto, situado, não o sujeito de direito in abstracto, próprio do direito liberal da modernidade. Dessa opção metodológica, resulta conceder-se larga margem de criação ao intérprete para, por meio de princípios, cláusulas gerais, usos do lugar, costumes etc, criar a norma jurídica adequada ao caso concreto, lastreado em sólido embasamento doutrinário, pois doutrina e prática se influenciam e enriquecem reciprocamente. 26. A vigência da norma jurídica. Princípios da obrigatoriedade e da continuidade. O erro de direito. -----------94 Testis unius, testis nullus. 95 Prior tempore, potior iure. 96 Claus-Wilhelm Canaris, op. cit. p. 280. 97 Miguel Reale, op. cit. p. 7. 98 Reale, op. cit. p.8. 99 Reale, op. cit. p. 9 100 Reale, op. cit. p. 9 e segs. 101 Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de Janeiro, 2001, Editora Objetiva, p. 789 102 Friedrich Muller, Discours de Ia Méthode Juridique, tradução francesa de hiristisches Methodik, Berlin, 1993, por Olivier Jouanjan, Paris, P.U.F., 1996, p.223 -----------A principal forma de expressão das normas jurídicas é a lei, cuja vigência e obrigatoriedade começam a partir de sua publicação oficial, pois, sem tal providência, não se poderia pretender que todos a conhecessem e cumprissem. O termo inicial da vigência está expresso no próprio texto legal e pode ser a data da publicação ou outra posterior. Nesse caso, a lei fixa o prazo entre a publicação e o começo de vigência, prazo que se denomina vacatio legis, destinado a facilitar a divulgação e a respectiva aplicação. Na falta de indicação, a Lei de Introdução ao Código Civil, Decreto-Lei n-. 4.657, de 4 de setembro de 1942, no art. l2, fixa em quarenta e cinco dias o prazo para o início da vigência no País, e em três meses para os Estados estrangeiros, nos casos em que se admitir a obrigatoriedade da lei brasileira como, por exemplo, quando aplicável aos atos e negócios praticados fora do território brasileiro por particulares e por funcionários das representações diplomáticas. Quanto ao termo final, "não se destinando a vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue". Acerca dessa matéria dois princípios são cardeais, o da obrigatoriedade e o da continuidade.103 Pelo princípio da obrigatoriedade, ninguém pode escusar-se de cumprir a lei, alegando não a conhecer (ignorantia iuris neminem excusat et nemo ius ignorare censetur) ,104 o que torna desnecessária a prova judicial da norma aplicável à espécie, pois os juizes conhecem a lei nacional (iuria novit cúria].105 Tal princípio leva à conhecida presunção de fato e de direito (praesumptio júris et de jure), segundo a qual, publicada a lei, todos a conhecem, não admitindo prova em contrário. Fundamento de tal presunção é a necessidade da certeza jurídica quanto à generalidade e eficácia da lei. O princípio da obrigatoriedade não é absoluto, porém, distinguindo a doutrina a questão da obrigatoriedade da ignorância da lei como causa de erro. A ignorância (ausência de conhecimento) ou má interpretação da lei não justificam a falta do seu cumprimento nem isentam as pessoas das sanções nela estabelecidas. Tal disposição não afasta, contudo, a relevância do erro de direito (conhecimento falso da lei) como causa de anulação de negócios jurídicos, "ou como constitutivo do estado de boa-fé, como estado psicológico, ao qual podem ser atribuídos vários efeitos".106 Defende-se, atualmente, a tese de que "o erro de direito é escusável nos mesmos termos em que o é o de fato". Pode-se assim dizer que "os indivíduos não podem eximir-se do cumprimento das obrigações imperativamente impostas pelo direito, alegando a ignorância da lei, mas não se tratando da questão do cumprimento de obrigações desse tipo, nada impede, em princípio, que a ignorância da lei possa realmente aproveitar aos particulares". Dispõe o Código Civil, a propósito, ser anulável o negócio jurídico quando a declaração de vontade emanar de erro substancial, considerando-se como tal, também o erro de direito, quando este não implique recusa à aplicação de lei e for o motivo único ou principal do negócio jurídico (CC. art. 138 e 139.107 Alguns casos são esclarecedores. Cita o Prof. Ferrer Correia, em sua obra Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, o seguinte exemplo: "A institui no seu testamento a B, herdeiro da metade dos seus bens, afirmando que só não o institui herdeiro universal porque a lei lhe impõe o dever de guardar para os irmãos (únicos parentes próximos que de fato lhe sobrevivem) a outra metade do seu patrimônio".108 Também Eduardo Espínola, no Manual do Código Civil Brasileiro, de Paulo Lacerda, no volume dedicado aos fatos jurídicos (vol. III, p. 281), citando Colin et Capitant, dá o seguinte exemplo: "Paulo, menor de 16 anos, morre, depois de fazer testamento. Eu, que sou seu herdeiro, satisfaço os legados, ignorando que o menor de 16 anos não pode fazer testamento." Trata-se de erro de direito capaz de anular tais atos, pois o que se verifica não ------------103 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, I, §§ 23 e 24. 104 Ninguém pode ignorar o direito. V. Lei de Introdução, art. 32. Esse princípio decorre do valor jurídico que é a segurança. 105 "O tribunal conhece o direito." V. Código de Processo Civil, art. 126. 106 Vicente Ráo. O Direito e a Vida dos Direitos, vol. 5, parte II, p. 246; Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho. Tratado de Direito Civil Brasileiro, vol. II, p. 87 e segs.; Wilson de Souza Campos Batalha, Lei de Introdução ao Código Civil, vol. I, 1957, p. 134 e segs. A doutrina tradicional identifica o erro e a ignorância cie direito para o fim de sua indesculpabilidade. Teixeira de Freitas, nos arts. 452/454 do Esboço, distinguia, porém, as duas figuras. 107 Antunes Varela. Código Civil Anotado, vol. I, p. 13. "O erro de direito pode consistir na ignorância de uma norma jurídica ou numa falsa interpretação do seu conteúdo." Antunes Varela. Noções Fundamentais de Direito Civil, p. 114. 108 Silvio Rodrigues. Erro de direito (direito civil), in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 32, p. 501 e segs.; Ferrer Correia. Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, p. 26. ------------é a intenção de1 descumprir a lei, mas a circunstância de que1 sen desconhecimento é que levou à prática de ato normalmente não-realizável109 IVIo princípio da continuidade, a lei vige até que outra a modifique ou revogue.110 A cessação da vigência pode ser prevista no próprio texto legal ou depender de lei nova. Está na lei quando ela mesma limita o prazo de sua vigência, ou quando a temporariedade resulta da própria natureza da lei, como ocorre com as leis orçamentárias anuais, ou quando se destina a fins determinados, como, por exemplo, mandar fazer uma certa obra e conceder favores fiscais a empresas por períodos determinados. A publicação de lei nova revoga a anterior, denominando-se ab-rogação, quando total, e derrogação, se parcial.111 A revogação por lei nova é expressa ou tácita, neste caso, quando as disposições novas forem imcompatíveis com as já existentes, ou regularem inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. A incompatibilidade pode ocorrer entre lei geral e lei especial e vice-versa. Não ocorrendo, prevalecem as disposições de ambas, não havendo revogação, vale dizer, "a disposição especial não revoga a geral, nem a geral revoga a especial, senão quando a ela ou ao seu assunto se referir, alterando-a explícita ou implicitamente". É possível a coexistência de normas gerais com especiais, versando a mesma matéria, desde que não se contradigam. Havendo incompatibilidade, tanto a lei geral pode revogar a especial, como esta, aquela.112 O direito brasileiro não aceita a repristinação, que é a restauração da lei revogada pelo fato da lei revogadora ter perdido a sua vigência."3 27. A vigência temporal da norma. Princípios fundamentais. O direito adquirido. Regras fundamentais. A vigência da norma jurídica manifesta-se no tempo (dimensão temporal) e no espaço (dimensão espacial). Quando surge a questão de saber qual a norma aplicável a determinado fato, a revogada ou a vigente, configura-se o conflito de normas no tempo. Quando se indaga qual a norma aplicável em termos espaciais, surge o conflito de normas no espaço. O primeiro é objeto do Direito Intertemporal ou Direito Transitório; o segundo, do Direito Internacional Privado. No Direito Intertemporal vigem dois princípios fundamentais: a) o do efeito imediato da lei, pelo qual a lei nova se aplica a todos os fatos que ocorrerem durante a sua vigência; e b) o da irretroati-vidade, pelo qual os fatos verificados sob o império da lei antiga continuam regidos por ela, respeitando-se o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, tudo isso em favor da segurança jurídica. Esses dois princípios correspondem a duas concepções teóricas fundamentais: a objetiva de Roubier, que distingue o efeito retroativo do efeito imediato da lei, e a subjetiva, de Gabba, que estabelece, como limite à vigência da lei nova, o direito adquirido.114 Direito adquirido é a conseqüência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo que, tendo passado a integrar o patrimônio do adquirente, não se fez valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objetivo.113 O sistema jurídico brasileiro contém as seguintes regras sobre essa matéria: a) são de ordem constitucional os princípios da irre-troatividade da lei nova e do respeito ao direito adquirido;116 b) esses dois princípios obrigam ao legislador e ao jui/; c) a regra, no silêncio da lei, é a irretroatividade; d) pode haver retroatividade expressa, desde que não atinja direito adquirido; e) a lei nova tem efeito imediato, não se aplicando aos fatos anteriores. 28. A vigência espacial da norma. Conflitos de normas no espaço. Princípios diretores. O Direito Internacional Privado tem por objetivo a solução de conflitos de normas jurídicas no espaço, indicando os critérios que determinam a vigência territorial ou extraterritorial de certa norma. Esses critérios são os seguintes, no direito brasileiro: a) aplica-se a lei do domicílio da pessoa nas questões sobre o começo e fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família;117 b) aplica-se a lei do lugar da situação dos imóveis para qualificá-los (se não móveis ou imóveis) e reger as relações que lhe forem pertinentes;118 c) aplica-se a lei do lugar de constituição à qualificação e disciplina das obrigações, sendo que a obrigação resultante de contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente;119 d) aplica-se a lei do domicílio do defunto ou desaparecido à sucessão por morte ou ausência. Quanto à capacidade para suceder, aplica-se a lei do domicílio do herdeiro ou legatário. Todavia, no caso de a sucessão incidir sobre bens de estrangeiro situado no Brasil, aplicar-se-á a lei brasileira em favor do cônjuge brasileiro e dos filhos do casal, sempre que não lhes for mais favorável a lei do domicílio do falecido.120 -------------109 Antunes Varela. Noções Fundamentais do Direito Civil, p. 114; Vicente Ráo, p. 291. 110 Lei de Introdução, art. 2°. 111 Lei de Introdução, art. 2-, ps. l e 2. Exemplo de revogação parcial, ou derrogação, é a que sofreu o Decreto-Lei 58/37, com o advento da lei 6766, de 19 de dezembro de 1979, que revogou as disposições do primeiro quanto ao loteamento e desmembramento do solo urbano, permanecendo as disposições referentes aos loteamentos rurais e à execução dos contratos no seu art. 22. (Dec. Lei 58/37). 112 Rubens Limongi França. O Direito, a Lei, a Jurisprudência, p. 111. A lei revoga-se por outra lei, o decreto por decreto, e assim sucessivamente. Mas a lei hierarquicamente superior, como a Constituição, revoga todas as inferiores. Cf. Lei de Introdução, art. 2-, § 2°. 113 Lei de Introdução, art. 2-, § 32. 114 Lei de Introdução ao Código Civil, art. 6-, R. Limongi França, Direito Interlamporal Brasileiro, p. 420 e segs.; Paulo Roubier. Lê Droit transitoire, p. 293 e segs.; C. F. Gabba. Teoria delia retroatività delle leggi, pp. 190-191. 115 Limongi França, op. cit., p. 432. A idéia de direito adquirido é válida para todos os ramos do direito: Caio Mário, op. cit., p. 152. 116 Constituição Federal, art. 5S, n- XXXVI. 117 Lei de Introdução ao Código Civil, art. 1-. 118 Lei de Introdução ao Código Civil, art. S-. 119 Lei de Introdução ao Código Civil, art. 9-, p. 2. 120 Lei de Introdução ao Código Civil, art. 10 e §§ l- e 2°. -------------CAPÍTULO III O Direito Civil. Gênese e Evolução. Sumário:!. O direito civil. Conceito e importância. 2. Características do direito civil. 3. O direito civil como produto histórico e cultural. Historicidade e continuidade. 4. A fase originária. O direito romano. 5. O direito medieval. 6. O direito moderno. 7. O Estado moderno na formação do direito civil. O Estado Liberal de Direito. 8. A sistematização do direito civil. O processo de codificação. 9. O Código Civil francês. 10. O Código Civil alemão. 11. O direito civil brasileiro. Esboço histórico. 12. A codificação civil brasileira: a) antecedentes; b) o Código Civil. Estrutura e características. 13. A reforma do Código Civil. 14. O Código Civil de 2002. 15. A unidade do direito privado. 16. Conteúdo do direito civil. Os institutos fundamentais. 17. A personalidade. 18. A família. 19. A propriedade. 201. O contrato. 21. A responsabilidade civil. 22. A sucessão hereditária 23. O direito civil contemporâneo. Tendências e características. l. O direito civil. Conceito e importância. Direito civil é o conjunto de princípios e normas que disciplinam as relações jurídicas comuns de natureza privada. É o direito privado comum, geral ou ordinário1. De modo analítico, é o direito que regula a pessoa, na sua existência e atividade, a família e o patrimônio. ----------l Clóvis Beviláqua. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, p. 63. ----------E´, direito privado porque se baseia na igualdade jurídica e no podei de autodeterminação das pessoas que intervém nas relações jurídicas, objeto cie sua disciplina, e é comum ou geral, porque suas normas aplicam-se de modo uniforme a todas essas relações, disciplinando a realidade social como um todo. A importância do direito civil manifesta-se em diversos aspectos. Em primeiro lugar, constitui a base do ordenamento jurídico de todas as sociedades. É o direito comum por excelência, dele nascendo outros ramos, outras disciplinas de natureza especial, que a ele continuam ligadas, quer pela existência de princípios fundamentais comuns, quer pela aplicação subsidiária de suas normas, como ocorre com o direito comercial, o direito do trabalho, o direito econômico, o direito agrário, o direito previdenciário etc. Em segundo lugar, o seu espírito e sua técnica têm influenciado profundamente os demais ramos da ciência jurídica. É no direito civil que a técnica jurídica, conjunto de processos que se utilizam na determinação do direito, mais se desenvolveu, continuando a ser a espinha dorsal da ciência jurídica2. O próprio Estado, no exercício de sua atividade econômica, a ele se submete. 2. Características do Direito Civil. O direito civil apresenta características que o diferenciam dos demais ramos de direito. É um direito de formação histórica e jurisprudencial, estável, altamente desenvolvido em sua técnica, personalista e liberal. É direito de formação histórica porque, arrancando das mais antigas tradições e práticas costumeiras dos romanos, o ius quiritium, veio se formando, ao longo dos séculos, com a contribuição de vários povos e culturas.3 É jurisprudencial porque suas normas resultam da cristalização das reiteradas decisões dos magistrados romanos, em face de casos concretos. A base do direito da chamada civilização ocidental cristã é o direito romano, donde nos vieram as noções fundamentais, o método e os principais institutos, principalmente em matéria de obrigações. É um direito estável em comparação com os sistemas de direito público, variáveis no tempo e no espaço, ao sabor das modificações políticas e ideológicas, que justificam as mudanças nas estruturas do poder, mantendo, ao longo dos séculos, uma linha de continuidade histórica nos seus aspectos formais e materiais. As suas principais instituições, que hoje disciplinam a nossa vida em sociedade, como a personalidade, a família, a propriedade, o contrato, a herança e a responsabilidade civil, são idênticas ás que, guardadas as inevitáveis modificações resultantes do progresso social, já existiam em Roma e na Idade Média. Consagrando os valores fundamentais da pessoa, é o direito civil o setor jurídico onde mais lentamente repercutem as mudanças sociais e as revoluções políticas, pois nele não existem diferenças de poder e de hierarquia, predominando os valores da igualdade e da liberdade. Apresenta-se, assim, como depositário dos valores e das tradições nacionais, mantendo-se ao longo dos tempos como produto da história social e cultural de um povo,4 o que não impede que se constitua, quando necessário, em instrumento de reforma e de institucionalização de processos de mudança social. É um direito altamente desenvolvido porque em nenhum outro a técnica alcançou tão grande aperfeiçoamento, elaborando regras, princípios, conceitos, categorias e construções jurídicas que, por sua amplidão e generalidade, se aplicam a todos os ramos do direito. Sua técnica e seu espírito servem de base a toda atividade jurídica, tendo sido nele também que se elaboraram os métodos de raciocínio e de aplicação próprios dos juristas. É um direito personalista na medida em que tem por objetivo a proteção da pessoa e dos seus interesses de ordem familiar e patrimonial, sendo o individualismo o seu fundamento ideológico, temperado, hoje em dia, com preocupações da ética social5. Exemplo típico desse individualismo é a norma jurídica do art. 1.228, caput do Código Civil, que define o direito de propriedade como o direito subjetivo absoluto por excelência, hoje relativizado pela função social que a Constituição Federal exige (art. 5°, XXIII) e o Código Civil regulamenta nos diversos parágrafos daquele artigo. E um direito liberal porque consagra, como um de seus valores fundamentais, a liberdade da pessoa humana. Essa liberdade traduz-se em urna esfera de autonomia concedida ao indivíduo, de que são principais manifestações o direito de propriedade e a autonomia da vontade, que se apresenta em múltiplas facetas, principalmente na área do contrato6, observadas as limitações legais próprias de cada sistema jurídico. E, por tudo isso, o direito da sociedade civil, entendendo-se esta como a esfera de relações econômicas ou materiais entre indivíduos ou grupos, fora do âmbito do poder estatal. 3. O direito civil como produto histórico e cultural. Historicidade e continuidade. O direito civil é, antes de tudo, um fenômeno cultural em que predominam as notas da historicidade e da continuidade. Historicidade no sentido de que se veio formando gradativamente, desde os primórdios da civilização ocidental, até se transformar em um dos mais importantes ramos da ciência jurídica. Continuidade, pelo fato de ter-se mantido como processo constante e de certo modo uniforme na maneira de solucionar os problemas que lhe são próprios, revelando a existência de princípios fundamentais a orientar a gênese e a realização de suas normas. Creio ser impossível uma perfeita compreensão do fenômeno jurídico, principalmente do direito civil, sem o recurso à investigação histórica, que permite identificar os fatores que nele vêm influindo, ao longo do seu processo de formação, principalmente os que se verificam no seu estágio atual, de significativas mudanças. E é importante também pela perspectiva que oferece das relações entre o sistema jurídico e os demais subsistemas que formam a sociedade, como o político e o econômico. Conseqüentemente, é de recusar-se toda a argumentação que se desenvolva em termos de pura lógica, ou limitada à perspectiva da ciência do direito como pura dogmática/separada da realidade que a justifica. As estruturas jurídicas não são neutras, e os sistemas de direito não se constituem em instrumentos técnicos para fins de qualquer natureza, mas para a realização dos valores essenciais da sociedade de que emergem. O estudo do direito civil e, particularmente, do direito civil brasileiro, deve, portanto, levar em conta a realidade que o faz nascer, não somente os aspectos formais de suas instituições, pois o direito se torna incompreensível com o exame apenas de suas normas e sem a necessária perspectiva histórica e social.8 A compreensão do conceito, natureza, conteúdo e características do direito civil exige, assim, breve notícia que esclareça as causas e os modos de sua formação histórica e sistemática, levando em conta as circunstâncias de ordem cultural, política e econômica que presidiram à sua gênese e ao seu processo evolutivo. Por tudo isso se compreende que o direito civil, por sua origem e evolução, é um direito jurisprudencial no sentido de que se formou pelas reiteradas decisões dos juizes romanos, transformando-se, por notável esforço de abstração, em regras fixas e gerais que vieram a constituir-se no direito positivo (ius in civitate positum) de cada povo, e doutrinário, porque de igual modo resultante da elaboração científica dos juristas sobre tal matéria, coordenando-a e sistematizando-a. No processo evolutivo do direito civil podemos distinguir quatro fases: a do direito romano, a do direito medieval, a do direito moderno e a do direito contemporâneo. -----------2 Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 29. Pietro Rescigno. Manuale di diritto privato italiano, 1983, p. 4. 3 José Luiz De Mozos. Derecho Civil Espanol, p.49; Franz Wieacker. História do Direito Privado Moderno, p. l e segs; Federico de Castro-y Bravo. Derecho Civil de Espana, p. 108 e segs; José Castan Tobenas. Derecho Civil Espanol, Comum y Foral, I, p. 128 e segs.; Ludwig Enneccerus. Tratado de Derecho Civil, l, p. l e segs; Georges Ripert et Jean Boulanger. Traité de droit civil, p. 34 e segs; Erich Molitor e Hans Schlosser. Grundzüge der Neueren Privatrechtsgeschichte (Perfiles de Ia nueva historia dei derecho privado), p. 9 e segs; Francesco Calasso. Médio evo dei diritto, l, lê fonti, p. 503 e segs.; José Puig Brutau. Introducción ai Derecho Civil, p.41 e segs. 4 CF. Hans Hattenhauer. Die geistesgeschichtlichen Crundlagen dês deustschen Rechts (Los fundamentos históricos-ideológicos dei derecho aleman), p. 199; Francesco Calasso, Storicitá dei diritto, p. 260 e segs. 5 Larenz/Wolf. Allgemeiner Teil dês Eürgerlichen Rechts, p. 34 e segs. 6 Orlando Gomes, Autonomia privada, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol.9. p.258; Alex Weil et François Terré. Droit civil, lês obligations, p. 53 e segs; Bons Starck. Droit civil, obligations, p. 341 e segs. 7 Entenda-se aqui a dogmática jurídica como a idéia segundo a qual o direito se apresenta como construção jurídica, lógica, racional e sistematizada, obediente ao princípio positivista de que o objeto da ciência do direito são apenas as normas positivadas (dogmas), independentemente da realidade social subjacente. Cf. Enrique Aftalion, Fernando Garcia Olano e José Vilanova. Introducción ai Derecho, p. 878 e segs.; Niklas Luhman. Rechtssystem una Rechtsdogmatik (Sistema jurídico y dogmática social), p. 27 e segs.; Carlos Santiago Nino. Introducción ai Analisis dei Derecho, p. 321 e segs. 8 Pietro Barcellona. Diritto privato e processo econômico, p. 35. -----------4. A fase originária. O Direito Romano. Entende-se como direito romano o conjunto de normas jurídicas que vigoram em Roma e seus territórios desde a criação da cidade, em 753 a.C., até a morte do imperador Justiniano, em 565. É um direito vigente por treze séculos, com várias fases que se distinguem conforme as variações ocorridas nos sistemas econômicos e sociais.9 O direito romano não se apresenta como um todo unitário, mas como a conjugação de vários sistemas, ou melhor, como um processo evolutivo que nasce, desenvolve-se, atinge o apogeu e decai, até compilar-se no Corpus iuris civilis. O ponto de partida é o ius civile, o direito dos cidadãos romanos, os eives, direito baseado nos costumes dos antepassados (mores maiorum), com sua primeira formulação legal na Lei das XII Tábuas, a primeira codificação romana, assim chamada por ter sido apresentada em doze tábuas de bronze, no Fórum romano, em 499 a.C. Na primeira fase, chamada de antiga ou arcaica, que vai da criação de Roma até o começo das guerras púnicas, no século III a.C., a sociedade romana era simples e rústica. A propriedade dividia-se entre os chefes de família, conforme os interesses da agricultura, a base da economia. O direito era extremamente formal e solene, do qual são exemplos o mancipatio, o nexum, a sponsio ou stipulatio iuris civilis, a actio sacramenti. A Lei das XII Tábuas e o ius civile, criado pela jurisprudência dos pontífices, eram a expressão da época; o ius civile como direito quiritário, tendo como fonte as sentenças proferidas pelos jurisconsultos clássicos. Caracterizava-se por ser exclusivamente romano, dos cidadãos romanos, disciplinando as relações de natureza privada, se bem que não exclusivamente, pois continha normas de direito penal, processual e administrativo. A segunda fase acompanha as alterações econômico-sociais que a sociedade romana sofre após as guerras púnicas. As conquistas dos exércitos de Roma, criando o império, fazem com que os antigos romanos, simples agricultores do Lácio, se tornem, no curto período (Ir 60 anos, dominadores do mundo antigo e herdeiros das mais florescentes civilizações. E as práticas do tráfico mercantil de Roma, com suas colônias e as novas formas de vida, passaram a exigir um novo direito civil, mais flexível, mais atuante, sem a rigidez dos antigos princípios quiritários. O direito perde a imprecisão característica da época arcaica e alcança o ponto de maior exatidão e grandeza. Começa o seu período clássico. Roma perde as características rurais, tornando-se uma cidade cosmopolita e o centro do comércio mundial,10 enriquecendo-se o direito com novas categorias próprias de um sistema comercial de trocas, substituindo-se o for-malismo pela simplicidade e celeridade dos atos jurídicos. No ano 367 a.C. cria-se o cargo de praetor urbanus, magistrado encarregado da jurisdição civil. Suas decisões constituem o ius prae-torium, ou ius honorarium, de honos, honra, significado técnico da função conferida ao magistrado pelo povo romano. O ius honorarium representa uma evolução do direito romano, no sentido de conjugar a criação do direito com a sua realização. Em Roma, o direito nasce da prática, já que a justiça romana começou a funcionar sem leis que a orientassem11 o que, aliás, se constitui em uma das causas da grandeza do direito romano. Enquanto o ius civile, o antigo direito, resulta dos mais tradicionais costumes dos primeiros cidadãos romanos, e eventualmente da lei, o ius honorarium era o produto da atividade judicante do magistrado, que, além de aplicar o ius civile (iuris civilis adjuvandi gratia), completavalhe as normas (iuris civilis suplendi gratia), ou até o reformava (iuris civilis corrigendi gratia).12 O ius civile nasce "ex legibus, plebis scitis, senatus consultis, decretis principum, auctorítate prudentium", enquanto o ius honorarium é um direito eminentemente jurisprudencial.1 Essa distinção entre o ius civile e o ius honorarium foi, assim, uma das características da época clássica (130 a.C., 230 d.C.), representando a fase da consolidação, apogeu e exatidão do direito romano. ---------------------9 Sebastião Cruz, Direito Romano, in Poiis-Enciclopédia Verbo da Sociedade o do Estado, vol. 2, p. 558. 10 Michel Tigar e Madeleine R. Levy. O Direito e a Ascensão do Capitalismo, p. 28. 11 Michel Villey. Lê droit romain (O Direito Romano), p. 21. 12 R. Sohm. Instituciones de Derecho Privado Romano, p. 71. 13 Ex legibus, plebis scitis, senatus consultis, decretis principum, auctorítate prudentium (o direito civil nasce das leis, dos plebiscitos, das decisões do senado, das decisões do imperador, da ciência do direito), D. 1. l, 7. ---------------------Ainda na mesma época surge o ius gentium. O caráter exclusivo do ius civile, aplicável somente aos cidadãos de Roma, impedia que fosse aplicado aos estrangeiros, aos nãoromanos, os peregrini. Ora, cada vez mais os juizes eram chamados a resolver conflitos de interesses, a disciplinar relações jurídicas entre os romanos e os estrangeiros (civis romani e peregrini), devido à complexidade crescente do tráfico mercantil que se operava no Mediterrâneo. No ano 242 a.C. institui-se o cargo de praetor peregrinus, o juiz para os estrangeiros, de cuja atividade resultou o ius gentium. O ius civile, direito dos cidadãos, opunha-se, desse modo, ao ius gentium, direito dos estrangeiros. Com este, obra do praetor peregrinus, o direito romano vai assimilando novos elementos e sobrepondo-se às suas características nacionais, para converter-se, progressivamente, em um direito comum e universal.14 Nascia, assim, um novo direito romano, um ius civile isento de formalismo, aplicável aos romanos e estrangeiros na disciplina de suas relações comerciais. Apresentando-se como direito comum e universal, invocável por todos os que se encontravam no império romano, surgia como direito natural, um direito aplicável a todos os participantes do comércio mediterrâneo que nele viam consagrados algumas de suas práticas. Com ele surgiam diversos institutos que ainda se aplicam, como as arras ou sinal nos contratos, a promessa unilateral obrigatória, germe da liberdade de comércio, o aperfeiçoamento dos contratos de compra e venda, depósito, sociedade, os negócios fiduciários, os contratos de boa-fé. O ius gentium era, assim, o direito das relações comerciais e o instrumento da nova classe ascendente: a dos comerciantes e mercadores. A terceira e última fase, a partir do século III (230 d.C.), caracteriza-se pela vulgarização do direito romano, isto é, a sua expansão por todas as províncias do império. O direito romano perde seu caráter nacional e transforma-se em um direito universal, embora com prejuízo do pensamento e da técnica jurídica da época clássica. Influenciando ou até sendo adotado por todos os povos do continente europeu, passa a ser o direito comum ou vulgar, mandado compilar em 565 pelo imperador Justiniano no Corpus iuris civilis. O legado do direito romano, até hoje presente na cultura do mundo ocidental, traduz-se em alguns institutos de direito civil, como a teoria da personalidade, a capacidade de direito, a teoria dos bens e os direitos reais, a teoria da posse, a teoria geral das obrigações e dos contratos e a sucessão. E ainda, como princípios fundamentais, a liberdade, no sentido de uma esfera de atividade própria de cada indivíduo, e a existência e reconhecimento de direitos certos e básicos do cidadão. Dessa crença na liberdade surgiu o princípio da autonomia da vontade e a propriedade, como direito subjetivo absoluto. 5. O Direito Medieval. Costuma-se considerar a Idade Média como o período que vai da conquista de Roma até à queda de Constantinopla, sede do Império Romano do Oriente (476-1453 d.C.). Caracteriza-se o direito civil dessa época pela permanência do direito romano como direito comum, pelo surgimento dos direitos civis nacionais e pela criação das bases ou pressupostos culturais e científicos do direito privado contemporâneo.15 Com a queda de Roma (476 d.C.) e a deposição do último imperador do Ocidente, Romulo Augustulo, acabava o Império Romano do Ocidente, substituído por uma série de reinos bárbaros e, depois, por uma pluralidade de cidades, nações e estados independentes, cada um com seu direito particular, os estatutos, os foros, os costumes. Separava-se política e culturalmente o Ocidente do Oriente, e naquele, o direito romano perdia sua vigência como ordenamento jurídico positivo até ser redescoberto no século XII, quando passa a ser considerado como direito comum (ius commune), conjunto de elementos de direito romano, canônico e germânico, assim chamado porque era geral, sendo o direito de cada unidade territorial um direito particular (ius proprium). Da combinação de ambos surge o direito territorial (ius compositum), germe dos direitos civis modernos.16 De qualquer modo, durante a Idade Média, direito civil é direito romano. As sucessivas invasões dos bárbaros, o estado de permanente intranqüilidade, a ausência de um governo central e de um sistema de defesa, como o garantido pelos exércitos romanos, faziam com que as pessoas solicitassem a proteção dos mais ricos e poderosos, normalmente os senhores de terras, os suseranos, com quem estabeleciam relações de vassalagem. Em troca de proteção e assistência econômica, os vassalos obrigavam-se a servir ao seu senhor, compensando-o com o pagamento de impostos correspondentes ao amparo que ele lhes dava. Criava-se, desse modo, uma relação contratual, de obrigações recíprocas, o que veio a caracterizar o regime feudal, um sistema de organização econômica, política e social baseado nos laços de dependência e de serviço, sobretudo militar, da parte dos vassalos para com o senhor, e das obrigações de proteção e sustento da parte deste para com aqueles.17 E com o regime feudal surgem os direitos particulares, os estatutos de cada cidade, nação ou estado (ius proprium), que, incorporando sobre o fundo comum do direito romano novos elementos, como o germânico e o canônico, vêm a formar a base do direito civil moderno. Com a recepção, nome que se dá à adoção, pelos estados na Idade Média, do direito romano, passa este a ser o direito comum, subsidiário,18 aplicável na maior parte do continente europeu. Mas não só o direito romano se faz presente; existe ainda a influência do direito germânico e do direito canônico. Enquanto o direito romano é individualista, colocando no centro do sistema jurídico o indivíduo e sua liberdade, o direito germânico é social, no sentido de considerar o mesmo indivíduo como participante de uma comunidade, onde predomine o bem comum sobre a vontade dos indivíduos. Já o elemento canônico é o responsável pelo processo de espiritualização do direito, com preocupações éticas e idealistas, como demonstram a sacramentalização do matrimônio, A doutrina da posse, o elemento da boa-fé em matéria de usucapião etc. Com o decurso do tempo e as transformações políticas e sociais, o direito civil passa a ser considerado o direito privado dos povos, decorrente da nacionalização que cada estado faz do direito romano comum, e, como direito privado especial, o direito dos comerciantes e mercadores, consolidando seus usos e costumes e sua jurisdição específica, pela necessidade de segurança e rapidez das operações mercantis, a exigir, por isso mesmo, um direito mais flexível. 6. O direito moderno. A idade moderna é o período compreendido entre a queda de Constantinopla, em 1453,ou a descoberta dos novos mundos, ou ainda, a revolução protestante iniciada em 1517, na Alemanha, e a Revolução Francesa de 1789, para uns, ou a revolução industrial do séc. XIX, para outros. Caracteriza-se pelos importantes processos de natureza política, econômica, social, religiosa e cultural que nela se verificam, dos quais os mais importantes, com profunda repercussão no direito privado, foram a revolução comercial, a reforma religiosa, o desenvolvimento dos estados nacionais e dos governos absolutos, a revolução intelectual do racionalismo e o desenvolvimento do individualismo. A revolução comercial é o processo econômico da fase originária do capitalismo, com o comércio se desenvolvendo por toda a Europa, modificando a economia estática das corporações medievais e estabelecendo um regime dinâmico de operações com fins lucrativos.19 Com a expansão do comércio desenvolve-se uma nova classe, a burguesia mercantil, que irá ter grande papel no processo de evolução política, econômica e jurídica da sociedade européia. Política porque "desejosa de paz e estabilidade, necessárias ao bom andamento dos negócios, favoreceu a centralização do governo e o fortalecimento do poder real". Econômica, por ser a base da criação e desenvolvimento do capitalismo. E jurídica porque com ela se consagra o individualismo como princípio fundamental da ordem jurídica moderna. ----------------14 Puig Brutau, op. cit., p. 51. Sobre os institutos remanescentes no direito contemporâneo, no campo processual, cfr. J.M. Othon Sidou, Processo Civil Comparado, p. 61 e segs. 15 Franz Wieacker, op. cit., p. 1. 16 De Los Mozos, op. cit., p. 69. 17 José Mattoso, Feudalismo, in Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. 2. p. 1.114; Edward Mcnall Burns, História da Civilização Ocidental I, p. 318. 18 Ubi cessai statuta habet locum ius civilis (onde cessa a eficácia dos estatutos locais aplica-se o direito civil ou comum) Baldus de Ubaldis (1327-1400), apud Dlez-Picazo, op. cit, p. 46. O direito comum era o direito romano, em contraposição aos direitos locais, estatutários, de cada região ou lugar, de aplicação subsidiária. Erich MolitorHans Schlosser, op. cit., p. 27. Cf. Braga da Cruz. O direito subsidiário na história do direito português, p. 266. 19 Mcnall Burns, op. cit., p. 488. ----------------Conseqüência imediata da revolução mercantil é, assim, o advento do capitalismo, sistema econômico que se caracteriza pela propriedade privada dos bens de produção e de consumo. Seus traços marcantes são a liberdade de iniciativa privada, a concorrência e a atividade negociai com fins lucrativos, assim como o desenvolvimento do sistema bancário, a expansão dos instrumentos de crédito, o declínio das corporações, o surgimento da indústria e, como instrumento jurídico de larga dimensão, o desenvolvimento das sociedades por ações. À revolução comercial devem-se, portanto, "quase todos os elementos que vieram a constituir o regime capitalista" e, ainda, a "ascensão da burguesia ao poder econômico e político, o início da europeização do mundo, entendendo-se como tal o transplante dos hábitos e da cultura européia para outros continentes". Como não podia deixar de ser, tal processo reveste-se de efeitos de ordem econômica, política e social de grande significado para o direito, sendo a partir desse período que se desenvolve o direito natural (séculos XVII e XVIII), a escola histórica, o positivismo jurídico e se institucionaliza o Estado de Direito, Estado Liberal ou burguês. A reforma religiosa compreende a revolução protestante que irrompe em 1517, levando a maior parte da Europa do norte a separar-se da igreja romana, e a reforma católica, ou contra-reforma, movimento contrário que nasceu com o Concilio de Trento (1545- 1563). Entre seus principais efeitos temos o impulso dado ao individualismo, com grande repercussão no campo do direito civil, na medida em que contribuiu para o desenvolvimento e aplicação de um direito geral e igualitário. Efeito da revolução comercial e da reforma religiosa é o fortalecimento do poder real, com o surgimento do Estado-Nação e o desenvolvimento de absolutismo como forma de governo. A criação dos impérios coloniais e o desenvolvimento do mercantilismo proporcionam aos reis grande riqueza, usada na organização de exércitos e armadas. Por outro lado, a expansão dos negócios acentua a necessidade de um governo forte, tendo a classe média, no governo, a garantia para o seu desenvolvimento e bem estar.20 Fenômeno diretamente ligado à revolução comercial é o progresso da filosofia e da ciência, verificado nos séculos XVII e XVIII, a chamada revolução intelectual de que são notáveis expressões o racionalismo e o individualismo. O primeiro considerava a razão o guia infalível da sabedoria. Com o segundo, acentuava-se o predomínio da personalidade (individualismo filosófico), considerando-se que as instituições políticas e jurídicas de um país devem colocar-se a serviço dos interesses particulares, de preferência aos serviços coletivos (individualismo político), acreditando-se que a "autoridade pública não deve perverter o resultado do livre jogo das atividades econômicas individuais, mas deve reduzir sua intervenção no domínio econômico ao mínimo, concentrando-se em garantir a cada um a liberdade de trabalho e do comércio e o benefício da propriedade de seus bens" (individualismo econômico), ou ainda, que "o indivíduo é a única finalidade de todas as regras do direito, a causa final de toda atividade jurídica do Estado" ou, também, "a fonte das regras de direito ou de mutações jurídicas" (individualismo jurídico).21 O racionalismo no direito exprime-se na doutrina do direito natural, de que uma das mais importantes conseqüências é o processo de codificação do direito civil, realizado pelos Estados modernos e soberanos. O direito civil deixa de ser o direito romano para ser direito nacional, adquirindo sua forma e seu conteúdo atuais. Reflexo do racionalismo (rectius, do jusracionalismo) é a concepção do "direito como sistema, dotado de método dedutivo específico, construído a partir de conceitos gerais". No campo do direito privado, liberta o direito civil da submissão histórica às fontes do direito romano, abrindo caminho para a construção do sistema que ainda hoje domina os códigos. Surgem as figuras abstratas da obrigação e do dever contratual, do sujeito de direito, da declaração de vontade, do negócio jurídico, doutrinas que o direito comum não tinha construído como teorias gerais, e que são princípios jusnatu-ralistas transformados em categorias técnico-jurídicas. 7. O Estado moderno na formação do direito civil. O Estado liberal de Direito A idade moderna tem, assim, especial importância para o estudo do direito civil, pelo surgimento do Estado moderno e pela racionalização do pensamento e da cultura, o que1 levou ao desenvolvimento da ciência jurídica, com seus conceitos abstratos, suas operações lógicas e o caráter sistemático da ordem jurídica. O Estado moderno surge inicialmente como Estado absoluto, vigente até fins do séc. XVIII, caracterizado pela concentração do poder real, enfraquecimento da nobreza, ascensão da burguesia, culto da razão de Estado, e pela vontade do rei como lei22. Com a Revolução Francesa, e tendo como antecedentes imediatos o Bill of Rights inglês de 1689, a Declaração de Direitos de Virgínia (EUA) de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, o Estado absoluto substitui-se pelo Estado liberal, próprio do liberalismo econômico, denominado, também, de Estado de Direito pelas seguintes características: a) império da lei, no sentido de que todos os poderes dela derivam, como expressão da vontade geral.23 O primado da lei é a característica fundamental, subordinando-se a lei à Constituição, conforme a hierarquia das normas; b) divisão dos poderes, respectivamente, legislativo, judiciário e executivo, a que correspondem os três momentos do processo jurídico: formação, aplicação e execução das leis. Não se trata de rígida separação, mas de distribuição de funções, com base na diferença entre criação e aplicação do direito, tarefas dos poderes legislativo e executivo24, respectivamente. Não podem legislar o executivo e o judiciário, como também não podem julgar o executivo e o legislativo; c) generalidade e abstração das regras jurídicas25; d) distinção entre direito público e direito privado, entendendo-se aquele como "o conjunto de normas com as quais o Estado determina a própria estrutura e organiza e regula as relações com os cidadãos, e por direito privado, o conjunto de normas que se destinam a regular as relações entre particulares"; e) crença na completude e na neutralidade do ordenamento jurídico: f) concepção do homem como um abstrato sujeito de direito, por efeito do processo de abstração do direito moderno, e correspondente à idéia do homem livre e igual, ela tradição iluminista, pressuposto do processo de aquisição e circulação de direitos. Enfim, o Estado de Direito é o Estado da legalidade e da liberdade dos indivíduos, livres e iguais. Fundamento dessa construção é a subjetividade jurídica que, segundo Hegel, é o princípio dos tempos modernos, expresso no individualismo, na autonomia do agir e na responsabilidade do indivíduo pelo exercício de suas pretensões26. Contribuem para o desenvolvimento desse princípio a Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa27. A Reforma Protestante com a crença de que a salvação é puramente individual, proclama a soberania do indivíduo e do seu pensamento. O Iluminismo como filosofia do homem novo, o burguês, que luta pelo progresso contra o obscurantismo e os privilégios da aristocracia e do clero. E a Revolução Francesa, abolindo o regime feudal e consagrando os princípios da igualdade, da liberdade individual e da propriedade privada. A sociedade moderna é, assim, marcada pela instituição do homem como sujeito singular, livre e igual, sem vínculos sociais (como acontecia na Idade Média) e responsável por si mesmo. O sujeito de direito em abstrato é o homem, livre e igual, do iluminismo. No campo jurídico, a liberdade individual, a propriedade, o contrato e a responsabilidade civil são institutos jurídicos fundamentais, que a ciência jurídica constrói com princípios, conceitos, categorias e modelos que formam o direito como sistema racional. A importância do direito moderno para o direito civil está portanto, no fato de ter, pelas circunstâncias políticas, econômicas e culturais, levado à construção da ciência jurídica, com seus conceitos, suas técnicas de abstração,28 suas operações lógicas, seu formalismo, com a "imagem do homem como indivíduo singular, como sujeito abstrato, matéria com que trabalha o pensamento sistemático e que tem, no positivismo jurídico, a grande herança deixada para as mudanças do direito civil contemporâneo." Concluindo, a grande contribuição do Estado moderno ao direito, principalmente do Estado liberal, é a racionalização da vida jurídica, ---------------------20 Mcnall Burns, p. 543. 21 Mareei Walline. L'individualisme et lê droit, Paris, p. 10 e segs. 22 Diogo Freitas do Amaral, Estado, in Polis — Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Lisboa,Verbo,vol.II,1984,p.1160. 23 Pietro Barcelona, Dirito privato e società moderna, p. 55; Elias Díaz, Estado de Derecho y sociedade democrática, p. 31. 24 Kelsen, Teoria generale dei diritto e delia stato, part. 2, cap. III, p. 275. 25 V. cap. H, n° 3. 26 Yürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade, p. 27; Anthony J. Cascardi, Subjectivité et modernité, p. 49 e 83. 27 Habermas, idem, p. 28. 28 Barcelona, op. cit., p. 22. ---------------------com a adoção da idéia de sistema e o desenvolvimento do pensamento sistemático, do que os maiores exemplos foram os códigos e as constituições do séc. XIX, e ainda o princípio da subjetividade jurídica que estabelece o indivíduo como causa e razão final da esfera jurídica privada. 8. A sistematização do direito civil. O processo de codificação. Produto do jusracionalismo é a concepção do direito como sistema, conjunto unitário e coerente de princípios e normas jurídicas. Partindo da formulação de conceitos gerais e utilizando o método dedutivo, através de uma demonstratio more geométrico, aplica-se o método cartesiano ao direito e chega-se à idéia de sistema jurídico, do que a jurisprudência dos conceitos, de Puchta e Windscheid, e a parte geral dos códigos civis são a melhor expressão. Entende-se que a idéia de sistema permite uma compreensão melhor do direito, não só de ordem didática como também de direito comparado, na medida em que autoriza o confronto e o relacionamento entre sistemas diversos. Além disso, possibilita compreender a matéria social em que se insere o sistema jurídico, isto é, as relações sociais e os valores determinantes do agir em sociedade, e, ainda, a interpenetração do direito com os demais sistemas que formam o universo social, como o econômico, o político e o religioso. O direito é um sistema de controle que emerge da vida, da sociedade, não podendo isolar-se da realidade que o produz. Já Savigny dizia que a ciência e a história do direito são inseparáveis do estudo da sociedade que lhe for contemporânea. A idéia de sistema liga-se diretamente à de codificação, agrupamento de normas jurídicas da mesma natureza em um corpo unitário e homogêneo. Distingue-se da compilação, mero ajuntamento de leis, geralmente por ordem cronológica, e da consolidação, que é a reunião de leis pelo critério da matéria, simplificando-se e apresentando-se no seu último estágio.29 Em senso estrito, significa o processo de elaboração legislativa que marcou os séculos XVIII e XIX, de acordo com os critérios científicos decorrentes do jusnaturalismo e do iluminismo, e que produziu os códigos, leis gerais e sistemáticas.30 Sua causa imediata é a necessidade de unificar e uniformizar a legislação vigente em determinada matéria, simplificando o direito e facilitando o seu conhecimento, dando-lhe ainda mais certeza e estabilidade. Eventualmente, constitui-se em instrumento de reforma de sociedade como reflexo da evolução social. Seu fundamento filosófico ou ideológico é o jusracionalismo, que vê nos códigos o instrumento de planejamento global da sociedade pela reordenação sistemática e inovadora da matéria jurídica, pelo que se afirma que "os códigos jusnaturalistas foram atos de transformação revolucionárias".31 A codificação apresenta vantagens, como a de simplificar o sistema jurídico, facilitando o conhecimento e a aplicação do direito, permitindo ainda elaborar os princípios gerais do ordenamento que "servirão de base para adaptar o direito à complexidade da vida real", o que explica o triunfo da codificação nos três séculos. Como inconveniente, afirma-se que a codificação impede o desenvolvimento do direito, produto da vida social que não pode ficar circunscrito, limitado, aprisionado por estruturas formais e abstratas.32 A codificação é fenômeno histórico freqüente na vida dos povos, havendo, todavia, grande diferença entre as codificações antigas e as modernas. As antigas tinham um caráter mais geral, visando a totalidade do direito, enquanto que as modernas são especiais, disciplinando um só ramo jurídico. As primeiras surgiam como simples compilações, já as modernas apresentam-se- sob a forma sistemática. Os códigos antigos recolhiam leis, doutrinas, princípios jurídicos, enquanto os modernos contêm, apenas, preceitos legais, que enunciam regras ou, eventualmente princípios. Os códigos antigos eram difusamente redigidos, os modernos são redigidos de forma breve e concisa. O código passou também a ser, na esfera do direito privado, a garantia das liberdades civis e do predomínio do poder legislativo sobre o judiciário, assegurando a autonomia do indivíduo contra a ingerência do poder estatal, como fazem, no direito público, as declarações de direitos e as constituições. Ocupava o centro da disciplina social. Conjugam-se, assim, os códigos civis e as constituições, criando uma nova organização jurídica da sociedade, e realizando o espírito da época, o "individualismo jurídico próprio do pensamento liberal", que se exprime na divisão do direito em público e privado, na garantia da liberdade dos indivíduos, e na concepção da centralidade do direito em face da política e da filosofia. Os exemplos historicamente mais importantes desse processo de codificação, tanto pela importância político-ideológica que encarnavam quanto pelo exemplo que ofereceram às codificações posteriores, são os Códigos Civis francês e alemão. 9. O Código Civil francês. O Código Civil francês é o primeiro das codificações modernas. Promulgado em 21 de março de 1804, elaborou-o uma comissão formada por Napoleão Bonaparte e constituída por Portalis (1746-1807), Tronchet (1726-1806), Bigot de Préameneu (17471825) e Maleville, todos juristas práticos. O material com que trabalharam foram os costumes, o direito romano, recolhido por grandes juris-consultos como Domat e Pothier, este o mais importante jurista francês de sua época, as Ordenações Reais, as leis da Revolução e, ainda, secundariamente, a jurisprudência dos antigos parlamentos e o direito canônico. Ideologicamente, caracteriza-se o Código Civil francês por seu laicismo, isto é, a separação da Igreja em matéria de estado civil ou de casamento, e por seu individualismo, expressão civilista da Declaração dos Direitos de 1789, manifesto nos princípios da igualdade, liberdade e espiritualidade do homem.33 É a igualdade, a liberdade econômica e a autonomia da vontade garantidas em um corpo jurídico de elaboração essencialmente prática. Representa o triunfo do individualismo liberal, expresso no caráter absoluto do direito de propriedade e no princípio da liberdade contratual contido no art. 1.134, que afirma ser o contrato lei entre as partes. O Código Civil passou a denominar-se, em 1807, Código de Napoleão, depois, novamente, Código Civil dos franceses, em 1814 e, finalmente, Código de Napoleão, em 1852. Contém as premissas filosóficas de toda a legislação burguesa, sendo o modelo específico das relações entre o humanismo jurídico e a ordem civil. Foi, assim, o instrumento jurídico da ideologia e do espírito da Revolução Francesa.34 Quanto à forma, é reconhecidamente conciso e preciso. Sua influência foi notável. Além de adotado por alguns Estados, como a Bélgica, influiu na elaboração dos Códigos Civis da Holanda, Romênia, Portugal, Mônaco, Egito, Baixo Canadá, Luisiana, e dos países da América Central e América do Sul. 10. O Código Civil alemão. O Código Civil alemão foi aprovado em l- de julho de 1896, para entrar em vigor em l2 de janeiro de 1900. Representa a síntese dos estudos doutrinários desenvolvidos na Alemanha no curso do século XIX, tomando por base o direito romano, que lhe ofereceu a matéria e os conceitos técnicos, principalmente na parte geral e no direito das obrigações, e o direito germânico, que o influenciou nos direitos reais, família e sucessão. É um código sistemático, profundo, rigoroso, dogmático. Apresenta, como vantagens, a disciplina lógica, a universalidade ou amplitude, e, como defeitos, a falta de clareza, a abstração demasiada, a dificuldade de compreensão pelo povo. Sob o ponto de vista da técnica jurídica, suas normas têm elevado nível de abstração e elasticidade, o que permite à jurisprudência adaptar seus dispositivos a muitas e distintas situações de fato. O esmerado rigor técnico de suas construções jurídicas e uma certa ---------------29 Teixeira de Freitas, "Contrato para coligir e classificar toda a legislação pátria r consolidar a civil", in Silvio Meira. Teixeira de Freitas. O Jurisconsulto do Império, p. 101. 30 Castan Tobenas p. 204. O código apresenta-se como um sistema de regras organicamente subordinadas e coordenadas, com pretensões de generalidade e plenitude, agrupadas em institutos e redigidas de modo conciso (De Los Mozos, p. 190). 31 Wieacker op. cit., p. 367. 32 A expressão máxima da controvérsia sobre as vantagens e inconvenientes da codificação encontra-se na polêmica travada no séc. XIX, entre o professor de direito civil da Universidade de Heidelberg, Antor Friedrich Justus Thibaut (l 772 a 1840), admirador da França revolucionária e do seu Código Civil, defendendo a codificação no seu opúsculo Acerca da necessidade de um direito civil geral para a Alemanha (Uber die N'otwendigkeit eines allgemeinem bürgerlichen Rechts für Deutschland 1814) e o professor de direito Friedrich Carl von Savigny (1779 a 1861), contrário a ela no famoso ensaio Da vocação no nosso tempo para a legislação e a ciência do direito (Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswis-senschaft, 1814). 33 Jean Carbonnier. Droit civil. Introduction, Lês personnes, p. 66. 34 André-Jean Arnaud. Essai d'analyse structurale du code civil français, p. 12. ---------------obscuridade na linguagem tornam-no acessível, todavia, somente aos juristas. Sob o ponto de vista moral, confere grande valor à boa-lc na interpretação dos contratos e à função educadora dos costumes. Sob o ponto de vista político e econômico, corresponde à ordem privada da época de sua redação, consagrando os princípios do individualismo.35 Sua influência é notável em códigos de vários países corno o Brasil, Japão, Suíça, China e Grécia. 11. O direito civil brasileiro. Esboço histórico. A história do direito civil brasileiro compreende três fases: do descobrimento do Brasil à codificação, o processo de codificação em si e a fase posterior ao Código até agora, quando se projeta a reforma do Código Civil. A primeira fase divide-se em duas, de 1500 a 1808, época do Brasil-Colônia, e de 1808 a 1889, época do Brasil Império. A fase do Brasil-Colônia caracteriza-se pela aplicação das Ordenações Filipinas, legislação portuguesa que já era, no dizer de Coelho da Rocha, "atrasada, retrógrada", mantendo em vigor, na época moderna, regras do século XV. Trazidas para o Brasil, consolidou-se aqui esse atraso.36 Nos primeiros tempos de colônia, até 1531, data da expedição de Martin Afonso de Souza, o direito era o dos costumes e usos, no mais das vezes, a força física. O primeiro ato legislativo que nos diz respeito é a bula do Papa João II, de 20. 01. 1506, confirmando os direitos de D. Manuel, rei de Portugal, sobre as terras do Brasil, em conseqüência do Tratado de Tordesilhas, de 1494. No período das capitanias hereditárias (1532-1542), a legislação brasileira formava-se de cartas regias, cartas de doação das capitanias, a primeira das quais lavrada em Évora, em 20 de janeiro de 1534 e, principalmente, pelos forais, ou cartas de foral, que, completando a carta de doação, eram o verdadeiro documento jurídico. Enquanto as cartas de doação estabeleciam "apenas a legitimidade da posse e os direitos e privilégios dos donatários", as cartas de foral eram "um contrato enfitêutico em virtude do qual se constituíram perpétuos tributários da coroa e dos donatários capitães-mores, os solarengos que recebessem terras de sesmarias".37 De 1549 a 1581 temos o período do Governo Geral, iniciado com a carta regia de 7 de janeiro de 1549, dando início ao sistema do poder central de 1640 até 1750, (a subida do Marquês de Pombal) e daí até 1808 (ano em que a corte portuguesa se desloca para o Brasil), período em que vai surgindo incipiente legislação voltada para a atividade mercantil, letras de câmbio, câmbio marítimo, corretagem de câmbio, ao mesmo tempo que as relações civis vão se tornando mais complexas, surgindo uma legislação sobre casamento, pátrio, tutela e curatela, sucessão e contratos. A fase do Brasil Império, da abertura dos portos por D. João VI, em 1808, até a implantação da República, em 1889, tem dois aspectos marcantes para a nossa história jurídica. Politicamente, o estabelecimento da sede da monarquia portuguesa no Brasil; sociologicamente, a plena configuração do povo brasileiro. Em 16 de dezembro de 1815, a carta regia elevou o Brasil à categoria de reino, provocando a centralização administrativa e, conseqüentemente, fértil atividade legislativa. Proclamada a independência do Brasil em 7 de setembro de 1822, a lei de 20 de outubro de 1823 determina a manutenção da vigência das ordenações, leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções dos reis de Portugal em vigor no Brasil até 26 de abril de 1821, data em que D. João VI regressou a Portugal. E a Constituição do Império, de 25 de março de 1824, no art. 179 (n° XVIII), manda organizar-se, o quanto antes, um Código Civil e um Criminal, "fundados nas sólidas bases da justiça e da eqüidade". 12. A codificação civil brasileira: a) antecedentes; b) o Código Civil. Estrutura, características. a) Antecedentes: O Código Civil brasileiro resulta de um processo de elaboração legislativa que se desdobra em várias fases, no curso de noventa e dois anos. Em 1845, o grande advogado Francisco Inácio de Carvalho Moreira, Barão de Penedo, defende no Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros a tese da imediata remodelação do direito civil brasileiro, formado por Legislação "esparsa, desordenada e numerosíssima". Sentindo a mesma necessidade, Eusébio de Queirós propõe, em 1851, que se adote o Digesto Português de Correia Teles. Mas é Teixeira de Freitas quem inicia os trabalhos de codificação. Atendendo a convite de José Tomás Nabuco, Ministro da Justiça, encarrega-se Teixeira de Freitas, em 1855, de consolidar a legislação civil existente no Brasil, para que fosse bem conhecida, e depois, de redigir o Código Civil. O que foi a ciclópica obra de Freitas na sua tarefa de coligir e classificar toda a legislação brasileira, consolidando a civil, e de elaborar o projeto de Código Civil, merece especial atenção.38 Deve-se, todavia, lembrar que a sua produção científica, a Consolidação das Leis Civis e o Esboço, constitui uma das maiores glórias da cultura jurídica nacional e estrangeira, comparável, se não superior, à dos maiores juristas do seu século, consideradas as circunstâncias de ordem material e cultural em que se produziu. Rescindido o contrato de Teixeira de Freitas com o governo, incumbiu-se Nabuco de Araújo, em 3 de dezembro de 1872, de elaborar o projeto de Código Civil, no que trabalhou até 1878, quando morreu, deixando prontos 118 artigos do título preliminar e, com redação incompleta, mais 182 artigos da parte geral. É visível a influência do Esboço de Freitas. A obra de codificação prossegue, no mesmo ano, com Joaquim Felício dos Santos, que se oferece para terminar esse trabalho. Redige 2.692 artigos que apresenta sob o título "Apontamentos para o Projeto de Código Civil Brasileiro", distribuídos em uma Parte geral, com três livros, das pessoas, das coisas e dos atos jurídicos em geral, e uma Parte Especial, com idêntica divisão. Não vingando esse projeto, em 15 de junho de 1890, logo depois de- proclamada a República, encarregou-se Antônio Coelho Rodrigues de elaborar o projeto do Código Civil, o que faz em Genebra sob a influência do Código de Zurique e do direito alemão, como se verifica na própria divisão adotada: uma lei preliminar, uma parte geral, subdividida em três livros, das pessoas, dos bens, dos fatos e atos jurídicos, e uma parte especial, subdividida em quatro livros, das obrigações, da posse, da propriedade e de outros direitos reais, do direito de família e do direito das sucessões. Não se tendo aprovado nenhum desses projetos, em janeiro de 1889 o Ministro da Justiça Epitácio Pessoa convida Clóvis Beviláqua, eminente professor da Faculdade de Direito do Recife, para prosseguir no trabalho de codificação, aproveitando, no que fosse possível e não contrariando as suas próprias idéias, os trabalhos dos juristas precedentes. O novo projeto foi elaborado de abril a outubro de 1889 e, concluído, remetido a alguns jurisconsultos para opinarem a respeito, a princípio individualmente e depois em comissão presidida pelo próprio Ministro. O projeto Clóvis Beviláqua compunha-se de uma lei de introdução, uma parte geral dividida em três livros, pessoas, bens, nascimento e extinção de direitos, e uma parte especial, desdobrada em quatro livros, direito de família, direito das coisas, direito das obrigações e direito das sucessões. Caracterizava-se pela "harmonia entre a ordem e a liberdade, entre a tradição e o progresso". Adotava a concepção de Ihering em matéria de posse, embora não exclusivamente, e disciplinava o direito de propriedade sem o absolutismo do direito romano. Apresentava algumas idéias novas, como o reconhecimento de filhos ilegítimos de qualquer espécie, a investigação de paternidade, a insolvência civil, a igualdade jurídica dos cônjuges, idéias essas não-aceitas pela primeira comissão revisora, que modificou um pouco o sistema originário do autor. O projeto Beviláqua foi discutido na Câmara em 1901 e 1902 e remetido ao Senado neste mesmo ano, onde foi objeto de notável parecer do Senador Ruy Barbosa, redigido em apenas três dias, de natureza mais filológica do que jurídica, verdadeira "mão-deobra literária do projeto". Esse parecer foi objeto de crítica do Prof. Ernesto Carneiro Ribeiro, eminente Filólogo da Bahia, autor da revisão gramatical do projeto, nas suas "ligeiras observações sobre as emendas do dr. Ruy Barbosa, feitas à redação do Projeto do Código Civil, em setembro de 1902. A essa manifestação reagiu --------------------35 Wieacker, op. cit., p. 477. 36 As Ordenações Filipinas foram elaboradas por incumbência do Rei Filipe I de Portugal II de Espanha e vigentes a partir de 11 de janeiro de 1603. Participaram da elaboração: Duarte Nunes do Leão, Jorge de Cabedo, Afonso Vaz Toureiro, e, possivelmente, Pedro Barbosa, Paulo Afonso e Damião de Aguiar. Cf. Nuno Espinosa Gomes da Silva. História do Direito Português, p. 221, e ainda José Motta Maia Ordenações Filipinas, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 56. p. 291; Cândido Mendes de Almeida, Código Filipino, p. XXVII; Pontes de Miranda. Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro, p. 41; Silva Pacheco, Evolução do Processo Civil Brasileiro, p. 25 e segs. 37 Isidoro Martins Júnior. História do Direito Nacional, p. 104. 38 Silvio Meira, Teixeira de Freitas, o Jurisconsulto do Império, cap. VIII. --------------------Ruy Barbosa com a sua monumental Réplica, que mereceu de Carneiro Ribeiro nova manifestação ("A redação do projeto do Código Civil e a Réplica do Dr. Ruy Barbosa"), obras que, no seu conjunto, constituem a mais genial realização de nossa história filológica, e talvez das letras neolatinas.39 A polêmica instaurada com o projeto do Código faz com que este permaneça no senado até 1912, sendo devolvido a 31 de dezembro desse ano à Câmara para apreciação da "Redação final das emendas do Senado", em número de 1.736. Em 1915, foi o projeto remetido ao senado para exame das emendas rejeitadas pela Câmara. O projeto volta a esta, que aprova a redação final a 26 de dezembro de 1915, sendo sancionado e promulgado com a Lei n- 3.071 de l-de janeiro de 1916, para entrar em vigor a l- de janeiro de 1917. Existindo algumas incorreções no texto, a Lei n- 3.725, de 15 de janeiro de 1919, eliminou-as. A elaboração do Código Civil brasileiro deu origem à grande floração doutrinária, com notável desenvolvimento da civilística nacional. Além das obras de Clóvis Beviláqua, onde ressalta a sua notável Teoria Geral do Direito Civil, de 1908, desenvolvem-se os trabalhos de Lacerda de Almeida, Martinho Garcez, Almáquio Diniz, Azevedo Marques, Lafayette R. Pereira, Ferreira Coelho, Carvalho de Mendonça, Virgílio de Sá Pereira, Eduardo Espínola, Eduardo Espínola Filho e Carvalho Santos, a obra coletiva redigida por Paulo Lacerda, o Manual do Código Civil; Pontes de Miranda, João Luis Alves, Spencer Vampré, Adauto Fernandes e, mais recentemente, San Thiago Dantas, Orlando Gomes, Caio Mário da Silva Pereira, Antônio Chaves, Washington de Barros Monteiro, Sílvio Rodrigues, Franzen de Lima, Vicente Ráo, Serpa Lopes, Arnold Wald, Rubens Limongi França, Maria Helena Diniz etc. b) O Código Civil de 1916. Estrutura, características. A semelhança do que ocorre com o Código alemão (Bürgerliches Gesetzbuch), o Código Civil brasileiro de 1916 tinha a precedê-lo uma lei de Introdução, com regras sobre publicação, vigência e aplicação das leis, sua interpretação e integração, e ainda os critérios para solução de conflitos de normas no tempo e no espaço, isto é, regras de direito intertemporal e de direito internacional privado. Atendia, assim, à necessidade de normas gerais de aplicação para todas as leis, já previstas no título primeiro do Código de Napoleão ("De Ia publication, dês effets et de 1'aplication dês lois en general) e na proposta de Teixeira de Freitas, que, em 1867, propunha, juntamente com a elaboração de um código geral de direito privado, unindo as matérias civil e comercial, uma Lei Geral que dominasse a legislação inteira, abrangendo "matérias superiores a todos os ramos da legislação". Compreendia o Código de 1916 duas partes, uma geral e outra especial. A parte geral, com 179 artigos distribuídos em três livros, referentes às pessoas, aos bens e aos fatos jurídicos, reúne os princípios e regras aplicáveis à generalidade dos atos e das relações jurídicas disciplinadas pelas normas da parte especial, isto é, aos sujeitos e aos objetos dessas relações e aos fatos jurídicos que as fazem nascer, modificar ou extinguir. A parte especial subdivide-se em quatro livros. O primeiro, do direito de família, com 305 artigos, compreende a matéria pertinente ao casamento, sua validade e eficácia; aos regimes de bens entre os cônjuges; à dissolução da sociedade conjugai e à proteção da pessoa dos filhos; às relações de parentesco e à tutela, curatela e ausência. O segundo, do direito das coisas, com 372 artigos, compreendendo a posse, a propriedade e os direitos reais sobre as coisas alheias. O terceiro, do direito das obrigações, com 709 artigos, que disciplina as obrigações nas suas modalidades, transmissão, fontes e extinção. E finalmente, o livro quatro, do direito das sucessões, com 234 artigos, compreende as normas sobre a sucessão em geral, a sucessão legítima, a sucessão testamentária, o inventário e a partilha. O Código Civil de 1916 era um código de sua época, elaborado a partir da realidade típica de uma sociedade colonial, traduzindo uma visão do mundo condicionado pela circunstância histórica, física e étnica em que se revela. Sendo a cristalização axiológica das idéias dominantes no seu tempo, principalmente nas classes superiores, reflete as concepções filosóficas dos grupos dominantes, detentores ilo poder político e social da época, por sua vez determinadas, ou c-ondicionadas, pelos fatores econômicos, políticos e sociais. Era um código conciso, com apenas 1.807 artigos, número bem inferior ao do francês (2.281), ao do alemão (2.383), ao do italiano (2.969), ao do português (2.334). Tecnicamente, um dos mais perfeitos, quer na sua estrutura dogmática, quer na sua redação, escorreita, segura, precisa. Tinha formação eclética, com predomínio de concepções do direito francês e da técnica do código alemão. Sob o ponto de vista ideológico, consagrava os princípios do liberalismo das classes dominantes, defendido por uma classe média conservadora que absorvia contradições já existentes entre a burguesia mercantil, defensora da mais ampla liberdade de ação, e a burguesia agrária, receosa dos efeitos desse liberalismo.40 Individualista por natureza, garantiu o direito de propriedade característico da estrutura político-social do país e assegurou ampla liberdade contratual, na forma mais pura do liberalismo econômico. Na parte do direito de família, sancionava o patriarcalismo doméstico da sociedade que o gerou, traduzido no absolutismo do poder marital e no do pátrio poder. Tímido no reconhecimento dos direitos da filiação ilegítima, preocupava-se com a falsa moral de seu tempo. Não obstante, continha algumas inovações progressistas para a época, como o deferimento do pátrio poder à mãe, mesmo na filiação ilegítima. Privava, porém, desse poder a bínuba, que somente veio a adquiri-lo em 1962, com o estatuto da mulher casada.41 Refletia, pois, o ideal de justiça de uma classe dirigente européia por origem e cultura, mal-adequada às condições de vida do interior do país, traduzindo mais as aspirações civilizadoras dessa elite, embora progressista, do que os sentimentos e necessidades da grande massa da população, em condições de completo atraso.42 O Código Civil de 1916 era, assim, produto da sua época e das forças sociais imperantes no meio em que surgiu. Feito por homens identificados com a ideologia dominante, traduziu o sistema normativo de um regime capitalista colonial. Teve, porém, grande repercussão. No campo interno, deu margem à profunda e magnífica floração doutrinária. No campo externo, bastam os elogios de Arminjon, Nolde e Wolff que lhe ressaltaram a técnica jurídica, a clareza e a precissão, e as de Alfredo Colmo, Martinez Paz e Lafaille, na Argentina; Luís Gasperi, no Uruguai; Enneccerus, na Alemanha, que o qualificava como a mais independente das codificações latino-americanas, e ainda as observações de Machado Vilela, em Portugal e de Scialoja, na Itália. 13. A reforma do Código Civil. As transformações da sociedade brasileira no curso deste século têm submetido o direito a uma contínua adaptação, com uma série crescente de leis especiais em torno das principais instituições do direito privado, a personalidade, a família, a propriedade, o contrato, a herança e a responsabilidade civil. Tais modificações deslocam para o âmbito dessa legislação especial o centro da disciplina jurídica das relações privadas, ficando o Código Civil como fonte residual e supletiva, o que se acentua com a transferência, para a órbita constitucional, de alguns dos tradicionais princípios de direito civil concernentes à família, à propriedade privada e à liberdade contratual. Com a finalidade de se restaurar o Código Civil como diploma básico da disciplina das relações de natureza privada, adaptando-o as exigências do processo de mudança social operada no Brasil, várias tentativas se fizeram. Em 1941, publica-se um anteprojeto de Código de Obrigações elaborado em conjunto pelos eminentes civilistas Orozimbo Nonato, Filadelfo Azevedo e Hahnemann Guimarães, visando unificar o direito das obrigações, não recebendo tal iniciativa o apoio necessário da classe jurídica. Em 1961, toma o Governo a iniciativa de reformular os principais códigos do país, convidando o Prof. Orlando Gomes para redigir anteprojeto de Código Civil, contendo o direito de família, os direitos reais e o direito das sucessões, e o Prof. Caio Mário da Silva Pereira, para elaborar anteprojeto de Código das Obrigações. O trabalho do IVof. Orlando Gomes foi transformado em Projeto de Código Civil pela Comissão constituída do respectivo autor, e dos juristas Oro-y.imbo Nonato e Caio Mário da Silva Pereira. O anteprojeto do Código de Obrigações foi transformado em projeto, revisto pela Comissão Revisora integrada pelo respectivo autor e ainda por Orozimbo Nonato, Theóphilo de Azeredo Santos, Sylvio Marcondes, Orlando Gomes e Nehemias Gueiros. Em 1969, constitui o Governo nova Comissão integrada por Miguel Reale, presidente, José Carlos Moreira Alves, Agostinho de Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert Chamoun, Clóvis do Couto e Silva e Torquato Castro, para elaborar anteprojeto de Código Civil, posteriormente transformado em Projeto de Lei n- 634, de 1975, e finalmente aprovado no Congresso Nacional pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. O novo Código apresenta as seguintes características: a) preserva, no possível, a estrutura e a redação do Código Civil de 1916, tendo-o atualizado com novos institutos e redistribuído a matéria de acordo com a moderna sistemática civil; b) mantém o Código Civil como lei básica, embora não global, do direito privado, unificando o direito das obrigações na linha de Teixeira de Freitas e Inglez de Souza, reconhecida a autonomia doutrinária do direito civil e do direito comercial; c) aproveita as contribuições dos trabalhos e projetos anteriores, assim como os respectivos estudos e críticas; d) inclui no sistema do Código, com a necessária revisão, a matéria das leis especiais posteriores a 1916, assim como as contribuições da jurisprudência; e e) exclui matéria de ordem processual, a não ser quando profundamente ligada à de natureza material. 14. O Código Civil de 2002 O Código Civil, aprovado pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, mantém a estrutura e a redação do Código Civil de 1916, atualizando-o com novas figuras e institutos, e redistribuindo a matéria de acordo com a moderna sistemática civil, seguindo o critério do legislador de preservar, sempre que possível, as disposições desse Código tendo em vista o que ele representa como patrimônio histórico-doutrinário43. A Parte Geral tem 232 artigos, dividida em três livros, referentes às pessoas, aos bens e aos fatos jurídicos, isto é, à disciplina da relação jurídica, no seu nascimento, evolução, extinção e conteúdo. Suas principais novidades são a distinção entre personalidade e capacidade (Capítulo I), a disciplina dos direitos da personalidade (Capítulo II), a existência de um capítulo autônomo para as associações (Título II, Capítulo II), a substituição da categoria unitária do ato jurídico pela do negócio jurídico e o reconhecimento da figura dos atos jurídicos lícitos, a autonomia do instituto da representação, a inclusão do estado de perigo e da lesão no elenco dos defeitos do negócio jurídico, a possibilidade de conversão do negócio jurídico nulo, a nova disciplina da prescrição e da decadência c, rm matéria de prova, o reconhecimento do documento eletrônico ou digital, e a conseqüência da recusa a perícia médica. A Parte Especial do Código compreende cinco livros, a saber, do Direito das Obrigações (Livro I), do Direito de Empresa (Livro II), do Direito das Coisas (Livro III), do Direito de Família (Livro IV), e do Direito das Sucessões (Livro V). Relativamente ao Código de 1916, o Código de 2002 inova ao iniciar a Parte Especial com a matéria das Obrigações, em vez do Direito de Família, que foi deslocado para o penúltimo livro, a preceder o Direito das Sucessões, e com a introdução de um novo livro, o de Direito de Empresa.Operou-se, desse modo, a unificação do direito privado no campo das obrigações, implicando isso a revogação do Código Comercial, na parte referente ao direito comercial terrestre, completamente superado. Quanto às principais inovações do Código de 2002, no que diz respeito à parte especial, há que assinalar, no Direito das Obrigações, a introdução de um titulo novo, dedicado às modificações subjetivas da relação obrigacional, respectivamente, a cessão de crédito e a assunção de débito, e ainda a inclusão de novas figuras contratuais (contrato preliminar, contrato com pessoa a declarar, contrato esti-matório, comissão, agência e distribuição, corretagem, transporte de pessoas e de coisas, seguro de dano e de pessoa), assim como a disciplina geral dos títulos de crédito,compreendendo os título de crédito ao portador, à ordem e os nominativos. O Direito de Empresa é completamente novo na sistemática do Código Civil, o que lhe dá o caracter de originalidade, relativamente aos códigos contemporâneos. Disciplina a figura e as atividades do Empresário e das Sociedades empresárias, e dos Institutos Complementares (registro, nome empresarial, prepostos e escrituração). l 5. A unidade do Direito Privado. Discute-se no campo doutrinário se a matéria de direito privado é uma só, ou se devemos considerá-la dividida em direito civil e direito comercial. O problema da unidade do direito privado consiste então em saber se deve considerar-se o direito civil como compreensivo de toda a matéria de direito privado ou, ao contrário, manter-se a clássica dicotomia direito civil — direito comercial. --------------------39 Pontes de Miranda, op. cit., p. 353. 40 Orlando Gomes. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro, p. 43. 41 Lei nM.121, de 27 de março de 1962. 42 Orlando Gomes, op. cit., p. 34. 43 Miguel Reale,O Projeto do Novo Código Civil,pA --------------------O direito civil é um direito cie formação histórica, contínua e jurisprudencial, no sentido de que resulta de longo processo iniciado pelos magistrados romanos, os pretores, e desenvolvido ao longo dos séculos sob a influência de fatores políticos, econômicos e sociais. O direito comercial surge posteriormente na Idade Média como ius mercatorum, o direito dos mercadores, criado especialmente para regular-lhes a atividade mercantil. O material com que se formou taram os estatutos das corporações mercantis, os costumes mercantis e a jurisprudência da cúria dos mercadores.44 Sua razão de ser estava na insuficiência do direito civil, conservador, estático, pouco flexível para atender às necessidades da vida mercantil, em franco desenvolvimento, por força da revolução comercial, a partir do século XI. O direito comercial nasceu assim como direito da classe mercantil, aplicando-se quando uma das partes da relação jurídica fosse comerciante, e a matéria basicamente de obrigações e contratos. E enquanto o direito civil garantia a segurança e a estabilidade das instituições, das quais a mais importante era a propriedade, e o contrato o seu meio de disposição, o direito comercial separava o contrato da propriedade, atribuindo ao primeiro funções especulativas. O contrato passava a ser o instrumento jurídico de realização do lucro, por meio das relações dos comerciantes com os produtores das mercadorias, com os proprietários dos bens e com os consumidores dos produtos que punha no comércio. Depois de várias codificações,45 entra em vigor, em 1807, o Código Comercial francês, considerado "o pai de todos os códigos comerciais modernos". Configura-se, desse modo, a dicotomia direito civil-direito comercial, com dois sistemas legais, dois códigos diferentes, o Código Civil da burguesia fundiária, estabelecida sobre a propriedade do solo urbano e do solo rural que conservava e usufruía, e o Código Comercial, da burguesia comercial e industrial, que protegia a riqueza mobiliária e a sua valorização.46 Com o Código francês opera-se uma grande mudança: o direito comercial deixa de ser o direito de uma classe, a dos comerciantes, e passa a ser o direito dos atos do comércio, com peculiaridades próprias.47 O direito civil apresentava-se, então, como um direito da produção e do consumo dos bens, considerados no seu valor de uso, enquanto o direito comercial disciplinava a circulação dos bens, considerados no seu valor de troca, caracterizando-se ainda pela ausência de formalismo e maior rapidez nos seus atos, maior proteção ao crédito e presunção de solidariedade passiva nas suas obrigações. O Código Civil seria muito mais amplo, abrangendo também os direitos de família e das sucessões, vale dizer, o seu âmbito de aplicação seria o dos direitos patrimoniais e dos extrapatrimoniais. O surgimento e a evolução do direito comercial, primeiro um direito da classe dos mercadores ou comerciantes, depois um direito objetivo dos atos do comércio, suscita, a partir do século passado, notável polêmica em torno do problema da autonomia do direito comercial em face do civil, dividindo-se os juristas, uns a favor da divisão, outros defendendo a unidade do direito privado. Os adeptos da autonomia do direito comercial, com um Código distinto do civil, alegam que as relações jurídicas típicas do comércio exigem uma disciplina legal específica, capaz de atender às peculiaridades da atividade mercantil, como a simplicidade e a celeridade na prática dos atos, a maior proteção ao crédito, a disciplina dos títulos de crédito, os negócios em massa etc. O direito comercial surge, assim, como o direito da produção e da troca, o direito da nova realidade que é a empresa, atividade econômica organizada em vista da produção e da troca de bens e serviços.48 Os partidários da unidade acham que não se justifica essa autonomia por não haver um conjunto de normas dominado por princípios próprios e diversos dos que valem para o direito civil,49 além do que, para a categoria mais importante de relações, que é a dos contratos e das obrigações, a disciplina é uma só, não se distinguindo a comercial da civil. Além disso, o número e a influência crescente das empresas na atividade econômica têm feito com que o direito mercantil tenha perdido, gradativamente, a sua qualidade de direito especial para tornar-se em verdadeiro direito "geral", com uma progressiva comercialização do direito civil, como se vê na emigração, para o direito geral das obrigações, de institutos que antes pertenciam aos códigos do comércio, reduzindo-se o número dos contratos mercantis. Disso resulta, como imperativo, a unidade, pelo menos, do direito das obrigações e a redução do âmbito do puro direito mercantil como direito especial.50 Domina então, na doutrina, a idéia de que não há motivo para se distinguirem os atos civis dos comerciais, devendo unificar-se a matéria das obrigações, sem prejuízo da autonomia didática da matéria. No Brasil, já em 1867, Teixeira de Freitas propunha ao governo a unificação do direito privado, com um Código Civil abrangente de toda a matéria civil e mercantil, e um Código Geral, "dominando a legislação inteira", abrangendo "matérias superiores a todos os ramos da legislação", "sobre as leis em geral, sua publicação e aplicação", "regras de interpretação" e "providências sobre computação de prazos".51 Alegava o grande jurista não haver razão para "essa arbitrária separação de leis a que todos os atos da vida jurídica, excetuados os benéficos, podem ser comerciais ou não-comerciais, isto é, tanto podem ter por fim o lucro pecuniário como outra satisfação da existência. Não há mesmo alguma razão de ser para tal seleção de leis, pois que em todo o decurso dos trabalhos de um Código Civil aparecem raros casos em que seja mister distinguir o fim comercial dos atos, por motivo da diversidade nos efeitos jurídicos". Com esse mesmo pensamento manifestou-se Cesare Vivante, professor da Universidade de Roma, considerado o maior comercia-lista de todos os tempos. Em 1892, ao abrir seu curso na Universidade de Bolonha, criticou a divisão, direito civil-direito comercial e defendeu a unidade do direito privado, posição que, aliás, mais tarde reviu, ao elaborar o projeto de Código Comercial italiano. Em defesa da unidade, invocava, entre outros argumentos, os exemplos dos direitos inglês e americano, que não distinguem o civil do comercial, e o suíço, que unificou apenas a matéria obrigacional, com um Código das Obrigações ao lado do Código Civil. Em 1942 entra em vigor o Código Civil italiano, contendo em um só corpo legal todo o direito privado, compreendendo a matéria civil, a comercial e a do trabalho. E no Brasil, dentro do espírito da unidade, em 1941 uma comissão integrada por Orozimbo Nonato, Filadelfo Azevedo e Hahnemann Guimarães elabora um anteprojeto de Código de Obrigações, reunindo toda a matéria obrigacional. Essa tendência prevalece em 1963, quando o governo brasileiro decide reformar os códigos, elaborando-se um Código Civil e um Código das Obrigações. Modificando-se tal orientação, em 1975 opta o governo pela unidade do direito privado, constituindo comissão para rever o Código Civil, atualizando-o e a ele incorporando a matéria comercial, com a unidade do direito das obrigações e a teoria geral das sociedades, incluindo-se a matéria dos títulos de crédito e a das sociedades por ações. O Código Civil de 2002 optou assim, pela unificação do direito privado, pelo menos no que respeita ao direito das obrigações, mantendo-se o Código Civil como "lei básica, embora não-global do direito privado", na lista de pensamento de notáveis juristas como Teixeira de Freitas, Carvalho Mendonça, Lacerda de Almeida, Coelho Rodrigues, Carlos de Carvalho, Sá Viana, Alfredo Valladão, Carvalho Mourão, Inglez de Souza, J. X. Carvalho de Mendonça, Waldemar Ferreira, Otávio Mendes, Francisco Campos etc. Seus argumentos principais, como já visto, são que a dicotomia existente fere o princípio da igualdade, pois fatos da mesma natureza não devem ter disciplina diversa e que, no caso de haver duas jurisdições, uma civil e outra comercial, isso pode levar à insegurança na administração da justiça, além da progressiva comercialização da vida civil determinada pela evolução do capitalismo.52 A unidade do direito privado ou, pelo menos, do direito das obrigações, não prejudica, porém, a autonomia científica e didática do direito civil e do comercial. Tira deste, porém, a natureza de matéria especial. --------------------- 44 Joaquim Garrigues. Curso de Derecho Mercantil, p. 26; Francesco Galgano, Pubblico e privato nella regolazione dei rapporti economici, in Trattado di diritto comerciale e di diritto pubblico dell'economia volume primo, p. 4. 45 Na Inglaterra, o NavigationAct, em 1651; na Suécia, o Código de Comércio, cm 1667; na Dinamarca, o Código de 1683; na França, a Ordonnance sur lê Commerce de Terre (Código Savary), em 1673, e a Ordonnance sur lê Commerce da Mer, em 1681. 46 Galgano, op. cit., p. 67. 47 Philomeno J. da Costa, Autonomia do Direito Comercial, p. 33; João Eunápio Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre, p. 53. 48 Cesare Vivante, apud João Eunápio Borges, op. cit., p. 59; Remo Frances-chelli. Corso di diritto commerciale 1'imprenditore, p. 19. 49 Francesco Ferrara Júnior. Gli imprenditori e lê societá, pp. 18 e 19. 50 Joaquim Garrigues, op. cit., p. 31. 51 Teixeira de Freitas, em carta de 20 de setembro de 1867, ao Ministro da Justiça Martim Francisco Ribeiro de Andrade, apud Silvio Meira, op. cit., p. 347 c- segs. 52 Caio Mário da Silva Pereira, op. cit., n2 4; Manuel Broseta Pont. Manual de Derecho Mercantil, p. 52; Castan Tobenas, op. cit., p. 139; Mota Pinto, op. cit., p. 20. --------------------16. Cortíeúdo do direito civil. Os institutos fundamentais. Conteúdo do direito civil é o conjunto de direitos, relações e instituições que formam o seu ordenamento jurídico, o seu sistema legal. Sob o ponto de vista subjetivo, esse conteúdo são as relações jurídicas entre os particulares ou entre estes e o Estado, quando situados em posição de igualdade e coordenação. Sob o ponto de vista objetivo, o direito civil compreende as regras sobre a pessoa, a família e o patrimônio, ou de modo analítico, os direitos da personalidade, o direito de família, o direito das coisas, o direito das obrigações e o direito das sucessões, ou ainda, a personalidade, as relações patrimoniais, a família e a transmissão dos bens por morte. Pode-se assim dizer que o objeto do direito civil é a tutela da personalidade humana, disciplinando a personalidade jurídica, a família, o patrimônio e sua transmissão.53 Em seguida, a família, como grupo social básico e primário, fonte da primeira disciplina ou controle social do indivíduo. Em terceiro lugar, o patrimônio, conjunto de bens necessários à satisfação das necessidades humanas, garantindo a conservação da pessoa e da família. Para os que defendem a unidade do direito patrimonial, todo o direito privado é hoje direito civil, o direito privado comum ou geral, enquanto que o direito comercial ou mercantil seria direito especial. 17. A personalidade. A personalidade é, sob o ponto de vista jurídico, o conjunto de princípios e de regras que protegem a pessoa em todos os seus aspectos e manifestações. A partir do art. 1° da Constituição Federal, que consagra o princípio da dignidade da pessoa humana, compreende as prescrições constitucionais, civis, penais e administrativas que protegem os chamados direitos da personalidade, aqueles que têm como objeto os valores essenciais da pessoa no seu aspecto físico, moral e intelectual (Capítulo VII). O instituto da personalidade compreende, basicamente, o reconhecimento da pessoa como centro e destinatário do direito civil, como expressão da filosofia do personalismo ético.54 A personalidade é, então, o instituto básico do direito civil, e a pessoa, o seu núcleo fundamental. O direito protege-a e garante-lhe a reprodução e a conservação, por meio dos direitos da personalidade, do direito de família e do direito patrimonial. O instituto da personalidade compreende, assim, as normas sobre o princípio e o fim da existência, qualificação e exercício dos direitos das pessoas físicas e jurídicas. Projeção imediata do personalismo ético é o reconhecimento da pessoa como sujeito de direitos e deveres, da propriedade como direito de domínio limitado por uma função social e da autonomia privada como poder jurídico que os particulares têm, nos limites estabelecidos pelo Estado, de auto-regularem, por sua própria vontade, relações jurídicas de que são parte, e que têm no contrato e no testamento suas principais e mais freqüentes realizações. 18. A família. A família é uma das instituições fundamentais da sociedade. Seu estudo interessa à sociologia, como realidade ética, política e social, e ao direito, como fonte de relações sociais de reconhecida importância, pelos interesses individuais e coletivos que encerra. Sob o ponto de vista sociológico, a família é o mais importante grupo social primário, de geração espontânea e natural. Nela o indivíduo nasce, cresce, educa-se e prepara-se para o ingresso na sociedade. Suas principais funções são, portanto, de natureza biológica, garantindo a descendência e a permanência do grupo; educadora e socializadora, adequando o comportamento de seus membros aos valores dominantes no grupo familiar e na sociedade, transmitindolhes a linguagem, os hábitos, a cultura; econômica, proporcionando-lhes as condições materiais de subsistência e conforto, e psicológica, contribuindo para o equilíbrio, o desenvolvimento afetivo e a segurança emocional de seus membros. O conceito de família é histórico e relativo. Não existe família como termo absoluto e permanente, mas uma realidade social mutável, Se a família romana se caracterizava pela autoridade absoluta e pela hierarquia, na sociedade contemporânea verifica-se uma progressiva redução da família, reduzida ao par conjugai, à família nuclear, com pequena prole, onde se materializa o princípio da igualdade dos cônjuges e dos filhos. A originária família patriarcal, articulada em função de uma necessidade de autosuficiência, perde gradativamente sua função econômica, integrando-se os seus membros nas estruturas sociais e produtivas externas.55 O conceito de família também não é preciso em sua extensão. Em sentido amplo, compreende os descendentes do mesmo ancestral. Em sentido restrito, é o grupo formado pelos cônjuges, ou companheiros, e seus descendentes, ou ainda, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.56 Sob o ponto de vista jurídico, a família é uma instituição, isto é, um grupo social ordenado e organizado segundo disciplina própria que é o direito de família. De modo mais analítico, é um conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo do casamento ou pela relação de parentesco. O direito de família é o conjunto de princípios e normas que disciplinam e organizam as relações entre os membros da mesma família, isto é, entre os cônjuges e entre os parentes. Compreende, especificamente, as normas sobre o casamento e seus efeitos pessoais e patrimoniais, a dissolução da sociedade conjugai, as relações de parentesco e os institutos de proteção aos incapazes, compreendendo, a tutela, a curatela e a ausência. Sua importância é tão grande e tão manifesta a presença, na sua matéria, dos costumes e dos valores morais, sendo esse ramo do direito o mais sensível às mudanças da sociedade em geral, que se torna constante a presença do Estado na disciplina de suas relações jurídicas. Sendo prevalentes os interesses da sociedade e do Estado na proteção da família, e não havendo campo, na sua disciplina legal, para o exercício da autonomia privada, predominando as normas imperativas, discutem os juristas sobre a inclusão do direito de família no direito civil. O predomínio do dever em face do poder e a dificuldade em distinguir-se o direito da moral, fazem com que alguns autores defendam, se não a inclusão desse ramo no direito público, pelo menos a sua autonomia em face do direito privado.57 "A natureza dos objetivos familiares justifica a mais freqüente e penetrante ingerência do Estado, pois a tutela de interesses maiores não pode ser realizada senão por um poder superior." Os princípios de direito de família são hoje de natureza constitucional58 e institucional e pertinentes 1) aos direitos familiares pessoais, compreendendo o princípio do casamento civil (C.F. art. 226, p. l2); o princípio da admissibilidade do divórcio (C.F. art. 226, p. 6£); o princípio da igualdade dos cônjuges (C.F. art. 226, p. 52); o princípio da igualdade dos filhos (C.F. art. 227, p. 6-} e Z) aos direitos familiares sociais, como o princípio da proteção da família (C.F. art. 6° e art. 226, p. 8°); o princípio da proteção da infância e da adolescência (C.F. art. 227, e seu p. 1°). As normas jurídicas de direito de família, segundo parecer dominante, são normas de direito privado, pois os interesses protegidos são predominantemente individuais, não obstante o interesse coletivo. Visam realizar valores de natureza ética, donde a grande influência da moral e da religião; são cogentes, imperativas, limitando ou até anulando a autonomia privada; sua interpretação é restrita e específica, diversa da dos outros ramos do direito, não se lhe aplicando, por exemplo, os critérios interpretativos do direito das obrigações, sendo também excepcional o recurso à parte geral do código; estabelecem a tipicidade dos atos de direito de família. A existência, validade e eficácia de tais atos exigem sejam respeitados as disposições legais de ordem material e formal que a lei estabelece, não tendo os-sujeitos autonomia para atuar de forma diversa da estabelecida para tais atos típicos, como o casamento, a adoção, o divórcio, o reconhecimento de filho extramatrimonial. São fontes do direito de família a Constituição Federal (arts. 226 a 230), o Código Civil (arts. 1.511 a 1.783), e legislação especial referente ao matrimônio, à união estável e às relações de parentesco.59 Reconhece-se, assim, a família de fato, aquela que se baseia na simples convivência pessoal, sem casamento. Saliente-se ainda que o progresso nas áreas da medicina e da biologia, com as descobertas de novas técnicas de reprodução humana (inseminação artificial, fecundação in vitro, transferência de embriões) e a possibilidade de manipulações genéticas, que dão acesso ao conhecimento da estrutura e da função do material genético (ADN), repercute na família, nas relações da filiação e do matrimônio. Essas técnicas revolucionaram os conceitos de paternidade e da maternidade, colocando-nos no umbral de um novo direito de família e superando a instituição tradicional, centrada no casamento e em, hoje insubsistentes, presunções legais60 do que é prova o reconhecimento da união estável e a possibilidade da prova genética no estabelecimento da filiação. 19. A propriedade. A propriedade é um dos institutos jurídicos fundamentais e o mais importante dos direitos privados. Por sua ligação com os demais institutos civis, é elemento básico do direito patrimonial. Protegido pela Constituição como direito fundamental (CF, art. 5°, XXII) e como princípio da Ordem Econômica e Financeira (CF, art. 170, II), é regulada, como categoria unitária, pelo Código Civil (arts. 1.228 a 1.368). Juntamente com a autonomia privada, é projeção imediata, na ordem jurídica, do individualismo que marcou o direito civil dos séculos passados. Como reação do iluminismo aos privilégios e do sistema feudal, permitia ao indivíduo isolar-se dos demais no uso, gozo e fruição dos seus bens, de modo absoluto e exclusivo. O direito de propriedade consiste no poder jurídico de alguém usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los de quem injustamente os possua (CC, art. 1.228). É o direito subjetivo por excelência, o mais complexo e absoluto, definido na lei civil e garantido consti-tucionalmente (CF, art. 52, XXII), como suporte da vida econômica individual. A descrição contida no Código Civil é analítica e estrutural, destacando as diversas faculdades jurídicas que compõem o direito de propriedade, o jus utendi (direito de usar), o ius fruendi (direito de fruir, gozar, de perceber seus frutos) e o ius abutendi (direito de dispor). Mas o proprietário também tem deveres, pelo que o direito de propriedade mais se apresenta como uma situação jurídica compreensiva de poderes e deveres, o que vem a caracterizar a sua função social. O direito romano usava inicialmente o termo dominium e depois proprietas como poder de uma pessoa sobre seus bens, móveis e imóveis e até pessoas, consideradas como elementos do patrimônio (mulheres, filhos, servos, escravos). O direito medieval, que com os glosadores e pós-glosadores desenvolveu elaborada teoria geral dos direitos subjetivos, considerava-a como atributo da personalidade humana, em sentido filosófico, e passou a utilizar o termo proprietas, característica do que pertence à própria pessoa. Na época moderna, consagrada pelo liberalismo e definida pelo Código de Napoleão (art. 544), a propriedade consagrou-se como um direito unitário, absoluto, perpétuo, exclusivo e ilimitado. Unitário no sentido de haver um só tipo de propriedade, ou domínio, embora passível de conteúdos diversos. Absoluto, por deixar ao arbítrio do seu titular --------------------53 "A personalidade é a idéia básica do direito civil e a pessoa humana o ponto de partida para a disciplina da convivência humana". Espin Canovas, Manual de Darccho Civil Espanol, I, p. 31. 54 Karl Larenz, op. cit, p. 24. 55 Luigi Russo, La famiglia e il diritto, in Diritti civili e istituti privastici, p. 164. Paulo Lobo, op. cit., p. 53. 56 C.F. art. 226, par. 42. Sobre mudanças contemporâneas no instituto da filiação, cfr. Luiz Edson Fachin, Da paternidade. Relação biológica e afetiva, l Icloisa Helena Barbosa, A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização in vitro. Maria Helena Diniz. O estado atual do biodireito. 57 Antônio Cicu, // diritto di famiglia. Teoria generale. 58 Cfr. Gustavo Tepedino, A disciplina civil-constitucional das relações familiares, in A nova família: problemas e perspectivas, p. 47 a 71. 59 Decreto-Lei 3.200, de 19 de abril de 1941, dispondo sobre a organização e proteção da família, permitindo o casamento de colaterais de terceiro grau, mediante prévio exame que demonstre a inexistência de inconvenientes sob o ponto de vista da saúde; Lei 883, de 21 de outubro de 1949, dispondo sobre reconhecimento de filho extramatrimonial; Lei 5.478, de 25 de julho de 1968, sobre a ação de alimentos; Lei l . 110, de 23 de maio de 1950, regulando os efeitos civis do casamento religioso, revogada nos arts. \- a l- pela Lei n? 6.015, 31/12/1973 (arts. 71 a 75); Lei 4.121, de 27 de agosto de 1962, alterando a situação jurídica da mulher casada, dando-lhe novo estatuto; Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos, na parte referente ao Registro Civil das Pessoas Naturais; Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977, que regula os casos de dissolução da sociedade conjugai e do casamento; Lei 8.009, de 29 de março de 1990; Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.560, de 29 de dezembro de 1992, que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento; Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, que regula o direito dos companheiros à alimentação e à sucessão; Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que trata do planejamento familiar previsto no par. l- do art. 226 da Constituição Federal; Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, que regula o par. 3S do art. 226 da Constituição Federal dispondo sobre a união estável; Lei 9.975, de 23 de junho de 2000. 60 Cfr. Eduardo de Oliveira Leite, Procriações artificiais e o direito, 1995; Sawen, Regina Fiúza e Hryniewicz Severo, O direito in vitro. Da bioética ao biodireito, Heloisa Helena Barboza, A filiação em face da inseminação artificial e da fertilização "in vitro", Guilherme Freire Falcão de Oliveira, Mãe só há duas. O contrato de gestação, Paula Martinho da Silva, A procriação artificial. Aspectos jurídicos. Cfr. Simão Isaac Benjó, União Estável e seus efeitos econômicos em face da Constituição Federal, pp. 59 e segs.; Semy Glanz, União Estável, pp. 71 e segs. Zeno Veloso, União Estável. --------------------a decisão sobre a conveniência e modo de seu aproveitamento. Perpétuo, por não se extinguir pelo não uso. É a duração física da coisa que determina a permanência do direito.61 Exclusivo, porque com eficácia erga omnes, tendo o proprietário direito de impedir qualquer invasão na esfera do seu poder.62 Ilimitado, no sentido da indeterminação do exercício das faculdades que o compõem, e por isso mesmo elástica, porque suscetível de contração e distensão, conforme seja privada ou não, de qualquer das suas faculdades. Assim sendo, a propriedade era considerada projeção da personalidade individual e, conseqüentemente, protegida por ser um de seus atributos. Nos ordenamentos jurídicos da época moderna (séc. XVIII e XIX) propriedade e liberdade são intimamente ligadas. A propriedade configura-se, assim, como um poder pleno e exclusivo do proprietário, e como um princípio de organização política e econômica da sociedade liberal.63 À propriedade privada cabe, por isso, o papel de princípio organizativo das relações econômicas e sociais, que está na base da sociedade moderna gerada pela Revolução Francesa.64 Conseqüentemente, existe profunda conexão entre propriedade, empresa e mercado.65 A propriedade é um dos institutos jurídicos que mais diretamente refletem as mudanças nas condições econômicas e sociais e, portanto, objeto de particular atenção dos historiadores, filósofos e economistas. O século XX assiste a grandes transformações na propriedade, como instituição e como direito, por efeito do processo de mobilização e de desmaterialização da riqueza.66 Constata-se o declínio da noção unitária da propriedade, desenvolvendo-se a idéia de um instituto plural. Não mais a propriedade mas as propriedades, dada a diversidade do objeto (propriedade mobiliária e imobiliária, propriedade urbana e rural ou agrária, propriedade de águas, de minas, propriedade intelectual, industrial, patentes, marcas, propriedade literária, artística e científica, etc.). A propriedade contemporânea apresenta-se, assim, caracterizada pelo pluralismo de seus objetos, tendo mais significado a atividade do que a titularidade do sujeito proprietário, em função do interesse social. De sentido inicialmente estático, como previsto no Código Civil, é hoje um instrumento de que se utiliza a dinâmica iniciativa econômica. Com as transformações da sociedade contemporânea, a idéia do social começa a prevalecer sobre a do individual, levando a uma intervenção crescente do Estado no domínio econômico, que suscita dois novos temas, o da função social e o do abuso do direito.67 A função social da propriedade e o abuso do direito são construções teóricas, decorrentes da passagem do Estado de Direito, ou liberal, de atividade negativa no sentido de limitar-se a garantir "o livre jogo dos poderes e interesses individuais", para o Estado Social, de ação positiva no sentido de intervir na ordem econômica e social, tendo em vista os interesses coletivos. A função social liga-se ao exercício da propriedade de acordo com as exigências do bem comum. Significa que o proprietário não tem apenas poderes, mas também deveres no exercício do seu direito. Com tal sentido, dispõe o Código Civil no par. 1° do seu artigo 1.228 que "O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecimento em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas." No caso da propriedade rural, ela cumpre a sua função social quando tem aproveitamento adequado; quando utiliza bem os recursos naturais disponíveis e preserva o ambiente; quando respeita as disposições normativas do trabalho, e quando a sua exploração favorecer o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (CF art. 186). O abuso de direito resulta da concepção segundo a qual os direitos subjetivos não podem ser exercidos de modo a prejudicar terceiros. Nascida e diretamente ligada ao direito de propriedade, essa teoria aplica-se tanto aos direitos patrimoniais quanto aos ex-trapatrimoniais, como, por exemplo, o exercício abusivo do pátrio poder, no caso de proibição de visita dos netos aos avós.68 Seu problema consiste, no final de contas, no estabelecimento de limites ao exercício dos direitos subjetivos, que não podem exceder os impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou econômico desse direito.69 O abuso de direito é hoje considerado um ato ilícito (CC. art. 187). No caso específico da propriedade, proibem-se os "atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem". (CC. art. 1.228, par. 2°). O sistema jurídico da propriedade compõe-se hoje, no direito brasileiro, de a) normas constitucionais, que a reconhecem como direito fundamental (C.F. art. 5-, caput), estabelecem a sua garantia (C.F. art. 5-, XXII), e a condicionam à sua função social e permitem a desapropriação (C.F. art. 5-, XXIV); b) normas ordinárias, do Código Civil (arts. 1.228 a 1.368) e leis especiais. 20. O contrato. Se a propriedade é um dos institutos fundamentais da ordem jurídica privada, constituindo-se na base da vida econômica dos indivíduos, e no instituto básico do direito civil no campo da estática patrimonial, o contrato e as relações jurídicas dele decorrentes, as obrigações, são o elemento dinâmico do direito patrimonial, tendo por objetivo a cooperação das pessoas por meio da prestação de serviços, e a circulação dos bens econômicos. Propriedade e contrato são assim os institutos representativas do individualismo jurídico e da liberdade no direito civil, de modo a poder afirmar-se ser o direito civil o ordenamento jurídico dos particulares, fundado no princípio da igualdade de poder perante a lei e construído com base no reconhecimento de uma esfera de soberania individual, cujas mais evidentes manifestações são o princípio da liberdade, com referência à pessoa, a propriedade, com referência à relação pessoa e bens da vida, e o contrato, com referência à atividade livre e discricionária dos indivíduos. Tais aspectos permitem caracterizar o objeto ou a matéria do direito civil, como aquele conjunto de relações ou setor de experiência jurídica em que desempenha papel proeminente a autonomia reconhecida aos indivíduos e que se traduz na liberdade, como valor individual, na propriedade, como senhoria dos bens, e na autonomia privada, como poder de auto-regulamentação jurídica dos próprios interesses por meio do negócio jurídico, de que são mais importantes espécies o contrato e o testamento. Tais institutos seriam a expressão das três liberdades fundamentais do direito civil, a liberdade de contratar, a liberdade de ser proprietário e a liberdade de testar, liberdades essas às vezes limitadas pela intervenção do Estado no âmbito da autonomia individual, por meio das regras de ordem pública e dos bons costumes.70 O contrato é o acordo de vontades contrapostas para o fim de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas, em que uma das partes pode exigir da outra uma prestação específica. E a figura-símbolo da igualdade formal dos sujeitos jurídicos,71 e constituise na fonte principal das obrigações. 21. A responsabilidade civil. Além da personalidade, da família, da propriedade e do contrato, a responsabilidade civil é também instituto fundamental do direito privado. A expressão responsabilidade civil significa, em senso estrito, a obrigação de indenizar decorrente de ato ilícito. Seu fundamento é, na doutrina clássica e tradicional, a culpa. Modernamente, com as mudanças nas condições de vida, o princípio da culpa tem-se mostrado insuficiente, desenvolvendo-se a tese de que o dano deve ser indenizado independentemente da culpa do agente, bastando o risco decorrente de uma atividade econômica lucrativa. Temos, assim, duas espécies de responsabilidade, a subjetiva, baseada na culpa do agente, consubstanciada na prática de ato ilícito (CC, art. 186), e a objetiva, especificamente determinada em lei72 (CC. art. 931). Outra classificação, aliás, consagrada nos códigos em geral, é a que distingue a responsabilidade contratual da extracontratual, con-----------------61 Vicent L. Montes, La propriedade privada en ei sistema dei derecho civil contemporâneo, Madrid, p. 70. 62 Montes, op. cit., p. 75. 63 Vicenzo Roppo, Istituzioni di diritto privato, p. 234. 64 Barcellona, op. cit., p. 252. 65 Idem, p. 275. 66 Roppo, op. cit., p. 235. 67 Francesco Lucarelli, Diritti civili e istituti privatistici, pp. 208 e 210. 68 Orlando Gomes, op. cit, p. 116. 69 Código Civil português, art. 344. 70 Franz Wieacker. Dirítto privato e società industriale, p. 13. 71 Pietro Barcellona. Diritto privato e processo econômico, p. 53. 72 V. adiante, cap. XVII. -----------------formo a natureza do direito lesado. Quando o comportamento lesivo do agente ofende direito subjetivo relativo, inserido em uma relação jurídica obrigacional, geralmente nascida de contrato, a responsabilidade é contratual. Se o direito subjetivo lesado é absoluto, independente de relação jurídica preexistente, a responsabilidade é extracontratual, e tem sua origem no ato ilícito (CC, art. 186). A responsabilidade civil é hoje um dos mais criativos setores da ciência jurídica. Novos desafios sociais, causados pelo enorme progresso industrial e tecnológico, pelas novas formas de energia e também de exercício profissional, exigem novas respostas jurídicas. Desenvolve-se uma teoria geral da responsabilidade e inúmeras responsabilidades especiais, como a responsabilidade profissional (advogados, médicos, fabricantes, transportadores, construtores, banqueiros, administradores de empresas etc), a responsabilidade ambiental, a responsabilidade do Estado etc. 22. A sucessão hereditária. Como último instituto, temos a sucessão hereditária, com a qual se conservam os bens dentro da mesma família por gerações sucessivas. O fenômeno sucessório, disciplinado no direito das sucessões, consiste na substituição da pessoa, por sua morte, na titularidade de seu patrimônio, que é a herança, pelas pessoas que o falecido indicar no ato de última vontade, chamado testamento (sucessão testamentária), ou, na ausência dessa disposição, na forma disposta em lei (sucessão legítima). No fenômeno sucessório manifestam-se três ordens de interesse: o individual, do falecido, que atribuiu seus bens por meio de testamento; o familiar, garantido pela legítima reserva, isto é, a parte da herança que a lei estabelece em favor dos herdeiros necessários (CC, arts. 1.845 e 1.850), e pelas disposições legais que se aplicam no caso de não haver testamento; e o social, representado pelos impostos e taxas devidos pela transmissão dos bens e pelos processos judiciais e administrativos a ela pertinentes, e pela hipótese de herança vacante quando, não comparecendo herdeiros do falecido, a herança vai para o Estado. A sucessão pode ser legítima ou testamentária, conforme a ela se apliquem as normas legais ou as que o falecido estatui no ato, de última vontade, que é o seu testamento. O Direito Civil. Gênese e Evolução. Í5f 23. O direito civil contemporâneo. Tendências e características. O direito civil contemporâneo atravessa uma fase de transformações nos seus valores e nos seus aspectos formais e materiais, perdendo a nitidez e a clareza da sua construção inicial e gerando as incertezas que marcam a chamada crise do direito. Esta é uma crise de paradigmas, que se revela na inadequação dos institutos jurídicos herdados do direito moderno (séc. XIX) para a solução dos problemas da sociedade contemporânea. À semelhança do direito em geral, o direito civil tem como valores fundamentais a segurança e a justiça, e como valores específicos a liberdade e a igualdade. No seu aspecto formal é o Código Civil a sua maior expressão, constituindo, com leis especiais e com dispositivos da própria Constituição, o vasto sistema jurídico de direito privado. Que alterações se vislumbram em tal conjunto? Em primeiro lugar a segurança, valor fundamental dos códigos civis do século passado, que, consagrando a separação entre a sociedade civil e o Estado, visavam proteger a liberdade do indivíduo na sua vida particular contra a ingerência do poder político. Desse valor nasceu a pretensão de estabilidade dos códigos, considerados como capazes de abarcar em todo o seu sistema a multiplicidade das relações jurídicas privadas. Constatando-se, porém, a incapacidade do sistema econômico de resolver, por si só, os problemas inerentes ao seu funcionamento, tornou-se inevitável a intervenção do Estado no campo da economia, levando a segurança individual a ocupar lugar secundário na hierarquia axiológica que fundamentava as instituições civis do século passado, em favor da segurança coletiva e do bem comum. Em segundo lugar, a justiça, como valor em si, dá lugar à justiça social, noção de contornos imprecisos que significa a justiça que exige de todos e de cada um o necessário para o bem comum. Seu objetivo é a distribuição mais eqüitativa das riquezas entre os homens e, nesse particular, constitui-se em um dos pontos fundamentais da doutrina social da igreja, sendo consagrado na Constituição brasileira, no seu capítulo da ordem econômica e financeira (CF, art. 170). Mas é na liberdade, em suas vertentes da autonomia privada e no direito de propriedade, pleno e absoluto, que se manifestam as mais profundas modificações. Desde o início do século, com as exigências de mudança impostas pela revolução industrial, que mostrava a diferença cada vez maior entre a igualdade jormal, de todos perante a lei, e a desigualdade material, que afastava as classes menos favorecidas, vem o Estado servindo-se do direito não mais para garantir a ordem e a segurança, mas, principalmente, para promover reformas sociais. O Estado liberal, Estado burguês ou Estado de Direito, assim conhecido porque submetido ao ordenamento jurídico por ele próprio elaborado, caracterizava-se pela separação dos poderes, pela limitação do poder político, pela garantia dos direitos individuais, pela distinção direito público/direito privado e pela abstração e generalidade das normas respectivas. Sua função básica era garantir os direitos, principalmente a liberdade e a propriedade. Com a intervenção crescente do poder público na economia e no trabalho, reconhecendo o direito dos trabalhadores, protegendo a família, instituindo a previdência social, criando mecanismos de controle de preços, intervindo, enfim, na matéria até então reservada à iniciativa individual, o Estado de Direito transforma-se em Estado social,73 tão bem estruturado na Constituição de Weimar,74 caracterizando-se pela prioridade concedida à justiça social, pela supremacia da segurança coletiva sobre a individual e pela importância dos direitos econômicos, sociais e culturais dos cidadãos.75 Com o advento do Estado social ou intervencionista, o individualismo típico e fundamental do direito privado, expresso nos códigos civis francês e alemão, entra em crise, como resultado da contradição entre os ideais jurídicos da burguesia e o anseio da justiça das classes menos favorecidas. O valor da liberdade supera-se com o ideal da socialização e da presença do Estado na economia. A autonomia privada vem a ser gradativamente limitada por princípios e normas que, regulando os interesses fundamentais do Estado ou estabelecendo, no direito privado, as bases jurídicas da ordem econômica e moral da sociedade, passam a constituir a chamada ordem pública. Divide-se esta, quanto às suas finalidades, em ordem pública política e moral, pertinente à organização do Estado e dos poderes públicos, da família e dos bons costumes, e ordem pública econômica e social, que compreende a ordem pública de direção (intervencionismo e dirigismo estatal) e de proteção (disciplina dos contratos, proteção ao consumidor, contratos de adesão, contratos regulamentados etc.). Mesmo assim permanece a autonomia privada como princípio fundamental, embora limitada, no seu campo de atuação, pela ordem pública e pelos princípios da justiça contratual e da boa-fé.76 Justiça contratual é a justiça comutativa, segundo a qual, nos contratos, cada parte deve receber o equivalente ao que dá. A boa-fé, complemento da justiça contratual, é a lealdade das partes no cumprimento de suas prestações. A propriedade é outro instituto que sofre substanciais mudanças, deixando de ser um direito absoluto e passando a ter função social, como disposto na Constituição Federal, art. 170, III. A propriedade é um direito subjetivo que consiste no poder da pessoa usar, gozar, dispor e reivindicar seus bens (CC, art. 1.228). Por sua importância no sistema jurídico, considera-se também uma situação jurídica ou até um instituto jurídico. O termo função contrapõe-se a esse direito, pois traduz um poder que deve ser exercido no interesse de outrem. Pode a propriedade ser, ao mesmo tempo, direito e função, no sentido de o proprietário utilizar o bem no seu interesse, e, simultaneamente, no interesse de outrem? Essa contradição dialética supera-se com o entendimento de que a função social diz respeito não ao direito em si mas às coisas que formam o seu objeto.77 O que a norma constitucional pretende é estabelecer uma exigência de destinação social, ou seja, um aproveitamento comum dos recursos e das riquezas, mobiliárias e imobiliárias, ainda que sejam de propriedade particular. O proprietário tem, além de poderes, deveres. A propriedade deixa de ocupar, assim, a posição central que lhe reconheciam os códigos civis do século passado, de modo coerente com a evolução econômico-social, pois não é idêntico o papel da propriedade em uma economia agrária e em uma de capitalismo avançado, como é a dos nossos dias.78 O interesse social supera o interesse individual. Outra particular mudança que se verifica é a fragmentação do tradicional conceito unitário de propriedade. Não mais só uma disciplina da propriedade, mas diversas, correspondentes aos vários processos de utilização dos bens. Não mais uma propriedade, mas várias propriedades. Não mais a unidade conceituai do direito subjetivo, mas o pluralismo dos estatutos da propriedade. A nova propriedade caracteriza-se, desse modo, pela relatividade do direito e pela variabilidade do seu conteúdo,79 de acordo com o tipo de destinação e de organização. Várias propriedades são diferenciadas no seu conteúdo, como a propriedade imobiliária urbana e a propriedade rural, a propriedade industrial, a propriedade dos bens de produção e de bens de consumo, a propriedade pública e a particular, a propriedade individual e a coletiva.80 O direito de família também sofre profundas alterações. Aumenta o número de uniões livres e o Estado reconhece-as, dando assim eficácia jurídica a situações de fato. Disciplina-se o divórcio, desenvolvem-se os métodos de prova no reconhecimento da filiação, regulamenta-se a inseminação artificial. Socializam-se os deveres familiares e o Estado intervém na disciplina desses deveres. Desaparece o poder marital, os cônjuges equiparam-se na titularidade de direitos e deveres, assim como os filhos. O pátrio poder transforma-se em pátrio dever. Enfim, os princípios da liberdade e da igualdade compatibilizam-se com os interesses superiores da família, como realidade subjacente, fixando-se, como regras jurídicas, no texto constitucional. Essas transformações acentuam-se com as mudanças sociais do pós-guerra e, principalmente, nas últimas décadas, com a revolução tecnológica, a mundialização da economia, o progresso da medicina e da biologia, que permitem o controle da reprodução e da genética, a massificação nas relações de consumo e nos meios de comunicação, configurando as seguintes tendências e características do direito civil contemporâneo: I) Interpenetração do direito civil com o constitucional, o que representa, para alguns, a constitucionalização do direito civils} no sentido de que "matérias tratadas pelos civilistas entraram na Constituição", e para outros, a civilização do direito constitucional, representando a substituição dos fundamentos constitucionais do direito civil pelos fundamentos civis do direito constitucional,82 tudo isso traduzindo, de imediato, a superação da clássica dicotomia direito público/direito privado. Na verdade, o direito civil constitucional é materialmente direito civil contido na Constituição e só formalmente direito constitucional. E a Constituição Federal preside, por sua própria natureza, a ordem jurídica brasileira. II) Personalização do direito civil, no sentido da crescente importância da vida e da dignidade da pessoa humana, elevadas à categoria de direitos e de princípio fundamental da Constituição. O princípio da subjetividade jurídica do direito moderno, expresso na figura do sujeito de direito como centro de atribuição de direitos e deveres, evolui para o princípio do personalismo ético, da época contemporânea, segundo o qual todo ser humano é pessoa, individual e concreta. O homem, porque é pessoa em sentido ético, é um valor em si mesmo, o que legitima o surgimento de uma nova categoria jurídica, a dos Direitos da Personalidade. A personalização do direito não leva, porém, à diminuição de importância da esfera patrimonial individual. O homo privatus é ainda e sempre, um homo oeconomicus, "portador de exigências econômicas juridicamente relevantes", como atesta a introdução recente de novas figuras contratuais, próprias da sociedade pós-in-dustrial (leasing, merchandising, franchising, know how, engineering, factoring, contratos na informática, alienação fiduciária em garantia). A existência de um novo ramo, o direito econômico, conjunto de normas e princípios relativos às relações de produção, demonstra, também, a vitalidade das relações econômicas.83 A crescente integração dos sistemas econômico e jurídico é típica da sociedade industrial contemporânea, de que é testemunho o planejamento econômico. O Estado é chamado a intervir para organizar as relações econômicas entre os particulares, ou entre estes e o próprio Estado, aplicando normas de direito administrativo, que, visando regular a economia, orientando a produção e disciplinando o consumo, toma o nome de direito econômico. III) Desagregação do direito civil. Fenômeno típico das épocas de mudança, o direito civil, neste século, vem-se marcando por uma crescente separação em ramos jurídicos autônomos, alguns com princípios próprios, outros vinculados ainda aos princípios fundamentais do direito civil. Surgem o direito do trabalho, o direito agrário, o direito previdenciário, o direito imobiliário, o direito aeronáutico, o direito bancário, o direito industrial, o direito notarial, etc., inexistentes no século passado, que se formam devido à crescente complexidade das relações jurídicas, a exigirem do legislador disciplina específica e autônoma. IV) Surgimento dos micros sistemas jurídicos. Como conseqüência direta dessa tendência, e também do grande número de leis especiais em relação ao Código Civil, disciplinando, com princípios próprios, matéria até então integrada nesse diploma, surgem sistemas específicos, menores, verdadeiros microssistemas legais, como o das sociedades por ações, o estatuto da terra, o do mercado de capitais, o da legislação bancária, o do inquilinato, o da responsabilidade civil, o dos direitos autorais, o dos seguros, o da propriedade industrial, o da proteção ao consumidor etc., a provocar significativa alteração na teoria das fontes e na interpretação do direito. O direito civil acompanha, assim, as transformações da sociedade contemporânea, superando o modelo do liberalismo clássico, mas conservando, como objetivo básico, a tutela de uma esfera de autonomia reconhecida ao particular, como expressão de seu valor como pessoa. V) Reservas à codificação. Os códigos civis que serviram de modelo foram o Código Civil francês, de 1804, e o Código Civil alemão, de 1896. O primeiro representava o triunfo do individualismo liberal. Consagrava o direito da propriedade como absoluto, o princípio da autonomia da vontade (arts. 544 e 1.334) e a igualdade de direitos, dando substrato jurídico às conquistas da Revolução Francesa. O Código Civil alemão foi o mais perfeito resultado da O Direito Civil. Gênese e Evolução. A ideologia de ambos era a do "liberalismo em política, a do capitalismo na economia e a do individualismo no direito". A tendência atual não é uniforme em favor dos códigos. Várias razões justificam-na. A passagem para o direito constitucional dos princípios fundamentais do direito privado transformaria o Código Civil em um ordenamento jurídico residual. O Código Civil deixaria, assim, de ser o "estatuto orgânico da vida privada", perdendo as pretensões tradicionais de totalidade e generalidade com que abarcava todas as espécies de relações jurídicas privadas. Surgem os defensores da tese do esgotamento do processo histórico-cultural da codificação, advogando-se a regulamentação da matéria privada não mais por um código civil mas por códigos setoriais, temáticos, aptos a disciplinarem uma parte especial da matéria jurídica85. Isso não tem impedido, porém, a revisão e o surgimento de novos códigos, por exemplo, o de Cuba (1987), o dos Países Baixos (1970), o de Quebec (1994), o da Rússia (1994), o de Macau (1999). -------------------73 Paulo Bonavides. Do Estado Liberal ao Estado Social, p. 208. 74 É a Constituição do Reich alemão, aprovada em 11 de agosto de 1919 na cidade de Weimar. "É a primeira das grandes Constituições européias a interessar-se profundamente pela questão social, em contraste com a aparente neutralidade das constituições liberais do século passado". Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional, I, p. 193. 75 Marcelo Rebelo de Souza, Estado social, in Polis — Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, II, p. 1.190. 76 Jacques Ghestin. Traitê de droit civil. La formation du contraí, ps. 228 a 239. Sobre a boa-fé como limite ao exercício dos direitos subjetivos, cfr. Judith Martins Costa, A boa-fé no direito privado, p. 455 e segs., e Mário Júlio Almeida Costa, Direito da Obrigações, p. 95 e segs. 77 Francesco Galgano, Diritto privato, p. 115. 78 Stefano Rodotà, La proprietá e Vimpresa, in II diritto privato nella società moderna, p. 313. 79 Francesco Lucarelli. Diritti civili e istitutiprivatistici, op. cit., pp. 218 e 219. 80 Pietro Perlingieri. // diritto civile nella legalità costituzionale, p. 467. 81 Perlingieri, op. cit., p. 200; Maria Celina Bodin de Moraes, A caminho de um direito civil constitucional, in Direito, Estado e Sociedade, ns l, p. 59 e segs. Joaquim Arce y Flóres-Valdés, El derecho civil constitucional, p. 27 e segs. Carlos Martínez de Aguirre y Aldaz, El derecho civil a finales dei siglo XX, p. 75 e segs. 82 Christian Atias, La civilisation du droit constitutionnel, p. 435. 83 Luiz Diez-Picazo, Fundamentos dei Derecho Civil Patrimonial, I, p. 41. Cf. Orlando Gomes e Antunes Varela, Direito Econômico, p. 17 e segs. 84 Wieacker, apud Molitor-Schlosser, op. cit, p. 115. Pandectística, ou ciência das Pandectas, é uma construção abstrata, conceituai e sistemática do direito privado alemão, tendo por base o direito romano justiniâneo, feita pelos juristas alemães do séc. XIX, que possibilitaram, assim, o chamado usus modernum pandectarum por meio de perfeita e completa realização do método sistemático. Cfr. Giovanni Orrú, Pandeclistica, Digesto, XIII, p. 251. 85 Natalino Irti, L'ela delia decodificazione, p. 123. -------------------CAPÍTULO IV A Relação Jurídica de Direito Privado Sumário: l. Relação jurídica. Conceito e aspectos gerais. 2. Notícia históricodoutrinária. 3. Fundamento ideológico. 4. Natureza. 5. Importância da relação jurídica. 6. Estrutura e origem. 7. Conteúdo. 8. Espécies de relação jurídica. 9. Efeitos da relação jurídica. 10. A dinâmica da relação jurídica. Aquisição, modificação e. extinção de direitos. Os fatos jurídicos. 11. Aquisição de direitos. 12. Aquisição originária e aquisição derivada. 13. Direitos atuais e direitos futuros. Sua proteção. 14. Modificação de direitos. 15. Extinção dos direitos. 16. Relações de fato: a) a união estável; b] a sociedade de fato; c) a separação de fato; d] a filiação de fato; e e) as relações contratuais de fato. 1. Relação jurídica. Conceito e aspectos gerais. Relação jurídica é o vínculo que o direito estabelece entre pessoas ou grupos, atribuindo-lhes poderes e deveres. Representa uma situação em que duas ou mais pessoas se encontram, a respeito de bens^ ou interesses jurídicos. É conceito básico do direito privado, representando a situação jurídica de bilateralidade que se estabelece entre sujeitos, em posição de poder, e outros em correspondente posição de dever. Poderes e deveres estabelecidos pelo ordenamento jurídico para a tutela de um interesse1, entendendo-se como interesse a necessidade de bens materiais ou imateriais que se constituem em razão para agir. Como exemplos de relação jurídica podemos citar a relação de consumo, entre consumidor e fornecedor, a relação matrimonial entre cônjuges, a relação de parentesco entre descendentes do mesmo ancestral, a relação locatícia entre locador e locatário, a relação de condomínio entre os co-proprietários de uma coisa, a relação de responsabilidade civil solidária entre os que praticam um ato ilícito, a relação que existe entre os herdeiros do mesmo falecido etc. A relação jurídica é um dos critérios ou ângulos de apreciação do fenômeno jurídico. Sua principal fonte de referência é a experiência jurídica privada, conjunto de relações cujo conteúdo, isto é, os poderes e os deveres, é determinado pela autonomia dos particulares. Essa experiência particular consiste nas relações sociais de que os indivíduos participam e que, pela possibilidade potencial de gerarem conflitos de interesses, são disciplinadas pelo direito. A relação social assim regulada passa a denominar-se relação jurídica que apresenta, portanto, dois requisitos: um, de ordem material, que é a relação social, o comportamento dos indivíduos; outro, de ordem formal, que é a norma de direito incidente, que confere à relação social o caráter de jurídica2. A incidência da norma transforma a relação em um vínculo jurídico que se traduz em uma situação de poder e outra de dever ou de sujeição. Pode-se, portanto, dizer que, de modo abstrato, a relação jurídica é a relação social disciplinada pelo direito, e concretamente, é uma relação entre sujeitos, um titular de um poder, outro, de um dever. A relação social nasce de variadas causas, como, por exemplo, valores éticos, econômicos, políticos. A norma jurídica incidente é manifestação de poder do Estado ou de particulares no exercício da autonomia que lhe confere o sistema legal. A relação jurídica aprecia-se ainda sob o ponto de vista estrutural ou estático e funcional ou dinâmico. No primeiro caso, ela surge como um conjunto de elementos de ordem pessoal, os sujeitos da relação, entre os quais se configuram poderes e deveres que caracterizam o vínculo ou nexo jurídico, tendo por objeto os bens da vida. Sob o aspecto funcional, configura-se como o regulamento do caso concreto, a disciplina de situações ou de centros de interesses opostos. A relação jurídica representa, assim, o ordenamento dos casos da vida real, pelo que se justifica a visão doutrinária do sistema jurídico como um sistema de relações. Pode-se também dizer que o aspecto estático corresponde à estrutura da relação em si, enquanto o aspecto dinâmico se manifesta nos eventos que marcam a existência da relação, vale dizer, o seu nascimento, as suas modificações subjetivas ou objetivas, e a sua extinção, tudo isso por efeito dos fatos jurídicos. A relação é, assim, no seu aspecto dinâmico, um verdadeiro processo. Quando se configuram relações decorrentes de fatos jurídicos não típicos, isto é, não previstos no ordenamento jurídico, fala-se em relações de fato para significar aquelas situações desprovidas de uma estrutura jurídica definida, como é a da relação jurídica nascida de fatos típicos, mas que têm importância e significado para o direito. São exemplos comuns a sociedade de fato, a separação de fato, a filiação de fato e as relações contratuais de fato.3 2. Notícia histórico-doutrinária. O conceito de relação jurídica é produto da pandectística alemã. Introduzido por Savigny, consiste, ainda hoje, em uma das mais importantes categorias da técnica jurídica do direito privado e um dos mais importantes critérios de orientação da teoria geral do direito. Embora noção antiga, com antecedentes no direito romano (iuris vinculum, nexum, coniunctio), e no direito canônico medieval em matéria de casamento (relatio), foi com a pandectística alemã que se alçou à condição de conceito básico do sistema jurídico, considerada como "relação de pessoa a pessoa, determinada por uma regra jurídica". Era, assim, uma relação de vida reconhecida pelo direito. Com o evolver do direito civil, a relação jurídica passa a considerar-se como um nexo jurídico entre pessoas, significando a palavra nexo um vínculo, uma relação poder-dever entre duas pessoas. Com os juristas alemães do séc. XIX, que viam o direito como expressão da vida social e das relações que a constituem, a relação jurídica sofre uma dupla e complexa evolução. Por um lado, talvez pela circunstância de o direito civil ser, na época, o mais importante ramo do direito, tentou-se aplicar esse conceito aos demais ramos jurídicos. Foi um processo de extensão. De outra parte, a contribuição de outros juristas serviu para aperfeiçoar o conceito. Foi um processo de precisão.4 Savigny escreveu: "Toda relação jurídica aparece-nos como relação de pessoa a pessoa, determinada por um regra de direito que confere a cada sujeito um domínio onde sua vontade reina independente de qualquer vontade estranha. Em conseqüência, toda relação de direito compõe-se de dois elementos: primeiro, uma determinada matéria, a relação mesmo; segundo, a idéia de direito que regula essa relação. O primeiro pode ser considerado como elemento material da relação de direito, como um simples fato; o segundo, como o elemento plástico que enobrece o fato e lhe impõe a forma jurídica. Todavia, nem todas as relações de homem a homem entram no domínio do direito, nem todas têm necessidade, nem todas são suscetíveis de serem determinadas por uma regra de tal gênero. Cabe, pois, distinguir três casos: ora a relação está inteiramente dominada por regras jurídicas, ora está somente em parte, ora escapa a elas por completo. A propriedade, o matrimônio e a amizade podem servir como exemplo dos três diferentes casos."5 Idêntica à teoria de Savigny é a de Puchta,6 para quem as relações jurídicas são relações entre seres humanos, consideradas como manifestação da liberdade jurídica, vale dizer, da autonomia da vontade. Já Neuner considera a relação jurídica como relação entre uma pessoa e um bem da vida, reconhecido pelo ordenamento jurídico e garantido contra terceiros.7 Distinguindo a relação do direito subjetivo que encerra, esse autor contribui de modo relevante para a precisão do conceito. Ihering identifica a relação jurídica com o direito subjetivo dizendo que todos os direitos privados, exceto os de personalidade, dariam fundamento a uma relação jurídica entre o titular e o mundo exterior, pessoas e coisas. Todo o direito seria, portanto, ao mesmo tempo, uma relação jurídica, em que se distinguiria um lado ativo e um lado passivo,8 sendo que grande parte da doutrina posterior a Ihering tende a identificar a relação jurídica com o conteúdo dos direitos subjetivos, como ocorre com Gierke, Max Weber, Francesco Ferrara.9 Com perspectiva mais ampla, Dernburg definia a relação jurídica como uma relação juridicamente eficaz de uma pessoa para outras, ou para bens reais.10 Kholer e Chiovenda estendiam o conceito ao direito processual civil, denominando relação jurídica processual o conjunto de atos que integram o processo, sob a crítica de Carnelutti.11 Contribuindo para a precisão do conceito, Hohfeld12 afirma que a relação jurídica, fora do âmbito da pandectística, é mais do que a ligação entre pessoas ou entre estas e os bens da realidade externa. A relação jurídica seria o vínculo entre situações subjetivas, opinião que se consagra em obra recente, a de Perlingieri, para quem a relação deve ser vista, funcionalmente, como regulamento de interesses.13 No direito italiano, um dos mais fervorosos adeptos da relação jurídica, como expressão do direito, foi Levi,14 para quem c\sse conceito é a base sobre a qual se funda a construção sistemática ou científica de qualquer ordenamento jurídico. Esse autor eleva o conceito a um nível filosófico, como categoria fundamental e originária para a compreensão do direito. Para uma concepção diversa, a relação jurídica deve ser vista não como vínculo entre pessoas, mas como vínculo entre pessoas e ordenamento jurídico. É a tese de Kelsen, Cicala, Barbero.15 Para outros ainda, a relação jurídica pode estabelecer-se entre pessoas e coisas e entre pessoas e lugares.16 Qualquer que seja o entendimento seguido, o conceito de relação jurídica ocupa um lugar de relevo na teoria geral do direito, no direito civil e até na filosofia do direito. Se já a filosofia grega considerava o direito e a justiça como relação,17 é a filosofia medieval escolástica que destaca em todo o seu valor o aspecto relacionai da virtude, da justiça e de seu objeto, o "ius sive justum", com São Tomás de Aquino criando as bases definitivas para a elaboração de uma filosofia da relação de direito.18 A escolástica influencia os juristas glosadores e os decretalistas, que concebem a justiça e o direito em termos de relação.19 É, todavia, Savigny, e com ele a escola histórica, quem eleva esse conceito à categoria básica de ciência do direito, assim com faz Emmanuel Kant no campo da filosofia do direito. Para Kant, o direito era uma "relação de equilíbrio entre arbítrios externos conseguido por uma coação, a mínima indispensável". É a relação entre pessoas, como direitos e deveres, "o momento central da experiência jurídica".20 O conceito de relação jurídica é, desse modo, um conceito moderno na ciência do direito. Pertence ao direito privado, embora, por sua importância, seja também objeto da teoria geral do direito, e utilizado nos demais campos da ciência jurídica. Não obstante a sua utilidade, e também sua simplicidade, a relação jurídica, "como técnica de representação conceituai da realidade"21 tem recebido algumas críticas e até mesmo rejeição22, sob o argumento de que essa técnica, sobre ser produto da exagerada abstração pandectísta, conduz à subalternização da pessoa humana. Essas críticas, porém, se por um lado chamam a atenção para as limitações do instituto23, por outro não têm conseguido reduzir a sua importância e aceitação como conceito fundamental da ciência do direito.24 Cabe também destacar que essas críticas partem de uma visão formalista da relação jurídica, desconsiderando que, nela, o mais importante é o aspecto material, a relação social, cuja existência precede, muitas vezes, à formalização jurídica. 3. Fundamento ideológico. Se o Código Civil francês foi produto de uma concepção antro-pocêntrica, colocando o homem no centro do universo jurídico, a pandectística alemã tinha a pretensão de ser estritamente científica, neutra, rejeitando todo e qualquer sistema de idéias que servisse de fundamento ao direito. Este seria apenas um conjunto ordenado e unitário de elementos entre os quais alguns conceitos dedutíveis uns dos outros, conceitos fluidos como o da relação jurídica. Ocorre que o direito, tanto no seu sistema quanto nos seus conceitos e categorias, não é neutro. Suas normas representam os valores que se defendem e realizam, de modo que não se podem separar os preceitos jurídicos desses princípios que os fundamentam e legitimam. Conseqüentemente, sendo o Código Civil francês e a ciência das pandectas produto cultural do mesmo século e do mesmo ------------------1 Santoro Passarelli. Dottrine generali dei diritto civile, p. 69, Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, vol. l, p. 177 e segs.; Francisco Amaral, Relação jurídica, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 64, p. 407; Orlando de Carvalho. A Teoria Geral da Relação Jurídica, seu Sentido e Limites; Manuel Domingues Andrade., Teoria Geral da Relação Jurídica; Giorgio Lazzaro, Rapporto giuridico, in Novíssimo digesto italiano, vol. XIV, p. 787; Karl Larenz. Allgemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts (Teoria geral do direito civil), 8. Auflage, p. 161; Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 81 e segs.; Manuel Garcia Amigo. Insti-tuciones de Derecho Civil, l, Parte General, p. 219 e segs.; Pietro Perlingieri. // diritto civile nella legalitá costituzionale, p. 518 e segs.; Pietro Rescigno, Manuale dei diritto privato italiano, p. 241 e segs.; Joaquim Ferrer Arellano. Filosofia de Ias Relaciones Jurídicas, p. 183 e segs.; Bernardo Windscheid, Diritto delle Pan-dette, p. 172; Francisco Bernardino Cicala. // rapporto giuridico, p. 22; Friedrich Karl von Savigny. Sistema dei Derecho Romano Atual, \ p. 52; Werner Flume. Allgemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts (Teoria geral do direito civil), p. 161; Salvatore Palazzolo, Rapporto giuridico, in Enciclopédia dei Diritto, XXXVIII, p. 289 e segs. 2 "Toda relação jurídica apresenta dois elementos, um material, que é o vínculo intersubjetivo, e um formal, que é a incidência da regra jurídica sobre ele. Por isso a definição relações sociais reguladas pelo sistema jurídico", Luis Diez-Picazo Y Antônio Gullon. Sistema dei Derecho Civil, I, p. 400. 3 V. adiante, n2 16. 4 Lazzaro, op. cit, p. 787. 5 Savigny. op. cit., I, p. 258. 6 Georg Friedrich Puchta. Pandekten, § 29, apud Cicala, op. cit. p. 5. 7 Neuner. Wesen undArten derPrivatrechtsverhãltnisse, Kiel, 1866, p. 4. apud Cicala, p. 5. 8 Ihering. Passive Wirkungen der Rechte, in Gesammelt Aufsãtze, II, 1882, p. 4, apud Cicala, op. cit. p. 10. 9 Joaquim Ferrer Arellano. Filosofia de Ias Relaciones Jurídicas, p. 167. 10 Dernburg. Pandekten, I, apud, Cicala, op. cit. p. 11. 11 Lazzaro, op. cit. p. 788. Carnelutti critica essa concepção alegando não poder o processo considerar-se uma relação, mas um grupo de relações, visto que estas são vínculos entre poderes e deveres. 12 Lazzaro, op. cit. p. 788. 13 Perlingieri, Manuale di diritto civile, 1997, p. 68. 14 Alessandra Levi. Teoria generale dei diritto, 1967, p. 11. Cf. Amedeo Conte, Rapporto [Teoria dei diritto come), in Novíssimo digesto italiano, XIV, p. 785. 15 Hans Kelsen. Teoria pura do direito, p. 231; Cicala, op. cit. p. 22; Domenico Barbero. Sistema dei diritto privato italiano, I, p. 149. 16 Andreas von Thur. Teoria General dei Derecho Civil Alemán, p. 156; Orlando Gomes, op. cit., p. 118. 17 Giorgio dei Vecchio. A Justiça, p. 5-22. 18 Ferrer Arellano, op. cit. p. 71. 19 Michel Villey. El Derecho. Perspectiva Criega Judia y Cristiana, p. 63/64. 20 Emmanuel Kant, apud Bobbio. Teoria delia norma giuridica, p. 24; do mesmo autor, Diritto e stato nel pensiero di Emmanuel Kant, p. 112 e 118. 21 Castro Mendes. Teoria Geral do Direito Civil, I, p. 68. 22 Orlando de Carvalho. A Teoria Geral da Relação Jurídica. Seu sentido e limites; Antônio Menezes Cordeiro. Tratado de Direito Civil português. Parte Geral, I, p. 228 e ss. 23 Carvalho Fernandes. Teoria Geral do Direito Civil. I. 2a ed Lisboa Lex 1995, p. 97. 24 Cf. Antunes Varela. Direito das Obrigações. I, p. 40. ------------------conjunto de idéias, o individualismo, o princípio fundamental é a liberdade como imperativo categórico, expressa na mais ampla esfera de autonomia que se realiza nos institutos da propriedade, do contrato e da transmissão da herança. A relação jurídica surge, então, como um conceito representativo da idéia de ligação entre vontades autônomas e diversas, e que por isso mesmo se coloca no centro do sistema de direito civil, numa perspectiva interindividual: a vontade do sujeito como fundamento do individualismo jurídico, e este como justificação axiológica do poder jurígeno dos particulares.25 Não é por outra razão que o sistema jurídico se pode definir como um sistema de relações, no sentido de serem estas a disciplina legal dos casos concretos das relações sociais. Fundamento ideológico da relação jurídica, pelo menos na concepção personalista, é, assim, o individualismo, que tem como corolários imediatos o liberalismo, no campo político, e o capitalismo, no campo econômico.26 E a prova de que a teoria da relação jurídica tem suas raízes no individualismo dos iluministas está no fato de que um dos mais representativos cultores, Emmanuel Kant, considerava o direito como relação. Daí poder dizer-se que os seus fundamentos axiológicos são a moral Kantiana e a doutrina liberal-democrática e seu campo de incidência a experiência jurídica privada.27 4. Natureza. A evolução histórico-doutrinária leva-nos a duas concepções teóricas acerca da natureza do conceito da relação jurídica. Para a concepção personalista, clássica, amplamente dominante, a relação jurídica é vínculo entre pessoas, contendo poderes e deveres. Resulta da incidência da norma jurídica sobre as relações sociais que se transformam, por isso mesmo, em vínculos pessoais qualificados pela norma jurídica, vale dizer, vínculos normativos, nexos entre sujeitos de direito. Tal concepção corresponde, evidentemente, a uma visão priva-tista do direito, pois no direito público não se encontra tão claramente a hipótese de a relação jurídica resultar da qualificação de uma relação social preexistente. É Savigny quem mais claramente enuncia tal teoria ao escrever, como já visto, que "toda relação jurídica aparece-nos como vínculo de pessoa a pessoa (elemento material), determinado por uma regra de direito (elemento formal) que confere a cada indivíduo um domínio no qual sua vontade reina independentemente de qualquer outra vontade externa". Temos, assim, que a concepção personalista pressupõe dois elementos para que se forme uma relação jurídica: um, de ordem material, que é a relação social; outro, de ordem formal, que é a determinação jurídica que transforma a relação de fato em relação de direito; por isso a definição — relações sociais reguladas pelo sistema jurídico. A relação jurídica surge, conseqüentemente, como uma totalidade de efeitos jurídicos, um complexo de direitos e deveres derivado da relação entre duas pessoas. E a norma que determina o conteúdo da relação social, transformando-a em um vínculo jurídico. A concepção personalista da relação jurídica tem o mérito de estabelecer a relação entre termos homogêneos, os sujeitos de direito, e de considerar juridicamente relevantes os conflitos de interesses existentes entre as pessoas na sua convivência social. Melhor, talvez, fosse, visualizar a relação jurídica como vínculo não entre sujeitos, especificamente, mas entre situações jurídicas, ou melhor ainda, entre centros de interesses determinados, superando-se o elemento pessoal, não necessariamente presente, como ocorre, por exemplo, quando desaparece a pluralidade de sócios de uma sociedade e, decorrido certo período, não se restabelece essa pluralidade.28 Nesse ínterim falta um dos elementos subjetivos da relação jurídica. O que se apresenta sempre, portanto, é a relação entre dois centros de interesses, entre duas situações subjetivas. Para outra concepção, de natureza normativista, a relação jurídica é vínculo entre os respectivos sujeitos e o ordenamento jurídico,29 ou entre pessoas e coisas, pessoas e lugares.30 A doutrina dominante critica a concepção formal ou normativista com os seguintes argumentos: a) o direito disciplina e organiza as relações entre os homens na tutela de seus interesses; b) a relação jurídica supõe um poder jurídico a que se contrapõe correspondente dever, não podendo esse poder dirigir-se contra coisas, mas sim contra pessoas; c) é inconcebível um poder de uma pessoa sem correspondente limitação para com as demais. E ainda o fato de que essa teoria concebe um vínculo entre realidades heterogêneas, como a pessoa e a coisa, ou a pessoa e a norma jurídica. Daí a franca aceitação da teoria personalista, embora reconhecidamente mais apropriada ao direito privado do que ao público, donde a idéia mais recente neste ramo do direito, da relação jurídica como simples vínculo instaurado pela norma, não necessariamente decorrente de relação social preexistente.31 Adotada a teoria personalista, temos que a relação jurídica retrata um determinado comportamento humano conformado juridicamente. Esse comportamento pode referirse expressamente a pessoas determinadas, como nas obrigações, ou pode consistir no dever de respeitar determinada situação jurídica, como ocorre nos direitos reais e nos direitos da personalidade, isto é, nos direitos subjetivos absolutos. A conformação jurídica desse comportamento decorrerá da lei ou da autonomia privada, de acordo com os princípios da teoria geral das fontes do direito e produzirá, no aspecto subjetivo, poderes, direitos, faculdades e, de outro lado, sujeição, obrigação, deveres. Posição doutrinária mais recente concebe a relação jurídica por meio de uma perspectiva dinâmica, considerando-a, principalmente no que tange ao direito das obrigações, como um todo unitário e orgânico que se apresenta como um processo em andamento. Processo, de procedere, do direito canônico, como indicativo de uma "série de atos relacionados e condicionados entre si, e interdependentes", a traduzir a relação jurídica como uma totalidade, um conjunto de direitos e deveres que existe e se desenvolve em face de um determinado objetivo.32 Qualquer que seja a teoria adotada, a personalista ou a normativista, certo é que se deve personalizar o direito civil, no sentido de acentuar que a pessoa humana ocupa o primeiro lugar, o centro do sistema de direito privado.33 Mas não o sujeito abstrato do liberalismo econômico, que fundamentou o direito civil no século XIX, dos códigos civis francês e alemão, "mas o homem concreto da sociedade contemporânea, na busca de um humanismo socialmente comprometido". O direito é, essencialmente, um sistema axiológico, devendo considerar-se o homem como o valor primeiro. "E restaurar o primado do homem é o primeiro dever de uma teoria geral do direito."34 5. Importância da relação jurídica. O conceito de relação jurídica tem grande importância para a teoria do direito e, particularmente, para o direito civil. No campo da teoria constitui-se em categoria básica para a explicação do fenômeno jurídico, juntamente com a norma jurídica e a instituição, ambas complementares. Para o direito civil, ou privado, a relação jurídica traduz a regulamentação jurídica (aspecto formal) do comportamento dos indivíduos (aspecto material) no seu dia a dia, na disciplina de seus interesses, estabelecendo situações ativas (poderes) e situações passivas (deveres). É conceito básico que exprime poderes, pretensões e deveres decorrentes da autonomia e da iniciativa individual, assim como a da responsabilidade dos respectivos sujeitos da relação. Não obstante ser categoria própria do direito privado, tem também acolhida no direito público. Neste caso, não como resultante de prévias relações sociais de fato, mas como vínculo entre pessoas e órgãos. Exemplo disso são as normas constitucionais que reconhecem e protegem direitos humanos como direitos fundamentais, e a própria categoria dos direitos públicos subjetivos, que se podem ver como garantia da autonomia individual necessária à constituição das relações de direito. A idéia-chave da teoria relacionai é, portanto, a autonomia da vontade individual,33 com a qual os sujeitos podem ---------------25 Mareei Walline. L'individualisme et lê droit, p. 23. 26 Franz Wieacker. Diritto privato e societá industriale, p. XXIV. 27 Sérgio Cotta. Prospettive di filosofia dei diritto, p. 50. 28 Lei das Sociedades Anônimas, Lei n2 6.404, de 15 de dezembro de 1976, art. 206, d). Sobre situação jurídica, Cap. V, n° 12. 29 V. autores citados na nota 15. 30 V. autores citados na nota 16. 31 Alfredo Augusto Becker. Teoria Geral do Direito Tributário, n2 92 a 100. 32 Ferrer Aurellano, op. cit, 168; Karl Larenz. Lehrbuch dês Schuldrechts, p. 26 e segs; Clóvis do Couto e Silva. A obrigação como processo, p. 11 e seg.; Orlando de Carvalho, op. cit., 73. 33 Orlando de Carvalho, op. cit. p. 91. 34 Larenz, op. cit. p. 246. 35 Sérgio Cotta. Prospecttive di filosofia dei diritto, p. 50. ---------------criar e modificar relações jurídicas, no exercício da tutela de seus interesses e da composição dos diversos conflitos que esses provoquem. Projeções imediatas da sua importância estão na liberdade contratual, nos seus diversos aspectos, no direito de propriedade e na garantia constitucional dos direitos humanos, dos direitos subjetivos públicos, enfim, da proteção jurídica que o Estado presta ao cidadão, na sua vida social e jurídica, o que pressupõe relações jurídicas instauradas pela autonomia dos indivíduos. A relação jurídica apresenta-se, enfim, como a categoria capaz de explicar toda a atividade jurídica. A importância da relação jurídica manifesta-se ainda em algumas constatações de ordem prática. Só existem problemas jurídicos, ou conflitos de interesses, entre pessoas que integram relações jurídicas. Por isso, a idéia de direito e de justiça pressupõe um vínculo intersubjetivo, com direitos e deveres. Assim, não há problema jurídico, por mais complicado que seja, que não se simplifique com a identificação das relações que o formam.36 Por outro lado, só existem direitos subjetivos porque há sujeitos de direito, e estes só existem nas relações jurídicas.37 Não há direitos nem deveres sem que haja uma relação prévia. Além disso, a relação jurídica constitui-se em conceito básico sobre o qual se constróem os institutos jurídicos, complexos de normas que disciplinam e se estabelecem em torno da mesma relação, como, por exemplo, os institutos do casamento, da filiação, do pátrio poder, da propriedade etc. E o conjunto de normas e institutos forma o sistema jurídico, conjunto unitário de regras jurídicas ordenadas de modo lógico e coerente, e dedutíveis entre si. No campo do procedimento judicial, um dos requisitos para que uma pessoa proponha uma ação é a sua titularidade sobre o direito, objeto da controvérsia, a chamada legitimidade para a causa, legiti-matio ad causam, o que pressupõe a participação do sujeito na relação (CPC, arts. 3-, 6-, 267, VI) em que surge o conflito de interesses. Ser sujeito de uma relação jurídica, e consequentemente de direitos e deveres, é sinônimo de titularidade. A idéia de relação jurídica como vínculo normativo permite, ainda, explicar uma série de fatos da vida jurídica, em que se verificam mudanças subjetivas na relação, como a cessão de crédito, a assunção de dívida, a função social da propriedade, os direitos e deveres matrimoniais, e ainda mudanças objetivas, como a sub-ro-gação prevista no art. 1.409 do Código Civil. Realização prática dessa possibilidade de mudança é a ação de sub-rogação destinada a substituir um bem gravado com cláusula de inalienabilidade por outro de igual valor, permanecendo o regime jurídico da coisa sub-rogada, isto é, o bem substituto permanece inalienável (CC, arts. 1.407, par. 2° e 1.911, par. único, e ainda o Decreto-Lei n- 6.777, de 8 de agosto de 1944, art. 1°, sobre a sub-rogação de imóveis gravados ou inalienáveis). 6. Estrutura e origem. Qualquer relação jurídica, principalmente de direito privado, representa uma situação em que duas ou mais pessoas (elemento subjetivo) se encontram a respeito de uns bens ou interesses jurídicos (elemento objetivo). O conjunto desses elementos, mais um vínculo intersubjetivo que traduz o conjunto de poderes e deveres dos sujeitos, constitui a chamada estrutura da relação jurídica. Os sujeitos são pessoas titulares de poderes e deveres, por exemplo, credor e devedor, comprador e vendedor, locador e locatário, marido e mulher, em uma atribuição bilateral (donde a bila-teralidade característica da norma jurídica). O elemento objetivo são os bens, aquilo sobre que incidem os poderes contidos na relação, e que consistem em valores materiais (coisas) ou imateriais (ações). O vínculo expressa uma posição de poder (sujeito ativo) e uma posição de dever (sujeito passivo), com referência ao terceiro elemento. Essa é a estrutura abstrata, simples e estática, de uma relação jurídica. Em termos concretos da vida real, as relações apresentam-se geralmente de forma complexa, englobadas, caracterizando situações jurídicas dinâmicas em que as pessoas são titulares, simultaneamente, de poderes e deveres. Quanto à sua origem, as relações jurídicas nascem de acontecimentos reconhecidos pelo direito como idôneos a produzi-las, externos à relação, denominados fatos jurídicos (Capítulo X), e deles constituem a sua eficácia. 7. Conteúdo. Conteúdo significa o conjunto de poderes e deveres que se configuram na relação jurídica, como ocorre, por exemplo, nas relações contratuais, entre credor e devedor. Representa o comportamento jurídico das pessoas que intervém na relação, o qual se traduz em situações de poder (ativas) e de dever (passivas). As primeiras, normalmente de exercício voluntário por seu respectivo titular; as segundas, de exercício obrigatório ou necessário, tudo isso de acordo com as diversas espécies de relação como, por exemplo, as de família, as contratuais, as de propriedade etc. O poder jurídico existe quando o direito atribui a uma pessoa a possibilidade dela exigir, por um ato de sua vontade, determinado comportamento de outra ou de outras pessoas, ou a de impor certas conseqüências. Por suas peculiaridades, esse poder pode apresentar-se como direito subjetivo, pretensão, direito potestativo e faculdade jurídica, matéria que se apreciará no capítulo seguinte. 8. Espécies de relação jurídica. A relação jurídica pode apresentar-se sob diversas espécies. Podemos classificá-la, distingui-la, inicialmente, em relação jurídica de direito público e de direito privado; de direito público aquela em que participa o Estado com predomínio de seu interesse ou com poder de autoridade;38 de direito privado quando as pessoas, inclusive o Estado, participam em condições de igualdade. A relação jurídica de direito privado compreende as de personalidade, em que se protegem os direitos inerentes à pessoa (direito à vida, à integridade física, ao cadáver, ao tratamento médico, direito a ligar o nome do autor às obras, direito à honra, à imagem, ao nome); as de família, se decorrente do matrimônio, parentesco, filiação ou tutela, e as patrimoniais, quando dirigidas à satisfação de interesses econômicos. As relações jurídicas patrimoniais compreendem as obrigacionais e as reais. Quanto à eficácia, a relação jurídica diz-se absoluta quando o titular do direito subjetivo nela contido o exerce erga omnes, isto é, contrapondo-se a um dever geral de abstenção, o que se verifica nos direitos personalíssimos e nos direitos reais; e relativa, quando o direito se exerce em face de uma ou de várias pessoas determinadas, ou determináveis, como nas relações de família e nas obrigacionais. Quanto ao objeto, a relação jurídica diz-se real, se os seus direitos se exercem sobre bens, e obrigacional, quando visa prestações específicas e, geralmente, economicamente apreciáveis. Na primeira existe um poder de utilização direta das coisas, com o respectivo dever universal de abstenção, pelo que se diz que o direito real é absoluto. Na segunda, o objeto denomina-se prestação que é um comportamento que se exige de alguém, o que pode ser um dar, um fazer ou um não fazer, pelo que o direito obrigacional é relativo.39 Quanto ao número, a relação jurídica é simples quando se forma de um só vínculo, unindo duas partes, e complexa quando várias relações se entrelaçam, criando uma pluralidade de direitos e deveres entre as partes. Nas relações complexas pode existir um vínculo com pluralidade de sujeitos como, por exemplo, nas obrigações solidárias (CC. art. 264) e nas indivisíveis (CC. art. 258), ou vários vínculos com unidade de sujeito, como nas obrigações conjuntas (CC. arts. 260, I). Quanto à natureza, a relação jurídica é principal quando autônoma, existente de per si, e acessória, quando depende de uma principal, na sua existência ou na sua eficácia, como ocorre, por exemplo, na relação contratual entre fiador e afiançado, que depende de um contrato principal, freqüentemente de locação. 9. Efeitos da relação jurídica. A relação jurídica traduz direitos e deveres, que nem sempre se realizam de imediato. Pode constituir-se, apenas, na base de futuras pretensões,40 como ocorre, verbi gratia, com o parentesco que, não produzindo efeitos em um momento, pode ocasioná-los mais tarde, -------------36 Levi, op. cit. p. 29. 37 Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, vol. I, p. XVI. 38 Larenz, op. cit., p. 4; Rescigno, op. cit, p. 241 e 242; Luis Diez-Picazo. fundamentos dei Derecho Civil Patrimonial, I, p. 55; Anacleto de Oliveira Faria, Direito público e direito privado, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 28, p. 41 e segs. 39 Von Thur, op. cit., p. 129; Enneccerus, op. cit., I, p. 279; Francesco Ferrara. Trattato di diritto civile italiano, p. 297. 40 Mota Pinto. Teoria Geral do Direito Civil, p. 245. -------------ao verificar-se determinado fato, como a morte (CC, art. 1.784), ou o empobrecimento (CC, art. 1.695); ou como ocorre com o contrato de mandato que, produzindo efeitos ao ser constituído, pode originar eventual crédito do mandatário contra o mandante (CC, art. 676), pela execução do mandato. A relação jurídica é eficaz, em princípio, apenas entre as partes (rés inter alios acta, tertio neque prodest neque nocei) .41 Pode verificar-se, porém, uma eficácia reflexa, afetando-se terceiros dela não integrantes, como se verifica, por exemplo, quando se extingue uma relação jurídica acessória de garantia, como a fiança, por ter-se extinto a relação principal, ou quando alguém contrata em favor de terceiros (CC, art. 436, par. único) ou no caso de seguro de vida (CC, art. 789), ou ainda nos casos de sucessão legal, intervivos, como ocorre quando uma pessoa substitui outra na titularidade da mesma situação jurídica, por exemplo, o adquirente de imóvel alugado que é obrigado a respeitar a locação (Lei 8.245/91), art. 8°), ou o possuidor que, para fins de usucapião, pode acrescentar à sua posse a do seu antecessor (CC. art. 1.243). 10. A dinâmica da relação jurídica. Aquisição, modificação e extinção de direitos. Os fatos jurídicos. A relação jurídica e os direitos nela contidos nascem, modificam-se e extinguem-se por efeito de certos acontecimentos que o direito considera importantes e que, por isso, lhes dá eficácia jurídica. São os fatos jurídicos. Tais acontecimentos são apenas os relevantes para o direito, os que entram no mundo jurídico, os que produzem efeitos jurídicos, de tal modo que a norma jurídica já os prevê na sua hipótese de fato (fattispecies, tatbestand) como pressupostos de certas conseqüências estabelecidas ou consentidas, que são o nascimento, a perda ou a modificação de direitos ou, de modo geral, qualquer alteração na situação jurídica preexistente. Podem consistir em simples eventos da natureza (fatos jurídicos stricto sensu), como o nascimento, a morte, o decurso do tempo, a doença etc., ou em manifestação da vontade humana (atos jurídicos), como o casamento, o reconhecimento de filho, a fixação de domicílio, os contratos, o testamento etc. Como segunda espécie de atuação da vontade humana, mas de modo contrário ao direito, temos o ato ilícito.42 Um contrato, por exemplo, dá origem a direitos e obrigações. Um casamento cria direitos e deveres recíprocos (CC, art. 1.566). A morte determina a abertura da sucessão (CC, art. 1.784). A prática de um ato ilícito cria a obrigação de indenizar o dano (CC, art. 186 e 187). Outros acontecimentos existem, mas sem importância para o direito, como um convite para passeio, o uso de certas roupas, manifestações normais de natureza, como a chuva, a neve, o dia de sol etc., e que, por isso não entram no mundo jurídico. Não são fatos jurídicos. 11. Aquisição de direitos. Os direitos nascem quando se concretizam as respectivas relações jurídicas. Sendo estas vínculos pessoais, ao seu nascimento corresponde a união do direito ao sujeito que dele fica titular. O direito se adquire quando a pessoa dele se torna titular. Aquisição de direito é, portanto, a ligação do direito à pessoa. Constituindo-se a relação jurídica, o sujeito ativo adquire o direito ou outro poder. Título de aquisição (causa adquirendi) é o fato jurídico que justifica a aquisição, por exemplo, um contrato. Nascimento e aquisição de direitos são fenômenos distintos, se bem que geralmente simultâneos. Toda constituição de direitos implica em sua aquisição, pois não existe direito sem sujeito. A recíproca não é, porém, verdadeira. Freqüentemente, adquirem-se direitos já constituídos anteriormente, como ocorre na aquisição derivada, em que alguém recebe um direito de outrem. A aquisição de direitos pode ser originária e derivada, e esta, gratuita e onerosa, a título singular e a título universal. Adquirem-se os direitos por ato próprio ou por intermédio de outrem; neste caso, através do instituto da representação, que pode ser legal (pais, tutores, curadores) ou convencional (procurador). A pessoa adquire o direito para si ou para terceiros. Os direitos também se adquirem por efeito de simples fatos jurídicos, independentemente de ação humana, por exemplo, a morte, que implica a abertura da sucessão (CC. art. 1.784), o decurso do tempo, que pode levar à usucapião (CC. art. 550), a acessão, que leva à aquisição da propriedade imóvel (CC. art. 536). 12. Aquisição originária e aquisição derivada. A aquisição de um direito diz-se originária quando não decorre de prévia relação jurídica entre o atual titular e o anterior. Não há transmissão do direito entre eles, como ocorre com a ocupação de rés nullius ou de rés derelicta43 (CC, art. 1.263), com a usucapião (CC, art. 1.238), a ocupação, a especificação, a invenção, o achado cie tesouro, a aquisição de direito de autor pela criação, aquisição de direito potestativo por fato que a lei considera idôneo para o nascimento do direito (Capítulo V, n° 10). A aquisição é derivada quando existe relação jurídica entre o titular anterior (transmitente) e o atual (adquirente). A aquisição derivada diz-se translativa, quando o direito permanece íntegro, como ocorre, por exemplo, na cessão de crédito, na compra de imóvel, e constitutiva, se implica a criação de outro direito, com base no que se transmite, por exemplo, a transferência de propriedade com a constituição de usufruto (CC. art. 1.225, IV) ou de servidão pelo proprietário (CC. art. 1.225, III). É importante distinguir a aquisição originária da derivada. Na originária, adquire-se o direito na sua plenitude. Na segunda, adquire-se com suas limitações, já que ninguém transfere mais direito do que tem, como acontece por exemplo, na cessão de crédito (CC. art. 286), e na assunção de débito (CC. art. 299).44 Por isso, a validade e a eficácia do direito do novo titular dependem, em regra, da validade e da eficácia do direito do precedente titular. A aquisição derivada diz-se, ainda, sucessão, porque novo titular sucede ao anterior. É onerosa quando existe contraprestação do adquirente, como acontece nos contratos bilaterais, e gratuita, se inexistente tal contraprestação, como nos contratos unilaterais e na sua sucessão por morte. E a título universal quando implica a transferência de todos os direitos, o que só ocorre, nas pessoas físicas, com a morte do titular, e nas pessoas jurídicas, no caso da fusão ou incorporação de empresas.45 E a título singular quando se transfere um ou alguns direitos. A sucessão universal tem regras próprias, objeto do direito das sucessões. 13. Direitos atuais e direitos futuros. Sua proteção. Chamam-se atuais os direitos completamente adquiridos, isto é, os que já se incorporaram definitivamente ao patrimônio do titular, podendo ser por este exercidos. Direitos futuros são aqueles cuja aquisição ainda não se completou. O direito futuro, cuja aquisição depende apenas da vontade do adquirente, chama-se deferido, e não deferido quando subordinado a fatos ou condições falíveis. O direito deferido confundese com o direito eventual, como, por exemplo, o direito de propriedade dependente da transcrição do título aquisitivo, o direito do promitente-comprador de um apartamento, com o preço pago, de fazer a escritura definitiva. O direito não deferido é normalmente um direito condicional pois, iniciada a aquisição, fica esta subordinada a condições falíveis, por exemplo, a aquisição de uma safra agrícola futura. A proteção e conservação dos direitos atuais e futuros faz-se por meio de meios judiciais que a ordem jurídica põe à disposição do titular, e que são objeto do direito processual civil. Tais meios compreendem as medidas cautelares. Em casos específicos, permite-se a autodefesa (CC, art. 1.210, par. 1°). 14. Modificação de direitos. Modifica-se a relação jurídica quando se alteram os sujeitos (modificação subjetiva) ou o objeto (modificação objetiva). A modificação subjetiva ocorre na sucessão, que é o nome que se dá à transferência do direito de uma pessoa para outra ou outras. Neste caso, multiplicam-se os sujeitos. Quando é voluntária denomina-se alienação, por exemplo, a compra e venda, a doação. ------------- 41 "A coisa feita ou julgada entre uns não aproveita nem prejudica terceiros." (D. 42.1.63). 42 Enneccerus-Niperdey, op. cit. p. 17. 43 Rés nullius (coisa de ninguém) e rés derelicta (coisa abandonada). 44 Nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse haberet, D, 50, 17, 54 (Ninguém pode transferir mais direito do que tiver). Cfr. Orlando Gomes, n° 156 45 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, I, n2 67. ------------A modificação objetiva pode ser quantitativa e qualitativa. Quantitativa quando variam as dimensões do objeto, como no caso de aumento do terreno por avulsão, a diminuição da dívida com os pagamentos parciais, a destruição parcial da coisa; e qualitativa quando mudam as qualidades do objeto, como na hipótese de sub-rogação de bens clausu-lados ou na obrigação de indenizar decorrente do inadimplemento contratual. Aplica-se o princípio pretium succedit in locum rei, rés succedit in locum pretii46 que se materializava no Código Civil de 1916, art. 56, hoje não constante do novo Código Civil. 15. Extinção dos direitos. Extingue-se o direito quando se extingue a relação jurídica, como se verifica, por exemplo, no caso de destruição da coisa, ou da realização do interesse, ou do próprio decurso do tempo. Perde-se o direito quando ele se transfere a outro titular por aquisição derivada. A extinção dos direitos pode referir-se ao sujeito e ao objeto. Quanto ao sujeito, os direitos extinguem-se pela morte, pelo decurso do tempo e pela renúncia do titular. A morte extingue os direitos personalíssimos, como o direito a alimentos devidos pelo parentesco (CC, art. 1.700), não os direitos patrimoniais, transmissíveis, em geral, aos sucessores do falecido (CC, art. 1.784 e 1.829).47 O decurso do tempo é fator extintivo de direito se aliado à inércia do titular. Os institutos de direito civil que disciplinam essa matéria são a prescrição e a decadência. Prescrição é a perda da pretensão de um direito subjetivo em virtude da inércia do titular em um período determinado em lei (CC.art. 189). Decadência é a perda de um direito potestativo pela inércia do titular no prazo legal. A renúncia é ato unilateral e gratuito pelo qual o titular de um direito dele se despoja,48 sem transferi-lo a quem quer que seja. Produz a perda absoluta do direito pela manifestação de vontade do titular nesse sentido. Ocorre, por exemplo, quando o credor abre mão das garantias pignoratícias (CC. art. 802, III), hipotecárias (CC. art. 849, III) ou fidejussórias dadas a seus créditos, ou, ainda, quando o herdeiro recusa a herança (CC, art. 1.805).49 Pode visar quaisquer direitos, menos os personalíssimos e os de ordem pública, como os de família. A renúncia é declaração de vontade. Distingue-se do abandono, que não a tem. A coisa abandonada chama-se rés derelictae. São renunciáveis os direitos que protegem os interesses privados, e irrenunciáveis os que envolvem os de ordem pública. Não há renúncia translativa, isto é, a que se faz para beneficiar alguém. Nesse caso, o que se verifica é uma transferência de direitos, como acontece, por exemplo, quando um herdeiro renuncia à sua parte na herança para beneficiar terceiros. Inexiste renúncia, mas sim, doação. Perece o objeto sempre que ele perde suas qualidades essenciais ou o valor econômico, como acontece quando um terreno é coberto pelo mar, ou quando se confunde com outro, de modo a não poder se distinguir, ou quando o objeto fica em lugar donde não pode ser retirado, por exemplo, a jóia que se perde no mar, tudo isso como decorrência de fato natural (terremoto, incêndio, catástrofe etc) ou da vontade humana (destruição voluntária do objeto). Extinguem-se os direitos potestativos com o seu simples exercício.50 Se o perecimento do objeto for imputável a alguém, responderá este por perdas e danos (CC, arts. 186 e 389). Direito extinto não renasce. 16. Relações de fato: a) a união estável; b) a sociedade de fato; c) a separação de fato; d) a filiação de fato; e e) as relações contratuais de fato. Já vimos que a relação jurídica compõe-se de dois elementos: um, material, que é relação entre pessoas, e outro, formal, que é a incidência direta da norma jurídica aplicável ao caso. As relações jurídicas são conseqüência dos fatos jurídicos, nascem em função do dispositivo da norma jurídica, depois do enquadramento do fato da vida real na hipótese de aplicação da norma. A vida social é, porém, fertilíssima na diversidade dos fatos, suscitando, por vezes, situações que não se enquadram na hipótese das normas jurídicas, não obstante os atributos da abstração. Isso faz com que diversos fatos, socialmente relevantes, não produzam efeitos jurídicos típicos por não corresponderem à hipótese de aplicação da norma, ou pela própria inexistência de norma jurídica adequada, embora já sejam socialmente valorados. Existe o fato, o valor, mas não a norma jurídica, o que não impede que a relação de fato produza, verificados certos pressupostos, os mesmos efeitos da relação de direito. Configura-se aqui a questão da eficácia jurídica da relação de fato. Surgem, assim, as chamadas relações de fato, relações materiais cujo nascimento não decorre de nenhum fato jurídico, mas sim de fatos socialmente relevantes, o que se constitui em problema mais sociológico do que jurídico.51 É claro que o reconhecimento de relações de fato (porque não de direito) pode levar à insegurança jurídica, contrariando um dos valores fundamentais, que é a certeza do direito. A seu favor, existe porém uma exigência de eqüidade em face de "necessidades sociais indiscutíveis, que representam uma forma de progresso tanto no pensamento como na técnica jurídica". Entre as relações de fato de maior relevo social destacam-se: a) a união estável; b) a sociedade de fato; c) a separação de fato; d) a filiação de fato; e e) as relações contratuais de fato. a) A união estável. O casamento é o ato jurídico que dá origem à relação matrimonial, caracterizada por uma série de direitos e deveres específicos, de natureza ética, personalista e recíproca, como a fidelidade, a vida em comum no domicílio conjugai, a mútua assistência e o sustento, guarda e educação dos filhos (CC, art. 1.566), além de efeitos patrimoniais estabelecidos na disciplina dos regimes de bens. Tais direitos e deveres formam um estado especial, o de casado, de grande importância e repercussão em vários campos do direito (direito civil, processual civil, penal, eleitoral etc.).52 Por sua importância, o casamento é ato jurídico solene, com pressupostos de existência (diversidade de sexos, consentimento dos nubentes, celebração do ato por autoridade competente) e requisitos de validade (capacidade e legitimidade dos nubentes e observância da forma legal do ato), cuja infração torna o casamento inexistente, nulo ou anulável. Não obstante a inexistência de casamento, por impossibilidade ou vontade, duas pessoas podem unir-se de modo estável, levando uma vida de casados como se na verdade o fossem, configurando uma nova figura típica no direito de família, a união estável.53 Esta situação de fato pressupõe os seguintes elementos essenciais:54 a) união permanente com aparência de matrimônio, para que não se configure simples união transitória;55 b) ausência de matrimônio civil válido; c) convivência pública, contínua e duradoura, e estabelecida com o objetivo de constituição de família (CC. art. 1.723) . A união estável distingue-se da relação de concubinato, que é a união de pessoa casada, com terceiro, durante a convivência matrimonial. É relação não eventual entre homem e mulher impedidos de casar (CC. art. 1.727). A união estável reconhecida pelo novo Código Civil, (art. 1.723) produz, todavia, importantes efeitos, dos quais destacamos: a) direito do companheiro usar o nome do outro ---------------------46 "O preço está no lugar da coisa, a coisa está no lugar do preço," expressão e regra criada pelos glosadores, segundo Beviláqua, Código Civil comentado, art. 56. 47 Existem exceções à transmissibilidade das relações ou dos direitos patrimoniais pela morte do respectivo titular. São intransmissíveis causa mortis os direitos reais de usufruto, o uso, a habitação, e os direitos obrigacionais do mandato, do comodato, e a obrigação alimentar decorrente de parentesco (CC, art. 1.700, transmitindo-se, porém, a obrigação alimentar decorrente da separação judicial — Lei n£ 6.515, de 26 de dezembro de 1977, art. 23). Também não se transmite a relação do emprego. Sobre o decurso do tempo como fator extintivo de direitos, veja-se, adiante, o capítulo XVIII. 48 Clóvis Beviláqua. Código Civil Comentado, art. 161. 49 Garantias fidejussórias são a fiança e o aval. 50 Sobre o direito potestativo veja-se adiante o capítulo V, n- 10 51 Garcia Amigo, op. cit, p. 235 e 236. 52 Cf. do Autor A relação jurídica matrimonial, in Revista de Direito Comparado Luso-Brasileiro, n2 2, p. 167 e segs. Álvaro Villaça Azevedo, Estatuto da Família de Fato, p. 295 e segs. 53 Constituição Federal, art. 226, § 3°. Distingue-se a união estável da união de fato e do concubinato. Cf. Simão Isaac Benjó, União Estável e seus efeitos econômicos em face da Constituição Federal, p. 59 e segs. Zeno Veloso, União estável, p. 13 e segs. 54 Maria Helena Diniz. Direito de Família, p. 203; Caio Mário da Silva Pereira. Concubinato, e Edgard Moura Bittencourt "Concubinato", in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 17, pp. 251 a 258 e 259 a 266; Rubens Limongi França, "Direito do concubinato", in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 26, p. 442. 55 A Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994, que regula o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão, fixa, no art. l2, o prazo de 5 (cinco) anos. ---------------------(Lei n- 6.015/73, art. 57 e pars. 2° a 4°); b) direito à indenização em caso de acidente de trabalho (Súmula n- 35 do STF); c) direito à metade do patrimônio adquirido com seu companheiro, em sociedade de fato; d) direito de prosseguir com a relação jurídica locatícia, substituindo o companheiro falecido; e) o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão; e f) a existência de direitos e deveres recíprocos, semelhantes aos que nascem do casamento, (CC arts. 1.724 e 1.725).56 b) A sociedade de fato. Sociedade de fato é aquela sociedade que, não preenchendo os requisitos legais para sua existência jurídica, tem, contudo, uma existência material. Chama-se de fato, ou irregular, para distinguir-se da de direito, que obedece aos preceitos regulares de constituição. Não tem, por isso, personalidade jurídica, mas tem responsabilidade pelos atos que praticar, respondendo o seu patrimônio pelas obrigações assumidas, podendo agir judicialmente (CPC, art. 12, VII). Sociedade de fato, ou irregular, é a que se contrata verbalmente ou a que, embora contratada por escrito, não arquiva seu ato constitutivo no respectivo registro. Como "a relação jurídica de sociedade pressupõe a conclusão de um contrato, na forma legal, não existindo o contrato não deve existir a sociedade". A vida real nos oferece, porém, exemplos de sociedade que, sem contrato escrito ou sem registro, praticam atos da vida civil ou comercial como se regulares fossem. Espécie importante de sociedade de fato é a que o direito reconhece ter existido entre dois companheiros que reuniram esforços e bens no curso de sua existência em conjunto, formando um patrimônio comum que deve ser partilhado, embora sem existência jurídica. A Súmula n-380 do STF determina a dissolução judicial dessa sociedade, o que demonstra a sua existência, pelo menos de fato. c) A separação de fato. Um dos efeitos do casamento é o dever de os cônjuges viverem juntos (CC, art. 1.566). Ocorre que, devido a circunstâncias diversas, simples desinteresse, gastos elevados etc., os cônjuges decidem viver separados, sem contudo recorrerem à separação judicial que o direito lhes concede para o fim de extinguirem a sociedade conjugai. Surge, assim, um estado de separação de fato que, não obstante irregular e ilegal (porque os cônjuges devem coabitar), é reconhecido na sociedade e produz efeitos que a lei protege. Sua principal característica é a permanência dos deveres recíprocos resultantes do casamento enquanto não se efetivar a separação judicial, de lei. Embora contrária ao direito, este reconhece-lhe certos efeitos, como, por exemplo, a possibilidade de pedir a separação judicial depois de uma separação de fato existente há mais de l (um) ano (CC. art. 1.572, par. 1°), ou o divórcio direto no caso de separação de fato por mais de 2 (dois) anos (CC. art. 1.580, par. 2°), ou ainda, no campo da filiação, a possibilidade de reconhecimento de filho adulterino de mulher casada em caso de manifesta separação de fato do casal, quando os filhos havidos pela mulher casada evidentemente não são, nem poderiam ser, do marido, em virtude da impossibilidade física da coabitação dos cônjuges devido à comprovada separação de fato,57 como reconhecido por tranqüila jurisprudência. São relações de fato, nascidas de acontecimentos não-previstos pelo direito, mas que, por sua relevância social, produzem efeitos que o mesmo direito reconhece. d) A filiação de fato. Outra importante relação jurídica é a filiação de fato, a relação natural, biológica, existente entre pais e filhos, sem existência de casamento. Perante as disposições iniciais do Código Civil, era ilegítima, o que foi superado com o advento da Constituição da República de 1988, que estabeleceu, no art. 227, par. 6°, a igualdade dos filhos. Não obstante a ilegitimidade do vínculo, existia uma relação de fato, consangüínea, natural, a que o direito não podia ficar indiferente, pelo que permitia que o filho ilegítimo pedisse alimentos aos pais, em segredo de justiça, independentemente de ser reconhecida a relação jurídica da filiação (Lei nü 883, de 21. 10. 49, art. 42), dando-lhe também direito sucessório igual ao dos irmãos filhos legítimos, independentemente do reconhecimento expresso de tal relação (Lei n- 883, art. 4-, parág. único). Com a Constituição Federal, art. 227, 6-, os filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, têm os mesmos direitos e qualificação. Sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Por outro lado, a Lei 8.560, de 29.12.92, regula o reconhecimento voluntário e compulsório dos filhos extramatri-moniais. A filiação de fato perdeu a importância doutrinária que tinha. e) Relações contratuais de fato. Outra espécie de relação de fato são as nascidas da "conduta social típica",58 consideradas fonte de obrigações, ao lado da manifestação de vontade (negócio jurídico) e da lei. Tomemos, por exemplo, os meios de transporte, de fornecimento de energia (luz, gás, água etc.) ou de estacionamento. Quando alguém entra em um ônibus, ou utiliza-se da energia elétrica ou estaciona um veículo em um estacionamento, faz isso sem qualquer manifestação de vontade dirigida com o fim de realizar um contrato. A inexistência do contrato não impede, todavia, que o usuário tenha de pagar pelo que utilizou ou consumiu. De fato, inexiste declaração de vontade, mas existe um ato de utilização que faz nascer um vínculo de fato (porque não de direito), da qual emerge para o beneficiário a obrigação de pagar. Como diz Larenz, "a utilização de fato de uma prestação de transporte ou de fornecimento oferecida a todos tem de modo genérico, socialmente típico e conhecido por todos, o sentido de que por ela se leva a outro uma relação contratual sob as condições fixadas pela empresa que realiza a prestação. Quem se comporta assim de forma socialmente típica há de fazer-se imputar o significado genérico de sua conduta como "aceitação de contrato", sem levar em consideração se teve ou não conhecimento daquilo no caso particular nem se quis ou não os efeitos jurídicos." O efeito principal da conduta socialmente típica consiste na exclusão da ímpugnação por erro. Em lugar de duas declarações de vontade destinadas a formar um contrato, o que existe é uma oferta pública de fato, e uma aceitação de fato da prestação, configurando, ambas, uma conduta que, por seu "significado social típico", produz os mesmos efeitos que a declaração de vontade destinada a constituir um negócio jurídico. A doutrina das relações contratuais de fato nasceu no direito civil alemão em 1941, criada por Günther Haupt59 na aula inaugural que proferiu em Leipzig. Defendendo a existência e o reconhecimento de relações não resultantes de fatos jurídicos típicos, como são os contratos, mas de fatos não típicos mas socialmente relevantes, configurando uma conduta social típica60 como a utilização de serviços (ingresso em meio de transporte, ocupação de vaga em estacionamento etc) ou o ato de apanhar produtos em supermercados, ou ainda os contratos ineficazes por nulidade, principalmente os contatos de trabalho e de sociedade, essa doutrina tem hoje valor mais histórico do que real, rejeitada que é pela maior parte dos juristas alemães61. É, porém, aceita no direito italiano atual62, e no direito português63 com exceção de Antunes Varela64. No direito brasileiro, principalmente por obra da jurisprudência, continua-se a reconhecer a possível juridicidade das relações de fato, não só as contratuais mas também, como assinalado, a união estável, a sociedade de fato, a filiação de fato e a separação de fato. ------------56 Cfr. Lei 8.245, de 18.10.91, arts. 11 e 12; a Lei 8.971, de 29.12.94, que regula o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão, e a Lei 9.278, de 10.5.96, que reconhece a existência e a eficácia da união estável. 57 Yussef Said Cahali. Divórcio e Separação, p. 432. Cf. Jurisprudência Brasileira, vol. 61. Investigação e Paternidade e Jurisprudência dos Filhos Ilegítimos e da Investigação de Paternidade, de Rubens Limongi, França. Cf. RTJ 73/587; RTJ 63/82; R77 60/566. 58 Larenz. op. cit, p. 734 e segs. Cf ainda Menezes Cordeiro. Da Boa-Fé no Direito Civil, vol. I, p. 555 e segs.; Antunes Varela. Direito das Obrigações, p. 209. 59 FLUME, p. 128. 60 LARENZ. Allgemeiner Teu dês Eürgerlichen Rechts, 8a ed., I, par. 44, p. 826. 61 Joaquim de Souza Ribeiro. Cláusulas Contratuais Gerais e o Paradigma do Contrato, p. 25, nota 35. 62 Vicenzo Franceschelli. Rapporto di fatto in Digesto. Sezione Civile, XVI, p. 287. 63 Souza Ribeiro, op. cit. p. 26. 64 Das Obrigações em Geral. I, p. 40. ------------CAPITULO V O Direito Subjetivo Sumário: 1. O direito subjetivo. Conceito e importância. 2. Noticia histórico-doutrinar ia. 3. Teorias que negam o direito subjetivo. Crítica. 4. O direito subjetivo como realidade jurídica. 5. A essência do direito subjetivo. Teorias. 6. Classificação dos direitos subjetivos. 7. Os direitos subjetivos públicos. 8. Direitos patrimoniais e direitos extrapatrimoniais. 9. Dever jurídico. Ônus. 10. Direito potestativo. 11. Faculdade jurídica. 12. Situação jurídica. 13. Expectativa de direito. Direito eventual. Direito condicional. Direito atual e futuro. 14. Direito subjetivo, pretensão e ação. 15. Exercício dos direitos subjetivos. 16. Limites ao exercício dos direitos subjetivos. 17. O abuso de direito. 18. Proteção dos direitos subjetivos. 19. Conciliação. Mediação. Arbitragem. l. O direito subjetivo. Conceito e importância. Direito subjetivo é o poder que a ordem jurídica confere a alguém de agir e de exigir de outrem determinado comportamento. Figura típica da relação de direito privado e com ela até contundido, manifesta-se como permissão jurídica, com a qual pode-se fazer ou ter o que não for proibido, como também exigir de outrem o cumprimento do respectivo dever sob pena de sanção. Denomina-se subjetivo por ser exclusivo do respectivo titular e constitui-se em um poder de atuação jurídica reconhecido e limitado polo direito objetivo. Seu titular é determinado e seu objetivo é específico. A semelhança cia norma e da relação jurídica, o direito subjetivo constitui-se em categoria fundamental do direito apresentando duas vertentes, uma técnica, outra ética. Quanto à primeira, trata-se de uma categoria técnico-jurídica ou metodológica que permite ao jurista e ao prático atuarem com economia, clareza e rapidez no processo de realização do direito,1 significando a situação em que alguém se acha de poder agir livremente em uma determinada esfera de ação, o que lhe é garantido pelo direito objetivo. Quando digo sou proprietário, ou tenho o direito de propriedade, significa dizer que a lei me reconhece uma certa autonomia de ação sobre determinado objeto, excluído de outros indivíduos. Tem, assim, funções pragmáticas, tanto no plano da teoria como da prática, garantindo a liberdade do homem e a realização de seus interesses. Para alguns até, o direito civil é o conjunto sistemático dos direitos subjetivos. Mas o direito subjetivo é mais do que um conceito técnico usado para facilitar a aplicação do direito. Tem também reconhecido significado ético que se manifesta nas funções que desempenha, tanto na defesa das liberdades públicas ou direitos fundamentais, sob a forma de direitos subjetivos públicos nas relações entre o Estado e os cidadãos, quanto na realização dos interesses da pessoa na órbita de suas relações particulares.2 Nesse particular, diz-se que o direito subjetivo situa-se no âmbito da autonomia privada, poder que os particulares têm de estabelecer a disciplina legal de suas próprias relações. Reconhece-se, assim, que a pessoa tem objetivos e uma personalidade e que, para desenvolvê-los, é preciso conceder-lhe determinadas prerrogativas ou direitos.3 O direito subjetivo é, portanto, expressão de liberdade, traduzida em um poder de agir conferido a uma pessoa individual ou coletiva, para realizar seus interesses nos limites da lei, constituindo-se juntamente com o respectivo titular, o sujeito de direito, em elemento fundamental do ordenamento jurídico. Consiste, assim, no instrumento de realização do individualismo jurídico, tanto na vertente política, o liberalismo, quanto na econômica, o capitalismo, como se pode depreender da própria evolução históricodoutrinária do conceito. 2. Notícia histórico-doutrinária. O conceito de direito subjetivo é produto da elaboração doutrinária que se inicia na Idade Média e se consolida no séc. XIX com a pandectística alemã. Os juristas romanos não lhe deram maior atenção talvez porque fossem eminentemente práticos e não sentissem necessidade de elaborar conceitos. A categoria de maior importância no plano da técnica romana era a actio (adio in rem, actio in personam), e quem tinha actio tinha o direito. Isso não significa que os romanos não conhecessem o direito subjetivo, simplesmente não se interessavam na sua elaboração teórica, como ocorre, coincidentemente, com o sistema do Common Law.4 São os glosadores na Idade Média que primeiro se ocupam dessa categoria ao interpretarem o Corpus iuris civilis, na esteira de Bártolo que o enunciava ao definir o direito de propriedade.5 No século XVI, com Donellus, e no séc. XVIII, com Christian Wolf e Kant, é que se começa a elaborar um conceito geral e abstrato capaz de, reunindo as notas comuns das situações da vida real, representar um poder jurídico à disposição dos indivíduos para a realização de seus interesses. O Renascimento leva a uma progressiva subjetivação do direito como conseqüência imediata do individualismo.6 No campo político, as instituições são tidas como produto do contrato social, fruto do acordo entre as liberdades particulares, e no campo econômico, a livre concorrência, a liberdade no comércio e na indústria são o postulado básico da vida econômica. Hobbes considera que os homens no estado natural são livres, com poderes limitados mas concorrentes. "O direito do indivíduo é fazer tudo o que achar conveniente para sua própria conservação." Com o pacto social, os homens cedem seu direito primitivo ao Estado, o Leviatã, que em troca reconhece a existência de direitos naturais e inalienáveis, embora limitados por lei. Essa a razão do contrato social, o reforço dos poderes dos próprios indivíduos. Os direitos subjetivos são, assim, a base e a finalidade do sistema jurídico.7 Tais idéias levam à da liberdade individual como valor absoluto. O direito passa de uma concepção objetiva a uma subjetiva, confundindo-se com o poder que a pessoa tem pelo simples fato de ser livre. Surge a idéia do ius subjectivum, do direito subjetivo, como expressão do reconhecimento que o direito confere à esfera da liberdade (autonomia) das pessoas. Seu fundamento axiológico é a liberdade do homem. 3. Teorias que negam o direito subjetivo. Crítica. O conceito de direito subjetivo é polêmico. Existem várias teorias que ou contestam a existência ou pedem a revisão do seu significado originário ou a sua redução a uma categoria técnica. O direito natural clássico de Aristóteles e de São Tomás de Aquino, que não se confunde com a doutrina da escola do direito natural do séc. XVII, considera o direito subjetivo como um corpo estranho e incompatível com o sistema da filosofia aristotélico-to-mista, para a qual existe uma ordem na natureza que determina o justo lugar de cada um dos elementos, pessoas ou coisas que compõem o universo. "A justiça consiste em dar a cada coisa o seu lugar no mundo harmonioso onde reina um justo universal dado pela natureza.8 Para essa filosofia, o direito subjetivo revela-se como alteração dessa ordem, no momento em que confere ao indivíduo prerrogativas, em vez de manter as relações justas entre os homens, considerando a realidade material e social. "Ver o direito exclusivamente sob o ponto de vista do indivíduo e de seu benefício é uma concepção fundamentalmente antijurídica,9 porque desconhece a função essencial do direito que é a de estabelecer a justiça". O positivismo sociológico é representado por diversas correntes, sendo as mais destacadas a de Leon Duguit, o realismo jurídico americano e o realismo jurídico escandinavo, que têm em comum a pretensão de construir a ciência do direito sobre a observação dos fatos sociais, pelo que o direito consistiria nas decisões dos tribunais, não em figuras imaginárias como a do direito subjetivo. Duguit parte da idéia de solidariedade ou de interdependência social, não aceitando a existência do direito subjetivo, que representa a supremacia da vontade individual sobre a dos demais sujeitos. Para esse autor, em vez de direito subjetivo deve-se falar de situação jurídica, ativa ou passiva, que representa o efeito da aplicação do direito ao indivíduo. Negando, assim, o direito subjetivo, pretende Duguit combater o individualismo e "criticar a essência metafísica do direito subjetivo que é a vontade".10 O positivismo normativista de Hans Kelsen, James Goldschmidt e Karl Olivecrona, considera que o conceito de direito subjetivo é metajurídico, carregado de significados jusnaturalistas e ideológicos, o que contraria a pureza da norma jurídica considerada sob o ponto de vista formal. Para Kelsen, o direito subjetivo é, como dever jurídico, a norma jurídica considerada em relação ao indivíduo designado pela mesma norma.11 Reconhecendo apenas a existência do direito objetivo, Kelsen não aceita o dualismo direito objetivo-direito subjetivo, que encerra um componente ideológico. Ele defende o --------------1 Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, p. 221; Alberto Montoro. Sobre Ia revisión crítica dei derecho subjetivo desde los supuestos dei positivismo lógico, p. 97; Goffredo Telles Júnior, Direito subjetivo, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 28 1977, p. 298 e segs.; Vicente Ráo. O Direito e a Vida dos Direitos, vol. II, Tomo I, p. 19 e segs.; Paulo Dourado de Gusmão. Introdução à Ciência do Direito, p. 243 e segs.; José Puig Brutau. Introducción ai Derecho Civil, p. 395 e segs.; Andreas von Thur. Der Allgemeine Teu dês deutschen Bürgerlichen Rechts (Teoria Geral do Direito Alemão), p. 71 e segs.; Jacques Ghestin et Gilles Goubeaux. Traité de droit civil. Introduction générale, p. 120 e segs.; W. Cesarini Sforza, Diritto soggettivo, in Enciclopédia dei diritto, vol. XII, p. 659 e segs.; Vittorio Frosini, Diritto soggettivo, in Novíssimo digesto italiano, vol. V, p. 1047 e segs.; Hans Kelsen. Teoria générale dei diritto e dello stato, p. 77 e segs. 2 Montoro, op. cit., p. 97. 3 Von Thur, op. cit., p. 72. 4 Puig Brutau, op. cit., p. 397. 5 Octavian lonescu. La notion de droit subjectif dans lê droit prive, p. 23. 6 Montoro, op. cit., p. 20. 7 Michel Villey, apud Jacques Ghestin er Gilles Goubeaux, op. cit., p. 199. 8 Mareei Thomann, Christian Wolf et lê droit subjectif, in Archives de philo-sophie du droit, tome IX, p. 154. 9 Michel Villey, La gênese du droit subjectif chez Guillaume d'Qccam, in Archives, tome IX, p. 110. 10 lonescu, op. cit., p. 38. Cf. Leon Duguit, Traité de droit constitutionnel, T. l, p. 213 e segs. 11 Montoro, op. cit., p. 22.; Kelsen, op. cit., p. 78. --------------- monismo jurídico: "É falso opor o direito objetivo ao direito subjetivo; este não é senão o resultado da aplicação aos indivíduos do direito objetivo. Assim desaparece um dualismo funesto para a ciência." Para Kelsen o Estado é a única expressão da ordem jurídica e somente ele pode criar direitos. Considerar o direito fora do Estado, como a hipótese do direito subjetivo, significa introduzir elementos estranhos ao direito, de natureza política, moral, religiosa. A noção de direito subjetivo, expressão da liberdade, baseada em valores morais e espirituais, não cabe assim na concepção formalista do direito. A crítica a fazer, tanto às concepções do positivismo normativista como às do sociológico, é que elas desconhecem uma realidade primária, que é o homem anterior ao Estado e ao ordenamento jurídico. Hominum causa omne ius constitutum est, princípio romano que se retrata nas Constituições modernas, na proteção dos direitos humanos ou individuais. Não obstante, essas concepções positivistas tiveram o mérito de contribuir, no caso do primeiro, para a compreensão de que os direitos subjetivos dependem do direito objetivo, embora coexistam harmonicamente. "Os direitos subjetivos não existem por si mesmos, não são de geração espontânea, nascidos do nada, não são direitos naturais; os direitos subjetivos não existem senão nos limites traçados pelas diferentes regras de direito e nas condições postas por estas regras."12 E no tocante às fontes do direito subjetivo, sua fonte, a norma jurídica, tanto pode ter origem na vontade estatal quanto na particular, expressa esta no negócio jurídico.13 Não obstante, o positivismo sociológico, ao ressaltar a contingência social que envolve o indivíduo, contribuiu gradualmente para a teoria dos limites do direito subjetivo em que se destacam o abuso do direito, a função social da propriedade e as limitações da ordem pública ao exercício da autonomia privada. Mais prático seria considerar o direito subjetivo como uma realidade jurídica. 4. O direito subjetivo como realidade jurídica. Não obstante as críticas à figura do direito subjetivo, ele tem se firmado na atividade jurídica diária, não só por sua extrema utilidade, como por suas conhecidas justificativas históricas. No aspecto técnico, independentemente da concepção teórica adotada, o certo é que existem indiscutíveis prerrogativas, zonas de poder reconhecidas aos indivíduos pelo direito objetivo, que devem identificar-se como categoria própria, direito subjetivo, situação jurídica, ou até a tradicional relação jurídica. No aspecto histórico, são os direitos subjetivos "produto de um movimento ideológico democrático e liberal, destinado a proteger o indivíduo contra os excessos do absolutismo estatal".14 Na sua origem estão os movimentos políticos do liberalismo e do capitalismo, de que são também manifestações jurídicas as declarações políticas dos direitos do homem e do cidadão. O direito subjetivo subsiste, assim, como realidade jurídica sobre a qual se constrói o sistema de direito, tendo como elementos determinantes e essenciais os valores e as normas. E a realidade do direito subjetivo concretiza-se na existência de relações protegidas por uma ação, para o fim de garantir os interesses protegidos por lei.15 Isso não significa, porém, que o direito subjetivo seja absoluto e intangível. Seu exercício é relativo e limitado pelo equilíbrio que deve existir entre os princípios do individual e do social. 5. A essência do direito subjetivo. Teorias. Quanto ao elemento fundamental, a essência do direito subjetivo, três teorias manifestam-se no curso da evolução histórica do conceito: a teoria da vontade; a teoria do interesse; e a teoria mista, ou combinada, de ambos. Para a teoria da-vontade, de Savigny, Otto Von Gierke e Winds-cheid, principalmente, o direito subjetivo é poder de vontade reconhecido pela ordem jurídica. Tal concepção é própria do liberalismo clássico. O Estado intervém apenas quando estritamente necessário, sendo o titular do direito o único juiz da conveniência de sua utilização. Conseqüência imediata dessa teoria é o princípio da autonomia da vontade. Para a teoria do interesse, de Ihering, o direito subjetivo é o interesse juridicamente protegido.16 Ambas as teorias são criticáveis. Sendo o direito subjetivo um poder conferido a alguém pelo ordenamento jurídico, ele existe e é eficaz independentemente de o titular ter vontade ou interesse em algo. Fossem os direitos subjetivos manifestação de vontade do titular, deles estariam privados todos os que não a podem manifestar juridicamente, como os absolutamente incapazes. Além disso, existem direitos de exercício obrigatório, como os de família, os de propriedade com função social. Por isso, definir o direito subjetivo como poder da vontade significa confundir o próprio direito com o seu exercício.17 Quanto à teoria do interesse, para Ihering o direito subjetivo combina dois elementos, um, substancial, que é a vantagem, o benefício a atingir, e outro, formal, que assegura essa vantagem, e que é a proteção jurídica, a ação. A união de ambos forma o direito subjetivo, o "interesse juridicamente protegido". Tal concepção também é passível de crítica, pois confunde o direito subjetivo com o seu conteúdo ou com um de seus fins.18 Por outro lado, não se pode esquecer a coexistência de interesses diversos no próprio titular. No campo dos direitos de família, os interesses são da família, não dos titulares individualmente, e no campo da propriedade, a sua função social implica em poderes-deveres que não representam identidade de interesses. Há também uma série de interesses difusos, interesses coletivos de grupos ou coletividades, que não constituem propriamente direitos subjetivos.19 Para a teoria mista, ou eclética, de George Jellinek, o direito subjetivo é um interesse tutelado por lei mediante o reconhecimento da vontade individual. Reunindo os dois elementos básicos, vontade e interesse, concentra também as mesmas críticas. Melhor seria considerar o direito subjetivo como o poder de agir para a realização de um interesse. Qualquer que seja o entendimento sobre a matéria, o direito subjetivo representa uma esfera de liberdade, um domínio reservado ao titular respectivo, traduzindo-se em um poder legítimo de atuação individual. Significando também uma restrição legítima à liberdade de outrem, mais adequado seria dizer que o direito subjetivo é, simplesmente, um poder de agir e de exigir de outrem determinado comportamento. Nem facultas agendi, nem poder da vontade, nem interesse protegido. Apenas uni poder de agir e de exigir determinado comportamento para a realização de um interesse, pressupondo a existência de uma relação jurídica. Seu fundamento é a autonomia dos sujeitos, a liberdade natural que se afirma na sociedade e que se transforma, pela garantia do direito, em direito subjetivo, isto é, liberdade e poder jurídico.20 6. Classificação dos direitos subjetivos. Classificar os direitos subjetivos é reuni-los em grupos, de acordo com determinados pontos de vista. Os critérios que adotamos, por seu valor sistemático, são os da natureza da relação jurídica a que pertencem e o bem que visam proteger. Quanto à relação jurídica que integram, os direitos subjetivos são públicos e privados, conforme a relação seja de direito público ou privado. Esse critério não é, porém, seguro, porque tanto o Estado pode ser titular de direitos privados quanto o particular de direitos públicos. A tendência é conceber o direito subjetivo como uma situação subjetiva unitária, própria da teoria do direito, de que o Estado pode ser titular ativo ou passivo.21 ---------------12 Boris Stark. Droit civil. Introduction, n2 144. 13 Larenz, apud Garcia Amigo. Instituciones de Derecho Civil, Parte general, p. 247. 14 Michaélidès-Nouaros, L'évolution recém de Ia notion de droit subjectif, p. 221. 15 lonescu, op. cit., p. 107. 16 Bernard Windscheid., Diritto dellepandette, § 37, p. 170; Rudolf von Ihering. L'espirit du droit romain, IV, p. 3. A. 354. Interesse é a vantagem de ordem pecuniária ou moral que leva um sujeito ao exercício de um direito (Henri Capitant Vocabulaire juridique, Paris, PUF, 1930). 17 Ghestin, op. cit., p. 125. 18 Idem, ibidem. O direito subjetivo é meio de proteção do interesse, mas não o interesse em si, Thon, apud Gusmão, p. 322. 19 Pietro Rescigno. Manuale dei diritto privato italiano, p. 258. José Carlos Barbosa Moreira. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos, p. 55 e segs. 20 Luigi Ferri. L'autonomia privata, Milano 1959, p. 249. 21 Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 98; Elio Casetta, Diritti publici subbjettivi, in Enciclopédia dei diritto XII, p. 797, é contra a distinção dos direitos subjetivos em públicos e privados, alegando que o direito subjetivo "é uma situação subjetiva unitária própria da teoria geral do direito que pode ser considerada com referência aos direitos relativos em que o Estado é titular ou obrigado na sua qualidade de ente soberano". ---------------Quanto ao bem protegido, ou o fim a que se destinam, os direitos subjetivos privados dividem-se em direitos de personalidade ou pessoais, direitos de família e direitos patrimoniais, que têm como referência, respectivamente, a própria pessoa dos sujeitos da relação jurídica individualmente ou como membro da família, ou os valores do respectivo patrimônio. Os direitos da personalidade são aqueles que protegem a própria pessoa do titular, nas suas mais importantes manifestações (nome, imagem, intimidade, correspondência etc.). Os direitos de família e os patrimoniais dirigem-se a algo externo à pessoa,22 sendo os primeiros a expressão de deveres morais a ela atribuídos por efeito de sua posição na família, e os segundos, o meio de realizar os fins econômicos da pessoa. Outra classificação, com base na eficácia, distingue os direitos subjetivos em absolutos e relativos, conforme devam ser respeitados por todas ou apenas algumas pessoas. São absolutos os direitos de personalidade, os de família e os reais. São relativos os direitos de crédito. 7. Os direitos subjetivos públicos. Os direitos públicos, que traduzem a situação jurídica em face do Estado, são previstos na Constituição, a saber, direitos de natureza política, direitos de caráter social e direitos de natureza estritamente jurídica, ou então, mais especificamente, direitos individuais e coletivos, direitos sociais, direitos à nacionalidade e direitos políticos.23 A teoria dos direitos subjetivos públicos nasce na França, com o triunfo do liberalismo em seguida à Revolução Francesa. Sua origem é contemporânea ao nascimento e desenvolvimento do Estado constitucional burguês e liberal, exprimindo, no campo jurídico, os princípios da Declaração dos Direitos de 1789. O reconhecimento das liberdades individuais contraposta ao ab-solutismo estatal, exigia do direito estruturas jurídicas capazes de garantir a eficácia de tais liberdades, identificando os poderes e deveres existentes nas relações jurídicas entre o indivíduo e o Estado e tornando-os objeto de tutela jurisdicional específica. Tais estruturas se consubstanciaram no direito subjetivo público que, para uns, deriva do Estado e só é admissível nos limites que ele estabelece, e para outros, está contido nas relações que o "Estado, por ser titular de direitos perante os cidadãos, com eles mantém, resultando dessas relações, conseqüentemente, direitos dos cidadãos perante o Estado." Para Jellinek, das relações que se instauram entre os indivíduos e o Estado nascem pretensões jurídicas. Tais pretensões são os direitos públicos subjetivos, e quando objetivam a nãoingerência estatal configuram os direitos de liberdade. Qual a diferença específica entre o direito subjetivo público e o privado? Para Jellinek, autor de obra fundamental e clássica,24 o direito subjetivo privado é um poder de vontade garantido por um poder jurídico, enquanto que o direito subjetivo público é um poder jurídico a que não corresponde um poder da vontade. De qualquer modo, o direito subjetivo público é poder criado exclusivamente pelo direito objetivo. Com a crescente intervenção do Estado nas relações sociais, até então domínio privado e exclusivo do indivíduo, no sistema garantido pelo Estado Liberal, o conceito de direito subjetivo público entra em declínio e a sua distinção do direito subjetivo privado é contestada. Qualquer que fosse a concepção sobre seu fundamento, a vontade ou o interesse, o que existe, a rigor, é uma situação subjetiva própria da teoria geral do direito, imutável na sua estrutura e na sua natureza, sendo improdutiva e injustificável tal divisão. Atualmente, com o social predominando sobre o particular, não mais se justifica a distinção jurídica, considerando-se o direito subjetivo sob o ponto de vista técnico, como prerrogativa individual contida nas relações jurídicas dos particulares entre si ou com o Estado, todos subordinados à ordem jurídica, sob o império da constitucionalidade e da legalidade. 8. Direitos patrimoniais e direitos extrapatrimoniais. Direitos patrimoniais e direitos extrapatrimoniais são os que têm, como critério de sistematização ou de referência, o patrimônio. Patrimônio é o conjunto de relações jurídicas economicamente apreciáveis de que o indivíduo é titular (CC. art. 91). Constitui-se numa universalidade de direito, quer dizer, a ordem jurídica considera-o como um todo unitário e coeso. Distingue-se da universalidade de fato, que é um conjunto de direitos formado pela vontade humana, como, por exemplo, uma biblioteca, uma coleção de obras de arte etc. A categoria dos direitos patrimoniais compreende os direitos reais, os direitos de crédito, e os direitos intelectuais (de autor e da propriedade industrial). Os direitos extrapatrimoniais são os direitos da personalidade, ou pessoais, que protegem atributos essenciais do homem, como o direito à vida, à liberdade, à honra etc. e os direitos de família. Direitos reais são os que se exercem direta ou imediatamente sobre bens materiais, coisas. O Código Civil brasileiro estabelece as seguintes espécies: propriedade, superfície, servidão, usufruto, uso, habitação, direito do promitente comprador, penhor, hipoteca, an-ticrese. (CC, arts. 1.228, 1.369, 1.378, 1.390, 1.412, 1.414, 1.417, 1.431, 1.473 e 1.506). Direitos obrigacionais, ou de crédito, são os que têm por objeto imediato um comportamento, uma ação ou uma omissão, chamada prestação, como por exemplo os que resultam de um contrato de compra e venda, de locação, de empréstimo etc. Direitos intelectuais são os que têm por objeto as produções do espírito, de natureza artística, literária, científica, ou até industrial, compreendendo os direitos do autor, do compositor, do artista ou do inventor sobre os produtos de sua criação.25 A importância da distinção entre direitos patrimoniais e extrapatrimoniais reside no fato de que os primeiros são transmissíveis, com algumas exceções,26 o que não se verifica com os extrapatrimoniais, que estão fora do comércio, sendo intransferíveis, inalienáveis. Tal distinção poder-se-ia considerar como tendo por base dois pólos complementares diversos, a matéria e o espírito.27 A distinção não é, porém, absoluta, podendo encontrar-se alguma interferência entre as duas categorias, como se verifica, por exemplo, no direito aos alimentos entre parentes e entre os cônjuges, e na responsabilidade civil decorrente da violação dos direitos personalíssimos como a honra, a integridade física, a privacidade, direitos que compreendem, simultaneamente, aspectos extrapatrimoniais, como é o dever moral de prestar alimentos e de respeitar a personalidade humana nas suas diversas manifestações, e aspectos patrimoniais, traduzidos no valor econômico fixado, pelo juiz ou pelas partes, para a obrigação de indenizar decorrente da violação daqueles deveres. O critério da apreciação pecuniária, distinguindo os direitos em patrimoniais e extrapatrimoniais, é criticável, por estranho ao direito em si mesmo. Essa divisão referese mais ao interesse visado, material ou moral, do que ao direito em si. Os patrimoniais destinam-se a satisfazer um interesse econômico, avaliável em dinheiro, como os reais e os obrigacionais; os extrapatrimoniais não têm valor pecuniário, como ocorre com os de personalidades e os de família. Em face disso, temos de aceitar que a classificação dos direitos em patrimoniais e extrapatrimoniais não é absoluta, como aliás nenhuma classificação. Sempre existem interferências e matizes que tornam impossível uma divisão radical e simplista. Seria talvez melhor aceitar-se a tese dos degraus da patrimonialidade, segundo a qual na relação dos direitos subjetivos com o patrimônio da pessoa existem diversas etapas de crescente patrimonialidade, exigibilidade e trans-missibilidade.28 9. Dever jurídico. Ônus. Ao direito subjetivo contrapõe-se o dever jurídico, situação passiva que se caracteriza pela necessidade de o devedor observar certo comportamento (positivo ou negativo) compatível com o interesse do titular subjetivo. Nos direitos absolutos esse dever é geral, todas as pessoas devem observá-lo, como ocorre nos direitos reais e nos direitos de personalidade. Na propriedade, por exemplo, toda a coletividade está em situação de dever relativamente ao titular desse -----------------22 Espin Cánovas. Manual de Derecho Civil Espanol, I, p. 242. 23 Constituição Federal, arts. 5£ a 12. 24 Georg Jellinek, System der subjectiven õfentlichen Rechts (Sistema dos direitos subjetivos públicos), Friburg. 1852. 25 Lei n2 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que regula os direitos autorais. 2(> São intransmissíveis, causa mortis, os direitos de usufruto, de uso e de habitação, o mandato, o comodato, a obrigação alimentar devida por parentesco, Cf. Henri de Page. Trate élémentaire de droit civil belge, Tome Premier, p. 191. 27 Ghestin, op. p.170. 28 Pierre Catala, La transformation du patrimoine dans lê droit civil moderne, n. 27. -----------------direito. Todos os cidadãos devem não prejudicar o direito do proprietário de usar, gozar e dispor de seus bens, assim como todos trm de respeitar a vida e a integridade moral das demais pessoas. Nos direitos relativos, como nas obrigações, o dever é especial, competindo apenas à pessoa vinculada pela relação jurídica como, por exemplo, o comprador e o locatário, ern relação ao vendedor e ao locador. O dever jurídico é, portanto, a necessidade de se observar certo comportamento, positivo ou negativo, a que tem direito o titular do direito subjetivo. A este se contrapõe. Se for descumprido, sujeita-se o infrator às sanções preestabelecidas. O não cumprimento do dever geral de abstenção, nos direitos absolutos pode configurar ato ilícito, enquanto que nos direitos relativos consiste na infração do dever especial, gerando-se, em ambos os casos, a obrigação de reparar o dano, a chamada responsabilidade civil. Próxima à noção do dever jurídico é a do ônus, necessidade que o agente tem de comportar-se de determinado modo para realizar interesse próprio, como, por exemplo, o ônus da prova para quem deseja defender judicialmente um direito seu, no sentido de que deve provar a existência desse direito e a respectiva lesão (CPC, art.333), ou ainda, o ônus de registrar uma escritura de aquisição de imóvel para garantir seu direito de propriedade (CC, art. 1.245, par. 1°). A diferença entre o dever e o ônus reside no fato de que no primeiro, o comportamento do agente é necessário para satisfazer interesse do titular do direito subjetivo, enquanto no caso do ônus o interesse é do próprio agente. No dever, o comportamento do agente vincula-se ao interesse do titular do direito, enquanto que, no ônus, esse comportamento é livre, embora necessário, por ser condição de realização de interesse próprio. O ônus é, por isso, o comportamento necessário para conseguir-se certo resultado que a lei não impõe, apenas faculta. No caso do dever, há uma alternativa de comportamento, um lícito (o pagamento, por exemplo) e outro ilícito (o não pagamento); no caso do ônus, também há uma alternativa de conduta, ambas licitas, mas de resultados diversos, como se verifica, por exemplo, da necessidade do adquirente de um imóvel registrar seu título aquisitivo (CC, art. 1.245). Se não o registrar, não adquire a propriedade. 10. Direito potestativo. Direito potestativo é o poder que a pessoa tem de influir na esfera jurídica de outrem, sem que este possa fazer algo que não se sujeitar.29 Consiste em um poder de produzir efeitos jurídicos mediante declaração unilateral de vontade do titular, ou decisão judicial, constituindo, modificando ou extinguindo relações jurídicas. Opera na esfera jurídica de outrem, sem que este tenha algum dever a cumprir. O direito potestativo não exige um determinado comportamento de outrem nem é suscetível de violação. É, assim, figura inconfundível com a de direito subjetivo, e, para alguns, até com a de relação jurídica,30 à qual se considera externo e antecedente. A outra parte não é sujeita ao poder do titular, mas à alteração produzida.31 Mas, como ele, o direito potestativo é expressão de autonomia privada. O direito potestativo distingue-se do direito subjetivo. A este contrapõe-se um dever, o que não ocorre com aquele, espécie de poder jurídico a que não corresponde um dever mas uma sujeição, entendendo-se, como tal, a necessidade de alguém suportar os efeitos do exercício do direito potestativo. Como não lhe corresponde um dever, não é suscetível de violação e, por isso, não gera pretensões. Os direitos potestativos (do italiano potestà, poder) dizem-se também direitos de formação, no sentido de que permitem ao seu titular modificar, de modo unilateral, uma situação subjetiva de outrem, que, não podendo evitá-lo, deve apenas sujeitar-se. Ao direito potestativo contrapõe-se, portanto, não um dever, mas um estado de sujeição às mudanças que se operam na sua própria esfera. Os direitos potestativos podem ser: a) constitutivos, como o que tem o dono de prédio rústico ou urbano, encravado em outro e sem saída pela via pública, fonte ou porto, de reclamar do vizinho que lhe deixe passagem (CC, art. 1.285), como também o direito do condômino de coisa indivisível de haver para si a parte vendida a estranho, no caso de não lhe ter sido dado ciência da venda (CC, art. 504), ou o direito preferencial que o locatário tem de adquirir o imóvel locado no caso de o b) modificativos, como o do devedor de escolher, nas obrigações alternativas, a prestação que mais lhe aprouver (CC, art. 252), ou o direito de constituir em mora o devedor (CC, art. 397), o direito de substituir o terceiro beneficiário (CC, art. 438) etc. c) extintivos, como o de revogar ou renunciar o mandato, (CC, art. 682, I), o de o condômino exigir a divisão da coisa comum (CC, art. 1.320), o de despedir empregado, o de requerer o despejo do inquilino inadimplente, o de anular contrato, o de resolver contrato por inadimplemento do dever, o de alegar compensação, o de requerer o levantamento da quantia depositada no pagamento por consignação (CC, art. 338) etc. 11. Faculdade jurídica. Faculdades jurídicas são os poderes de agir, contidas no direito subjetivo. Consistem em possibilidade de atuação jurídica que o direito reconhece na pessoa que se encontra em determinada situação. Por exemplo, o direito de propriedade, (CC, art. 1.228) confere ao titular as faculdades de usar, gozar e de dispor da coisa. As faculdades jurídicas distinguem-se, assim, dos direitos subjetivos por não terem autonomia e deles serem dependentes. São como que desdobramentos do próprio direito, sem existência autônoma. As faculdades são, portanto, aptidões para a prática do ato, e o direito subjetivo, um conjunto de faculdades, como, por exemplo, o direito do mutuante à restituição da quantia emprestada (CC, art. 586). Neste caso, ambos coincidirão. Embora integrantes e dependentes do direito subjetivo, as faculdades jurídicas podem tornar-se independentes, constituindo-se em verdadeiros direitos subjetivos no caso de o primitivo titular transmiti-las em separado a outro sujeito. É o que ocorre quando se constituem direitos reais limitados (usufruto, uso, habitação etc.), que nada mais são do que faculdades jurídicas integrantes do direito subjetivo de propriedade e que, transmitidos pelo respectivo titular a outrem, se tornam independentes e se constituem em outra espécie de direito subjetivo. A falta de exercício das faculdades jurídicas não prejudica a existência do respectivo direito (facultativis non datur praescriptio), a não ser nas hipóteses previstas em lei, como a de usucapião, em que o proprietário perde a propriedade de uma coisa em favor de outro sujeito que dela tem posse mansa e pacífica no prazo que a lei estabelece (CC, art. 1.238). 12. Situação jurídica. Outra figura que recentemente vem despertando interesse doutrinário é a de situação jurídica, com que se pretende substituir a de direito subjetivo. Consiste no conjunto de direitos e deveres atribuídos pelo direito objetivo a uma pessoa, em determinadas circunstâncias. A mais conhecida tentativa de substituir a noção de direito subjetivo pela de situação jurídica é de Duguit, para quem não haveria direitos subjetivos mas sim situações jurídicas. Inspirando-se no positivismo sociológico, segundo o qual o direito é produto da sociedade, emergindo da consciência coletiva (Durkhein) ou das consciências individuais (Duguit), este autor rejeita a idéia dos direitos inerentes à pessoa humana que, em sua opinião, traduzem a superioridade de uma vontade sobre outra. O que importa, segundo ele, são as regras jurídicas objetivas que, aplicadas aos indivíduos, criam situações, não direitos. A doutrina distingue-as em objetivas, quando resultantes da própria norma que as determina, apresentando as mesmas características de generalidade e permanência, como, por exemplo, a situação de conjugue ou de proprietário. E subjetivas, se resultantes da manifestação da vontade particular e, por isso mesmo, adaptadas aos interesses do agente, como a situação de comprador, de locatário etc. Neste caso, a situação é especial e temporária. Outra característica, introduzida por Roubier33 nesta matéria, consistiria no fato de que, nas situações jurídicas objetivas, haveria mais deveres do que direitos, pois o elemento dever seria predominante, enquanto que nas subjetivas se daria o contrário, haveria uma tendência a criar mais direitos do que deveres, como se pode verificar nos exemplos acima. E o que se verifica, por exemplo, nas situações jurídicas de cônjuge e de genitor, em que a lei estabelece poderes e deveres, estes mais numerosos do que aqueles. O conceito de situação jurídica é inseparável do de relação jurídica, que se pode também, definir como o vínculo entre duas situações jurídicas correlatas.34 13. Expectativa de direito, Direito eventual. Direito condicional. Direito atual e futuro. Os direitos subjetivos podem formar-se instantânea ou gradati-vamente. No caso de formação progressiva, cria-se uma situação preliminar de incerteza, de expectativa, de espera pela aquisição do direito. Este ainda não nasceu. A expectativa é, assim, um direito em formação, ainda dependente de algum elemento. Diz-se de fato quando existe apenas a esperança, a simples possibilidade abstrata de aquisição do direito que, por isso mesmo, não goza de proteção legal. Diz-se de direito quando já se configura em parte o direito, existindo uma situação dependente do requisito legal ou fato específico. A relação jurídica está suspensa, pendente, mas já produz efeitos provisórios, diversos porém dos que existiriam se o direito já estivesse totalmente constituído. Exemplo de expectativa de fato é a esperança que os filhos têm de suceder a seus pais, quando estes morrerem, pois, enquanto vivos, não têm eles quaisquer poderes ou direitos nesse sentido. Exemplos de expectativa de direito são a do possuidor de uma coisa a fim de obtê-la por usucapião, a dos sócios de uma pessoa jurídica sobre o patrimônio desta, em caso de dissolução, a do adquirente de um direito sob condição suspensiva etc. A expectativa de direito tem proteção jurídica, sendo que alguns já a consideram direito subjetivo (Von Thur) e, em matéria de direito intertemporal, isto é, de conflito de leis no tempo, propriamente direito adquirido (LICC, art. 6° § 2-}. Direito eventual é um direito concebido mas ainda não nascido, por lhe faltar algum elemento constitutivo, como o do proponente em relação ao destinatário da proposta (CC, art. 428, III e art. 430), e o do promitente-comprador quanto à venda definitiva. O direito eventual está sujeito a acontecimento futuro, essencial à sua existência (por exemplo, o pagamento do preço, a lavratura da escritura pública) dependente da atuação do próprio interessado. Difere do direito condicional porque este já está formado, embora sua eficácia dependa do implemento da condição. Direito condicional é o direito subjetivo cuja aquisição ou extinção depende de evento futuro e incerto previsto, mas não dependente da vontade negociai como, por exemplo, a aquisição de coisa futura. Não é sinônimo de expectativa de direito, que pressupõe um direito em formação, embora esta opinião não seja pacífica. (V. Cap. XIV, n° 14) Direito atual e direito futuro. Direito atual é o direito subjetivo completamente adquirido, podendo ser exercido pelo seu titular; direito futuro, aquele cuja aquisição ainda não se completou. O direito futuro diz-se deferido quando a sua aquisição depende do arbítrio do sujeito, e nesse particular pode confundir-se com o direito eventual, como por exemplo, o direito de propriedade dependente da transcrição da escritura de compra do imóvel, e não deferido quando, iniciada a aquisição, esta fica subordinada a fatos ou condições falíveis, como a doação de uma futura safra agrícola. 14. Direito subjetivo, pretensão e ação. O direito que o titular do direito subjetivo tem de exigir de outrem uma determinada ação ou omissão chama-se, por influência do direito alemão, pretensão.35 O conceito de pretensão no direito civil deve-se a Windscheid, que trouxe para o direito material a actio, direito subjetivo processual do direito romano, que consistia, na época clássica, em uma faculdade de direito privado em face da parte contrária, e, posteriormente, ------------------29 Goffredo Telles Júnior, op.cit. p.315. 30 Ferrara. Trattato di diritto civile italiano, p. 34 e segs. 31 Irti, op.cit. p.91. proprietário decidir aliená-lo,32 ou ainda o direito de ocupar rés mdlius, ou de desfazer contrato em caso de inadimplemento, ou de ratificar ato jurídico anulável, ou o direito de opção, o direito de preencher documento em branco etc. 32 Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, art. 27. 33 Ghestin, op. cit. p. 144. 34 Bianca, C. Massimo. Diritto Civile. VI, p. 10. 35 BGB, par. 194: "O direito de exigir de outro uma ação ou uma omissão (pretensão) se extingue por prescrição." A pretensão é assim uma "faculdade derivada de um direito subjetivo, a faculdade de exercitar o conteúdo do direito de que ela mesma é conseqüência". Código Civil Alemão (BGB) com tradução e notas de Carlos Melon Infante, p. 38, nota 155. ------------------como faculdade de direito público, do particular, em face do Estado, para exigir a proteção judicial. Para Windscheid, o direito subjetivo era uma realidade primária, enquanto a possibilidade de sua imposição, por via de uma ação, a pretensão, era uma realidade secundária.36 A pretensão surge, assim, como a "direção pessoal do direito subjetivo e a possibilidade que tem seu titular de formular a correspondente reclamação judicial"37, ou por outras palavras, é a legitimação material para exercer, por via de ação, uma exigência específica de uma pessoa frente a outra.38 A pretensão nasce no momento em que se pode exigir a prestação, o que nem sempre coincide com o nascimento do direito subjetivo, do crédito. Se uma pessoa se torna credora de outra, obrigando-se a pagar posteriormente, em dia determinado, e não paga, descum-prindo seu dever, só neste dia é que nasce a pretensão.39 No direito de propriedade, o titular pode exigir de outrem que respeite esse direito quando, por exemplo, esse outrem se apossa da coisa. Essa faculdade é a pretensão, é o poder dirigido especificamente contra o ofensor, que decorre da violação de dever préexistente. As pretensões dividem-se em pessoais e reais. As primeiras, quando se dirigem a pessoas já determinadas, como, no caso dos direitos relativos, os devedores. As reais decorrem dos direitos subjetivos reais e dirigem-se às pessoas que violarem tais direitos, direitos absolutos. O conceito de pretensão pressupõe o de direito subjetivo e o do correspondente dever. Mas existem direitos que não dão origem a pretensões, os direitos potestativos, a que não correspondem deveres. O conceito de pretensão é, assim, útil para se distinguirem os direitos subjetivos dos direitos potestativos. Estes não têm deveres, não podem ser lesados, logo, não geram pretensão. 15. Exercício dos direitos subjetivos. O exercício do direito subjetivo consiste na prática de atos próprios das faculdades que lhe formam o conteúdo. O proprietário exerce o seu direito de propriedade quando pratica atos correspondentes às faculdades de usar, gozar e dispor da coisa que lhe pertence (CC, art. 1.228). O credor exerce seu direito quando exige o pagamento que lhe compete. O exercício dos direitos subjetivos apresenta diversas modalidades. Quanto à vontade do titular, esse exercício é voluntário se depende do livre arbítrio do seu titular, o que é regra geral, e obrigatório quando se apresenta como direito-função, vale dizer, meio para cumprimento de um dever, como o que ocorre com o pátrio poder ou com o poder tutelar, que se exercem em favor dos filhos ou dos tutelados. Quanto à sua duração, o direito subjetivo é de uso reiterado ou duradouro, como acontece com os direitos de família e os reais, por exemplo, a servidão, e de uso instantâneo, quando se extingue com seu exercício, como ocorre com os direitos de crédito, que terminam com o pagamento. Quanto aos sujeitos, o exercício é direto, se o próprio titular pratica o ato, e indireto, se por meio de outra pessoa. O exercício indireto pressupõe, geralmente, representação jurídica, isto é, a prática de um ato por alguém em nome e no interesse de outrem (V. Cap. XIII). Os direitos de família, em geral, e o direito do testar só admitem o exercício direto. A representação nasce da lei, e diz-se legal, como a dos pais, tutores e curadores, ou decorre de negócio jurídico, e diz-se convencional, como a que nasce da procuração. 16. Limites ao exercício dos direitos subjetivos. Cada pessoa deve exercer os seus direitos nos limites estabelecidos pelo conteúdo (faculdades) do próprio direito ou de disposições legais específicas que visam proteger os direitos das demais pessoas. A extensão dos direitos subjetivos é condicionada, portanto, por limites próprios da natureza do direito (intrínsecos) ou por limites externos estabelecidos pelo direito (extrínsecos). São limites intrínsecos: 1) os que derivam da própria natureza do direito, quanto ao seu objeto e conteúdo. Por exemplo, o dono de um imóvel só pode atuar nos limites do objeto, o imóvel; e quanto ao conteúdo, o titular de uma servidão de passagem só pode exercer esse direito, nada mais; 2) os que derivam do princípio da boa-fé, corno "as idéias de fidelidade, lealdade, honestidade e confiança na realização e cumprimento dos negócios jurídicos"; e 3) os que decorrem da função ou destino econômico e social do próprio direito, cuja contrariedade justifica a aplicação da teoria do abuso do direito.40 São limites extrínsecos os decorrentes da proteção que o direito dispensa a terceiros de boa-fé, e os nascidos da concorrência ou colisão com direitos de outrem. Configura-se a concorrência ou a colisão quando existem direitos de pessoas diversas sobre o mesmo objeto, sem possibilidade de exercício simultâneo, como se verifica na co-propriedade ou condomínio sobre a cobertura ou terraço de um edifício, ou, ainda, quando duas ou mais pessoas são titulares da mesma servidão de passagem, ou quando o proprietário quer retomar o imóvel alugado, em conflito com o locatário que tem direito a nele permanecer, ou quando existe um concurso de credores sobre os bens do falido. Se os direitos são da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem prejuízo para qualquer das partes, como se verifica, por exemplo, quando se divide o patrimônio de devedor insolvente por todos os credores em iguais condições (par conditio creditorum). Se os direitos forem desiguais, ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior (CC português, art. 335.). Por exemplo, em matéria de registro de imóvel, o direito mais antigo tem preferência sobre o mais moderno (prior tempore potior iure); no concurso de credores, que se verifica quando as dívidas excedem o valor global dos bens do devedor (CC, art. 955) a lei estabelece preferência para os privilégios e os direitos reais (CC, art. 958). 17. O abuso de direito. Há abuso de direito sempre que o titular o exerce fora dos seus limites intrínsecos, próprios de suas finalidades sociais e econômicas. A teoria do abuso do direito surge no século XIX, como superação das concepções individualistas e liberais que viam o direito subjetivo como poder da vontade e como expressão da liberdade individual. O titular podia utilizar seus direitos sem quaisquer limitações, pois a opinião dominante era que neminem laedit qui iure suo utitur.41 Encontram-se, porém, antecedentes no direito romano, como na proibição ao proprietário de demolir sua casa para vender os materiais, ou na perda da propriedade quando o titular se recusava a prestar caução de dano infecto (hoje CC art. 1.277), ou, ainda, na legislação imperial, as proibições de se manterem incultas as terras e de se manterem os latifúndios. O problema do abuso do direito é assim, prevalentemente histórico, usando-se tal conceito a partir de certa época, por força da importância crescente da propriedade industrial sobre a agrária, e das idéias solidaristas e socialistas que vieram a influir na regulamentação jurídica da propriedade.42 Precedente imediato da teoria do abuso de direito é a opinião dos juristas medievais sobre a ilicitude dos atos de emulação, aqueles que o proprietário ou o vizinho pratica sem qualquer vantagem econômica mas com o objetivo de prejudicar terceiros. Verificando-se com freqüência tal comportamento, principalmente nas relações de vizinhança, desenvolveu-se a tese da necessidade de limitação do exercício dos direitos subjetivos no âmbito dos limites estabelecidos por sua própria finalidade social e econômica. Superava-se, desse modo, a concepção absolutista do direito subjetivo e aceitava-se a idéia de sua relatividade e de sua função social.43 Foi a jurisprudência francesa a que mais recentemente formulou e aplicou essa teoria, deduzindo-a dos princípios gerais do direito. Segundo Cornil, o exercício de um direito individual deixa de ser permitido quando se opõe à moral social e, particularmente, quando útil para o titular do direito e danoso para outras pessoas.44 Casos famosos dessa jurisprudência são o Colmar, de 1855, e o Clement-Bayard, de 1913.45 Alguns códigos disciplinam a matéria, como o Código Civil alemão (par. 226), o suíço (art. 2°), o soviético (art. 1°), o peruano (art. 1°), o português (art. 334°), o espanhol (art. 7°) e, de modo semelhante ao português, o art. 187 do Código Civil brasileiro (V. nota 52). O Código Civil brasileiro de 1916 acolhia a figura do abuso do direito, de modo indireto, no seu art. 160, ao reconhecer como ato ilícito o exercício irregular ou arbitrário de um direito. A teoria do abuso do direito suscita duas posições doutrinárias opostas. Para uma, de natureza subjetiva, existe abuso de direito quando o respectivo titular exercita seu direito sem necessidade mas com intenção de prejudicar. Três são os elementos: exercício do direito, intenção de causar dano e inexistência de interesse econômico. Dentro desse critério subjetivo ainda se distinguem dois sub-critérios: o intencional, que é historicamente o primeiro critério, pelo qual o abuso de direito pressupõe o "ânimo de prejudicar", e o técnico, que se contenta com o exercício incorreto do direito, culposo.46 Para a doutrina objetiva, o abuso do direito é conseqüência do exercício anormal do direito, permitindo dois subcritérios, um, econômico, que se manifesta no exercício do direito para "satisfação de interesses ilegítimos", e outro, funcional ou finalista, segundo o qual o direito não se exerce de acordo com sua função social.47 Também a própria existência jurídica do abuso de direito suscita controvérsias. Planiol critica essa teoria alegando que um ato jurídico não pode ser, simultaneamente, conforme ou contrário ao direito. Para ele, a expressão abuso de direito encerra uma logomaquia, uma contradição, porque ou se usa de um direito e o ato é lícito, ou dele se abusa, ultrapassando-se os limites, e o ato é ilícito. Josserand mostra que o direito subjetivo distingue-se do direito objetivo e que, por isso, um ato pode ser praticado nos limites do direito subjetivo e, ao mesmo tempo, ser contrário aos princípios ao sistema jurídico. O direito cessa onde o abuso começa. O problema reside, então, na fixação dos limites internos do direito subjetivos, e é aí que intervém a noção de abuso.48 Fundamento da teoria de Josserand é a idéia de que todos os direitos têm uma finalidade social, pelo que o direito não pode ser legitimamente utilizado senão de acordo com essa finalidade. Qualquer outro uso é abusivo. São exemplos práticos de abuso de direito os que se verificam nas relações de vizinhança;49 na defesa da propriedade de imóvel invadido; em matéria de usufruto, quando o usufrutário permite a deterioração do bem usufruído; em matéria contratual, em alguns casos de resilição unilateral de contrato de duração indeterminada, como contrato de trabalho, assim como também a exigência em certas circunstâncias de execução perfeita do contrato;50 nas relações de família, a escolha da residência ou domicílio da família por qualquer dos cônjuges, ou pelo cônjuge separado ou divorciado que detém a guarda dos filhos menores ou inválidos; o abuso no pedido de separação judicial e no direito de impedir o casamento dos filhos menores; o exercício do pátrio poder na proibição de visita aos -------------------36 Larenz, Teoria Geral do Direito Civil, p. 315 e 316. 37 PuigBrutau, op. cit. p. 412 38 Larenz, ibidem. 39 Von Thur, op. cit., p. 326. 40 Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, 1995, p. 131. José Castan Tobenas, Derecho Civil Espanol, Comum y f oral. Tomo primeiro, volumen segundo, p. 46 e segs. Luís. A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, p. 481. 41 Neminem laedit qui iure suo utitur (a ninguém prejudica aquele que usa de seu direito). Jaime M. Mans Puigarnau. Los Princípios Generales dei Derecho. p. 480. 42 Rescigno. Manuale dei diritto privato italiano. 43 Louís Josserand, De Vesprit dês droits et de leur relativité, p. 386. 44 Cornil. El Derecho Privado (Ensaio de Sociologia Jurídica Simplificada), apud Castan Tobenas. op. cit., p. 48. 45 Josserand, op. cit., p. 25 a 26. No caso Colmar, de 1855, tratava-se de uma falsa chaminé, de grande altura, que o proprietário de uma casa tinha construído. Essa obra, que não tinha quaisquer utilidades para o proprietário da casa, destinava-se a fazer sombra na casa do vizinho, que recorreu à justiça para fazer cessar esse prejuízo invocando a teoria do abuso do direito. O tribunal decidiu que "se" é dos princípios que o direito de propriedade é um direito de algum modo absoluto, autorizando o proprietário a usar e abusar da coisa, todavia o exercício deste direito, como de qualquer outro, deve ter como limite a satisfação de um interesse sério e legítimo', Josserand, op. cit. p. 24. O caso Clement-Bayard, de 1913, é o seguinte: "um proprietário rural, vizinho de um hangar onde um fabricante de dirigíveis guardava os seus aparelhos, construiu imensas armaduras de madeira altas como casas, e com hastes de ferro, para criar dificuldades aos dirigíveis. Verificando-se um acidente, em que um dos aparelhos foi vítima, o construtor pediu perdas e danos e demolição de tais construções. Não obstante a defesa do réu ter invocado seu direito de propriedade sobre o imóvel onde fizera as construções, o tribunal deu ganho de causa ao dono do dirigível, com base na teoria do abuso de direito. 46 Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, p. 17: Orlando Gomes, op. cit., p. 131 n- 66. 47 Castan Tobenas, op. cit., p. 48. 48 Ghestin, op. cit., p. 750. 49 Relações de vizinhança. Súmula da jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal. Súmula n- 120: "Parede de tijolos de vidro translúcida pode ser levantada a menos de metro e meio do prédio vizinho, não importando servidão sobre ele. Súmula n- 414: "Não se distingue a visão direta da oblíqua na proibição de abrir janela, ou fazer terraço, eirado ou varanda, a menos de metro e meio do prédio ou trem." 50 Ghestin op. cit. p. 780. Cf. Ferrer Correia e Vasco Lobo Xavier. Efeito externo das obrigações; abuso de direito; concorrência desleal, p. 8 e segs. -------------------avós;5' em matéria societária, o abuso eventual nas deliberações sociais; nas relações de trabalho, o abuso do direito de greve e de dispensa arbitrária; em matéria processual, o abuso que revela o devedor que pratica atos atentatórios à dignidade da justiça (CPC, art. 600), ou a parte que se aproveita do direito de ação para propor lides temerárias. Nas relações de consumo, o uso abusivo da personalidade jurídica da sociedade, da publicidade, das práticas comerciais, das cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços (Lei 8.078 / 90, arts. 28, 37, 39, 51). A sanção para o abuso de direito depende da natureza do ato de que provém, ressaltando-se a circunstância de que o direito considera o ato abusivo, de maneira geral, ato ilícito.52 Pode ser direta, no sentido de compelir o infrator a restaurar o estado anterior, pondo fim à situação abusiva, ou indireta, repercutindo no patrimônio do devedor da obrigação de indenizar o dano (responsabilidade civil). Deve entender-se como fim econômico ou social a função instrumental própria de cada direito subjetivo, a qual justifica a sua atribuição ao titular e define o seu exercício. Tal concepção parte da idéia de que os direitos subjetivos são instrumentos jurídicos para a realização de interesses. A boa-fé entende-se sob o ponto de vista psicológico e sob o ponto de vista ético. Psicologicamente, a boa-fé é a convicção de que se procede com lealdade, com a certeza da existência do próprio direito, donde a convicção da licitude do ato ou da situação jurídica. Eticamente, a boa-fé significa a consideração, pelo agente, dos interesses alheios, ou a "imposição de consideração pelos interesses legítimos da contraparte" como dever de comportamento.53 Bons costumes significam o conjunto das regras morais aceitas pela consciência social, correspondendo à moral objetiva, ao sentido ético imperante na comunidade social.54 18. Proteção dos direitos subjetivos A ordem jurídica coloca à disposição do titular do direito subjetivo diversas medidas para conservá-lo ou defendê-lo. Tais medidas classificam-se, quanto ao conteúdo, em preventivas e repressivas, e, quanto à forma de realização, em judiciais e extrajudiciais. As medidas preventivas têm por objetivo garantir o direito contra futura violação. Podem ser de natureza privada ou extrajudicial e de ordem judicial, estas quando se realizam por meio de organismo judiciário. São de caráter privado as chamadas garantias reais (hipoteca, penhor, anticrese, alienação fiduciária em garantia) e as garantias pessoais (fiança, aval). E de ordem judicial, as medidas cautelares especificadas no Código de Processo Civil, o arresto, o seqüestro, a caução, a busca e apreensão, a exibição de coisas ou documentos, a produção antecipada de provas, a prestação de alimentos provisionais, o arrolamento de bens, a justificação, os protestos, notificações e interpelações, a homologação do penhor legal, a investidura na posse em nome do nascituro, a ação de atentado, o protesto e apreensão de títulos e ainda outras medidas provisionais, conforme disposto nos arts. 796 a 889 do Código de Processo Civil. As medidas repressivas consistem em uma reação contra a violação do direito. Competem ao Estado, sendo dominante o princípio de direito moderno segundo o qual é da competência do Poder Judiciário (a justiça pública) a solução dos conflitos de interesses, os litígios decorrentes da violação dos direitos subjetivos. Proíbe-se, em regra, a justiça privada, admitindo-se esta excepcionalmente nos casos de ação direta, legítima defesa e estado de necessidade. A justiça pública realiza-se por meio do processo instaurado pelo exercício do direito de ação. A ação direta, ou desforço incontinenti, é o recurso à força para realizar ou assegurar o próprio direito, quando indispensável pela impossibilidade de recurso a tempo aos meios coercitivos normais (CPC, art. 336). Seu objetivo é a defesa do estado existente. O Código Civil brasileiro só a adota expressamente em matéria de posse (art. 1.210, par. 1°). A legítima defesa é a reação a um ataque injusto, atual, inevitável, de modo a não exceder o necessário à defesa. Consiste no uso dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de outrem (CP, art. 25). É preciso que a agressão seja injusta (contrária ao direito), atual ou iminente, e que os meios de defesa sejam empregados moderadamente. Estado de necessidade é a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, para repelir perigo iminente (CC, art. 188, II). Para que seja legítima é preciso que: a) o ato seja absolutamente exigido pelas circunstâncias; e b) não exceda os limites do indispensável para a remoção do perigo (CC, art. 188, par. único). A diferença entre tais figuras, nascida na doutrina alemã,55 está em que a ação direta supõe uma agressão já finda e consumada, tendo assim caráter repressivo. A legítima defesa supõe uma agressão atual, iniciada mas não consumada, tendo caráter preventivo. O estado de necessidade, a rigor, está fora da justiça privada. É preventivo, mas sem ataque ou resistência do titular do direito afetado ou atingido. Há conflito de interesses, mas não litígio. Quanto ao direito de ação, o art. 75 do Código Civil de 1916, sem correspondência no Código atual, dispunha que a todo o direito corresponde uma ação, que o assegura. No âmbito constitucional, o art. 5°, XXXV, também dispõe que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". O direito de ação é, assim, o direito que as pessoas têm de exigir do Estado, por meio dos tribunais, a proteção e a garantia dos seus direitos subjetivos. Em que consiste o direito de ação e qual a sua natureza jurídica? A palavra ação apresenta tradicionalmente dois sentidos, um substantivo, material, e outro, adjetivo, formal. No primeiro, ação é sinônimo de direito, como se encontra nas fontes romanas, indicando a faculdade de se exigir do devedor a prestação devida. No sentido formal, significa o instrumento, o meio processual de se exigir em juízo a realização ou a conservação do direito subjetivo. Esses dois aspectos, o material e o formal, eram duas facetas da mesma realidade, sendo que ao primeiro se poderia dar uma conotação estática e, ao segundo, uma dinâmica. A ação era o direito posto em movimento e atuado em juízo. Essa, a teoria clássica, confundindo os aspectos material e formal da ação. Teorias novas distinguem esses dois aspectos, separando o direito subjetivo material do direito de ação, ou direito no seu aspecto formal. A ação configura-se, portanto, como um direito de existência própria, distinguin-do-se a ação no seu aspecto material, ou a faculdade de exigir-se de outrem a prestação devida, da ação no seu aspecto formal, ou faculdade de invocar-se a tutela jurisdicional do Estado. A primeira passa a denominar-se pretensão e seu estudo permanece no direito civil, por ser manifestação do direito substantivo, material. A segunda é matéria do direito processual civil. Neste sentido a ação, como direito de invocar a tutela jurisdicional do Estado, é um direito autônomo, de natureza pública, dirigido ao Estado, e de natureza instrumental em relação ao direito subjetivo material, de natureza privada. 19. Conciliação. Mediação. Arbitragem. A ordem jurídica admite ainda outros meios de conservação de direitos, caracterizados não só pelo menor grau de formalismo, mas também pela participação dos próprios sujeitos interessados na solução do problema. O direito anglo-saxônico chama-os de ADR (alternative dispute resolution), e são hoje objeto de grande interesse da sociologia do direito. Compreendem a conciliação, a mediação e a arbitragem. A conciliação é o procedimento pelo qual se levam "as partes à mesa" induzindo-as a participar da solução do problema. Pode ser formal ou informal, conforme o grau de formalismo de que se revista. No direito brasileiro é obrigatória a tentativa de conciliação das partes (Código de Processo Civil, arts. 125, IV, 277, 335 e 447; Consolidação das Leis do Trabalho, art. 831; Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, sobre Juizado Especiais Civis e Criminais, arts. 16, 21 e 73). A mediação é o processo em que uma parte neutra ajuda os contendores a chegarem a um acerto voluntário de suas diferenças. No direito processual brasileiro confunde-se com a conciliação. A arbitragem é um processo formal, disciplinado no Brasil pela Lei 9.307 de 23 de setembro de 1996, segundo o qual as partes aceitam submeter a terceiro a apreciação do seu litígio, cabendo a esse terceiro ouvir as partes, estudar os argumentos e decidir. -----------------------51 Orlando Gomes, op. cit, p. 134. Inácio de Carvalho Neto, Separação e Divórcio, p. 346. 52 Dispõe o art. 187 do Código Civil brasileiro: "Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes." 53 Soergel-Siebert. Comentários ao BGB, apud Castro Mendes, op. cit., III, p. 652, e Menezes Cordeiro. Da boa-fé no direito civil, II p. 1.284 e segs. 54 Coutinho de Abreu, op. cit. 63. 55 Enneccerus-Niperdey. Derecho civil. Parte general, vol. II, par. 239 p. 1.087. -----------------------CAPÍTULO VI Sujeitos de Direito. A Pessoa Natural Sumário: 1. Os sujeitos de direito. A personalidade. 2. Personalidade e capacidade. 3. A pessoa física. Aquisição da capacidade jurídica. 4. O problema da personalidade jurídica do nascituro. 5. Extinção da capacidade jurídica. A morte. 6. Presunção de morte. Ausência. 7. Comoriência. 8. Capacidade de direito. Capacidade de fato. Legitimidade. 9. Incapacidade absoluta. 10. Incapacidade relativa. 11. Proteção aos incapazes. 12. Emancipação. 13. Estado civil. Conceito. Importância. 14. Natureza do estado. Atributo da personalidade e direito subjetivo. 15. Fontes e espécies de estado. 16. Características do estado. 17. O estado familiar. 18. O estado político. 19. A posse de estado. 20. Ações de estado. 21. O registro dos atos de estado. 22 O domicílio. Conceito. Características. Importância. Determinação. Espécies. 1. Os sujeitos de direito. A personalidade. Elemento subjetivo das relações jurídicas são os sujeitos de direito. Sujeito de direito é quem participa da relação jurídica, sendo titular de direitos e deveres. São sujeitos de direito as pessoas físicas ou naturais isto é, os seres humanos, e as pessoas jurídicas, grupos de pessoas ou de bens a quem o direito atribui titularidade jurídica. Os animais não são sujeitos. São coisas e, como tal, possíveis objeto de direito. O direito protege-os para garantir-lhes a sua função ecológica, evitar a extinção de espécies ou defendê-los da crueldade humana (CF art. 255, VII e Declaração Universal de Direitos Humanos). A possibilidade de alguém participar de relações jurídicas decorre de uma qualidade inerente ao ser humano, que o torna titular de direitos e deveres. Essa qualidade chamase personalidade jurídica, e os que a têm, pessoas.1 Pessoa é o homem ou entidade com personalidade, aptidão para a titularidade de direitos e deveres. Titularidade de um direito é a união do sujeito com esse direito. Não há sujeitos sem direitos, como não há direitos sem titular.2 Ser pessoa é ter a possibilidade de ser sujeito de direitos, de relações jurídicas, como credor, devedor, pai, cônjuge etc. É na pessoa que os direitos se localizam, por isso ela é sujeito de direitos ou centro de imputações jurídicas no sentido de que a ela se atribuem posições jurídicas. O termo pessoa tem um significado vulgar e outro jurídico. Na linguagem comum, pessoa é o ser humano, mas tal sentido não serve ao direito, que tem vocabulário específico. Na linguagem jurídica, pessoa é o ser com personalidade jurídica, aptidão para a titularidade de direitos e deveres. Todo ser humano é pessoa pelo fato de nascer ou até de ser concebido. Pessoa é o ser humano como sujeito de direitos.3 Pessoa vem de persona, significando, na antigüidade clássica, a máscara (larva histrionalis] com que os atores participavam dos espetáculos teatrais e religiosos, para tornarem mais forte a sua voz.4 A palavra passou a ser usada como sinônimo de personagem. E como na vida real os indivíduos desempenham papéis, à semelhança dos atores no palco, o termo passou a significar o ser humano nas suas relações sociais e jurídicas. Desse modo, toda pessoa seria jurídica, no sentido de que tal qualificação, como centro de direitos e deveres, é reconhecida pelo direito,5 compreendendo-se assim que na história se encontrem indivíduos que não eram considerados pessoas, como os escravos e os mortos civis (os condenados), enquanto que no direito moderno há pessoas que não são seres humanos, como as associações, as sociedades, as fundações. No direito romano a personalidade jurídica do homem dependia de requisitos físicos (nascimento com vida, separação do ventre materno e forma humana) e da existência de três estados: de liberdade (status libertatis), cidadania (status civitatis} e de família (status familiae}. Significa isso dizer que o reconhecimento da personalidade, com os direitos da plena capacidade jurídica, exigia que o indivíduo fosse livre (não escravo), cidadão (não estrangeiro) e sui iuris ou chefe de família. No direito moderno, extinta a escravidão, reconhecido aos estrangeiros o gozo dos direitos civis, e admitido que a situação familiar não altera a capacidade jurídica, a personalidade surge como projeção da natureza humana. E a pessoa passa a ser sinônimo de homem e de sujeito de direito. A evolução doutrinária apresenta duas concepções, a naturalista e a formal, ou jurídica. Para a concepção naturalista, todos os indivíduos têm personalidade, considerada inerente à condição humana como atributo essencial do ser humano, dotado de vontade, liberdade e razão. Para a concepção formal, própria da ciência jurídica positivista, a personalidade é atribuição ou investidura do direito. Pessoa e homem não coincidiriam. Pessoa não seria o ser humano dotado de razão, mas simplesmente o sujeito de direito criado pelo direito objetivo. Com uma visão mais atualizada, pode-se dizer que pessoa traduz a qualificação jurídica da condição natural do indivíduo, em uma transposição do conceito ético de pessoa para a esfera do direito privado,6 e no reconhecimento de que são inseparáveis as construções jurídicas da realidade social, na qual se integram e pela qual se justificam. 2. Personalidade e capacidade. Conexo ao de personalidade, temos o conceito de capacidade. Não são, porém, sinônimos. "Interpenetram-se sem se confundirem". A personalidade, mais do que qualificação formal, é um valor jurídico que se reconhece nos indivíduos e, por extensão, em grupos legalmente constituídos, materializando-se na capacidade jurídica ou de direito. A personalidade não se identifica com a capacidade, como costuma defender a doutrina tradicional. Pode existir personalidade sem capacidade, como se verifica com o nascituro, que ainda não tem capacidade, e com os falecidos, que já a perderam.7 Por outro lado, as pessoas jurídicas têm capacidade de direito e não dispõem de certas formas de proteção da personalidade,8 representadas pelos chamados direitos da personalidade. A personalidade ou subjetividade significa, então, a possibilidade de alguém ser titular de relações jurídicas. E portanto, o pressuposto dos direitos e dos deveres. Deve ser considerada como um princípio, um bem, um valor em que se inspira o sistema jurídico, superando-se a concepção tradicional, própria do individualismo do séc. XIX, que exaltava a pessoa apenas do ponto de vista formal ou técnico-jurídico. Enquanto a personalidade é um valor, a capacidade é a projeção desse valor que se traduz em um quantum. Capacidade, de capax (que contém), liga-se à idéia de quantidade e, portanto, à possibilidade de medida e de graduação. Pode-se ser mais ou menos capaz, mas não se pode ser mais ou menos pessoa. Compreende-se, assim, a existência de direitos da personalidade, não de direitos da capacidade. O ordenamento jurídico reconhece a personalidade e concede a capacidade, podendo considerar-se esta como um atributo daquela. A capacidade é então a "manifestação do poder de ação implícito no conceito de personalidade",9 ou a "medida jurídica da personalidade". E, enquanto a personalidade é valor ético que emana do próprio indivíduo, a capacidade é atribuída pelo ordenamento jurídico,10 como realização desse valor. A capacidade de direito, como titularidade de direitos e deveres, chamada pela doutrina francesa de capacidade de gozo, porque é o titular que deles desfruta, distingue-se da capacidade de fato, aptidão para o exercício desses direitos ou deveres. 3. A pessoa física. Aquisição da capacidade jurídica. Pessoa natural ou física é o ser humano como sujeito de direitos e deveres. Sua teoria obedece a três princípios fundamentais: a) todo ser humano é pessoa, pelo simples fato de existir, e por isso, é capaz de direitos e deveres na ordem civil (CC. art. 1°); b) todos têm a mesma personalidade porque todos têm a mesma aptidão para a titularidade de relações jurídicas (CF, art. 5-]; e c) ela é irrenun-ciável. A pessoa natural começa sua existência com o nascimento com vida e, com isso, a sua capacidade jurídica (CC, art. 2°). Nascimento é o fato, natural ou artificial, da separação do feto do ventre materno. Com a primeira respiração tem início o ciclo vital da pessoa, marcando, também, o nascimento, o início da capacidade de direito. Assim dispõe no art. 2° do Código Civil: "A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro". Significa isso que, verificado o nascimento e o início da vida com a penetração do ar nos pulmões, firmou-se a capacidade jurídica do recém-nascido. Mesmo que esse venha a morrer, já adquiriu direitos que serão transmitidos aos herdeiros. Nesse dispositivo, a exemplo do que ensina a doutrina mais tradicional, o Código emprega o termo personalidade como sinônimo de capacidade de direito, o que é, a meu ver, superado. O nascimento deve ser registrado no lugar em que tiver ocorrido o parto, no prazo de quinze dias, ampliando-se até três meses para os lugares distantes mais de trinta quilômetros da sede do cartório. Em sua prova se faz, de regra pela certidão do registro (CC, art. 9°, I, e Lei n^ 6.015, de 31.12.73, art. 50). No caso de nascer morto, ou morrer na ocasião do parto, faz-se também o assento com os elementos que couberem e com remissão ao do óbito (Lei n-6.015/73 art. 53). O registro é importante por sua função probatória. 4. O problema da personalidade jurídica do nascituro. Nascituro é o que está por nascer, mas já concebido no ventre materno.11 O Código Civil brasileiro, no art. 2-, nega-lhe personalidade jurídica, mas garante-lhe proteção para os direitos de que possa ser titular. Esse dispositivo legal define a posição do nosso Código sobre o assunto, que não é pacífico, pois as concepções doutrinárias não são idênticas nos sistemas jurídicos contemporâneos. O problema que se apresenta é o seguinte: o nascituro tem personalidade jurídica ou, de outro modo, quando se inicia a personalidade humana, com a concepção ou com o nascimento? No direito romano o nascituro não era ainda pessoa. Mas, se nascia como homem capaz de direitos, sua existência computava-se desde a concepção.12 Também nas Ordenações do Reino (Ord. 3, 18, § 7; 4. 82, § 5) a personalidade começava da concepção. Teixeira de Freitas, no art. l2, da Consolidação das Leis Civis, considerava nascidas as pessoas formadas no ventre materno, conservando-lhes a lei seus direitos de sucessão para o tempo do nascimento. Da mesma forma, Carlos de Carvalho, em Direito Civil Brasileiro Recompilado, art. 74: "As pessoas por nascer, estejam ou não, já concebidas, a lei conserva seus direitos para o tempo do nascimento, contanto que nasçam viáveis." Clóvis Beviláqua dispunha no art. 3-. de seu Projeto: "A personalidade civil do ser humano começa com a concepção, sob a condição de nascer com vida." O Código Civil argentino acolheu esse critério no seu art. 70, e da mesma forma os códigos mais modernos, como o mexicano (art. 22), o venezuelano (art. 17), o peruano (art. 1.).Também o Código Civil suíço, no art. 31, 2: "O nascimento com vida torna, na mesma ocasião, o ente humano sujeito de direito e, em conseqüência, transforma em direitos subjetivos as expectativas de direito que lhe tenham sido atribuídas na fase da concepção." Ora, expectativa de direito é direito subjetivo com eficácia suspensa ou em formação. Nesse sentido, o disposto no par. 2° do art. 6° da LICC. Falar-se em condição ou em expectativa de direito é reconhecer-se o nascituro como titular de direitos em formação, o que pressupõe titularidade, obviamente, personalidade. O direito francês admite também que a personalidade começa da concepção,13 desde que o ser humano nasça vivo e seja viável. No direito brasileiro, a maioria dos autores defende que o nascituro não tem personalidade jurídica, como parece dispor o art. 2-do Código Civil. No entanto, o sistema jurídico brasileiro permite outra conclusão. Na Constituição da República, art. 5°, caput, garante-se o direito à vida, isto é, o direito subjetivo à vida. No Código Civil os artigos 1609, parágrafo único, 542, 1.779 e 1.799, I, consideram também o feto, desde a concepção, como possível sujeito de relações jurídicas, vale dizer, sujeito de direitos. E só pode ser titular de direitos quem tiver personalidade, donde concluir-se que, formalmente, o nascituro tem personalidade jurídica. Não se pode, assim, de modo lógico, negar-se ao nascituro a titularidade jurídica. O nascimento não é condição para que a personalidade exista, mas para que se consolide.14 Como diz Bianca, "a questão de capacidade do concebido não pode ser resolvida simplesmente sobre a base da norma que indica o nascimento como o momento de aquisição da capacidade jurídica. Ocorre levar em consideração que o ordena------------------------- 1 Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 165 e segs.; Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, I, p. 153, e segs.; Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, I, p. 153 e segs.; Francesco Ferrara. Trattato di diritto civile italiano, p. 458: C. Massimo Bianca. Diritto civile, p. 138: Pietro Perlingieri. La personalità umana neü'ordinamento giuridico, p. 137 e segs; José Castan Tobenas. Derecho Civil Espanol, Comum y Foral, tomo primeiro, vol. segundo, p. 95: Karl Larenz. Allgemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts (Teoria do Direito Civil), p. 119 e segs. Alex Weil e François Terré. Droit civil, Lês personnes, p. 3 e segs: Antônio Chaves. Capacidade Civil, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 13. p.2: João de Castro Mendes Direito Civil. Teoria Geral, I Lisboa, 1978, p. 169 e segs. 2 Mota Pinto. Teoria Geral. p. 196 e Castro Mendes. Direito Civil. p. 164. Cf. Mota Pinto. op. cit., p. 194, que defende a tese dos "estados de vinculação de certos bens, em vista do surgimento futuro de uma pessoa com um direito sobre eles". "A teoria dos direitos sem sujeito está hoje pouco menos do que abandonada pela opinião científica". Castan Tobenas, op. cit., p. 27. 3 Pierangelo Catalano Osservazioni sulla persona dei nascituri alia luce dei diritto romano (Da Justiniano a Teixeira de Freitas), p. 47. 4 Castan Tobenas, op. cit., pp. 93 e 94. 5 Francesco Ferrara. Teoria delle personne giuridiche, p. 356. 6 Larenz, op. cit., p.47. 7 Perlingieri, La personalità umana nell'ordinamento giuridico, p. 138. 8 Idem, ibidem. 9 Clóvis Beviláqua. Código Civil Comentado, art 3°. 10 Manuel Garcia Amigo. Instituciones de Derecho Civil, I, Parte General, p. 294. A capacidade jurídica é conseqüência e emanação da personalidade, implicando uma idéia de medida. Diversamente da opinião tradicional, que considerava equivalente personalidade e capacidade (Clóvis Beviláqua, C.C. Comentado, art. 2-}, a doutrina distingue hoje os conceitos de personalidade e de capacidade. Cf. Luís A. Carvalho Fernandes. Teoria Geral do Direito Civil, I, p. 110. 11 Limongi França. Manual de Direito Civil. I, p. 126. 12 Conceptus pró jam nato habetur, quoties de eius commodo agitur (o nascituro (• tido como já nascido quando se tratar de seus interesses).D. 1.5.7 D. 1.1.26: D. 2. 5. 4. 1. 1. Sobre o nascituro no direito romano cfr. Giuseppe Gandolfi, Nascituro, Enciclopédia dei Diritto, XXVII, p. 530 e segs. 13 Mareei Planiol et George Rippert. Traité pratique de droit civil français, I p. 11: Mazeaud et Mazeaud. Leçons de droit civil, tome premier, deuxième volume, p. 464. 14 Limongi França, op. cit., p. 127. Silmara Chinelato e Almeida, Tutela Civil do nascituro, p. 161 e segs. ------------------------mento reconhece o concebido como portador de interesses merecedores de tutela e em correspondência a tais interesses lhe atribui uma capacidade provisória que permanece definitiva se o concebido vem a nascer".15 A questão não é despicienda. Tem importância na responsabilidade civil, no direito contratual, no direito de família (investigação e reconhecimento da paternidade, alimentos, tutela, adoção, sucessão testamentária etc.], e no direito processual, quanto à capacidade do nascituro de ser parte. A jurisprudência brasileira tem reconhecido a capacidade processual ativa do nascituro (ação de alimentos em seu favor, RT 625/177 e RT 587/182, e ação cautelar de reserva de bens) e também capacidade processual passiva (ação anulatória de testamento que contempla nascituro, ação anu-latória de doação em que o nascituro é donatário). De tudo isso se deduz que a questão da personalidade jurídica do nascituro é puramente de política legislativa, pois existem códigos que a reconhecem e outros que a negam. Essa matéria simplifica-se com a concepção moderna que distingue a personalidade da capacidade, atribuindo a primeira ao nascituro e ao defunto,16 e a segunda, aos indivíduos com vida extra-uterina. A distinção entre personalidade e capacidade de direito é, aliás, consagrada no Código Civil, no Título I, Capítulo I, à semelhança do disposto no Código Civil português, Livro I, Título II, Capítulo I, Seção I, intituladas "Personalidade e capacidade jurídica". 2. Em favor da subjetividade, e conseqüente personalidade do concebido, o importante é a sua individualidade e não a sua autonomia. Aquela decorre do seu código genético. Esta significa autosufi-ciência. Quanto à autonomia em face da mãe, tem esta função puramente instrumental, de sustentação. Os absolutamente incapazes não têm autonomia e são pessoas, o que ocorre, também, com os irmãos siameses, as pessoas em estado de coma, o recém-nascido que permanece ligado a aparelhos para viver. Cfr. Silverio Grassi, / nascituri concepiti, p. 33. Cfr. ainda Silmara Chinelato e Almeida, O nascituro no Código Civil e no direito constituendo do Brasil, Revista de Direito Civil Imobiliário, Agrário e Empresarial, n° 44, pp. 180 e segs. Sobre O direito do embrião humano: mito ou realidade, cfr. Eduardo de Oliveira Leite, Revista de Direito Civil Imobiliário, Agrário e Empresarial, n° 78, p. 22 e segs. Sobre a capacidade processual do nascituro, cfr. William Artur Pussi, Teoria da personalidade jurídica. Pessoa jurídica, Curso de Mestrado em Direito, UEM, Maringá, 1999, ps. 8 e 9. Sujeitos de Direito. A Pessoa Natural 225 5. Extinção da capacidade jurídica. A morte. A existência da pessoa natural e sua capacidade jurídica terminam com a morte (CC, art. 6°). O direito moderno não aceita a morte civil, que era a perda de personalidade por outros motivos que não o falecimento, como ocorria, no direito romano, quando a pessoa se tornava escrava ou, no direito moderno, com a prisão perpétua, o banimento ou a profissão religiosa. Prova-se a morte com a certidão de óbito (CC, art. 9°, I), sem a qual não se faz o sepultamento. O assento de óbito no Registro Civil fará referência ao momento, lugar e causa do falecimento, à qualificação do falecido e aos filhos, herdeiros e bens que deixe (LRP, art. 80). Os efeitos jurídicos da morte manifestam-se nas relações jurídicas de que o falecido era parte, extinguindo-as ou modificando-as, conforme sejam intransmissíveis ou transmissíveis. O falecido não mais adquire direitos, a não ser que a aquisição seja condicionada ao evento da morte,17 como pode ocorrer com o seguro de vida não estipulado em favor de terceiros. Nesse caso, a indenização pertence ao patrimônio do morto e, se casado ele em comunhão, favorece o cônjuge sobrevivente.18 A morte extingue as relações jurídicas intransmissíveis, como ocorre com as de personalidade e as de família, e algumas patrimoniais, como o uso (CC, art. 1.412), a habitação (CC, art. 1.414), a obrigação de alimentar baseada no parentesco (CC, art. 1.700), o mandato (CC, art. 682, II). As transmissíveis, como a maioria das patrimoniais, passam aos herdeiros, por meio da sucessão legítima ou da testamentária. Neste caso, o falecido, por ato unilateral, revogável e conforme a lei, denominado testamento, dispõe de seu patrimônio para depois da morte (CC, art. 1.857). A morte não é só causa de extinção de relações jurídicas. Também impede a formação das que estavam em vias de constituir-se, como ocorre com a proposta contratual que se torna ineficaz pela morte do proponente (CC, art, 428). Outros efeitos da morte encontram-se expressamente referidos no Código Civil (arts. 1.935, 1.410, 560, 1.764, 1.921 e 1.951). Discute-se a possibilidade de prolongamento da personalidade após a morte da pessoa para proteger-lhe os respectivos direitos da personalidade, e para justificar a condenação à ofensa moral contra o morto. Procura-se, assim, garantir o seu direito à honra e à reputação, agindo o respectivo cônjuge, ou os herdeiros, em nome e no interesse do defunto. A personalidade humana existe, assim, antes do nascimento, e projeta-se para além da morte.19 "O testamento, o respeito ao cadáver, a sepultura, a autorização para autópsia e para transplantes, a proteção da memória do falecido contra injúria e difamação, demonstram a permanência de traços da personalidade post-mortem". 6. Presunção de morte. Ausência. Presume-se a morte da pessoa quando se decreta a sua ausência e decorrem dez anos da abertura provisória da sucessão, ou quando o ausente contar oitenta anos e tiverem decorridos cinco anos de suas últimas notícias (CC, arts. 37e 38). Ausência é a situação da pessoa que desaparece de seu domicílio sem deixar representante (CC, art. 22), provocando incerteza jurídica sobre a sua existência. E palavra de sentido mais restrito em direito do que na linguagem corrente. Juridicamente, é um instituto destinado a proteger os bens e os interesses da pessoa cuja existência é incerta, traduzindo a preocupação do Estado com o possível abandono desses bens, o que leva ao prejuízo de seus credores e do próprio Estado. Quanto à sua natureza, trata-se de uma situação jurídica especial para uns,20 ou de um modo de extinção presuntiva da personalidade humana, para outros.21 De qualquer maneira, configura uma espécie de estado civil que justifica, em face dos interesses do ausente e de terceiros, a existência de um instituto que proteja tais interesses. Embora já se encontrem no direito romano indícios de tal preocupação,22 os romanos não disciplinaram a matéria. Uma regulamentação sistemática e institucional só se encontra nos códigos civis modernos devido às guerras na Europa que, causando grande número de desaparecidos, e conseqüentes problemas quanto à administração de seus bens, tornaram necessário o estabelecimento de normas que protegessem os interesses dos ausentes. No direito brasileiro regulam a matéria o Código Civil, arts. 22 a 39, e o Código de Processo Civil, arts. 1.159 a 1.169. Para que alguém seja considerado ausente é preciso que: a) tenha desaparecido de seu domicílio; b) haja dúvida sobre sua existência; e c) haja sentença declaratória do juiz (CC. art. 22) (CPC, art. 1.159). Declarada a ausência, o juiz manda arrecadar os bens do ausente, a pedido de qualquer interessado ou do Ministério Público, e nomeia-lhe curador (CC, art. 22) e determina sejam publicados editais durante um ano, de dois em dois meses, anunciando a arrecadação e convocando o ausente. Decorrido um ano da arrecadação dos bens do ausente, ou, se ele deixou representante ou procurador, em se passando três anos, pode abrir-se provisoriamente a respectiva sucessão a requerimento de legítimo interessado, cônjuge, herdeiros, credores, quem tiver sobre os bens expectativa de direito, ou o Ministério Público (CPC, art. 1.163). Á sucessão provisória, que poderá terminar pelo comparecimento do ausente, converte-se-á em definitiva quando houver certeza de sua morte, ou tiverem decorrido dez anos do trânsito em julgado da sentença de abertura, ou quando o ausente contar oitenta anos de idade e tiverem decorrido cinco anos de sua última notícia (CC. arts. 37 e CPC, art., 1.167). Regressando o ausente nos dez anos seguintes à abertura da sucessão definitiva, ou algum de seus herdeiros necessários, poderá ser requerida ao juiz a entrega dos bens existentes no estado em que se acharem, os que os tenham substituído ou o preço que os herdeiros e demais interessados tenham recebido pela alienação desses bens (CC. art. 39 e CPC, art. 1.168). Os efeitos da declaração de ausência manifestam-se quanto aos direitos de família e aos direitos patrimoniais do ausente. Quanto aos direitos de família, se o ausente deixou filhos menores, o pátrio poder será exercido pelo outro progenitor, exclusivamente, salvo no caso de esse ter falecido ou estar privado do exercício desse direito, quando então se nomeará um tutor (CC, art. 1.728). Com relação ao casamento, a ausência pode tornar-se fundamento, embora indiretamente, para a ação de separação judicial (CC. art. 1.572, par. 1°). Quanto aos direitos patrimoniais, dar-se-á a sucessão provisória para a partilha dos bens, com a imissão dos herdeiros na posse desses bens (CC. art. 30). A sentença declaratória de ausência registra-se no cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais do domicílio anterior do ausente (LRP, art. 94). Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência, se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida, e se alguém, desaprecido em companhia ou em feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. A declaração da morte presumida somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações,devendo a sentença fixar a data provável do falecimento (CC, art. 7°). 7. Comoriência. Comoriência é a presunção de morte simultânea de pessoas reciprocamente herdeiras (CC, art.8°). Quando duas ou mais pessoas, com direito sucessório recíproco, falecem na mesma ocasião, surge o problema de se estabelecer quem morreu primeiro, para os fins da vocação hereditária do art. 1.829 do Código Civil. Sendo impossível, pelas provas admitidas em direito e os meios especiais de medicina legal, estabelecer quem primeiro morreu, consideram-se as pessoas simultaneamente mortas, não havendo, conseqüentemente, transmissão de direitos entre si. Se, por exemplo, no mesmo acidente, morrerem João e seu filho José, este, sem descendentes, ambos serão reciprocamente herdeiros, conforme a ordem fixada no art. 1.829 do Código Civil. Para evitar-se conflito de interesses entre outras pessoas, diretamente ligadas aos falecidos, por exemplo, seus cônjuges, estabelece a lei presunção de morte simultânea, não havendo, portanto, transmissão de direitos entre os falecidos. O instituto da Comoriência baseia-se em uma presunção iuris tantum, passível de contestação e de prova por quem tiver legítimo interesse. Pode ocorrer que um sobrevivente declare ter visto, após o sinistro, uma das vítimas ainda com vida, ou que a natureza dos ferimentos de um permita estabelecer prioridade na morte como, por exemplo, se um morreu de traumatismo craniano e outro de hemorragia, decorrente de fratura exposta. Mas se não for possível estabelecer quem morreu primeiro, não se transmitirão direitos entre os falecidos. A importância da Comoriência está, portanto, no seu efeito, que é a intransmissibilidade de direitos entre os comorientes, como se entre eles não tivesse havido qualquer vínculo sucessório. 8. Capacidade de direito. Capacidade de fato. Legitimidade. Capacidade de direito é a aptidão para alguém ser titular de direitos e deveres, ser sujeito de relações jurídicas. Todas as pessoas físicas a têm (CC, art. l-}, como efeito imediato do princípio da igualdade. Têm-na também as pessoas jurídicas, se obedecidas as formalidades legais de sua constituição. As pessoas físicas adquirem-na com o nascimento e conservam-na até a morte. Diversa da capacidade de direito é a capacidade de fato, aptidão para a prática dos atos da vida civil, e para o exercício dos direitos como efeito imediato da autonomia que as pessoas têm. Embora seja manifestação da personalidade jurídica, pressuposto de todos os direitos e deveres, a capacidade de direito representa uma posição estática do sujeito, enquanto a capacidade de fato traduz uma atuação dinâmica.23 A primeira é a aptidão para a titularidade de direitos e deveres, a segunda, a possibilidade de praticar atos com efeito jurídico, adquirindo, modificando ou extinguindo relações jurídicas. A capacidade de direito é fundamental, "porque contém potencialmente todos os direitos de que o homem pode ser sujeito", e é indivisível, irredutível e irrenunciável24. A capacidade de fato é variável e nem todos a têm. Comporta diversidade de graus, pelo que as pessoas físicas podem ser capazes, absolutamente incapazes e relativamente incapazes, conforme possam, ou não, praticar validamente os atos da vida civil. -----------------15 Bianca, op. cit., p. 203. 16 Castro Mendes, p. 228: Wilson Bussada. Código Civil Brasileiro Interpretado pelos Tribunais. I, p. 95: BGB, p. 844 n2 17 Enneccerus, op. cit., p. 324. 18 Ferrara, p. 469. 19 Diogo Paredes Leite de Campos. A Vida, a Morte e sua Indenização, in Revista de Direito Comparado Luso Brasileiro, n° 7, p. 94. 20 Henri Capitant. Introduction à 1'étude du droit civil, p. 106. 21 Castan Tobenas, op. cit., p. 291. 22 Como demonstra a existência do curator bonorum absentis (D. 12. I) e a acuo hereditatis petitio (L 4. 12). 23 Castan Tobenas. op. cit., p. 136. 24 Código Civil Português, art. 69. -----------------Enquanto que a capacidade de direito decorre apenas do nascimento com vida, para as pessoas físicas, e da observância dos requisitos legais de constituição, para a pessoa jurídica, a capacidade de fato depende da capacidade natural de entendimento, inteligência e vontade própria da pessoa natural. E corno tais requisitos nem sempre existem, ou existem com diversidade de grau, a lei nega ou limita tal capacidade. A capacidade de fato ainda se desdobra em capacidade para atos jurídicos, consistentes na possibilidade de prática, atos ou negócios jurídicos, em capacidade processual, que é a de atuar em juízo, na defesa de seus interesses, e em capacidade penal, possibilidade de ser responsável pela prática de ilícito penal. A capacidade para a prática dos atos jurídicos ainda se pode considerar subdividida em capacidade negociai, para a prática de negócios jurídicos, e extranegocial, para a prática de atos jurídicos em senso estrito (Cap. X, n° 1). No âmbito do direito privado, ainda se distingue a capacidade para atos de conservação ou administração, e capacidade para atos de disposição ou de alienação de direitos. Diversa da capacidade de agir, ou de fato, é a legitimidade, aptidão para a prática de determinado ato, ou para o exercício de certo direito, resultante, não da qualidade da pessoa, mas de sua posição jurídica em face de outras pessoas. A legitimidade decorre de certas situações jurídicas do sujeito, do que lhe advêm limitações ao poder de agir. Pode definir-se, sinteticamente, como a específica posição de um sujeito em relação a certos bens ou interesses.25 Enquanto a capacidade de fato é a aptidão para a prática em geral dos atos jurídicos, a legitimidade refere-se a um determinado ato em particular. Legitimidade é, assim, o, poder de exercitar um direito, e legitimado é quem o tem. Dizse substancial, quando se refere à prática de atos jurídicos, e processual, quando se refere à atuação da pessoa em juízo. Resulta da posição da pessoa em relação a outra.26 São exemplos de normas que estabelecem a legitimidade como requisito de validade o art. 1.647 do Código Civil, que proíbe o cônjuge de praticar atos de disposição de seu patrimônio sem autorização do outro, salvo no regime de separação absoluta; o art. 1.749, que proíbe o tutor de adquirir ou dispor dos bens tutelados; o art. 1.774, que estende a norma do dispositivo anterior ao curador; o art. 496, dispondo que os ascendentes não podem vender a descendentes sem autorização expressa dos demais descendentes; o art. 497, que também impede a aquisição de bens por determinadas pessoas, em razão das funções que exercem; o art. 1.801, que nega legitimidade às pessoas nomeadas para serem herdeiras ou legatárias. Em resumo, pode-se dizer que, enquanto a personalidade é um valor jurídico que emana da pessoa, a capacidade de direito provém do ordenamento jurídico que a confere aos indivíduos ou aos grupos, de modo legalmente estabelecido. A capacidade de fato é a aptidão para a pessoa praticar os atos da vida civil, criando, modificando ou extinguindo relações. E algo dinâmico, no que se diferencia da capacidade jurídica, que é estática. A legitimidade é o poder da pessoa de atuar concretamente em determinada relação jurídica. A pessoa pode ser capaz e não ter legitimidade para certos atos, como ocorre com o falido, que é capaz, mas não pode atuar em relação aos bens da massa falida, enquanto o síndico, que não é o titular desses bens, pode sobre eles praticar determinados atos. 9. Incapacidade absoluta. A capacidade de agir é a regra. No entanto, diversos fatores podem impedi-la ou limitála. Nas pessoas naturais, esses fatores são a idade e a doença, que provocam a incapacidade total para o exercício de atos da vida jurídica (incapacidade absoluta), ou limitam-na a certos atos ou a maneira de exercê-los (incapacidade relativa). Outros fatores ainda podem influir em relações jurídicas específicas, e nesse caso não se trata de capacidade, mas de legitimidade. Nas pessoas jurídicas, são os respectivos órgãos administrativos que exercem a capacidade de agir na forma da lei ou do estatuto, limitada às relações jurídicas de caráter patrimonial, pois não há campo para aquelas próprias da pessoa física, como o direito a alimentos, ou as relações familiares. Quanto à idade, o direito estabelece dois momentos da existência humana como essenciais para a capacidade de exercício: aos 16 e aos 18 anos. Até os 16, considera-se que o ser humano não tem o necessário discernimento para a prática de atos jurídicos, pelo que não os pode validamente praticar. A incapacidade é absoluta e tais atos serão nulos. Dos 16 aos 18 anos, porém, o direito já lhe reconhece certa maturidade e, conseqüentemente, determinada capacidade para o exercício da vida civil, desde que assistido. A incapacidade é relativa a certos atos. Aos 18 anos, a pessoa torna-se plenamente capaz, podendo praticar validamente, em geral, todos os atos da vida civil. A aquisição da maioridade, além de produzir a aquisição da plena capacidade de fato, ainda tem outros efeitos indiretos como, por exemplo, a extinção do pátrio poder (C.C. art. 1.635, III) e a perda de alguns benefícios, como o direito a alimentos.27 Quanto à doença, o Código Civil, no art. 3-, refere-se, especificamente, à enfermidade ou deficiência mental, e, no art. 4-, à prodigalidade, que não é doença mas defeito de vontade, como determinantes da variação da capacidade de fato. Pródigo é o indivíduo com tendência para dissipar o seu patrimônio. Existem, assim, dois graus de incapacidade de exercício: a incapacidade absoluta, do art. 3- do Código Civil, e a incapacidade relativa, do art. 4°. A diferença é apenas de grau, sendo que, na primeira, a incapacidade é total para a prática dos atos jurídicos, e, na segunda, limita-se a determinados atos. A incapacidade termina quando desaparecem suas razões determinantes. São, portanto, absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: os menores de 16 anos; os que, por enfermidade ou doença mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desse atos, e os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade (CC, art. 3°). O Código atual não mais considera os ausentes absolutamente incapazes, como fazia o de 1916, que incluía a ausência nas hipóteses legais de incapacidade absoluta apenas para a proteção dos direitos e interesses do ausente, quando judicialmente declarada. A incapacidade absoluta impede a prática dos atos da vida civil. Embora com capacidade de direito, o agente não pode exercer sua vontade para produzir efeitos jurídicos. O direito afasta-o da atividade jurídica por acreditá-lo sem o necessário discernimento, por falta da idade necessária ou por sofrer de enfermidade mental, ou ainda em função de causa transitória que lhe impeça a manifestação de vontade. A velhice, a surdez, a mudez, a cegueira e a ausência não são causas de incapacidade, salvo se impeditivas da manifestação de vontade do agente28. O cego só pode fazer testamento público (CC. art. 1.867); o mudo pode fazer testamento público já que lhe é permitido utilizar-se de minuta, notas ou apontamentos (C.C. art. 1864, I), e testamento cerrado (C.C. art. 1.873). A loucura deve ser judicialmente declarada, em processo de interdição (CPC, arts. 1177 a 1179), com nomeação de um curador. Tal declaração não tem eficácia retroativa, o que não impede que os atos praticados anteriormente não sejam julgados nulos, provada a incapacidade do agente no momento em que os praticou.29 Também não são causa de incapacidade, salvo para determinados atos, a condenação penal e a declaração de insolvência ou de falência.30 A prática de ato jurídico por agente absolutamente incapaz ou relativamente incapaz implica, respectivamente, as sanções da nuli-dade ou da anulabilidade do ato. Tais sanções são estabelecidas por lei em favor do incapaz. 10. Incapacidade relativa. A incapacidade relativa é a que se restringe a determinados atos. São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer, os maiores de 16 anos e os menores de 18 anos; os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; os pródigos. Os silvícolas, que no Código de 1916 eram também considerados relativamete incapazes, são regidos por legislação especial (CC, art. 4°). Os maiores de 16 anos e menores de 18 anos já possuem certo grau de maturidade. São, por isso, considerados relativamente incapazes. Embora a lei não lhes permita praticar validamente a totalidade dos atos da vida civil, já lhes reconhece discernimento suficiente para alguns. Assim, o maior de 16, independentemente da assistência dos seus pais ou tutores, pode exercer emprego público para o qual não se exija a maioridade, pode ser mandatário (CC, art. 666), pode fazer testamento (CC, art. 1860), pode casar (CC, art. 1.517), ser testemunha (CC, art. 228, í), ser comerciante (CC. art. 5°, par. único, V), fazer depósitos bancários, trabalhar e pleitear na Justiça do Trabalho (CLT, arts. 446 e 792), ser eleitor (CF, art. 14, § ia c). Pode participar de cooperativas de trabalho, consumo ou crédito (Dec. n2 22.239, de 19.12.32, e Decreto-Lei n2 581 de 01.08.38), movimentar depósitos em caixas econômicas (Dec. n2 24.427, de 09.06.34), exercer livremente a pesca (Dec-Lei n2 794, de 19.10.38), firmar recibo de pagamento de benefícios nos institutos de previdência (Dec.n- 35.448, de 01.05.54). Para fins de serviço militar torna-se capaz aos dezessete anos (Lei n- 4.375 de 17.08.64, art. 73). Pode requerer, pessoalmente, o seu registro de nascimento, se já tiver 18 anos (Lei n2 6.015, de 31.12.73, art. 50, § 3°). O casamento, que até o advento da Lei n- 4.121, de 27.08.62 (Estatuto da mulher casada), era fator determinante de incapacidade relativa para a mulher, não o é mais. Homem e mulher têm a mesma capacidade. Se casados, precisam, é certo, da autorização do outro cônjuge para a prática de atos de disposição patrimonial exceto no regime de separação absoluta (CC, art. 1.647). O menor de 16 anos não tem capacidade delitual. Por ele respondem seus pais (CC, art. 932, I), ainda que não haja culpa de sua parte (CC, art. 933). Pródigos são os que gastam desordenadamente, destruindo seus recursos tendo família, mais especificamente, cônjuge, descendente (Ordenações 4, 103, 6-}. Estão sujeitos à curatela (CC, art. 1.767, V), não podendo, sem a presença do curador respectivo, praticar quaisquer atos que não sejam de mera administração (CC, art. 1.782). 11. Proteção aos incapazes. A ordem jurídica protege os incapazes, estabelecendo diversos processos técnicos destinados a possibilitar-lhes o exercício dos direitos, tais como a representação, a assistência e a autorização. A representação consiste na substituição do incapaz por uma pessoa capaz, na prática de um ato jurídico. O exercício dos direitos defere-se a um sujeito que possa agir por sua conta e em nome do incapaz, o representante, podendo ser os pais, no exercício do poder familiar, os tutores e os curadores (CC, art. 1.634, V, 1.747, I, 1.774 e 1.779). O poder familiar é instituto que reúne os direitos e deveres dos pais quanto à pessoa e bens do filho. Compete ao pai e à mãe (CC, art. l .631). A tutela é instituto destinado à assistência e representação dos menores que não estejam sob o poder familiar, porque os pais morreram, são ausentes, ou desse poder foram destituídos. Acuratela é instituto de proteção aos incapazes por outros motivos que não a idade. Quem exerce é o curador, sobre o curatelado ou interdito. É dada aos maiores de idade, exige decisão judicial em processo de interdição, e pode limitar-se à administração dos bens, sendo que os poderes do curador são mais restritos do que os do tutor. Destina-se a proteger os doentes mentais, os pródigos, os nascituros e os ausentes (CC arts. 1.767, I, V; 1.779 e 22).31 --------------25 Luigi Cariota-Ferrara. li negozio giuridico nel diritto privato italiano, p. 641. 26 Francesco Carnelutti. Sistema di diritto processuale civile. II, p. 449 e segs., Teoria generale dei diritto, § 122. Emílio Betti. Teoria generale dei negozio giuridico p. 140 e segs. 27 "Atingindo os filhos a maioridade perdem o direito à pensão fixada no desquite, embora possam pleitear alimentos na conformidade do disposto no art. 396 e segs. do CC." RT, 467/81. "A maioridade de filho que não trabalha e cursa estabelecimento de ensino superior não justifica a exoneração do pai de prestar-lhe alimentos." RT, 490/108. 28 "A idade avançada, por si só, não é causa de incapacidade. Esta só pode ocorrer se há uma doença mental, questão médica por excelência, que incumbe ao perito esclarecer. Ao juiz compete anular o ato, se for o caso, mas tendo em vista sempre o parecer dos profissionais." RT, 427/92. 29 "É nulo o contrato se, no tempo em que foi celebrado, um dos contratantes já se apresentava com sintomas evidentes de demência senil." RT, 193/799. "São nulos os atos praticados pelo alienado anteriormente à interdição, desde que demonstrada a contemporaneidade do ato com a doença mental geradora da incapacidade". Jurisprudência Brasileira, vol. 29. p. 59. "A incapacidade decorre da moléstia mental e não da sentença do interditando. Provado que a pessoa sofria das faculdades mentais ao tempo de determinado negócio, este pode ser invalidado." RT, 467/163. 30 A condenação penal pode implicar não em incapacidade civil, mas em perda de função pública ou em pena acessória de interdição para a investidura em função pública, e exercício do pátrio poder, tutela ou curatela, o exercício de profissão ou atividades cujo exercício depende de habilitação especial ou de licença ou autorização do poder público, ou ainda, suspensão de direitos políticos. Ráo. O Direito e a Vida dos Direitos, II, tomo I, p. 146. 31 CF. Yussef Said Cahali, Curatela, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol.22, p. 143 e segs. e Gildo dos Santos, Interdição, ibidem, vol.45, p. 259 e segs. J. M. Leoni de Oliveira, Teoria Geral do Direito Civil, vol. 2, p. 1.063. --------------A assistência consiste na intervenção conjunta do relativamente ini apa/. c do seu assistente, na prática do ato jurídico. São assistentes os pais e os tutores. Enquanto na representação é o representante que pratica o ato em nome e no interesse do representado, embora, sem interveniência deste, na assistência, o assistente pratica o ato juntamente com o assistido. São representados os absolutamente incapazes e assistidos os relativamente capazes. A autorização é a aprovação para a prática de um determinado ato ou exercício de determinada atividade, como, por exemplo, a autorização que os pais dão para o casamento dos filhos (CC, art. 1.517), ou para os próprios pais, ou tutores, venderem os bens dos filhos, ou dos tutelados (CC, arts. 1.691e 1.748, IV).32 Dispõe ainda o Código Civil, em matéria contratual, que o empréstimo de dinheiro feito a menor, sem prévia autorização do responsável, não pode ser reavido (art. 588)33 assim como proteção específica em dispositivos determinados (CC, arts. 181, 198, I, 1.749, 814, 2.015). A prática de ato jurídico por agente incapaz implica determinadas sanções, a nulidade ou a anulabilidade desse ato. Se a pessoa for absolutamente incapaz, o ato será nulo, se relativamente incapaz, o ato será anulável (CC, arts. 166, I e 171, I). A nulidade e a anulabilidade são, portanto, sanções específicas de direito civil estabelecidas em favor dos incapazes. 12. Emancipação. A incapacidade relativa do menor termina com a maioridade aos 18 anos de idade, quando se alcança a plena capacidade para todos os atos da vida civil (CC, art. 52). O sistema jurídico brasileiro considera essa idade como o momento em que a pessoa atinge a maturidade necessária à plena capacidade de exercício.34 Com ela extinguemse os laços de dependência a que o indivíduo estava submetido, com o poder familiar, ou, eventualmente, a tutela (CC, arts. 1.635, III; e 1.763, I). A lei permite, porém, em certos casos, que o menor atinja a plena capacidade de exercício antes da maioridade, aos 18 anos, por meio de emancipação. Emancipação é a aquisição da plena capacidade de fato antes da idade legal.35 Decorre da outorga dos pais, mediante instrumento público, ou de sentença judicial quando o menor estiver sob tutela (CC, art. 5°, par. único, I). Em ambos os casos o menor deve ter 16 anos. Tanto a escritura como a sentença têm de ser registradas, para a produção de efeitos, no Registro Civil de Pessoas Naturais (LRP, arts. 89 e 90). O instrumento público independe de homologação judicial. à emancipação pode ainda decorrer de fatos positivados na lei, por exemplo, o casamento, o exercício de emprego público efetivo, a colação de grau em curso de ensino superior, o estabelecimento civil ou comercial ou pela existência de relação de emprego, desde que, em função deles, o menor com 16 anos, tenha economia própria (CC, art. 5°, par. único, II a V). No caso de casamento, a emancipação pode ocorrer aos 16 anos (CC art. 1.517). A emancipação concedida é irrevogável, e a pessoa torna-se plenamente capaz, salvo se o ato for nulo. 13. Estado Civil. Conceito. Importância. Estado civil é a qualificação jurídica da pessoa resultante da sua posição na sociedade.36 Os sujeitos pertencem a diversos grupos sociais, como a família, a sociedade política, o grupo profissional. Em cada um deles ocupam posições de que decorrem efeitos jurídicos. A pessoa qualifica-se como solteira, casada, viúva, separada, divorciada, convivente, nacional ou estrangeira, maior ou menor. No direito romano distinguiam-se o status familiae, o status libertdtis c o status civitatis, correspondentes à posição do indivíduo na família, à sua condição de homem livre ou de escravo, à sua condição de cidadão ou de estrangeiro, necessários, em conjunto, ao reconhecimento da personalidade jurídica. O status representava, então, uma qualificação diferenciadora, com base nas diferenças sociais, políticas e familiares. Com a evolução do direito e a vigência do princípio da igualdade jurídica, o estado da pessoa perde o antigo sentido de condição social para dar lugar ao reconhecimento da plena capacidade do indivíduo no contexto social. O estado é, assim, uma situação subjetiva absoluta (válida erga omnes], representativa da posição do indivíduo em uma comunidade organizada e fundada em uma comunhão de vida. É a passagem do status ao contrato, típico da idade moderna.37 A noção de estado restringe-se, porém, aos setores da família, da sociedade política e do próprio indivíduo. Não se estende às demais posições jurídicas da pessoa, como as que ela detém como titular de relações jurídicas concretas, como, por exemplo, a de sócio, credor, funcionário público, industriário etc., decorrentes de sua profissão.38 Não existe, portanto, status de herdeiro ou de sócio. O conjunto dos estados da pessoa forma o seu estado civil, que significa, portanto, o complexo de suas diversas qualidades de cidadão, capaz ou incapaz, e de participante de uma família. A importância do estado reside na circunstância de ele ser pressuposto ou fonte de direitos e deveres, assim como fator determinante da capacidade e da legitimidade do sujeito para a prática de certos atos jurídicos. O estado apresenta-se, portanto, como uma qualidade pessoal que se reflete na constituição de uma específica relação jurídica.39 Por exemplo, o estado de cônjuge, o estado de nacional ou de estrangeiro, de capaz ou incapaz é condicionante da existência, validade ou eficácia das relações jurídicas estabelecidas pelos respectivos titulares. O cônjuge não pode, por exemplo, dar fiança, ou alienar imóveis, sem outorga do outro (CC art. 1.647) salvo se casado no regime da separação absoluta. 14. Natureza do estado. Atributo da personalidade e direito subjetivo. O estado individual é atributo da personalidade, como a capacidade, o nome, o domicílio. Mas é também objeto de um direito subjetivo, o direito ao estado, que protege o interesse da pessoa no reconhecimento e no gozo desse estado. Configura-se até, para alguns, como verdadeiro direito da personalidade.40 Esse direito é absoluto, porque se dirige a todos, que o devem respeitar, abstendo-se de o contestar ou de o alterar ilegalmente, e é direito público porque dirigido ao Estado na sua pretensão de reconhecimento e proteção. 15. Fontes e espécies de estado. O estado nasce de fatos jurídicos, como o nascimento, a idade, a filiação, a doença; de atos jurídicos, como o casamento, a emancipação; de decisões judiciais, como a separação, o divórcio, a interdição. Tais circunstâncias levam à caracterização de três estados: o familiar, o político e o pessoal ou individual. Com relação à família, o estado é de casado, solteiro, viúvo, separado, divorciado, convivente, ou de parente, consangüíneo (pais, avós, filhos, netos, irmãos, tios, sobrinhos) ou por afinidade (sogros, genros, nora, cunhado). Nas relações com a sociedade política, o estado é de nacional ou de estrangeiro. Sob o ponto de vista individual, a pessoa é do sexo masculino ou feminino, de menor ou de maior idade, capaz ou incapaz. Nele influem, portanto, a idade (maioridade ou menoridade) e a saúde (enfermidade ou deficiência mental), que são fatores determinantes da capacidade de fato. O sexo não influi na capacidade. O estado familiar é objeto do direito de família; o de cidadão, do direito constitucional, e o pessoal, dos direitos da personalidade. 16. Características do estado. O estado das pessoas caracteriza-se por ser indivisível, indisponível e imprescritível. O estado é indivisível porque, embora com múltiplos aspectos (políticos, familiar, individual, profissional), apresenta-se como um só conjunto unitário que traduz a posição jurídica da pessoa. Esta não pode ter estados que se oponham, não pode ser ao mesmo tempo casada e solteira. E indisponível porque ninguém pode ceder ou renunciar a seu estado, que é legalmente estabelecido, nem transigir, fazer acordo ou concessões sobre ele. As normas sobre a matéria são cogentes ou imperativas, porque disciplinam matéria de ordem pública, não admitindo manifestações de vontade em contrário. Uma ação de nulidade de casamento não pode terminar por transação, concordando as partes com o desfazi-mento do vínculo.41 Sendo a transação o ato jurídico pelo qual as partes, fazendo-se concessões recíprocas, extinguem obrigações liti-giosas ou duvidosas, um ato de autonomia privada, (CC. art. 840) não cabe portanto a sua aplicação em matéria de casamento, que é de ordem pública. A indisponibilidade não significa porém imutabilidade. O estado altera-se na forma prevista em lei. O incapaz torna-se capaz, ou vice-versa, o solteiro passa a casado, o estrangeiro naturaliza-se, o casado separa-se, o separado divorcia-se. A alteração não pode ser, todavia, arbitrária, à vontade do agente, o que torna problemática, por exemplo, a mudança de configuração sexo-corporal, devido à chamada transexualidade.42 A razão de ser de tal indisponibilidade do estado reside na necessidade de segurança das relações jurídicas e na estabilidade da estrutura social e familiar em que a pessoa se situa. Os efeitos patrimoniais do estado são, todavia, disponíveis.43 O estado é, ainda, imprescritível porque ninguém pode adquirir ou perder um estado pelo simples decurso de tempo. 17. O estado familiar. O estado familiar é a situação jurídica da pessoa no âmbito da família, conforme derive do casamento, da união estável ou do parentesco. A pessoa pode ser solteira, casada, viúva, separada, divorciada, parente, companheira ou convivente. O parentesco pode ser consangüíneo ou afim. Consangüinidade, ou parentesco em senso estrito, é o vínculo que liga os des-cendentes da mesma pessoa; afinidade é o vínculo que une cônjuge aos parentes do outro. O parentesco conta-se por linhas e graus. A linha vincula uma pessoa a um tronco ancestral comum, e diz-se reta ou colateral, conforme as pessoas descendam, ou não, umas das outras, embora todas tenham o mesmo ancestral. São parentes em linha reta o pai, filho, neto, avô, bisavô etc. São parentes na linha colateral os irmãos, os tios, os sobrinhos, os primos. São parentes afins, sogro e nora, sogra e genro, os cunhados. Grau é a distância entre duas gerações consecutivas. Geração é a relação entre genitor e gerado.44 Na linha reta, contam-se os graus de parentesco pelas gerações que separam as pessoas cujas relações se focalizam. Na linha colateral, fazem-se duas operações de contagem de grau: de uma das pessoas até o ancestral comum, e deste até o outro parente. Na linha colateral o parentesco limita-se ao quarto grau (CC, art. 1.839). A importância do estado familiar se manifesta no fato de ele constituir-se em pressuposto de inúmeros direito e deveres, assim como influir na legitimidade e na capacidade de fato dos sujeitos. O casamento é impedimento matrimonial (CC, art. 1.521, VI), cria direitos e deveres conjugais (CC, art. 1.566), limita o poder de ---------------------32 "A alienação de bem de incapaz sem a prévia autorização judicial dá lugar à nulidade do ato. A autorização posterior não o convalida." RT, 449/129. 33 É o tradicional instituto macedônio, do Senatus consultum macedonianum (D. 14, 6, l, 3), que proibiu o empréstimo de dinheiro a todo o filius-famílias. Cf. Sebastião Cruz, Direito Romano, p. 261. 34 A fixação da idade para que se alcance a maioridade é ato de política legislativa, sendo que o Código Civil português fixa-a aos 18 anos (art. 130), o espanhol aos 18 anos (art. 320), o francês aos 21 anos (art. 488), o italiano aos 21 anos (art. 22), o alemão aos 21 anos (§ 2S), o argentino aos 21 anos (art. 126), o suíço aos 20 anos (art. 14, b). 35 Clóvis Beviláqua. Teoria Geral do Direito Civil, p. 105. 36 Cf. Orlando Gomes, p. 145; Alex Weil et François Terré. Droit civil, p. 93; Ráo, p. 163; Limongi França. Manual de Direito Civil, I, p. 138; Henri de Page. Traitê élémentaire de droit civil belge, I, p. 358 e segs. 37 Bianca, p. 273; Henry Summer Maine, Dcdlo status ai contratto, in II diritto privato nella societá moderna, a cura di Stefano Rodotá, p. 211. 38 Caio Mário da Silva Pereira, n£ 48; Bianca, p. 274. 39 Alessandro Levi, Teoria generais dei diritto, p. 230. 40 D'Angelo, apud Bianca, p. 274. 41 Caio Mário da Silva Pereira, ibidem. Clóvis Beviláqua, Comentários ao Código Civil, art. 1.025. 42 "O transexual é um indivíduo que rejeita o seu sexo biológico, identificando-se com o sexo oposto, ao qual deseja pertencer. A intervenção cirúrgica de mudança de sexo é admitida, no âmbito médico, pela Resolução 1.482, de 10.9.97, do Conselho Federal de Medicina, sendo necessária autorização judicial, pois ocorre mudança de estado, com a redesignação do assento de nascimento do operado." Cfr. Elimar Szaniawski, Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual, pp. 262/4. 43 "O filho natural que investiga a paternidade pode fazer transação com o direito de sucessão proveniente do possível reconhecimento." Orlando Gomes, op. cit., p.148. 44 Orlando Gomes. Direito de Família, n° 178. ---------------------disposição dos cônjuges (CC, art. 1.647), estabelece direito hereditário (CC, art. 1.829, III), torna anulável doação do cônjuge adúltero a seu cúmplice (CC, art. 550), cria impedimento para depoimento judicial (CPC, art. 405, § 2, I), cria preferência na designação de inventariante (CPC, art. 990, I) etc. O parentesco gera impedimento matrimonial (CC, art. 1.521, I, II, III, IV, V), cria obrigações alimentares (CC, art. 1.694), direito hereditário (CC, art. 1.829, I, II e IV) com limitação, na linha colateral, ao quarto grau (CC, art. 1.839), influi na escolha de tutor (CC, art. 1.731) e cria impedimentos judiciais (CPC, arts. 134, IV e V, 136, 405, par. 2°, I). A união estável, quando comprovada e reconhecida, gera o estado de convivente e produz os efeitos já referidos no Capítulo IV, item 16, a). 18. O estado político. Estado político é a qualificação do sujeito relativamente à nação a que pertence. A pessoa tem o estado de nacional ou de estrangeiro. Nacionalidade é o vínculo jurídico que une a pessoa a determinada nação. Todo homem tem direito a uma nacionalidade. Identificada a nação com o Estado, nacionalidade é a relação entre o indivíduo e o Estado, fixando este as condições de nacionalidade. Difere da naturalidade, que é o vínculo com o local de nascimento.45 Cidadania é o vínculo político que permite ao nacional o gozo dos direitos políticos. Significa a titularidade de direitos políticos. O cidadão é sempre nacional, mas nem sempre o nacional é cidadão. A nacionalidade é natural ou de origem, quando adquirida pelo nascimento, e adquirida, quando resulta de naturalização, ato pelo qual uma pessoa é incluída entre os nacionais de um Estado, com a conseqüente perda da nacionalidade de origem — salvo no caso de diversidade da nacionalidade de origem, que pode decorrer do ius sanguinis e do ius soli. Determina-se a nacionalidade pelo lugar de nascimento (ius soli) ou pelos laços de parentesco (jus sanguinis). Uma pessoa pode ter mais de uma nacionalidade, salvo disposição em contrário (CF, art. 12, par. 4, II). Quem não tem nenhuma chama-se apátrida. A importância do estado político está na legitimidade para a titularidade de direitos e no respectivo exercício. Não há distinção entre nacionais e estrangeiros (C.F. art. 5°), embora profusa legislação especial permita considerar revogado tal dispositivo.46 No direito político, todavia existem distinções (CF, art. 12, § 3-, art. 5-, XXXI, art. 190, art. 176, II e §§ 2 e 3, art. 176, § l, art. 222, Lei de Imprensa, art. 3-, §§ 2- e 4- e Estatuto do Estrangeiro, art. 106). O brasileiro nato (CF, art. 12, I) tem direitos que o naturalizado não tem (CF, art. 12 § 3°). O estrangeiro não pode exercer certas atividades, como disposto na Constituição e em leis ordinárias, como visto acima. 19. A posse de estado. A posse é a aparência de direito. O possuidor de uma coisa é aquele que se comporta como se fosse proprietário. A posse é, assim, uma situação de fato que produz efeitos jurídicos e que, por isso, é objeto de tutela jurídica. O estado da pessoa é suscetível de posse. Possuir um estado é comportar-se como se realmente o tivesse. A posse de estado é, assim, o exercício constante e público dos atos próprios de tal estado, é a situação aparente de uma pessoa. Possuir um estado é ter aparentemente a situação jurídica própria desse estado,47 comportando-se como se tivesse tal estado. Para que se configure a posse de estado são precisos três elementos; nomen, tratactus, e fama. Nomen é o fato de a pessoa apresentar um nome correspondente ao estado que pretende ter. Tratactus é o fato de a pessoa ser considerada como correspondente a esse estado. Fama, o conhecimento, o conceito de que desfruta em sociedade, correspondente ao estado que apresente. A pessoa que reúne esses elementos tem a aparência de um certo estado, tem a posse desse estado. A posse de um estado não conduz, porém, à sua aquisição. Sua função é meramente probatória. O direito brasileiro prevê apenas a posse de estado de casado, não conhecendo a posse de estado político nem do estado individual de pessoa. A posse do estado de casado dos pais, depois de falecidos, pode ser invocada pelos filhos em seu favor, desde que não haja certidão do registro de casamento de qualquer dos pretensos cônjuges com outra pessoa. Essa posse do estado de casado pressupõe que os pais já tenham morrido, e que hajam vivido notoriamente como casados (CC, art. 1.545). Sua finalidade é proteger a prole. 20. Ações de estado. A pessoa pode defender seu estado contra eventuais atentados aos direitos dele decorrentes, por meio das chamadas ações de estado, cuja finalidade é criar, modificar, extinguir ou defender o estado da pessoa natural. A maioria dessas ações tem por objetivo o reconhecimento da existência de um estado anterior, e sua sentença tem eficácia absoluta, desde que sejam citados todos os interessados (CPC, art. 472). No direito brasileiro temos as seguintes ações de estado: ação para pedir a posse em nome do nascituro, ação de emancipação, ação de levantamento de impedimento matrimonial, ação de suprimento de consentimento para o casamento, ação de investigação de paternidade, ação de contestação de paternidade, ação de contestação de maternidade, ação de impugnação de reconhecimento de filho, ação de suspensão de pátrio poder, ação de destituição de pátrio poder, ação de anulação ou nulidade ou impugnação de adoção, opção de nacionalidade. As ações de estado, que exigem sempre a intervenção do Ministério Público (CPC, art. 82, II), são constitutivas quando a respectiva sentença constitui novo estado, como, por exemplo, a ação de divórcio, e são declaratórias quando se limitam a reconhecer uma situação preexistente, como a ação de investigação de paternidade. São positivas quando se afirma um estado, por exemplo, a ação de filiação, e negativas quando visam desfazer um estado, por exemplo, a ação de contestação de paternidade.48 21. O registro dos atos de estado. Prova-se o estado da pessoa com as certidões de Registro Civil onde se registram os atos que o direito considera mais importantes na vida da pessoa. O registro civil é a instituição administrativa que tem por objetivo imediato a publicidade dos fatos jurídicos de interesse das pessoas e da sociedade. Sua função é dar autenticidade, segurança e eficácia aos fatos jurídicos de maior relevância para a vida e os interesses dos sujeitos de direito. Com precedentes históricos que começam na alta Antigüidade, passando pelo direito da Grécia, de Roma e da Idade Média, sua origem mais próxima são os registros paroquiais da Igreja Católica, que, a partir do séc. V, com a dissolução do Império Romano do Ocidente, e principalmente, desde o séc. XIV, registrava os batismos, os casamentos e as mortes. Com a Revolução Francesa tal serviço secularizou-se, isto é, deixou de ser religioso, criando-se os modernos sistemas de registro civil de responsabilidade do Estado. No direito brasileiro, na seqüência de vários diplomas legais, dispõem sobre a matéria, cuja disciplina começa nas Ordenações Filipinas, o Código Civil (arts. 9° e 10) e a Lei n2 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 29. De acordo com o Código Civil (art. 9°) serão registrados em registro público: os nascimentos, casamento e óbitos; a emancipação por outorga dos pais ou por sentença do juiz; a interdição por incapacidade absoluta ou relativa; a sentença declaratória de ausência e de morte presumida. Far-se-á averbação em registro público: das sentenças que decretarem a nulidade ou anulação do casamento, o divórcio, a separação judicial e o restabelecimento da sociedade conjugai; dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação; dos atos judiciais ou extrajudiciais de adoção, (art. 10) O registro dos atos de estado constitui, em regra, o único meio probatório do estado das pessoas. Na falta desse registro, pode-se substituí-lo uma sentença judicial prolatada para esse fim. O registro civil é útil porque: a) torna público o estado da pessoa dando ciência da data e do local de seu nascimento, casamento, emancipação, ausência, interdição, morte; b) facilita a prova desse estado; c) goza da presunção de autenticidade, o que garante a validade e eficácia de seus elementos. Como dispõe o art. 1° da referida lei, os serviços concernentes aos Registros Públicos têm a lunção de dar autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos. 22. O domicílio. Conceito. Características. Importância. Determinação. Espécies. Domicílio é a sede jurídica da pessoa. Etimologicamente vem de domus, casa, lugar em que o homem estabelece seu lar doméstico e concentra seus negócios e interesses. É um dos atributos da personalidade, consistindo no local em que o sujeito, pessoa natural ou jurídica, estabelece a sede de suas atividades. Para se identificar uma pessoa não basta o nome, é preciso localizá-la no espaço. Essa localização é o domicílio, lugar em que o indivíduo estabelece sua residência com ânimo definitivo (CC, art. 70). Distingue-se o domicílio da residência e da habitação, ou morada. Aquele é um conceito jurídico, estas são situações de fato. Além disso, a residência é figura intermediária entre o domicílio e habitação. O domicílio pressupõe dois elementos: um, objetivo, a residência, outro, subjetivo, o ânimo definitivo. A residência é apenas o local em que a pessoa mora com intenção de permanecer; a habitação é uma residência transitória. Se, todavia, a pessoa tiver várias residências onde alternadamente viva, ou vários centros de ocupação habitual, qualquer daqueles ou destes poderá ser considerado seu domicílio (CC, art. 71). O direito brasileiro admite, assim, pluralidade de domicílios. Domicílio e residência podem não coincidir. A pessoa pode morar numa localidade, em caráter não definitivo, e ter em outra a sede de sua atividade jurídica. Quanto à sua natureza jurídica, o domicílio não é relação entre pessoa e lugar. É o próprio local da sede jurídica do sujeito, cuja fixação resulta de um ato jurídico em senso estrito, quando escolhido pelo sujeito, ou de um fato jurídico, se imposto por lei. O domicílio é necessário e fixo, em princípio. Todos têm domicílio, mesmo os que não têm residência nem morada (CC, art. 73). O domicílio pode ser mudado, embora normalmente fixo, pela necessidade normal de estabilidade das relações jurídicas do indivíduo. Muda-se o domicílio transferindo-se a residência com intenção manifesta de o mudar (CC, art. 74). Sujeitos de Direito. A Pessoa Natural 247 Fixa-se o domicílio em função dos interesses do sujeito e de terceiros, o que se projeta em diversos campos do direito. Assim, em matéria de direito internacional, é a lei do domicílio que determina regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família. No direito protetivo, a escolha de tutor deve recair em pessoa residente no domicílio menor (CC, art. 1.732). É o desaparecimento da pessoa de seu domicílio, sem deixar representante, que caracteriza a ausência (CC, art. 22). No direito das obrigações o domicílio do devedor é, em princípio, o local em que se deve efetuar o pagamento (CC, art. 327), assim como o protesto de título de crédito (Lei n° 2.004, de 31.12.1908, art. 28, parág. único e Decreto n° 57.663, de 24.1.1966, art. 43). A oferta de fiador deve recair sobre a pessoa domiciliada no município em que deva ser prestada a fiança (CC, art. 825). No direito hereditário, a abertura da sucessão opera-se no último domicílio do falecido (CC, art. 1.785). Em direito processual civil, é o domicílio do réu o fixado em lei para as ações pessoais e reais sobre móveis (CPC, art. 94). O foro do domicílio do autor da herança é o competente para o inventário e para as ações em que o espólio for réu (CPC, art. 96), embora não seja absoluta tal competência (Súmula n° 58 do TER). No processo penal se desconhecido o lugar da infração, o foro competente será o do domicílio do réu (CPP, art. 72). No direito eleitoral a inscrição do eleitor é no seu domicílio (Lei n° 4.737, de 15.07.65, art. 42, parág. único). A fixação do domicílio é um ato jurídico em senso estrito quando expressa a vontade do sujeito, e um fato jurídico quando fixado por lei. Não é negócio jurídico.49 O domicílio é, no primeiro caso voluntário, e, no segundo, legal. Domicílio voluntário é, assim, o que a pessoa adquire por ato seu. É geral quando se refere ao exercício de direitos e obrigações normais. É especial, ou de eleição quando estabelecido em contrato para a execução de certas obrigações (CC, art. 78). É temporário e limitado, sendo eficaz apenas entre as partes, estendendo-se às conseqüências do ato para o que foi instituído. Domicílio legal ou necessário é o que resulta da própria lei. Diz-se de origem, quando é o que a pessoa adquire ao nascer. Domicílio legal é o lugar onde a lei presume que o indivíduo reside permanentemente. Têm domicílio legal as pessoas itinerantes (CC, art. 73), os incapazes (art. 76), o servidor público (art. 76), os militares (art. 76), os oficiais e tripulantes da marinha mercante (art. 76), os condenados (art. 76) e os diplomatas (art. 77). Os domicílio das pessoas jurídicas é o lugar da sede da respectiva administração (CC, art. 75). -----------45 Haroldo Valladão. Direito Internacional Privado, vol. I. p. 275. 46 Cf. Código Civil brasileiro, art. 3°. Cfr. Lei 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, (Lei de Imprensa), art. 3°, par. 2° e 4°; CF, arts. 5°, XXXI, 190 e 227, par. 5°. 47 De Page, I, p. 365. 48 Antônio Chaves. Lições de Direito Civil, Parte Geral, vol. III, p. 295. 49 Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. I, p. 170; Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, n° 98, p. 156. -----------CAPÍTULO VII Direitos da Personalidade Sumário: l. Direitos da personalidade. Conceito e razão de ser. 2. Natureza jurídica e características. 3. Objeto e titularidade. 4. Construção e sistematização jurídica. 5. O sistema brasileiro dos direitos da personalidade 6. Classificação. 7. Direito à vida e à integridade física. 8. Direito ao corpo e ao cadáver. Os transplantes e sua disciplina legal. 9. Direito à integridade moral. 10. Direito à integridade intelectual. 11. Direito à identidade pessoal. O nome. 12. Elementos constitutivos do nome. 13. Aquisição e formação do nome. 14. Alteração do nome. 15. Proteção ao nome. 16. O nome comercial. 1. Direitos da personalidade. Conceito e razão de ser. Direitos da personalidade são direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual.1 Como direitos subjetivos, conferem ao seu titular o poder de agir na defesa dos bens ou valores essenciais da personalidade, que compreendem, no seu aspecto físico o direito à vida e ao próprio corpo, no aspecto intelectual o direito à liberdade de pensamento, direito de autor e de inventor, e no aspecto moral o direito à liberdade, à honra, ao recato, ao segredo, à imagem, à identidade e ainda, o direito de exigir de terceiros o respeito a esses direitos. A tutela jurídica dos direitos da personalidade, como adiante se explicitará, é de natureza constitucional, civil e penal, tendo como suporte básico o princípio fundamental expresso no art. l-, III, da Constituição Brasileira, o da dignidade da pessoa humana. Significa este princípio, que orienta e legitima o sistema jurídico de defesa da personalidade, que a pessoa humana é o fundamento e o fim da sociedade, do Estado e do direito.2 Os direitos da personalidade são uma construção teórica recente, não sendo uniforme a doutrina no que diz respeito à sua existência, conceituação, natureza e âmbito de incidência. Seu objeto é o bem jurídico da personalidade, aqui entendida como a titularidade de direitos e deveres que se consideram ínsitos em qualquer ser humano, em razão do que este se torna sujeito de relações jurídicas, dotado, portanto, de capacidade de direito. A razão de ser dos direitos da personalidade está na necessidade de uma construção normativa que discipline o reconhecimento e a proteção jurídica que o direito e a política vêm reconhecendo à pessoa, principalmente no curso deste século. Se é verdade que a proteção dos aspectos morais da pessoa constitui um aspecto imanente da nossa cultura, não é fácil encontrar-se para ela, uma coerente previsão na sistemática jurídica, dada a imaterialidade dos aspectos essenciais da personalidade humana.3 O progresso científico e tecnológico (biologia, genética etc.) e o desenvolvimento dos instrumentos de comunicação e da difusão de informações suscitam problemas novos e diversos para os aspectos essenciais e constitutivos da personalidade jurídica (integridade física, moral e intelectual) exigindo do direito respostas jurídicas adequadas à proteção da pessoa humana. Por outro lado, "a tutela da personalidade, no segundo pós-guerra, tem sido fortemente associada ao tema dos direitos invioláveis da pessoa, afirmado nos principais documentos internacionais sobre direitos humanos fundamentais". A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, a Convenção Européia dos Direitos do Homem de 1950, o Pacto Internacional sobre Direitos Humanos e Civis de 1966, e hoje a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia, de 2000, contêm expressas exigências à proteção da personalidade humana.4 A sua importância é tão grande que as suas disposições de princípio estão hoje contidas nos textos constitucionais, atribuindo-se-lhe, portanto, uma posição superior no ordenamento jurídico nacional, que orienta o legislador e incide imediatamente (CF. art. 5°, par. 1°). Por disciplinarem matéria de natureza privada, como são os direitos subjetivos e a personalidade, e por terem guarida no texto constitucional, pode reconhecer-se que os direitos da personalidade são o terreno de encontro privilegiado entre o direito privado, as liberdades públicas e o direito constitucional.5 2. Natureza jurídica e características. Embora se reconheça nos direitos da personalidade uma certa imprecisão, o que torna difícil integrá-los nas categorias dogmaticamente estabelecidas, é de consenso considerá-los como direito subjetivo que tem, como particularidade inata e original, um objeto inerente ao titular, que é a sua própria pessoa,6 considerada, nos seus aspectos essenciais e constitutivos, pertinentes à sua integridade física, moral e intelectual. Da natureza do próprio objeto, vale dizer, da sua importância, decorre uma tutela jurídica "mais reforçada" do que a generalidade dos demais direitos subjetivos já que se distribui nas esferas de ordem constitucional, civil e penal. Caracterizam-se os direitos da personalidade por serem essenciais, inatos e permanentes, no sentido de que, sem eles, não se configura a personalidade, nascendo com a pessoa e acompanhando-a por toda a existência. São inerentes à pessoa, intransmissíveis, inseparáveis do titular, e por isso se chamam, também, personalíssimos, pelo que se extinguem com a morte do titular. Conseqüentemente, são absolutos, indisponíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis e extra-patrimoniais. Absolutos porque eficazes contra todos (erga omnes), admitindo-se, porém, direitos da personalidade relativos, como os direitos subjetivos públicos, que permitem exigir do Estado uma determinada prestação,7 como ocorre, exemplificadamente, com o direito à saúde, ao trabalho, à educação e à cultura, à segurança e ao ambiente. Indisponíveis porque insuscetíveis de alienação, não podendo o titular a eles renunciar ou até lirnitálos, salvo nos casos previstos em lei. Essa indisponibilidade não é, porém, absoluta, admitindo-se, por exemplo, acordo que tenha por objeto direito da personalidade, como ocorre no caso de cessão do direito de imagem para fins de publicidade. Também é válida a disposição gratuita do próprio corpo para depois da morte (CC. art. 14). Inadmissível, todavia, a penhora por um credor, de um direito da personalidade. Por outro lado, algumas limitações poderão impor-se, no interesse geral, como a vacinação obrigatória. Imprescritíveis no sentido de que não há prazo para o seu exercício. Não se extinguem pelo não uso, assim como sua aquisição não resulta do curso do tempo. E extra-patrimoniais, porque não avaliáveis em dinheiro, salvo os direitos de autor e de propriedade industrial, que têm regime próprio. 3. Objeto e titularidade. Objeto dos direitos da personalidade é o bem jurídico da personalidade, como conjunto unitário, dinâmico e evolutivo dos bens e valores essenciais da pessoa no seu aspecto físico, moral e intelectual. Esses valores são a vida humana, o corpo humano na sua integridade e nas suas partes, quando individualizadas e separadas; a honra, a liberdade, o recato, a imagem, o nome; a liberdade de pensamento, o direito de autor e de inventor. Esse conjunto ou esse complexo unitário de natureza física, psíquica e moral, vem a justificar um direito geral de personalidade que se constrói a partir do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana,* base legítima dos direitos especiais da personalidade que o sistema jurídico brasileiro já reconhece. Temos, assim, um direito geral da personalidade, que a considera um bem objeto da tutela jurídica geral, e defende a inviolabilidade da pessoa humana, nos seus aspectos físico, moral e intelectual, e temos direitos especiais, correspondentes a esses aspectos parciais da personalidade. O princípio da dignidade da pessoa humana é um valor jurídico constitucionalmente positivado que se constitui no marco jurídico, no núcleo fundamental do sistema brasileiro dos direitos da personalidade como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais.9 Significa ele que o ser humano é um valor em si mesmo, e não um meio para os fins dos outros.10 Assim entendido, o princípio da dignidade da pessoa humana traduz o reconhecimento do valor da pessoa como entidade independente e preexistente ao ordenamento mesmo, dotada de direitos invioláveis que lhe são inerentes.11 Sujeitos titulares dos direitos da personalidade são todos os seres humanos, no ciclo vital de sua existência, isto é, desde a concepção, seja esta natural ou assistida (fertilização in vitro ou intratubária), como decorrência da garantia constitucional do direito à vida.12 A personalidade humana extingue-se com a morte, o que não impede o reconhecimento de manifestações da personalidade post-mortem1^ como ocorre nos casos do direito ao corpo, à imagem, ao direito ------------------1 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo VII, p. 5 a 161; Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, p. 129; Antônio Chaves, Lições de Direito Civil, vol. III, p. 168; Milton Fernandes, Os direitos da personalidade, in Estudo jurídicos em homenagem ao Prof. Caio Mário da Silva Pereira, p. 131; Fábio Maria de Mattia, Direito da personalidade, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 28, ps. 155/158; Rubens Limongi França, Manual de Direito Civil, vol. 2, p. 321; Carlos Alberto Bittar, Curso de Direito Civil, vol. l, p. 205 e seg.; Rabindranath V.A Capelo de Souza, O Direito Geral de Personalidade, p. 106; Adriano de Cupis, Os direitos da personalidade, p. 17 e segs.; Diogo Leite de Campos, Lições de Direito da Personalidade, p. 52 e segs. 2 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, p. 167; Capelo de Souza, op. cit, p. 97. 3 Vincenzo Zeno-Zencovich, Personalità (Diritti delia), in Digesto delle Discipline Privatistiche, p. 431. 4 Idem, ibidem, p. 435. 5 Marc Frangi, Constitution et droit prive, p. 115. 6 Jacques Ghestin et Gilles Goubeaux, Traité de Droit Civil, Introduction Générale, p. 179. 7 Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. l, p. 199. 8 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 1£, III. 9 J.J. Gomes .Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 58/59. 10 Karl Larenz, Algemeiner Teu dês Eürgerlichen Rechts, p. 107. 11 A Lopez. V.L. Montes, Derecho Civil. Parte general, p.254. 12 Problema a enfrentar é o dos embriões in vitro excedentes. Têm igualmente natureza humana, pelo que devem ser conservados até ulterior implantação. Capelo de Souza, op. cit., p. 363. 13 O Código Civil português dispõe no art. 712: "I — Os direitos de personalidade gozam igualmente de proteção depois da morte do respectivo titular." ------------------moral do autor, e o direito à honra. Neste caso, cabe aos herdeiros a sua defesa contra terceiros. Não obstante a teoria dos direitos da personalidade ter-se construído a partir de uma concepção antropocêntrica do direito, isto é, a pessoa natural como referência, também se admite serem as pessoas jurídicas titulares desses mesmos direitos, particularmente no caso do direito ao nome, à marca, aos símbolos e à honra, ao crédito, ao sigilo de correspondência e à particularidade de organização, de funcionamento e de know how. Esses direitos acompanham o ciclo vital da pessoa jurídica, começando com o registro e terminando com a respectiva baixa, reconhecida, também, a possibilidade de efeitos posteriores, como o direito à honra e ao bom nome.14 De modo sintético, pode-se reconhecer que as pessoas jurídicas são suscetíveis de titularidade de direitos da personalidade que não sejam inerentes à pessoa humana, como o direito à vida, à integridade física e ao seu corpo, podendo sê-lo no caso, por exemplo, do direito ao nome e à identidade (sinais distintivos), inviolabilidade da sede e segredo de correspondência (CC. art. 52). Em virtude de outro princípio constitucional fundamental, que é o princípio da igualdade (CF. art. 5°), aos estrangeiros residentes no Brasil reconhece-se também a titularidade dos direitos da personalidade. 4. Construção e sistematização jurídica. A teoria dos direitos da personalidade, ou direitos personalíssimos, é produto da elaboração doutrinária que se iniciou no séc. XIX, atribuindo-se a Otto Gierke a paternidade da denominação.13 Já se encontram, porém, nos primórdios da civilização ocidental, principalmente a que se desenvolveu no âmbito mediterrânico, alguns marcos históricos de expressiva significação na matéria. O Código de Hamurabi já estabelecia sanções para o caso de lesões à integridade física ou moral do ser humano.16 No direito grego, onde começou a delinear-se a idéia de pessoa, a proteção à personalidade partia da idéia de hybris (excesso, injustiça), que justificava a sanção penal punitiva. É, porém, na filosofia grega que se encontra a maior contribuição para a teoria dos direitos da personalidade, com o surgimento do dualismo nas fontes jurídicas, um direito natural, como ordem superior criada pela natureza, e um direito positivo, as leis estabelecidas na cidade (ius in civitate positum), sendo o homem a origem e razão de ser da lei e do direito. O direito natural era, assim, a expressão ideal de valores morais superiores da ordem vigente, que encontravam na natureza o seu fundamento ou justificação. No direito natural encontra-se, portanto, o germe da teoria dos direitos naturais ou inatos, direitos inerentes ao homem e preexistentes ao Estado, que os devia conhecer e respeitar. A tradição dos direitos humanos, ou do homem tem, assim, raízes no pensamento dos sofistas e dos estóicos, cuja herança foi recolhida pelo direito.17 Posteriormente, o Cristianismo criou e desenvolveu a idéia da dignidade humana, reconhecendo a existência de um vínculo interior entre o homem e Deus, acima das circunstâncias políticas que determinavam em Roma os requisitos para o conceito de pessoa, (status libertatis, status civitatis e status familiae). Na proteção jurídica que o direito romano dava à pessoa, no tocante aos aspectos essenciais da personalidade, temos a actio iniuriarium, criada pelo pretor e concedida à vítima de um delito de iniuria. Esta consistia, em sentido lato, em todo ato contrário ao direito e, em sentido estrito, a qualquer agressão física, com golpes, e também a difamação, o ultraje, a violação de domicílio.18 Além da actio iniuriarium, dispositivos da Lex Aquilia19 e da Lex Cornelia20 reforçavam a tutela jurídica da personalidade no direito romano, principalmente no que diz respeito à agressão física e à violação de domicílio. Reconhece-se assim que, no direito antigo, a hybris grega e a iniuria romana constituíram "o embrião do direito geral da personalidade".21 Na Idade Média, a Magna Carta (1215) já assegurava algumas garantias legais contra a violação de direitos e em favor da assistência e amparo a necessitados, principalmente no que diz respeito à garantia de acesso à justiça, mas é principalmente com o Renascimento e o Humanismo, do séc. XVI, e o Iluminismo nos sécs. XVII e XVIII, que se reconhece o indivíduo como valor central do sistema jurídico e se desenvolve a teoria dos direitos subjetivos como tutela dos interesses e dos valores fundamentais da pessoa, admitindo-se, corno objeto desses direitos, a própria pessoa humana (ius in se ipsum). A par dessas idéias, e consagrando-as, surgem textos fundamentais, como o Bill of Rights, dos Estados americanos (1689); a Declaração de Independência das colônias inglesas na América do Norte (1776); a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, proclamada com a Revolução Francesa; a Declaração de Direitos de 1793, que considerava direitos naturais os de igualdade, liberdade, segurança e propriedade; a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948; a Convenção Européia dos Direitos Humanos, de 1950, e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, de 2.000, todos eles marcos fundamentais e históricos da construção teórica dos direitos da personalidade. E, assim, de afirmar-se, ser essa categoria de direitos subjetivos verdadeira conquista da ciência jurídica moderna, encontrando sua positivação mais perfeita no direito italiano (Costituzione art. 2 e Códice Civile arts. 5 a 10). O Código Civil português, de 1966, regula a matéria nos arts. 70° e 81°. No Brasil tem sido objeto de interesse doutrinário. Apresenta-se no anteprojeto Orlando Gomes, de 1963, e agora no Código Civil (CC. arts. 11 a 21). Encontra, ainda, disciplina e proteção na Constituição Federal, no Código Penal, e em leis especiais, como a Lei de Imprensa, a Lei dos Transportes, a Lei dos Direitos Autorais e a Lei dos Registros Públicos. Cabe destacar que os direitos da personalidade surgiram nos citados textos fundamentais como direitos naturais ou direitos inatos, que se denominam inicialmente de direitos humanos assim compreendido os direitos inerentes ao homem. Alguns desses direitos humanos são positivados nos textos constitucionais, passando a chamar-se direitos fundamentais, como objeto de especial garantia em face do Estado. Os direitos fundamentais "seriam um núcleo ou círculo mais restrito de direitos humanos especialmente protegido pela Constituição".22 Dentro da categoria dos direitos fundamentais surge um conjunto de direitos subjetivos que se distinguem ou caracterizam, não só pelo processo de sua formação, já que foram "identificados e desenvolvidos pela doutrina jurídico-civil do séc. XIX, à frente Otto Von Gierke", como também pelo objeto de sua tutela, os valores essenciais da personalidade humana. Nesta perspectiva, todos os direitos da personalidade são direitos fundamentais, mas não o inverso. 5. O sistema brasileiro dos direitos da personalidade. A tutela jurídica dos direitos da personalidade desenvolve-se em dois níveis, um, de natureza constitucional, que reúne os princípios que organizam e disciplinam a organização da sociedade, e outro, próprio da legislação ordinária, que desenvolve e concretiza esses princípios. De modo mais específico, pode-se dizer que a proteção aos direitos da personalidade é de natureza constitucional, no que diz respeito aos princípios fundamentais que regem a matéria e que estão na Constituição, e é de natureza civil, penal e administrativa, quando integrante da respectiva legislação ordinária. Esse "processo de constitucionalização" constitui um dos desenvolvimento de maior relevo do último meio século, a ser hoje reestudado, em face do advento do novo Código Civil brasileiro, que desenvolve os princípios constitucionais no que tange à matéria civil.23 Em matéria constitucional o art. l- da Constituição Brasileira estabelece como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana na seqüência do valor, também fundamental, da igualdade, expresso no preâmbulo como valor superior do ordenamento jurídico, que proíbe qualquer tipo de discriminação. Quer isso dizer que o respeito à pessoa humana é o marco jurídico básico, o suporte inicial que justifica a existência e admite a especificação dos demais direitos, garantida a igualdade de todos perante a lei [igualdade formal) e a igualdade de oportunidades no campo econômico e social (igualdade material). Outros direitos de natureza constitucional são a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade (CF art. 5-, caput), o direito de resposta (V), o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (X), o direito de autor (XXVIII), a proteção à participação individual em obras coletivas e à reprodução da imagem e da voz humanas (XXVIII). Quanto à legislação civil: 1. No Código Civil de 1916, que seria o diploma básico e peculiar dos direitos da personalidade, na medida em que se constituiu, historicamente, a sedes materiae da personalidade, mas onde inexistia instituto específico, encontravam-se referências à imagem (art. 666, X), ao sigilo da correspondência (art. 671, par. único) ao direito moral do autor (arts. 649, 650, par. único, 651, par. único e 658), à cessão do direito de ligar o nome do autor à sua obra (art. 667), hoje deslocadas para a Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que regula os direitos autorais. No Código atual, a matéria é objeto do Capítulo II, do Título I da Parte Geral, arts. 11 a 21. 2. No Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, no que diz respeito aos direitos fundamentais, Título II, arts. 7 a 69. 3. Na proteção da pessoa e dos bens dos psicopatas, Decreto 24.559, de 3 de julho de 1934. 4. No transplante de órgãos, Lei 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, e Decreto 2.268, de 30 de junho de 1997. 5. Na cessão de produtos biológicos, como sangue, Lei n- 7.649, de 25 de janeiro de 1988. 6. Na utilização de técnicas de Reprodução Assistida, Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina. 7. Na proteção ao direito moral do autor, a Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. 8. Na proteção de propriedade intelectual sobre programas de computação, Lei 9.609, de 19 de fevereiro de 1998. 9. No campo das comunicações, Lei 4.117, de 27 de agosto de 1962, arts. 53 e 56; Lei 5.250, de 09 de fevereiro de 1967 (Lei de Imprensa), arts. 16, 18 e 49; Lei 7.232, de 19 de outubro de 1984, art. 2* VIII e IX. 10. Na proteção do patrimônio genético do país, da qualidade de vida e do meio ambiente, a Lei 8.974, de 5 de janeiro de 1995, que estabelece normas para o uso das técnicas de engenharia genética. 11. Na utilização de cadáver não reclamado, para fins de estudo ou pesquisa científica, a Lei 8.501, de 30 de novembro de 1992. 12. Na proteção aos direitos relativos à propriedade industrial, a Lei 9.279, de 14 de maio de 1996. Na legislação penal, tem-se no Código Penal a seguinte tutela jurídica: a condenação do homicídio (art. 121), a provocação ou auxílio ao suicídio (art. 122), o infanticídio (art. 123)), o aborto (art. 124) os crimes de perigo para a vida e a saúde (art. 130 a 136), o crime de lesão corporal (art. 129) os crimes contra a honra (art. 138), a difamação (art. 139), a injúria (art. 146) o seqüestro e cárcere privado (art. 142) a inviolabilidade do domicílio (art. 150) os crimes contra a inviolabilidade de correspondência (arts. 151 e 152 e dos segredos (art. 153 e 154). Em face dos princípios, normas e conceitos que formam o sistema brasileiro dos direitos da personalidade, podemos concluir que a tutela jurídica dessa matéria se estabelece em nível constitucional, civil e penal, embora a sua sedes material seja o Código Civil. 6. Classificação. A classificação dos direitos da personalidade deve ser feita considerando-se os aspectos fundamentais da personalidade que são objeto da tutela jurídica, a saber: o físico, o intelectual e o moral. ----------------------14 Carlos Alberto Bittar, op. cit., p. 209. 15 Carvalho Fernandes, op. cit., p. 187, nota 2: "A categoria dos direitos da personalidade é de formação relativamente recente e, embora tenha sido objeto de largos estudos nos últimos tempos, constitui ainda hoje matéria muito polêmica quanto ao seu conceito, quanto à sua natureza, quanto ao seu âmbito e até quanto a questões mais singelas como a sua própria designação. Vários autores têm proposto outras designações, como direitos à personalidade, direitos essenciais ou direitos fundamentais, direitos sobre a própria pessoa, direitos individuais e direitos personalíssimos; contudo, a designação que se mostra com maior aceitação é a de direitos de personalidade ou da personalidade." A paternidade da construção e denominação jurídica atribui-se a Otto Von Gierke, in Handbuch dês Deutsches Privatrechts, I, p. 702 e segs. apud ZenoZencovich, op. cit., p. 432. 16 Código Hamurabi, pars. 195/197, 202. 17 "A convicção de que a sociedade humana era ordenada por leis foi fundamentada pelos sofistas (G orgias, Calides, Trasímaco) de uma forma naturalista ou (Protágoras, Lícofron) relativista; deste modo, eles converteram-se nos autênticos descobridores do direito natural como problema." Franz Wieacker, História do Direito Privado Moderno, p. 291. Sobre a influência do estoicismo em Roma, cfr. Antônio Truyol Y Serra, História de La Filosofia dei Derecho Y dei Estado, vol. I, p. 189. 18 Digesto, 47. 10. 6. 7; Gaio, 3, 22, 223. 19 Institutiones, 4, 3; Digesto, 9, 2. 20 Digesto, 47, 10, 5. 21 Capelo de Souza, op. cit., p. 54. 22 A . Lopez — V. L. Montes, op. cit., p. 252. 23 Zeno-Zenocovich, op. cit., p. 435. -----------------------Assim, os direitos da personalidade podem sintetizar-se no direito à integridade física, no direito à integridade intelectual e no direito à integridade moral, conforme representem a proteção jurídica desses bens ou valores. O direito à integridade física compreende a proteção jurídica à vida, ao próprio corpo, quer na sua totalidade, quer em relação a tecidos, órgãos e partes do corpo humano suscetíveis de separação e individualização (Lei dos Transplantes, Lei 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, e Decreto 2.268 de 30 de junho de 1997), quer no tocante ao corpo sem vida, o cadáver, e ainda, o direito e à liberdade de alguém submeter-se ou não a exame e tratamento médico. O Código Civil protege-o, de modo geral, nos arts. 13 e 15. O direito à integridade moral consiste na proteção que a ordem jurídica concede à pessoa no tocante à sua honra, liberdade, intimidade, imagem e nome (CC. arts. 16, 17, 18, 19, 20 e 21). O direito à integridade intelectual é o que protege o direito moral do autor, isto é, o direito de reivindicar a paternidade da obra, e o direito patrimonial que é o direito de dispor da obra, explorá-la e dela dispor (Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998). 7. Direito à vida e à integridade física. O direito à vida e à integridade física ocupam posição capital no sistema dos direitos da personalidade. A vida humana é o estado em que se encontra um ser humano animado, normais ou anormais que sejam as suas condições físicas e psíquicas.24 Mais do que um estado, é o processo pelo qual um indivíduo nasce, cresce e morre.25 É bem jurídico fundamental, uma vez que se constitui na origem e suporte dos demais direitos. Sua extinção põe fim à condição de ser humano e a todas as manifestações jurídicas que se apoiam nessa condição. A integridade física é a incolumidade do corpo humano, o estado ou a qualidade de intacto, ileso, que não sofreu dano. A vida e a integridade física da pessoa são bens jurídicos protegidos pela Constituição (art. l2, III, e 52, III), pelo Código Civil (arts. 13 e 15) e pelo Código Penal, que prevê quatro tipos de comportamento dirigidos à destruição da vida humana (homicídio, CP. art. 121, indu-zimento, instigação ou auxílio a suicídio, art. 122, infanticídio, art. 123, e aborto, art. 124), e um tipo pertinente à incolumidade física, o crime de lesões corporais, (CP, art. 129), além dos crimes de perigo para a vida ou a saúde, compreendendo o perigo para a vida ou a saúde de outrem, o abandono de incapaz, a exposição ou abandono de recém-nascido, a omissão de socorro e os maus tratos (CP, arts. 130/136). A vida humana é fenômeno unitário e complexo, uma totalidade unificada de tríplice aspecto, o biológico, o psíquico e o espiritual. Eiologicamente, é o processo de atividade orgânica e de transformação permanente do indivíduo, desde a concepção até a morte. Psicologicamente, é a percepção do mundo interno e externo ao indivíduo. Espiritualmente, significa inteligência e vontade. A proteção jurídica da vida humana e da integridade física tem como causa final a preservação desses bens jurídicos, desde o começo até o término da vida, do que decorre a importância em determinar-se o momento em que ela começa e se extingue, o que marca, aliás, o início e o fim da personalidade jurídica. Quanto ao seu termo inicial, a vida e, conseqüentemente, a personalidade, começa da concepção,26 da fusão dos gametas. Quanto ao termo final da existência, prevalece a opinião que define a morte em termos cerebrais.27 O valor da vida e da integridade física tornam, por isso, extremamente importante a sua defesa contra os riscos de sua destruição ou de alteração da estrutura ou funcionamento normal do corpo humano, inclusive a simples ameaça contra a saúde. Têm também grande importância as intervenções ou manifestações destinadas a alterarlhes as condições normais da existência. Essas intervenções compreendem as práticas científicas próprias da chamada engenharia genética, lato sensu, as ações sobre o ADN humano, (análise molecular do genoma humano e a utilização dos genes humanos), as ações sobre células humanas ou sobre embriões, (processos de fecundação in vitro e congelamento, manipulação e experimentação), e ações sobre os indivíduos, (a transferência de genes, transplante de órgãos humanos, a reprodução assistida, a esterilização e controle da natalidade, e ainda os tratamentos médicos e a eutanásia). O direito à integridade física compreende, também, a saúde individual, tanto orgânica como mental, mas não se confunde com o direito à saúde (CF, art. 196). O direito subjetivo que tem a vida humana como bem jurídico, pressupõe três titulares do dever jurídico de respeitá-lo: a) o próprio indivíduo; b) as demais pessoas; e c) o Estado.28 O próprio indivíduo tem para consigo o direito-dever de legítima defesa, que consiste na reação contra agressão injusta, atual, inevitável, não excedendo o necessário à defesa. "Para uma concepção clássica, teria também o dever de não suicidar-se", o que hoje se discute. Relativamente a terceiros, têm estes o dever de não matar, de não contribuir ou ajudar na morte voluntária de alguém. Quanto ao Estado, tem este o dever, negativo, de respeitar a vida dos cidadãos (CF, art. 5°], e o dever, positivo, de protegerlhes a vida, com a utilização de todos os meios jurídicos necessários, assim como o dever de punir os autores de quaisquer atentados contra a vida humana, função típica do direito penal. 8. Direito ao corpo e ao cadáver. Os transplantes e sua disciplina legal. O direito ao corpo, nele incluído os seus tecidos, órgãos e partes separáveis, e o direito ao cadáver, são projeções do princípio da dignidade humana (CF, art. l-, III) e do direito à integridade física. Surge aqui o problema do corpo humano como objeto de direito. Considera-se aqui o corpo humano também como um bem jurídico, "uma realidade biológica que o direito reconhece e protege em si mesma", seja o corpo humano nascido, seja o apenas concebido. O corpo humano sem vida é cadáver, coisa fora do comércio, insuscetível de apropriação, mas passível de disposição na forma da lei. Manifesta-se aqui a personalidade post-mortem, de que se tratará a seguir. A personalidade humana é um todo complexo, unitário, integrado e dinâmico, constituído de bens ou elementos constitutivos (a vida, o corpo e o espírito), de funções (função circulatória, inteligência), de estados (saúde, prazer, tranqüilidade) e por força, potencialidade e capacidade (instintos, sentimentos, vontade, capacidade criadora e de trabalho, poder de iniciativa etc.).29 Entre seus elementos constitutivos, o corpo humano é, por si só, objeto de tutela jurídica que se traduz nos dispositivos penais condenatórios das lesões corporais (CP, art. 129) e dos crimes de perigo para a vida e a saúde (CP, art. 130), e ainda no poder de decisão pessoal sobre tratamento médicocirúrgico, exame médico e perícia médica. A tutela jurídica sobre o cadáver tanto se manifesta na proibição de destruir, subtrair, ocultar ou vilipendiar cadáver (CP, arts. 211 e 212), como na possibilidade de disposição gratuita de próprio corpo, ou parte dele, com objetivo altruístico ou científico para depois da morte. O direito ao corpo refere-se tanto a este, na sua totalidade, quanto às partes que dele se possam destacar e de se individualizar, e sobre as quais a pessoa exerce o direito de disposição. Consideram-se, assim, coisas (rés), de propriedade do titular do respectivo corpo. Os elementos destacados do corpo deixam de integrá-lo e, conseqüentemente, de ser objeto dos direitos da personalidade. Em sentido contrário, passam a integrá-lo os "elementos ou produtos, orgânicos ou inorgânicos, que nele se assimilaram ou que nele se incorporaram". Assim enxertos e próteses, implantadas e não rejeitadas pelo organismo, e não separáveis do corpo sem causar a este um dano simultâneo, são objeto de direitos da personalidade e não de direitos reais.30 A separação faz-se para salvar a vida ou preservar a saúde do titular ou de terceiros, neste caso, por meio de transplante. É, assim, permitido à pessoa juridicamente capaz, dispor gratuitamente de tecidos, órgãos ou partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou de transplantes (Lei 9.434, de 04.02.97, art. 9-}. Só se permite a doação de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não prejudique o organismo do doador, e satisfaça necessidade terapêutica indispensável à pessoa receptora. A disposição desse material pode ser também post-mortem, isto é, para ser eficaz após a morte do doador. Nesse caso, a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para transplante ou tratamento, deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada na forma da lei (art. 3-}. Considera-se transplante a retirada de um órgão, tecido ou parte do corpo humano, vivo ou morto, e sua utilização, com fins terapêuticos, num ser humano. Difere da prótese, que é um processo mecânico que utiliza material inerte (válvula), para substituir partes anatômicas. Esse ato subordina-se a dois princípios básicos, a finalidade terapêutica ou científica, e a gratuidade do ato de disposição, princípios esses que informam as normas de organização que disciplinam a respectiva prática. A questão dos transplantes gira em torno de dois interesses fundamentais e opostos: o interesse coletivo no progresso da ciência médica, que justifica a utilização do corpo humano, vivo ou morto, na pesquisa científica ou no tratamento médico, e o interesse individual, no que diz respeito ao direito subjetivo de proteção à integridade física e à vida humana. Esses interesses podem ser conflitantes, gerando problemas de natureza ética, filosófica e psicológica, que exigem adequadas respostas jurídicas. Tais respostas devem conjugar, por sua vez, o princípio da inviolabilidade do corpo humano, e o princípio da liberdade da pessoa na utilização do seu próprio corpo,31 observados os princípios da indisponibilidade da vida e da saúde, da dignidade humana, do consentimento do sujeito, e da igualdade e liberdade. A disciplina desses problemas e a organização da respectiva atividade são objeto da Lei 9.434, de 4.02.97. No que diz respeito ao âmbito material de sua aplicação, essa lei permite e disciplina a disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou após a morte, para fins de transplante e tratamento. As disposições dessa lei não compreendem, todavia, a transfusão de sangue, a doação de esperma e a manipulação de óvulos.32 A realização de transplantes ou enxertos de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano só poderá fazer-se em estabelecimento de ----------------------24 Manzini, Trattato di diritto penale italiano, VIU, 1951, 7, apua Vincenzo Maiello, Enciclopédia dei Diritto, XLVI, Milano, 1993, p. 990. 25 Aristóteles. De Anima, II, I, 412". 26 O início da personalidade humana é controvertido no Brasil, cfr., Silmara J. A. Chinelato e Almeida, Tutela Civil do Nascituro, p. 348:, Eduardo de Oliveira Leite, O direito do embrião humano: mito ou realidade!, p. 24. 27 Harvard Medicai School. A definition of irreversible coma. Report of the Ad Hoc Committee of the Harvard Medicai School to examine the definition of brain death. IAMA, 205: 337, 1968. 28 Carlos Maia Romeo Casabona, El derecho Y Ia bioética ante Io limites de Ia vida humana, p. 29. A respeito dessa matéria surgem dois novos campos temáticos. A Bioética, como a "disciplina que examina e discute os aspectos éticos relacionados com o desenvolvimento e as aplicações da biologia e da medicina, indicando os caminhos e os modos de se respeitar a pessoa humana". E o Biodireito, como o processo de concretização normativa dos princípios e valores fixados pela ética, tomando também como paradigma o valor da pessoa humana. Cfr. Vicente Barreto, Problemas e perspectivas da Bioética, in Bioética no Brasil, p. 53 e segs. 29 Heinrich Hubmann, Das Personlichkeitsrecht, p. 9, apud Capelo de Souza, op. cit., p. 200. 30 Capelo de Souza, op. cit., p. 216, nota 428. 31 Madalena Lima, Transplantes. Relevância jurídico-penal, 1996, p. 8. 32 O sangue humano, como produto extraído do organismo, é bem jurídico alienável, rés in commercíum, tem sua doação estimulada por meio de uma política que disciplina a atividade homoterápica no Brasil (Lei 7.649, de 25.11.88), e organiza um sistema de coleta, processamento, armazenamento e transfusão, (C.F. art. 199, p. 4£), sendo vedada a sua comercialização. As técnicas de coleta, processamento e transfusão de sangue estão hoje disciplinadas pela Portaria 1.376, de 19.11.93 do Ministério da Saúde. No caso específico do esperma, a sua cessão tem como principal objetivo a reprodução assistida, nos casais com problemas de esterilidade. É legítima a doação de gametas se não existe ânimo de lucro e se realiza sob supervisão médica e cessão restrita. Os gametas não são coisas em sentido jurídico. A sua disposição exige consentimento expresso, livre, e responsável. Ato personalíssimo que não admite representação, sendo revogável. Problema de especial interesse é a inseminação artificial post-mortem, considerando-se "válida a vontade inequivocamente manifestada pelo marido quando vivo de querer dar à esposa, mesmo depois da sua morte, o poder de conceber uma criança através de esperma seu depositado e congelado em sua vida, desde que o relacionamento sexual ou a inseminação artificial não tenham sido possíveis e eficazes em vida". (Carlos Alberto Bittar, op. cit., p. 258). As instituições públicas ou privadas que se dediquem à recolha e a conservação de esperma, para fins de inseminação artificial (bancos de esperma), têm como regra ocultar a identidade dos cedentes do material, para deliberadamente evitar o direito à investigação de paternidade e, conseqüentemente, a reivindicação de alimentos e de herança, e a oposição de impedimentos matrimoniais. Tal cerceamento parece-nos inconstitucional, em face do direito geral da personalidade, expresso na Constituição Federal, no princípio da dignidade humana e da igualdade, que garantem, como direito especial, o direito à tutela origem familiar. No que diz respeito aos óvulos, a moderna tecnologia permite o seu aproveitamento para fins de implante, mediante doação. (Antônio Chaves, op. cit., p. 191). Os óvulos são as células sexuais femininas elaboradas pelos ovários. Quando se conjugam com os espermatozóides, ocorre a fecundação, criando-se o embrião que é um ser humano em potência. A respeito da natureza jurídica do embrião, o estado da Louisiana adotou solução radical: a lei n° 964 de 14 de julho de 1986 declara que o embrião humano concebido em uma proveta, ou tubo de ensaio é uma pessoa do mesmo valor e qualidade do embrião concebido in utero ou preservado em estado de congelamento, cfr. Gerárd Connu, Droit Civil, p. 172. ----------------------saúde, público ou privado, e por equipes médico-cirúrgicos de remoção e transplante previamente autorizada pelo órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde (art. 22), após a realização, no doador, de todos os testes de triagem para diagnóstico de infecção exigidos para a doação. A lei aplica-se a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, em face do princípio constitucional de igualdade (CF, art. 52), e proíbe a comercialiazação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, assim como a promoção, intermediação, facilitação ou auferimento de vantagens na compra e venda. A retirada e disposição de elementos orgânicos para fins de transplante é possível tanto em vida como em cadáveres (CC. arts. 13 e 14). Quando em vida, só se permite a pessoa juridicamente capaz, e quando se tratar de órgãos duplos ou de elementos cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora (art. 9°, par. 3°). A doação, revogável pelo doador ou seus responsáveis legais, deverá ser autorizada preferencialmente por escrito, diante de testemunhas. No caso de doação post-mortem, a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, utilizando-se critérios clínicos e tecnológicos definidos pelo Conselho Nacional de Medicina. Disposição inovadora da lei é o seu art. 4-, com a redação determinada pela Medida Provisória 2.083-30/2000 confirmada pela Lei 10.211, de 23.03.01, art. 2°, parágrafo único, segundo o qual a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas, para transplante ou outra finalidade terapêutica, dependerá de autorização do cônjuge ou de qualquer um dos seus parentes maiores, na linha reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte. Nos mortos não identificados, não se poderá fazer a colheita ou retirada de elementos para transplante. Vê-se, assim, que o corpo humano, com a morte, mantém-se como elemento da personalidade. Disso se deduz que, para a utilização de tecidos, órgãos ou partes do cadáver humano, são imprescindíveis o consentimento para a prática do ato e a incontestabilidade da morte, assim como a finalidade terapêutica e a gratuidade da disposição.33 A respeito do consentimento há duas correntes: uma, dos países anglo-saxões, que exige consentimento explícito em testamento, ou, pelo menos, reconhecem à família um direito sobre o destino do cadáver; outra, que admite consentimento implícito, ou presumido, do falecido, para a coleta de material do seu cadáver.34 A lei é um ato de política legislativa que realiza certos valores e obedece a determinados princípios. No caso da lei dos transplantes, seu objetivo é harmonizar interesses, aparentemente contraditórios, o interesse coletivo, do desenvolvimento científico e da solidariedade social, que se traduz na possibilidade de aproveitamento do corpo humano, vivo ou morto para fins de transplantes ou tratamento, e o interesse individual no tocante ao direito à vida e à integridade física da pessoa, componentes do seu direito geral de personalidade. O princípio que, in casu, se tem de observar é o princípio da dignidade humana, fundamento do direito geral da personalidade, que se traduz, dentre outros no direito à vida e à integridade física. Ocorre que, não obstante a personalidade jurídica individual extinguir-se com a morte do seu titular, o direito contemporâneo reconhece um "prolongamento da proteção da personalidade após a morte".35 O Código Civil português dispõe no art. 71° que os direitos da personalidade gozam igualmente de proteção depois da morte do respectivo titular, tendo o cônjuge sobrevivo, descendentes ou ascendentes, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido, legitimidade para requerer as providências necessárias à efetiva tutela. Idêntica legítimadade estabelece o nosso Código Civil, no parágrafo único do art. 12. Verifica-se com a morte da pessoa, uma especial sucessão de direitos da sua personalidade em prol dos herdeiros do falecido, o que os legitima a tomar providências para eventual tutela jurídica desses direitos, entre os quais o de impedir ofensas à integridade física, moral ou intelectual do falecido. Compete-lhes portanto, qualquer decisão a esse respeito, por direito próprio, não como representante, que não poderia ser, de alguém já falecido. No caso da retirada post-mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, a pessoa legitimada para concordar ou discordar é o cônjuge sobrevivo ou o parente consangüíneo mais próximo, titular dos direitos de personalidade do de cujus sobre o seu corpo, agora cadáver. 9. Direito à integridade moral. O direito à integridade moral consiste na proteção que a ordem jurídica concede à pessoa no tocante à sua honra, liberdade, recato, imagem e nome (CC. arts. 17a 20). Honra é a dignidade pessoal e a consideração que a pessoa desfruta no meio em que vive. É o conjunto de predicados que lhe conferem consideração social e estima própria. É a boa reputação. "Ninguém será sujeito a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques a sua honra e reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques", dispõe o artigo XII da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 10 de dezembro de 1948, pela Assembléia-Geral das Nações Unidas. Na proteção à honra da pessoa física ou jurídica, o Código Penal brasileiro tipifica os crimes de calúnia, injúria e difamação (arts. 138, 139 e 140). No plano civil, temos o ressarcimento do dano causado ao ofendido pela injúria ou calúnia (art. 953). Comum ao direito público e ao privado, a lei de Imprensa (Lei 5.250, de 9 de fevereiro de 1967), que regula a liberdade de manifestação do pensamento e de informações, considera crime, na forma definida na lei, os abusos cometidos utilizando-se os meios de informação e divulgação, com a prática de calúnia, difamação e injúria, inclusive contra a memória dos mortos (art. 24). Essa lei assegura o direito de resposta às pessoas naturais ou jurídicas atacadas em sua honra, pelo mesmo jornal, emissora ou agência de notícias, publicando-se a resposta, ou retificação, da mesma forma por que foi divulgada a publicação ofensiva. As pessoas jurídicas têm também direito a reparação por dano moral. Liberdade é ausência de impedimentos. É o poder de ação das pessoas sem qualquer interferência do Estado ou de outras pessoas. Por isso, o direito à liberdade se dirige contra as outras pessoas e contra o Estado. O direito protege a liberdade física e a liberdade de pensamento, em preceitos constitucionais (CF, art. 5-, IV, XV e LXVIII) e penais (CP, art. 148). O direito à liberdade é, portanto, um dos direitos de personalidade, complexo, passível de se decompor em vários aspectos, como o direito à liberdade pública, à política, à liberdade de ação, à liberdade de idéia, de ir e vir, de reunião, de associação etc. O direito ao recato consiste no direito de cada um ter preservada a intimidade de sua vida privada da indiscrição alheia. Sem contorno preciso, traduz-se no direito à imagem, no direito ao sigilo da correspondência e da comunicação telegráfica ou telefônica (CF, art. 5a XII; CC. art. 20 C. Penal, art. 151). O direito à imagem é o direito que a pessoa tem de não ver divulgado seu retrato sem sua autorização, salvo nos casos de notoriedade ou exigência de ordem pública. É proibida a exposição ou reprodução, nos casos atentatórios à honra, boa fama e respeitabilidade da pessoa retratada, admitindo-se indenização por danos sofridos (CC. art. 20). O direito à imagem pertence à pessoa; só ela pode publicá-la ou comerciá-la. É lícita a caricatura desde que não-ofensiva. 10. Direito à integridade intelectual. O direito à integridade intelectual é o que consiste na proteção à liberdade de pensamento e no direito autoral de personalidade, isto é, no poder que o autor tem de ligar seu nome à obra que produziu. É a proteção jurídica às obras da inteligência, garantindo-se ao autor o poder de publicar, reproduzir ou explorar a produção de seu espírito, punindo os que se apropriarem das concepções da inteligência de outrem. Essa proteção está expressa na Constituição Federal (art. 5-, XXVII e XXVIII), em Convenções Internacionais, no Código Penal (arts. 184 a 186) e em diplomas específicos, a Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que regula os direitos autorais, denominação da "propriedade literária, científica e artística" do Código Civil de 1916 (arts. 649 a 673). Direitos autorais são uma das espécies dos direitos da personalidade. Consistem no direito que o autor tem de ligar seu nome à obra literária, artística ou científica que tenha produzido, e de impedir a reprodução, divulgação ou utilização fraudulenta dessa obra por outrem. O direito autoral de personalidade tem duplo aspecto, o pessoal e o patrimonial. O primeiro é o direito que o autor tem de ver reconhecida a sua paternidade quanto à obra que produziu. É o direito moral do autor, conforme disposto na Lei 9.610/98, arts. 24 a 27. O aspecto patrimonial consiste no direito de utilizar, fruir e dispor das produções do espírito, assim como no de autorizar sua utilização ou fruição por terceiros (art. 29), por meio de edição, tradução, adaptação ou transmissão (art. 30). As sanções à violação dos direitos autorais, além das de ordem penal, podem consistir na apreensão dos exemplares impressos sem autorização do autor, assim como na indenização equivalente ao restante da edição ao preço por que foi apreendido ou avaliado (art. 122), ou na interdição da representação, execução ou transmissão de obra intelectual sem autorização, bem como apreensão da receita bruta, requeridos à autoridade policial competente (art. 127). 11. Direito à identidade pessoal. O nome. O direito à identidade pessoal é o direito ao nome ((CC. art. 16). Espécie dos direitos da personalidade, integra-se no gênero do direito à integridade moral, no sentido de que a pessoa deve ser reconhecida em sociedade por denominação própria, que a identifica e diferencia. O nome constitui-se em interesse essencial da pessoa. O direito ao nome é absoluto. Produz efeito erga omnes, pois todos têm o dever de respeitá-lo. E, como os demais direitos da personalidade, intransmissível, imprescritível, irrenunciável. Nome é a expressão que distingue uma pessoa, animal ou coisa. Sua importância reside no fato de que as relações jurídicas se estabelecem entre pessoas, naturais e jurídicas, cujo exercício dos respectivos direitos exige que se saiba quem são os titulares. Os preceitos legais referentes ao nome são de ordem pública. Donde serem inderrogáveis. Sua disciplina está na LRP, arts. 54 a 63. 12. Elementos constitutivos do nome. Há que distinguir o nome das pessoas naturais do nome das pessoas jurídicas. Estas, de direito privado ou público, civil ou comercial, adquirem o nome na forma da legislação específica. O nome das pessoas naturais é formado pelo prenome e pelo sobrenome ou nome patronímico (CC. art. 16). O prenome é o nome individual, nome próprio, nome de batismo, que vem em primeiro lugar. Pode ser simples ou composto. Neste caso, o prenome será duplo, como ocorre necessariamente na hipótese de gêmeos com prenome igual, para que possam diferenciar-se (LRP, art. 63). O nome patronímico é o nome da família, também chamado sobrenome ou cognome. Como o prenome, o patronímico pode ser simples ou composto, conforme tenha uma ou mais designações. Secundariamente encontramos ainda os títulos (honoríficos, científicos, religiosos e militares), as partículas (de, do, das, e), e o agnome, elemento aposto em último lugar (filho, júnior, neto, bisneto, sobrinho, terceiro etc). Como substitutivos do nome, temos o vocatório, designação comum pela qual a pessoa é conhecida; o epíteto, alcunha ou apelido, substitutivo do nome usado íntima ou popularmente; e o pseudônimo, que é outro nome escolhido pela pessoa, normalmente em função de atividade peculiar, como ocorre no campo dos artistas. 13. Aquisição e formação do nome. Quanto à aquisição e formação do nome no sistema jurídico brasileiro, embora de contornos incertos no tocante à delimitação da matéria, existem as seguintes regras: a) adquire-se o prenome e o nome de família com o assento do nascimento no Registro Civil de Pessoas Naturais (LRP, art. 54, § 4°). O prenome não será, porém, registrado pelo oficial do registro civil se for suscetível de expor ao ridículo seu portador; b) o cônjuge assume com o casamento, se quiser, o nome do outro (CC, art. 1.565, p. 1°), podendo conservar o seu de família. c) os filhos reconhecidos assumem o nome de família de ambos os pais; d) os gêmeos que tiverem o prenome igual deverão ser inscritos com duplo prenome ou nome completo diverso, para poderem distinguir-se (LRP art. 63); e) o adotado assume o sobrenome do adotante e, a pedido deste, ou do adotado poderá determinar-se a modificação do prenome (CC. art. 1.627); f) o companheiro poderá requerer averbação do patronímico do outro, desde que haja impedimento legal para o casamento, decorrente do estado civil de qualquer das partes. (LRP, art. 57, §§ 2-, 32 e 42). 14. Alteração do nome. O prenome é definitivo (LRP. Art. 58), salvo no caso de evidente erro gráfico ou quando, suscetível de expor ao ridículo seu portador, não tenha sido impugnado pelo oficial do registro civil no ato do registro de nascimento (LRP, art. 55, par. único), ou no caso de adoção (CC art. 1.627). Definitivo o prenome, poderá, no entanto, ser substituído por apelidos públicos notórios. Não se admitem, porém, apelidos proibidos em lei. O patronímico é mutável, em virtude de causas necessárias e causas voluntárias. São causas necessárias: a) modificação do estado de filiação, por meio de sentença em ação de estado, ou reconhecimento, adoção ou desligamento da adoção; b) casamento, quando um cônjuge assume o sobrenome do outro, ou separação, caso em que o cônjuge perde ou renuncia ao direito de usar esse apelido; c) alteração de nome de pai e, por via de conseqüência, do filho. São causas voluntárias quaisquer motivos que possam fundamentar autorização judicial, mediante sentença constitutiva prolatada pelo juiz competente (LRP, art. 57).36 15. Proteção do nome. Para a proteção de seu nome dispõe a pessoa de vários processos de natureza pública e privada. Quanto aos primeiros, temos os de natureza penal (CP, art. 185) e os de natureza administrativa, pertinentes à retificação, restauração e suprimento de assentamento no Registro Civil. Quanto aos segundos, temos: a ação de reclamação, a ação de condenação, a ação de proibição do nome e a ação de responsabilidade civil. Na ação de reclamação o autor exige que terceiros respeitem o direito que tem de usar seu nome. Na ação de condenação, também chamada ação de usurpação ou de reivindicação, o titular do direito ao nome pretende que cesse o uso ilícito que alguém faz desse nome, pessoalmente. Na ação de proibição de nome, o respectivo titular pede que cesse o uso ilícito que alguém faz desse nome, mas de modo impessoal. Quanto à ação de responsabilidade civil, cabe sempre que se verifique dano, causado por ofensa ou usurpação ao nome de alguém (CC, art. 186 e art. 927). 16. O nome comercial. O nome comercial é a designação de que se utiliza o comerciante, pessoa natural ou jurídica, no exercício do comércio. Pode ser firma ou denominação. Firma, ou razão comercial, é o nome sob o qual o comerciante ou a sociedade exerce o comércio e assina-se nos atos a ele referentes (Dec. 916, de 24.10.1890, art. 2-). Firma ou razão individual no caso de comerciante, pessoa natural. Firma ou razão social, no caso de sociedade. Denominação é apenas o nome da sociedade. Firma é o nome e a assinatura. A finalidade da firma é identificar e informar sobre a responsabilidade de quem exerce o comércio. O direito brasileiro adota o critério da veracidade da firma segundo o qual a firma do comerciante individual só pode conter seu próprio nome civil, completo ou abreviado. O das sociedades, por sua vez, não pode conter nome de quem não seja sócio. É necessária a correspondência entre o nome civil do comerciante ou sócio e a razão mercantil. Exemplo de firma: M. Santos; Santos e Cia. Ltda. Exemplo de denominação: Petrobrás. -------------33 Idem, p. 107. 34 Idem, p. 108. 35 Capelo de Souza, op. cit, p. 193. 36 V. Limongi França, Nome Civil, in Ene. Saraiva, 54/250. ------------CAPITULO VIII Sujeitos de Direito. A Pessoa Jurídica Sumário:l. Conceito. Razão de ser. 2. Notícia histórica. A formação do conceito. 3. O problema da existência e da natureza da pessoa jurídica. Teorias. 4. A personificação e seus efeitos. 5. Classificação. 6. Associações. 7. Sociedades. 8. Fundações. 9. Elementos constitutivos da pessoa jurídica. 10. Constituição e funcionamento. Representação. 11. Modificação e extinção. 12. Associações e sociedades não-personifiçadas. 13. Atributos da pessoa jurídica. 14. A personalidade jurídica como instrumento de atividade abusiva ou ilícita. A teoria da desconsideração. 15. As Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. 1. Conceito. Razão de ser. Os sujeitos de direito podem ser pessoas naturais ou físicas, .se coincidentes com o ser humano, e pessoas jurídicas, quando são entidades ou organizações unitárias de pessoas ou de bens a que o direito atribui aptidão para a titularidade de relações jurídicas. A pessoa jurídica é, então, um conjunto de pessoas ou de bens, dotado de personalidade jurídica. Por analogia com as pessoas físicas, a ordem jurídica disciplina o surgimento desses grupos, reconhecendo-os como sujeitos de direito. Sua razão de ser está na necessidade ou conveniência de as pessoas singulares combinarem recursos de ordem pessoal ou material para a realização de objetivos comuns, que transcendem as possibilidades de cada um dos interessados por ultrapassarem o limite normal da sua existência ou exigirem a prática dr atividades não-exercitáveis por eles. Organizam-se, assim, de modo unitário, pessoas e bens, com o reconhecimento do direito que atribui personalidade ao conjunto que passa a participar da vida jurídica.' Caracterizam-se as pessoas jurídicas, a) por sua capacidade de direito e de fato, própria, b) pela existência de uma estrutura organizativa artificial, c) pelos objetivos comuns de seus membros, d) por um patrimônio próprio e independente do de seus membros e e) pela publicidade de sua constituição, isto é, o registro dos seus atos constitutivos nas repartições competentes. No âmbito público, o modelo é o Estado como pessoa jurídica distinta dos cidadãos que o compõem, e cuja existência se deve à necessidade de realização de valores coletivos, como a segurança, a justiça e o bem comum. No âmbito privado, as pessoas jurídicas constituem-se de acordo com os objetivos específicos de seus membros. Quando tais objetivos são de fins não lucrativos, de natureza ideal, temos as associações. Se porém, o objetivo visado é o lucro, o interesse pecuniário, constituem-se as sociedades, de natureza civil ou comercial, conforme a atividade desenvolvida. A sociedade está por si mesmo diretamente conectada à economia de mercado pois que, por meio da personalidade jurídica, favorece-se a constituição do capital necessário à atividade empresarial, sem que o investidor fique pessoalmente sujeito aos riscos dessa atividade. Tratando-se de uma entidade que se destine a garantir a permanência e a utilidade de um patrimônio afetado a determinado fim ideal, teremos uma terceira espécie, a fundação. Conclui-se, portanto, que o direito permite a formação de centros unitários de direitos e deveres que, à semelhança das pessoas naturais, são dotados de personalidade jurídica para servir aos interesses dos seres humanos. Com uma diferença porém. Nas pessoas físicas, a sua personalidade jurídica é autônoma e original, no sentido de que é inerente ao ser humano como atributo de sua dignidade pessoal, enquanto que nas pessoas jurídicas, ou coletivas, ela é meramente instrumental e derivada ou adquirida, meio de realização de infinita variedade dos interesses sociais.2 Quanto à sua importância para o direito, talvez não exista setor mais controverso. O conceito, os requisitos, os princípios, a teoria geral, enfim, é objeto de grande diversidade doutrinária, sendo incontáveis os trabalhos, as monografias, as teses que têm procurado sistematizar a teoria das pessoas jurídicas. Sempre em aberto, como convite à indagação doutrinária, estão os problemas de sua existência, natureza e justificação, pelo que o estudo das pessoas jurídicas permanece como um dos grandes tópicos da ciência jurídica, uma de suas questões chave.3 2. Notícia histórica. A formação do conceito. O termo pessoa jurídica, com o seu significado atual, é de elaboração moderna, embora designe situações ou problemas que sempre existiram na realidade social. Com efeito, é com a dogmática alemã dos séculos XVIII e XIX que se integra, definitivamente, na terminologia jurídica, como produto do notável esforço de abstração dos juristas desse período, capazes de conceber a existência material e jurídica de uma entidade distinta dos indivíduos que a constituem. Essa construção resulta, porém, de um longo processo de evolução histórica que, à semelhança do que se verifica com outros conceitos e categorias jurídicas, apresenta três períodos distintos, o romano, o medieval e o moderno. O direito romano não conheceu a pessoa jurídica como entidade distinta dos indivíduos que a compõem.4 Essencialmente práticos, não eram dados a tais abstrações. Nos textos jurídicos, persona utilizava-se, geralmente, como sinônimo de homem.^ Encontra-se porém uma passagem de Florentino,6 em que se empregava persona para designar a herança jacente, os bens deixados pelo falecido e ainda sem titular, formando um conjunto patrimonial. Inexistem, porém, outros textos que permitam concluir já terem tido os romanos um conceito técnico de pessoa jurídica que, à semelhança do ser humano, correspondesse a um centro de imputações jurídicas, uma entidade com personalidade própria. Para designar os conjuntos unitários de pessoas ou de bens, utilizavam-se os termos universitas e corpus, figuras posteriormente considerada como pessoas jurídicas.7 É no pensamento jurídico medieval, principalmente do século XIV, com a contribuição dos glosadores e canonistas que, reunindo-se elementos do direito romano pós-clássico, do direito germânico e do próprio direito canônico, se chega ao núcleo central do conceito de pessoa jurídica, passando-se evolutivamente, até se alcançar con-ceituação moderna, pelas expressões pessoa ficta, pessoa moral e pessoa jurídica.8 Depois dos glosadores, que foram os primeiros a tentar sistematizar a matéria, distinguindo as coletividades (universitas} dos indivíduos componentes, e reconhecendo-as como capazes de praticar diversos atos,9 os canonistas chegam à noção de persona ficta, uma personalidade abstrata distinta do simples conjunto de seus membros componentes.10 É, porém, com Sinibaldo de Fieschi (Papa em 1243 com o nome de Inocêncio IV) que se chega a conceituar a pessoa ficta, consagrando a expressão "Universitas fingatur esse una persona"',n que distingue, em definitivo, as pessoas físicas das pessoas jurídicas. Essa concepção deveu-se ao interesse dos canonistas em subtrair os corpora e as universitas à responsabilidade delitual, problema com que se defrontaram os juristas alemães da Idade Média. A questão era a de decidir se a cidade que se revoltava contra o seu soberano, o papa ou o imperador, podia ser castigada como um todo. A opinião dominante era no sentido afirmativo e, por isso, condenavam-se excomungavam-se ou interditavam-se as cidades e as vilas como se fossem uma só pessoa.12 Sinibaldo de Fieschi defende a tese de que são diferentes a pessoa do homem, que tem alma e corpo, e as cidades ou corporações, destituídas de uma e de outro. Não pode assim uma universitas incorrer em pecado, conseqüentemente, ser condenada ou excomungada. Verificando-se, porém, que as universitas exercitam direitos e deveres, devem ser consideradas ficticiamente como pessoas, como pessoas fictas, ficando nítida a distinção entre a "realidade física e anímica do homem e a realidade funcional das corporações". A concepção desse canonista consolida-se quando ele, já como Papa Inocêncio IV, consegue que o Concilio de Lyon, em 1245, proíba a excomunhão dos collegia e universitas, com base nos seus argumentos, o que leva à consagração de sua teoria nos meios jurídicos medievais. Deve-se, portanto, aos canonistas e, particularmente, a Inocêncio IV, o verdadeiro início da teoria da pessoa jurídica. Ficava, assim, clara a distinção entre a pessoa do homem e as pessoas fictas, que compreendiam os corpora e as universitas, tornando-se definitivamente independentes, distintos, na ciência jurídica, os conceitos de pessoa física, ou homem, e o de pessoa jurídica, coletividade dotada de espírito e individualidade próprias, com patrimônio e responsabilidade independentes das de seus membros. Durante a Idade Média não se verificou nenhum interesse em construir um conceito de pessoa jurídica, usando-se a expressão persona ficta para designar os collegia e as universitas, já considerados em sua unidade e individualidade como algo distinto da simples soma dos indivíduos componentes, com patrimônio e responsabilidade próprios, e com a possibilidade de participarem de relações jurídicas diversas das de seus membros. Reconhecia-se também a possibilidade de terem nome, domicílio e sinais distintivos próprios, assim como a de se submeterem a determinada jurisdição, tudo por obra dos glosadores. Na época moderna, com o jusnaturalismo, principalmente com as obras de Grocio, a persona ficta passa a denominar-se pessoa moral para designar as "comunidades ou corporações", já consideradas "verdadeiras realidades ao lado das pessoas físicas". Adotam tal denominação os Códigos da Prússia e da Áustria.13 Não a recolhe porém o Código Civil francês, que não aceitava a doutrina da existência de corpos ou entes morais intermédios entre o Estado e o indivíduo, amparados e nascidos de normas estranhas ao poder do Estado, como eram as de direito natural. Com a doutrina jurídica alemã, chega-se à moderna concepção de pessoa jurídica. Ao sistematizarem a matéria de direito civil, com a elaboração de uma teoria geral reunindo noções, elementos e categorias jurídicas comuns a todos os ramos do direito, os juristas alemães tiveram de considerar a existência de sujeitos de direito distintos da pessoa humana, como titulares dos direitos subjetivos. Essa existência concreta de grupos humanos ou de bens para a satisfação de interesses e necessidades coletivas, com individualidade própria e distinta da de seus membros, impunha o seu reconhecimento ao direito, que lhes outorgava então titularidade jurídica para as suas relações. A personalidade jurídica passa a configurar-se como uma qualidade atribuída a certos entes, com a qual se podem tornar sujeitos de relações jurídicas, titulares de direitos e deveres. A pessoa jurídica surge, assim, como um conjunto unitário de pessoas ou de bens, organizado para a obtenção de fins comuns específicos, com individualidade e autonomia próprias. Essa matéria não é, todavia, pacífica, sendo inúmeras as controvérsias quanto à existência e natureza desses entes, sendo várias as teorias que se enfrentam, afirmando, negando ou pondo em dúvida a sua utilidade atual.14 3. O problema da existência e da natureza da pessoa jurídica. Teorias. Inúmeras teorias procuram justificar a existência e a natureza da pessoa jurídica. De modo geral, podemos reuni-las em dois grandes grupos, o da ficção e o da realidade, cada um com suas subdivisões doutrinárias. a) Teoria da ficção15 — Tendo como referência inicial a teoria da personalidade ficta de Sinibaldo dei Fieschi, criada para subtrair os corpora e universitates à responsabilidade delitual, a teoria da ficção parte do pressuposto de que só o homem é sujeito de direito, sendo a pessoa jurídica uma criação do legislador, contrária à realidade mas imposta pelas circunstâncias. Em determinadas ocasiões reúnem-se as pessoas (universitas personarum) para realizar objetivos comuns e permanentes, ou então, destina-se um conjunto de bens à consecução de um fim específico, também de interesse geral e permanente (universitas rerum). Atendendo ao interesse geral e à permanência do objetivo a atingir, concede-lhes o Estado a personalidade jurídica, fingindo-se que existe uma pessoa, sujeito de direitos. A pessoa jurídica assim concebida não passa de simples conceito, destinado a justificar a atribuição de certos direitos a um grupo de pessoas físicas. Constrói-se, desse modo, uma ficção jurídica, uma situação que, diversa da realidade, assim é considerada pelo ordenamento jurídico; ou, de outro modo, o Estado, consciente do artifício, utiliza-o e justifica-o em função de razões de política jurídica. Essa teoria, como as demais, liga-se a interesses político-econômicos que lhe configuram o fundamento ideológico. Representando o espírito da época, o individualismo, para quem somente o ser humano pode ser, como pessoa, titular de direitos subjetivos, a pessoa jurídica seria mera construção ou ficção do direito, pela conveniência do Estado. Ao atribuir-se a este o poder de conferir titularidade jurídica a grupos de pessoas ou a organização de bens, conceder-se-ia também um poder de intervenção no domínio privado, a seu arbítrio exclusivo. Esse é o motivo da aceitação dessa teoria, extremamente útil tanto aos que visavam impedir a implantação do --------------------1 Lacerda de Almeida. Das Pessoas Jurídicas, p. 19; Teixeira de Freitas. Código Civil. Esboço, notas ao art. 17. Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, l, p. 280; Francesco Galgano. Delle persone giuridiche, p. 3; Francesco Ferrara. Teoria delle persone giuridiche, p. 404; Leon Michoud. La théorie de Ia personalité morale et son application au droit français, p. 4 e segs; Paul Durand. Uevolution de Ia condition jurídique dês persones morales de droit prive, p. 138, e segs; Giuseppe Menotti de Francesco, Persona giuridica in Novíssimo digesto italiano, XILp. 1.036. 2 João de Castro Mendes. Direito Civil, Teoria Geral, I, p. 173; C. Massimo Bianca, Diritto civile, p. 286; Ferrara op. cit, p. 610. 3 Federico de Castro. La persona jurídica, p. 261. 4 Lacerda de Almeida, op. cit., p. 259. Alexandre correira e Caetano Sciascia, Manual de Direito Romano, Terceira edição, vol I, São Paulo, Editora Saraiva, 1957, p. 51. 5 O que está patente na famosa passagem referente à divisão do direito: Omne ius quo utimur, vel ad personas pertinet, vel ad rés, vel ad actiones, Institutiones, Gaio, l, 2. (Todo o direito pelo qual nos regemos se refere às pessoas, ou às coisas, ou às ações). 6 Federico de Castro, op. cit., p. 140. 7 Federico de Castro, op. cit., p. 142. Digesto, 3, 4,1, l, pr. 8 Caetano Catalano, Persona giuridica (Diritto intermédio], in Novíssimo di-gesto italiano XII, p. 1.032., Federico de Castro, op. cit., p. 144. 9 Ferrara, op. cit., p. 71. 10 Catalano, op. cit., p. 1.034. 11 "A universalidade é tida como uma pessoa." 12 Federico de Castro, op. cit., p. 146, nota 30. 13 Aügemeines Landerecht (ALR) (Direito comum do território) 1791, II, 6, p.8\; Allgemeines Bürgeliche Gesetzbuch für die gesamten Deutschen Erblãnder der Õsterreichischen Monarchie (ABGB) 1811 (Código Civil Geral para todos os países hereditários alemães da monarquia da Áustria), pars. 286, 529, 1.454. 14 Alfonso de Cossío. Hacia un nuevo concepto de Ia persona jurídica, p. 645. 15 A formulação clássica da teoria da ficção encontra-se em Savigny. Sistema di diritto romano II; pars. 60,85 e segs., e também em Puchta. Cursus der Institu-tionem, par. 28. Cf. Ferrara, op. cit., p. 136. --------------------Estado liberal (os adeptos do Antigo Regime francês) como aos próprios Estados liberais nascentes que precisavam impor a sua autoridade, por meio do controle da conveniência e oportunidade de organização das pessoas jurídicas.16 b) Teoria orgânica ou da realidade objetiva11 — Afirma que a pessoa jurídica é "uma realidade viva, um organismo social capaz de vida autônoma, e à semelhança da pessoa física, a pessoa coletiva realiza seus fins por meio de órgãos adequados". Para os seus adeptos, somente os seres com vontade própria podem ser titulares de direitos, existindo duas espécies: de um lado os indivíduos, seres naturalmente sociáveis, de outra parte, grupos de indivíduos, portadores de interesses próprios e distintos dos de seus membros, possuindo uma vontade própria, também distinta das individuais, que se expressa por meio dos órgãos (donde o nome da teoria orgânica). A ambas as espécies o Estado reconhece a qualidade de protagonistas do mundo jurídico, a condição de pessoas, chamadas de físicas ou jurídicas para precisar o ente a que se refere. Sob o ponto de vista ideológico, também se vê nesta teoria, como na antecedente, uma resistência à implantação do Estado liberal moderno, à medida que se reduz o papel do Estado a mero conhecedor de realidades já existentes, desprovido de maior poder criador. Além disso, a teoria orgânica poderia fomentar o associa-cionismo e o corporativismo, levando ao surgimento de centros de poder independentes do Estado. Por outro lado, todavia, com tal concepção se fortalecem os chamados corpos sociais intermédios, limitando a força absorvente do Estado.18 c) Teoria da realidade técnica1^ — Para tal concepção a pessoa jurídica resulta de um processo técnico, a personificação, pelo qual a ordem jurídica atribui personalidade a grupos em que a lei reconhece vontade e objetivos próprios. As pessoas jurídicas são uma realidade, não ficção, embora produto da ordem jurídica. Sendo a personalidade, no caso, um produto da técnica jurídica, sua essência não consiste no ser em si, mas em uma forma jurídica, pelo que se considera tal concepção como formalista. A forma jurídica não é, todavia, um processo técnico, mas a "tradução jurídica de um fenômeno empírico", sendo a função do direito apenas a de reconhecer algo já existente no meio social.20 Embora de grande aceitação nos meios jurídicos contemporâneos, pela segurança que oferece, pois permite conhecer os efeitos que o ordenamento jurídico atribui à personalidade jurídica, a teoria da realidade técnica é acusada de positivista e assim desvinculada de pressupostos materiais ou requisitos prévios para o reconhecimento do Estado das pessoas jurídicas. O direito brasileiro adota a teoria da realidade técnica na disciplina legal da matéria, como se depreende do art. 45 do Código Civil. d) Teoria institucional — Para esta teoria, a pessoa jurídica é uma organização social para atingir determinados fins. Partindo da análise das relações sociais, não da vontade humana, constata a existência de grupos organizados para a realização de uma idéia socialmente útil,21 as instituições, sendo estas grupos sociais dotados de ordem e organização próprias. Salienta-se nesta concepção o pendor sociológico, devendo-se a sua formulação a Hauriou e a Santi Romano, para quem o direito é mais do que o conjunto de "disposições normativas de caráter formal", é "manifestação de poder de autonormação dos grupos humanos socialmente constituídos". Seu elemento básico é a instituição, sendo a personalidade jurídica o ponto de conexão entre o "ordenamento estatal e as instituições", estas como ordenamentos autônomos. Por tal razão, a crítica que se faz a essa teoria decorre da valorização demasiada do elemento sociológico, que não corresponde integralmente ao processo do legislador,22 assim como também da sua unilateralidade, visto que "ao fazer elemento da personalidade jurídica o poder autonormativo do grupo, desconhece a existência de numerosas pessoas jurídicas que, ao contrário, se submetem por completo a disposições externas como ocorre com as fundações", onde o que preside à sua constituição, existência e eficácia é, em definitivo, a vontade do fundador, ou com as pessoas jurídicas de direito público, subordinados a normas superiores. Em face de tal diversidade teórica, o que se pode dizer, à guisa de conclusão, é que nas pessoas físicas, como nas jurídicas, coexistem dois elementos, o natural e o jurídico, ou, se quisermos, o real e o arbitrário, no sentido de que o real são os interesses que levam à constituição de novo ente, que o direito não cria, e o formal é o reconhecimento da pessoa pelo ordenamento jurídico. Conjugam-se assim os interesses coletivos com a necessidade de uma organização que permita reunir recursos pessoais e materiais para a realização de fins ou interesses comuns, e com o reconhecimento da nova pessoa jurídica, desde que preenchidos os requisitos legais. A noção de pessoa jurídica é, assim, idêntica à de sujeito de direito, donde a perfeita analogia entre pessoa física e pessoa jurídica.23 4. A personificação e seus efeitos. A personificação é um dos processos da técnica jurídica utilizado para a realização de fins preconizados pela política do direito. Consiste na atribuição de personalidade jurídica a um grupo de pessoas (associações e sociedades), ou a um conjunto de bens (fundações), observados os requisitos da lei, tendo em vista os objetivos comuns a realizar. Esse processo técnico, reconhecendo individualidade própria a um grupo, distinto de seus elementos componentes, evita que tal conjunto se considere como a simples soma dos indivíduos nas relações jurídicas de que participa. Com efeito, se a sociedade S não tivesse personalidade jurídica, as dívidas que contraísse não seriam dela mas de seus sócios.24 Além disso, todos esses grupos personificados precisam de um elemento indispensável à sua vida jurídica, que é uma organização própria, órgãos com funções específicas para a realização dos fins propostos. Foi precisamente para justificar esse processo que surgiram as várias teorias acima consideradas, a da ficção, a orgânica, a da realidade técnica e a da instituição. Para o direito, todavia, essa justificação teórica tem importância menor; a pessoa jurídica existe no mundo e para o mundo das relações jurídicas. E, portanto, uma realidade, qualquer que seja a fundamentação teórica. Do processo de personificação surgem vários efeitos, de grande importância prática: a) com a constituição da pessoa jurídica forma-se um novo centro de direitos e deveres, dotado de capacidade de direito e de fato, e de capacidade judicial; b) esse novo centro unitário passa a ter direitos, deveres e interesses totalmente distintos dos direitos, deveres e interesses das pessoas que dele participam individualmente; c) o destino econômico e jurídico do novo centro é totalmente diverso do de seus membros participantes; d) a autonomia patrimonial da pessoa jurídica é completa em face de seus membros, implicando no fato de que o patrimônio da pessoa jurídica é totalmente independente do patrimônio das pessoas que a constituem; e) passa a existir total independência das relações jurídicas da pessoa jurídica relativa às dos seus membros, de modo que direitos ou dívidas desses não são direitos ou dívidas daquele. (Um credor de sócio não pode compensar, com a dívida deste, a sua dívida para com a sociedade.)25 Além disso, existe a possibilidade de se estabelecerem relações jurídicas entre a própria pessoa jurídica e os que dela participam;26 f) a responsabilidade civil da pessoa jurídica é independente da das pessoas que a formam, de modo que os bens da pessoa jurídica não respondem pelas obrigações de seus membros, e vice-versa; g) a pessoa jurídica não tem responsabilidade penal.27 5. Classificação. No direito positivo brasileiro, as pessoas jurídicas classificam-se rm pessoas jurídicas de direito público e pessoas jurídicas de direito privado, subdividindo-se aquelas em pessoas jurídicas de direito público interno e externo, e as pessoas jurídicas de direito privado rm associações, sociedades e fundações (CC, arts. 40 e 44). São pessoas jurídicas de direito público externo os Estados da comunidade internacional e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público (CC. art. 42), e de direito público interno a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios, os Municípios, as autarquias28 e as demais entidades de caracter público criadas por lei (CC. art. 41). As pessoas jurídicas de direito público, a que se tenha dado estrutura do direito privado, regem-se, no que couber, quanto ao seu funcionamento, pelas normas do Código Civil, salvo disposição em contrário (CC. art. 41, par. único). A União é o nome por que se designa a pessoa jurídica de direito público que é o Estado brasileiro, decorrente do compromisso expresso na Constituição de 24 de fevereiro de 1891, art. l-: "União perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias." Fórmula consagrada em 1934, em 1937 e repetida no art. l- da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, art. 1°: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito..." Significa isso que os Estados brasileiros não são independentes. Têm autonomia, isto é, capacidade de autogoverno nos limites estabelecidos pela Constituição, mas não têm soberania. São autônomos, mas não soberanos. Os Estados são as antigas províncias do Império, com as mesmas divisas e denominações.29 São unidades federadas que formam a União. Distrito Federal é a sede do governo federal, não tendo autonomia, mas exercendo funções próprias dos Estados e Municípios. Essa denominação foi usada pela primeira vez na Constituição de 1891, no art. 2-, substituindo a de Município Neutro, que era a do antigo Município do Rio de Janeiro.30 Os Municípios são entidades territoriais, cidades ou vilas com liberdade de autogoverno (autonomia política, administrativa e financeira), nos limites constitucionais estabelecidos. Seu objetivo é a realização de interesses locais. A designação vem de Municipium, antigos centros de organização administrativa romana, implantados na Península Ibérica e até nós chegados pela colonização portuguesa. Também eram pessoas jurídicas de direito público interno os Territórios, introduzidos no sistema jurídico constitucional brasileiro, pela Constituição de 16 de julho de 1934, no art. l-. Hoje integram a União.31 Formados de parte ou partes de Estados, sua criação depende de lei complementar (CF, art. 18, par. 2°). As autarquias são pessoas jurídicas que integram a administração indireta do Estado. São entidades autônomas, isto é, com estrutura -------------16 A teoria da ficção desenvolveu-se e teve grande aceitação no século passado porque se coadunava com o sistema político da época, que via na formação de grupos sociais uma ameaça ao governo, à realeza, não sendo possível constituir-se nenhuma corporação ou sociedade sem autorização do soberano. As únicas pessoas eram as naturais; as pessoas jurídicas eram "entidades, abstrações, pessoas fictas". 17 São adeptos da teoria orgânica ou da realidade objetiva Otto von Gierke. Deutsches Privatrechts, I pars. 58, 78; Lacerda de Almeida. Das Pessoas jurídicas, cap.IV. E ainda Regelsberg, Endemann, Mitteis, Von Büllow, Saleilles, Hauriou, Posada, Brugi, Filomusi Guelfi, Dusi, Fadda e Bensa, Chironi e Abello, Giorgi. Cf. Ferrara, op. cit., pp. 207/208, e Michoud, op. cit, I, p.159 e segs. 18 Federico de Castro, op. cit., p. 264. 19 É a teoria de Michoud, Saleilles, Geny, Capitant, Pillet, Waline, Colin et Capitant apua De Page. Traité élémentaire de droit civil belge. I p. 613; e Planiol et Ripert. Traité pratique de droit civil français, I n- 71; também Ferrara, op. cit., p. 387. 20 Roncero, Francisco Capilla. La persona jurídica. Funciones y disfunciones, p. 52; Castan Tobenas, op. cit., 381. 21 Planiol et Ripert, op. cit., p.87; Maurice Hauriou, La théorie de 1'institution et de Ia fondation; Georges Renard, La théorie de 1'institution, p. 122, Brèthe de Ia Gressaye et Laborde-Lacoste. Introduction génerale à 1'étude du droit ns 392 e segs.; Santi Romano. Uordre juridique, p. 19 e segs. 22 Roncero, op. cit., p.59. 23 Mário Rotondi. Istituzione di diritto privato, p. 170 apud Castan Tobenas, op. cit., p.383. 24 Diez-Picazo y Gullon. Sistema de Derecho Civil, I, p. 377. 25 João Eunápio Borges. Curso de Direito Comercial Terrestre, p. 262. 26 Francesco Messineo. Manuale di diritto civile e commerciale vol. I, p. 279. 27 "Pelas obrigações de natureza fiscal de uma sociedade regularmente constituída não poderão responder os bens particulares de seus sócios", Executivo Fiscal n126.116, Jurisprudência das Sociedades Comerciais, organização e seleção de R. Limongi França, p.21. "Uma vez integralizadas todas as cotas, liberam-se os sócios de qualquer responsabilidade nada mais devendo, normalmente, nem à sociedade nem aos credores dela. Se inalcançáveis os bens dos sócios em execução forçada contra a Sociedade, não tem a lei falimentar o condão de transpor a determinação legal, obstruindo execução contra bens particulares em feito totalmente desvinculado do processo falimentar", Agravo de Instrumento n- 1.155, Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Jurisprudência Brasileira, vol. 39, p. 249. "Sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Bens particulares dos sócios. Não respondem pelas dívidas fiscais contraídas por sociedade limitada já dissolvida. Nãoincidência, no caso, do art. 134, VII, do CTN." RE ns 94.868, 2'- Turma do STF, RTJ, vol. 99, p. 940. "Na sociedade de responsabilidade limitada, integralizado o capital social, nada mais pode ser exigido do sócio-cotista. As obrigações contraídas pela sociedade são dela e não dos seus sócios". Ap. Civil n". 158.669, da Comarca de São Paulo, RT, n* 429, p. 168. 28 Pontes de Miranda, op. cit., pp. 293 e 296. Código Civil, art. 41, par. único.29 João de Oliveira Filho. Quer conhecer a Constituição?, p. 85. 30 Paulino Jacques. Curso de Direito Constitucional, p. 132. 31 Luís Rafael Mayer. A Natureza Jurídica dos Territórios Federais, AMI n2 34, pp. 1/29. José Cretella Júnior. Natureza e Problemas dos Territórios Federais Brasileiros', RF, 226, pp. 27-30. Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. 5a edição, p. 748. A Constituição Federal de 1988, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, extinguiu, no art. 14, os Territórios Federais de Roraima e do Amapá, transformando-os em Estados, e no art. 15 extinguiu o de Fernando de Noronha, reincorporando-o ao Estado de Pernambuco. O Território Federal de Rondônia já havia sido transformado em Estado, em 1981. Não existem hoje Territórios Federais no Brasil. -------------administrativa própria e autonomia financeira, criadas por lei para executarem atividades típicas da administração pública. Decorrem da necessidade de gestão administrativa e financeira descentralizada.32 Espécies de autarquias são a Ordem dos Advogados do Brasil, o Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura, o Banco Central do Brasil, o Instituto Nacional da Seguridade Social, o Colégio Pedro II, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Departamento Nacional de Estradas e Rodagens, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, o Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis, as Superintendências do Desenvolvimento do Nordeste, da Amazônia, do Vale do São Francisco, da Região Sul e da Região Centro-Oeste, a Superintendência da Zona Franca de Manaus, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial, a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca, a Superintendência de Seguros Privados etc.33 Os partidos políticos figuravam no Código de 1916 (art. 16, p. 3°) como pessoas jurídicas de direito privado, não mais no Código atual. Formados por um número mínimo de eleitores, distribuídos por um número mínimo de Estados, destinam-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo. Regem-se por lei específica.34 Os sindicatos profissionais são associações privadas para fins de estudo, defesa e coordenação dos interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos, ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão, ou atividades ou profissões similares ou conexas.33 As pessoas jurídicas de direito público externo são os Estados da comunidade internacional, como a Santa Sé, as organizações internacionais, como a ONU, FMI, GATT, BIRD, FAO, UNESCO, OMS etc. São também pessoas jurídicas de direito privado a empresa pública, entidade com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criada por lei para a exploração de atividade econômica que o governo seja levado a exercer, e a sociedade de economia mista, sociedade anônima criada por lei para a exploração de atividade econômica, pertencendo o controle acionário à União ou a entidade da Administração Indireta (CF, art. 173, par. 1°). Não se compreende no conceito de pessoa jurídica a empresa, que é uma "atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços". Essa atividade pode ser desenvolvida por uma pessoa física (empresário individual) ou uma pessoa jurídica (sociedade empresária). A empresa desenvolve-se por meio de um complexo de bens organizado, o estabelecimento (Código Civil, art. 1.142). 6. Associações. A Constituição Federal garante a liberdade de associação para fins lícitos (CF, art. 5°, XVII), liberdade essa que se concretiza na criação das pessoas jurídicas denominadas associações, na forma da lei (CC, arts. 45 e 46). As associações são pessoas jurídicas de direito privado que se constituem para a realização de fins não econômicos (CC, art. 53). Caracterizam-se pelo seu aspecto eminentemente pessoal (Uni-versitas personarum), enquanto nas fundações o aspecto dominante é o material (Universitas bonorum). Outra diferença está no fato de que a origem das associações é romana, enquanto que a das fundações é medieval36. Constituem-se as associações por meio de um negócio jurídico formal, coletivo, cujas declarações de vontade convergem para um objetivo comum, que é o de constituírem a pessoa jurídica. O ato constitutivo deverá conter, sob pena de nulidade, a denominação, os fins e a sede da associação; os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados; os direitos e os deveres dos associados; as fontes de recursos para a sua manutenção; o modo de constituição e funcionamento dos órgãos deliberativos e administrativos; e as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução (CC, art. 54). A parte normativa do ato constitutivo é o estatuto, que pode definir-se como o conjunto das normas de organização e de comportamento da associação e de seus membros. A denominação é o nome da pessoa jurídica. Como tal, é objeto de proteção jurídica (CC, art. 52.). Os fins são o objetivo comum, a razão de ser da pessoa jurídica, geralmente de natureza ideal ou altruístico. A não lucratividade, ou não economicidade desses fins, constitui a nota distintiva das associações relativamente às sociedades. Estas desenvolvem uma atividade produtiva, o que não se verifica nas associações. Isso não impede que estas tenham atividade econômica, como a produção de bens ou serviços. O que se proíbe é o objetivo comum de distribuição de lucros entre os associados. A sede da associação é o local onde se instala o centro principal de suas atividades. E o seu domicílio, o que é importante critério para a fixação do foro competente para a propositura de ação processual (CPC, art. 94). A associação, como qualquer pessoa jurídica, pode ter sedes locais, diversos estabelecimentos em lugares diferentes, que desenvolvem atividades periféricas, e que por isso mesmo serão considerados domicílios para os atos neles praticados (CC, art. 75, par.l0) o que é também relevante para fins processuais. O estatuto fixa também os requisitos para a admissão, demissão e exclusão de associados, isto é, o surgimento, modificação e extinção da relação associativa. O associado é titular de uma situação jurídica complexa que nasce do próprio ato constitutivo ou, se a associação é já existente, do negócio jurídico de admissão, o que pressupõe o cumprimento de determinados requisitos pelo interessado, que se obriga ao cumprimento das disposições estatutárias. Assim como o interessado tem o poder de associar-se, no exercício da liberdade constitucional de associação para fins lícitos, tem também o direito de retirar-se, desfazendo unilateralmente a relação associativa, o que faz por meio da sua demissão, ato voluntário pelo qual desiste se retira da associação. Nenhum associado pode ser impedido de exercer esse direito ou qualquer função que lhe tenha sido legitimamente deferida (CC, art. 58). Pode, todavia, a associação condicionar a aprovação do pedido de demissão ao cumprimento dos deveres estatutários até aquele momento. A exclusão de associado, ato pelo qual ele é afastado ou retirado do corpo associativo, só se admite havendo justa causa, prevista no estatuto, ou motivo de reconhecida gravidade. Exige deliberação fundamentada, pela maioria absoluta dos presentes à assembléia geral especialmente convocada para esse fim. Do decreto da exclusão cabe recurso à assembléia geral (CC, art. 57). A exclusão arbitrária do associado pode ser anulada judicialmente, a requerimento do excluído. Os associados devem ter iguais direitos, mas nada impede que o estatuto estabeleça diversas categorias com vantagens especiais (CC, art. 55). A qualidade de associado é, de regra, intransmissível, inter vivos ou mortis causa, dado o seu caracter personalíssimo. Nada impede, porém, que o estatuto disponha em contrário, ressalvado que, se o associado for titular de quota ou fração ideal do patrimônio da associação, a transferência daquela não importará, de per si, na atribuição da qualidade de associado ao adquirente ou ao herdeiro, salvo disposição diversa no estatuto (CC, art. 56 e par. único) . A associação exige recursos para sua manutenção, não necessariamente para a sua constituição, quando ela se propõe objetivos para cuja realização não sejam necessários recursos patrimoniais. O estatuto deve dispor ainda sobre o modo de constituição e funcionamento dos órgãos deliberativos e administrativos. O principal órgão deliberativo é a assembléia geral dos associados, a quem compete tomar as decisões sobre a existência, disciplina e atividade da instituição. Compete privativamente à assembléia geral eleger e destituir os administradores, aprovar as contas e alterar o estatuto. Para a destituição dos administradores e a alteração do estatuto exige-se o voto concorde de 2/3 (dois terços) dos presentes à assembléia especialmente convocada para esse fim, não podendo ela deliberar, em primeira convocação, sem a maioria absoluta dos associados, ou com menos de 1/3 (um terço) nas convocações seguintes (CC, art. 59 e par. único). Todos os associados fazem parte da assembléia que se reúne e delibera de acordo com as normas estatutárias e legais. O estatuto dispõe sobre o modo de convocação da assembléia geral, sendo normalmente competentes os administradores para fazê-lo, garantido também a 1/5 (um quinto) dos associados fazê-lo. Os administradores são os órgãos competentes para gerir e representar a associação. A competência é estabelecida pelo estatuto. A associação extingue-se quando realizados ou impossíveis de realização os seus objetivos, e de acordo com as disposições estatutárias. Dissolvida a associação, o remanescente do seu patrimônio líquido será destinado a entidade de fins não econômicos designada no estatuto. Omisso este, deliberarão os associados deferi-lo a instituição municipal, estadual ou federal de idênticas finalidades. Ine-xistindo tal instituição, o remanescente patrimonial será entregue à Fazendo do Estado, do Distrito Federal ou da União. Antes da destinação desse remanescente, poderão os associados receber em restituição o valor, atualizado, das suas contribuições. 7. Sociedades. As sociedades são pessoas jurídicas de direito privado, formadas por pessoas que reúnem bens ou serviços para o exercício de atividade econômica e partilha de resultados. Seu objetivo é sempre de natureza lucrativa, mas a atividade pode restringirse à realização de um ou mais negócios determinados (CC, art. 981 e par. único). Como as associações, caracterizam-se pelo elemento pessoal, mas diferenciam-se em vários aspectos. Enquanto a sociedade tem fins econômicos, a associação tem fins ideais; por isso, na constituição da sociedade é necessário um patrimônio, enquanto nas associações não o é,37 embora sejam necessárias fontes de recursos para sua manutenção (CC, art. 54, IV). Por outro lado, nas associações, as normas que as regem, de hábito, são cogentes, enquanto nas sociedades, quase sempre, dispositivas; nas sociedades existem direitos e obrigações recíprocos, o que não ocorre nas associações; e somente as associações podem ser reconhecidas de utilidade pública.38 A sociedade é espécie do gênero associação, considerando-se esta em sentido amplo. Em senso estrito são duas espécies, duas figuras típicas do fenômeno associativo. As disposições legais concernentes às associações aplicam-se, subsidiariamente, às sociedades (CC, art. 44, par. único). As sociedades dividem-se em simples e empresárias (CC, art. 982). Simples quando seus fins não se realizam pelo exercício de atividade empresarial (CC, art. 966), por exemplo, as que se constituem para o exercício de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística (CC. art. 966, par. único). Empresariais, quando têm por objeto o exercício da atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços (CC, art. 966). Diferenciam-se as sociedades da simples comunhão de direitos ou de bens pelo fato de aquelas nascerem de um ato complexo e funcionarem conforme estabelecido pelos sócios, enquanto a comunhão (estado de co-propriedade de vários titulares sobre o mesmo bem) se estabelece pela força das circunstâncias ou da lei. E também pela affectio societatis, que é a intenção de formar uma sociedade, inexistente na comunhão. As sociedades empresárias podem ser: a) sociedade em nome coletivo que se caracteriza pelo exercício de atividade econômica sob uma firma ou razão social, e em que todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais (CC, art. 1.039); b) sociedade em comandita simples (CC, art. 1.045), a que, sob firma ou razão social, explora atividade empresarial sob a responsabilidade solidária e ilimitada de um ou mais sócios (os comanditados) e a responsabilidade limitada ao montante das respectivas quotas dos demais sócios (os comanditários); c) sociedade limitada (CC, art. 1.052), aquela em que os sócios respondem solidariamente até o limite do capital social, isto é, em caso de falência, os sócios respondem solidariamente pelo que faltar para a integralização das quotas não liberadas (arts. 22e 92); d) sociedade por ações, anônimas, aquela cujos sócios respondem apenas pelo valor das ações subscritas ou adquiridas. Constitui-se com dois sócios (salvo a exceção do art. 251 da Lei 6.404, de 15.12.76), não pode ter firma, só denominação, o capital é dividido em ações, sendo a responsabilidade dos sócios ou acionistas limitada ao preço das ações subscritas de igual valor nominal. Seu objetivo só pode ser empresa de fim lucrativo, é sempre de natureza mercantil em razão da forma, mesmo que o objetivo seja civil (Lei n- 6.404, de 15.12.76); e) sociedade em comandita por ações, em que existem duas espécies de acionistas, uns, que respondem limitadamente pelo valor das ações subscritas, e outros, que respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais, e que são os que exercem a direção (CC, art. 1.091). Pode ter denominação ou firma, sempre seguida de "Comandita por ações" (Lei 6.404, de 15.12.76). Tipo especial de pessoa jurídica privada são as sociedades cooperativas, definidas em lei como "sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados", distinguindo-se das demais sociedades pelas características que o Código estabelece (art. 1.094) e a Lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, art. 4°. 8. Fundações. Fundação é um complexo de bens que assume a forma de pessoa jurídica para a realização de um fim de interesse público, de modo permanente e estável. Decorre da vontade de uma pessoa, o insti-tuidor, e seus fins, de natureza religiosa, moral, cultural ou assis-tencial, são imutáveis (CC. art. 62, par. único). Sendo produto de uma liberalidade, os credores ou herdeiros necessários do instituidor podem anulá-la, se lesiva aos seus interesses.39 Seu funcionamento é fiscalizado pelo Ministério Público. As fundações podem ser instituídas por particulares ou pelo Estado e, neste caso, não perdem sua natureza privada. As chamadas fundações de direito público são entes de cooperação, amparados e controlados pelo Estado, mas com personalidade de direito privado (Dec.-Lei n2 900, de 20.09.69, art. 32). Pressupõem, portanto: a) a dotação de um patrimônio livre e desembaraçado; b) um ato constitutivo expresso em escritura pública ou testamento, com referência aos objetivos da fundação; c) um estatuto, na forma da vontade do instituidor; e d) uma administração (CC, art. 62). Patrimônio livre e desembaraçado significa que os bens destinados à realização dos fins pretendidos devem estar "isentos de quaisquer ônus reais", não podendo essa destinação prejudicar terceiros, credores ou herdeiros necessários (CC, art. 1.789). Quaisquer bens podem ser objeto da dotação, móveis ou imóveis. Se forem insuficientes, devem ser incorporados em outra fundação, que se proponha a fim igual ou semelhante, se de outro modo não dispuser o testador (CC, art. 63). Constituída a fundação, os bens que compõem e que forem vinculados ao interesse público visado são inalienáveis. Outros bens, destinados apenas a proporcionar os meios de realização desse interesse, podem ser alienados.40 No caso de fundações instituídas pelo poder público, os respectivos bens são do Estado, do patrimônio público, com destinação especial, sujeitos à administração particular da fundação.41 O ato constitutivo é um negócio jurídico inter-vivos (escritura pública) ou mortis-causa (testamento), com a dotação dos bens destinados à realização dos objetivos visados, e com o estatuto, conjunto de regras sobre a denominação, os fins e a sede da fundação, o modo de sua administração e representação, a possibilidade e o modo de reforma do estatuto, e as condições de extinção e destino dos bens. 9. Elementos constitutivos da pessoa jurídica. A formação da pessoa jurídica exige elementos de ordem material, basicamente, uma pluralidade de pessoas, um conjunto de bens e uma finalidade específica, e elementos de ordem formal, que são um estatuto e o seu registro no órgão competente. Para constituir-se a pessoa jurídica são necessárias, em tese, duas ou mais pessoas ligadas por uma intenção comum (affectio societatis], salvo as exceções legais, como a empresa pública e a sociedade subsidiária integral (Lei das S.A., art. 251); um patrimônio próprio que se constitui na garantia do cumprimento de suas obrigações, e um objetivo próprio e específico, que deve ser lícito e possível. Nas sociedades, o objetivo é o lucro pelo exercício de uma atividade civil ou empresarial. As associações em senso estrito não precisam, em princípio, de patrimônio para se constituírem, embora, posteriormente, sejam necessários bens para a sua manutenção, pois não se concebe a vida de relação sem bens que garantam o cumprimento das obrigações. Nas fundações dispensa-se o elemento pessoal, sendo necessário um patrimônio afetado aos fins que se pretende realizar. A conjunção de todos esses elementos, ou melhor, a sua disciplina, encontra-se no estatuto, conjunto de normas sobre a estrutura, a organização e o funcionamento da pessoa jurídica, criadas pela vontade comum de seus membros com força de lei para as suas relações jurídicas (lex societatis}. É também necessária a publicidade legal, que se faz com o registro do ato constitutivo no Registro Civil ou no Registro de Empresas Mercantis e, em certos casos, autorização do governo para a constituição e funcionamento. 10. Constituição e funcionamento. Representação. A técnica da personificação varia conforme a pessoa jurídica seja de direito público ou de direito privado. No primeiro caso, ela resulta da lei ou de ato administrativo. Rege-a o direito público, não o Código Civil. No segundo, exige-se um ato constitutivo e o respectivo registro (CC, arts. 45 e 46). O ato constitutivo é declaração de vontade coletiva, nas associações e sociedades, e individual, nas fundações. Pode ser por instrumento público ou particular, salvo no caso das fundações, que exigem instrumento público ou testamento (CC, art. 62). Dele consta o estatuto, que é o ato pelo qual se disciplina a atividade da pessoa jurídica in fieri, e que contém basicamente o seguinte: a denominação, os fins e a sede da associação, os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados, os seus direitos, deveres e responsabilidade, as fontes de recursos para a manutenção da pessoa jurídica, o modo de constituição e funcionamento dos órgãos deliberativos e administrativos, e as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução. Os membros devem ter os mesmos direitos, mas nada impede a existência de categorias com vantagens especiais. A qualidade de associado é intransmissível sem anuência dos demais (CC, art. 56) na forma disposta no estatuto, salvo nas sociedades empresárias de capital (a sociedade por quotas de responsabilidade limitada e sociedade anônima). Na primeira, as cotas transferem-se livremente, podendo o contrato social restringir tal possibilidade (CC, art. 1.057). Nas fundações, o instituidor destina certos bens livres a um fim religioso, moral ou de assistência, elaborando o estatuto ou designando quem o faça, submetendo-o à apreciação da autoridade competente (CC, arts. 62 e 65) com recurso ao poder judiciário. Se o instituidor não o fizer nem nomear quem o faça, ou se a pessoa designada não elaborar o estatuto no prazo determinado ou, não havendo prazo, em 180 dias, caberá ao órgão do Ministério Público fazê-lo, assim como também no caso de o instituidor não ter elaborado, ou não ter designado quem devia fazer o estatuto (CC, art. 65 e CPC, arts. 1.199 a 1.204). A alteração do estatuto exige a observância de requisitos legais (CC, art. 67). O registro, de que depende a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado (CC, art. 45 e LRP, art. 119), consiste na inscrição do ato constitutivo no Registro Público competente (Lei n° 6.015, de 11.12.73, art. 114 e Lei 8.934, de 18.11.94, art. 32), precedida, quando necessário, da autorização do Governo. O registro declarará: I) a denominação, os fins, a sede, o tempo de sua duração, o fundo social, quando houver; II) o nome e a individualização dos fundadores ou instituidores e dos diretores; III) o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente; IV) se o ato constitutivo é reformável no tocante à administração, e de que modo; V) se os membros respondem ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais; VI) as condições de extinção da pessoa jurídica e o destino de seu patrimônio (CC, art. 46). Em princípio, é amplo o direito de associação (CF, art. 5-, n2 XVII), mas em alguns setores da atividade econômica é necessária prévia autorização governamental, como ocorre na constituição de sociedade de seguros, sociedades bancárias, montepios, caixas econômicas, sociedades de exploração de energia elétrica, de riquezas minerais, de navegação de empresas jornalísticas, rádio e TV (CF, art. 192 I, II, IV; art. 21, XII, b; art. 176, p.l° e art. 223). Quanto à sua representação, as pessoas jurídicas atuam mediante os órgãos previstos no estatuto, normalmente, a diretoria e a assem-bléia-geral ou o conselho deliberativo. Tais órgãos não representam a pessoa jurídica, que não é incapaz, apenas a presentam42 (CPC, art. 12). Mas os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo obrigam a pessoa jurídica ------------------32 Decreto-Lei 200, de 25 de fevereiro de 1967, art 52, I. 33 Henrique de Carvalho Simas. Manual Elementar de Direito Administrativo, p. 268. 34 Lei 9.096, de 19 de setembro de 1995, art. l*. 35 CLT, art. 511; Pontes de Miranda, op. cit., p. 315. 36 Alberto Trabuchi. Istituzioni ai diritto civile, p. 109. 37 Messineo, op. cit, vol. IV, p. 298. 38 Orlando Gomes, op. cit., p. 215. 39 Eduardo Espínola. Sistema do Direito Civil Brasileiro, II, p. 152; Clóvis Beviláqua. Código Civil Comentado, art. 24. 40 Homero Senna, Fundação de Direito Privado, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 39, p. 75. "Os bens que constituem o patrimônio das fundações são inalienáveis; e o são porque as pessoas que os administram não são seus proprietários e ainda porque a fundação é patrimônio personificado pela finalidade a que é destinado", RT, vol. 116, p. 615. O STJ reconhece que as fundações governamentais são pessoas jurídicas de direito público. Cfr. Revista do STJ, n° 47. 41 Hely Lopes Meirelles, op. cit., p. 344. 42 Pontes de Miranda, op. cit., p. 97. ------------------(CC, art. 47). As fundações são fiscalizadas pelo Ministério Público do Estado de onde são situadas ou dos Estados em que atuarem (CC, art. 66, pars. 12 e 2*}. Os direitos e deveres das pessoas jurídicas decorrem dos atos de seus diretores na âmbito dos poderes que lhes são concedidos pelo estatuto. Se a administração for coletiva, as decisões serão tomadas pela maioria dos votos, salvo disposição diversa, sendo de três anos o prazo decadência para anulação das decisões contrárias à lei ou ao estatuto, ou eivadas de erro, dolo, simulação ou fraude (CC, art. 48 e par. único). Nas associações, é da competência privativa da assembléia-geral a eleição e destituição dos administradores, a aprovação das contas e a alteração do estatuto (CC, art. 59). Se a administração da pessoa jurídica vier a faltar o juiz nomear-Ihe-á administrador provisório (CC, art. 49). 11. Modificação e extinção. As pessoas jurídicas nascem, desenvolvem-se, modificam-se e extinguem-se. Nas sociedades empresárias, as modificações compreendem a transformação, a incorporação e a fusão. As sociedades simples não se transformam, devem manter a forma específica.43 Transformação é a operação pela qual a sociedade passa, independentemente de dissolução ou liquidação, de um tipo para outro (Lei das sociedades por ações, art. 220}. A incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações (Lei das sociedades por ações, art. 227}. A fusão é a operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova, que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações (Lei das sociedades por ações, art. 228}. A reforma do estatuto da fundação exige a observância de requisitos legais (CC, art. 67). Quando a alteração não houver sido aprovada por votação unânime, os administradores da fundação, ao submeterem o estatuto ao órgão do Ministério Público, requererão que se dê ciência à minoria vencida para inpugná-la, se quiser, em 10 dias (CC, art. 68). Todas as alterações do ato constitutivo deverão observar os requisitos legais e serem averbadas no registro respectivo (CC, art. 45, parág. único). A extinção da pessoa jurídica decorre da vontade dos associados ou das causas previstas em lei ou no estatuto. O processo de extinção realiza-se dissolução e pela liquidação (CPC, de 1939, art. 655, conforme CPC, de 1973, art. 1.218, VII). No caso de extinguir-se associação de fins não-econômicos, seus bens serão destinados na forma estatutária, ou na forma que os sócios determinarem, ou, sendo omisso o estatuto, serão entregues a estabelecimento municipal, estadual ou federal de fins idênticos ou semelhantes, ou ainda, inexistindo tal estabelecimento, à propriedade do Estado, do Distrito Federal, ou da União (CC, art. 61, par. 2°). Inexplicável a exclusão do Município. A dissolução da pessoa jurídica será averbada no registro onde estiver inscrita. Encerrada a liquidação, cancela-se essa inscrição. As fundações extinguem-se sempre que, tornando-se ilícita, inútil, a sua finalidade, ou vencido o prazo de sua existência, o Ministério Público ou qualquer interessado lhes promova a extinção. Seu patrimônio será incorporado a outra fundação, que tenha o mesmo fim, ou semelhante, salvo disposição contrária do ato constitutivo (CC, art. 69). A dissolução extingue a pessoa jurídica. A entidade, que se personificara, perde a capacidade de direito. A liquidação refere-se ao patrimônio, significando o pagamento das dívidas e a partilha dos bens. Quanto aos membros, os efeitos manifestam-se principalmente no destino do patrimônio, o qual já deve ser previsto no registro do ato constitutivo. Não o sendo, a divisão e a partilha dos bens sociais serão feitas de acordo com os princípios que regem a partilha dos bens da herança (CPC, art. 1.218, VII). A pessoa jurídica subsiste, para os fins da liquidação, até que esta se conclua. Averba-se a dissolução no regitro onde a pessoa jurídica estiver inscrita e, encerrada a liquidação, promove-se o cancelamento da respectiva inscrição (CC, art. 51) 12. Associações e sociedades não personificadas. Associação e sociedade não-personificadas são entidades que não obtêm personalidade civil. O processo de personificação não se completou. Houve a constituição legal, o patrimônio, mas inexiste o registro. Denominam-se vulgarmente de sociedades de fato ou irregulares, para distingui-las das que observaram os requisitos legais de constituição. Constituem "situações fáticas",44 cuja existência e participação no relacionamento jurídico não podem ser desconhecidas pelo direito. Embora não lhes seja unânime a atribuição de personalidade jurídica, as sociedades de fato, ou irregulares, podem participar ativa e passivamente da relação jurídica. Os sócios nas relações entre si, ou com terceiros, por escrito, não podem provar a existência da sociedade mas terceiros podem prová-la de qualquer modo. Os bens e dívidas sociais respondem pelos atos de gestão, salvo pacto expresso limitativo de poderes, somente eficaz contra terceiros que o conheçam ou devam conhecer. A responsabilidade dos sócios é solidária e ilimitada, podendo os bens desses serem executados antes dos da sociedade (CC, arts. 986 a 990). O Código de Processo Civil reconhece-lhes capacidade de ser parte ativa ou passiva (art. 12, VII). E podem ter nome. As sociedades de fato, sem personalidade jurídica, podem ser sujeitos de direitos e deveres, com capacidade judicial. Ora, capacidade de direito pressupõe personalidade, logo, as sociedades de fato têm-na negado pelo ordenamento jurídico, mas, de fato, é-lhes permitido agir como se tivessem personalidade jurídica. É mais uma ficção do direito. 13. Atributos da pessoa jurídica. Assim como a pessoa natural, a jurídica tem, como atributos, capacidade, nome, domicílio, estado e patrimônio. A capacidade é de direito e de fato (no nosso direito não domina o princípio ultra vires segundo o qual a pessoa jurídica não pode agir além dos fins estabelecidos). Não pode, todavia, participar de atos que se relacionam com o estado pessoal do sujeito, como os de família. O nome das sociedades comerciais tem regras próprias. O domicílio será o local onde funcionar a diretoria, ou onde esta o fixar (CC, art. 75, IV), podendo ser múltiplo, no caso de existirem sucursais (CC, art. 75, § 1a). Nas pessoas jurídicas de direito público, o domicílio é necessário; nas de direito privado, é voluntário. O estado é considerado sob o ponto de vista da nacionalidade, que é fixada na forma da legislação específica de cada Estado. No direito comercial brasileiro, são nacionais as sociedades por ações organizadas conforme a lei brasileira e que têm no país a sede de sua administração (CF, art. 171, I, e Decreto-Lei 2.627 de 1940, art. 60 ainda em vigor por força do disposto no art. 300 da Lei 6.404, de 1976). Quanto ao patrimônio ele próprio é independente do dos membros da pessoa jurídica como já assinalado. 14. A personalidade jurídica como instrumento de atividade abusiva ou ilícita. A teoria da desconsideração. Um dos efeitos da personificação é a total independência patrimonial e individual da nova entidade, relativamente aos membros que a constituem. Essa independência revela-se no patrimônio, nas relações jurídicas e na responsabilidade civil, sabido que o novo ente não responde pelos atos de seus membros, nem estes por atos daquele, salvo expressa disposição legal ou contratual. Essa independência pode levar a práticas abusivas ou ilícitas, à medida que os membros da pessoa jurídica possam aproveitar-se do hermetismo,45 do isolamento de vida interna da entidade para prejudicar terceiros com ela relacionados, com o exercício irregular de seu direito de associado. Tal problemática, um dos motivos, aliás, por que se fala em crise da pessoa jurídica,46 tem sido enfrentada, nas últimas décadas, pela jurisprudência norte-americana e pela doutrina italiana e alemã, com a teoria da "disregard of legal entity", "desconsideração da personalidade jurídica" ou uma "desestimação da personalidade jurídica" ou como "lifting the corporate veil", "levantamento do véu da personalidade jurídica", significando que, às vezes, é preciso "superar a forma externa da pessoa jurídica para, penetrando através dela, alcançar as pessoas e bens que debaixo do seu véu se ocultam. O que se defende, com efeito, é que o juiz, perante um caso concreto, onde as circunstâncias indiquem a prática de atos fraudulentos, de descumprimento de obrigações, de atos ilícitos, enfim, por sócios que se utilizam da pessoa jurídica para atingir fins ilícitos aproveitando a vantagem do privilégio da limitação da responsabilidade, deve desconsiderar a personalidade jurídica, declarando-a ineficaz para determinados efeitos, embora permaneça íntegra para os seus legítimos objetivos.47 Dois pontos, no entanto, devem ser levantados. O primeiro é que esse "levantamento do véu" da personalidade jurídica pode levar à insegurança nas relações com pessoas jurídicas. O segundo é que, à diferença do direito anglo-saxônico, onde a jurisprudência é a principal fonte normativa, existe no direito brasileiro um sistema legal positivo que não se pode desconsiderar, o que não impede a existência, não obstante, de diversas normas que permitem concluir pela^admissibilidade, no nosso direito, de tal doutrina. É o que depreende, por exemplo, do art. 10 da Lei da Sociedade por Quotas de Responsabilidade Limitada,48 ou do art. 2, par. 2-, da Consolidação das Leis do Trabalho, ou ainda, o art. 34 da Lei sobre as Instituições Financeiras,49 a Súmula n- 486 do Supremo Tribunal Federal, o art. 50 da Lei de Falências.50 A esse respeito, dispõe o Código Civil que, em caso de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica (CC. art. 50). A Lei de Proteção ao Consumidor é também expressa, nessa matéria, ao dispor que "o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação do estatuto ou do contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração" (art. 28). Aplicada a teoria da desconsideração desaparece a autonomia patrimonial da pessoa jurídica relativamente a seus membros. 15. As Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público Um novo campo de atuação das pessoa jurídicas de direito privado é o chamado Terceiro Setor que, ao lado do Estado e do Mercado (empresas e consumidores), constitui o setor produtivo público não estatal, voltado para o interesse público, sem fins lucrativos e regido pelo direito privado. Com a crise do Estado Social e a insubsistência do seu modelo político-jurídico, tornaram-se inadequadas as clássicas dicotomias público/privado, Estado/Sociedade civil, vindo a reconhecer-se que o Estado é público mas o público não é necessariamente estatal. Surge um novo tipo de interesse, o de público não estatal (ao lado do público-estatal e do privado) próprio da sociedade civil que, organizada, vai ai desempenhar funções que seriam do Estado, portanto, públicas, mas que aquele, por insuficiência, não pode executar. Desempenham essas funções determinadas organizações não governamentais (ONGs), entidades não estatais, não lucrativas e orientadas para a gestão e provisão de serviços sociais. A lei 9.790, de 23 de março de 1999 designa-as de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, podendo assim qualificar-se as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham por objetivo a prestação de serviços sociais e a produção de bens públicos (educação, saúde, habitação etc.) (art. 3°). Excluem-se, portanto, as sociedades comerciais e demais entidades que a lei enumera (art. 2°). --------------------43 Antônio Chaves. Lições de Direito Civil, Parte Geral, IV, p. 333. 44 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito civil, I, p. 206. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, I, p. 333. 45 Federico de Castro, op. cit, p. 337; Roncero, op. cit., p. 64. Hermetismo ou impenetrabilidade, segundo De los Mozos, in Adiciones ao Tratado de Castan Tobenas. 46 Federico de Castro, op. cit., p. 236; Roncero, p. 63 e segs.; Diez Picazo, op. cit., ps. 338/339; Castan Tobenas, op. cit., Adiciones de José Luis de los Mozos, p. 873; José Lamartine Corrêa de Oliveira. A Dupla Crise da Pessoa Jurídica. 47 Rubens Requião. Abuso de Direito e Fraude através da Personalidade Jurídica, RT 410/13. A chamada crise da pessoa jurídica não é, na verdade, crise do conceito ou da categoria em si mesmo mas de sua deformação, manifestada nos abusos com que se utiliza o aspecto puramente formal, em hipóteses diversas, tais como a nacionalidade das pessoas jurídicas, a fraude fiscal, a sociedade de um sócio só, os cartéis, as sociedades filiadas, a limitação de concorrência, a extensão da falência etc. (De los Mozos, op. cit., p. 878). A utilização abusiva da figura da pessoa jurídica fez com que a jurisprudência superasse ou desconsiderasse o conceito formal da pessoa jurídica, em favor de uma concepção mais realista, segundo a qual em determinados casos "ao sujeito dominante de uma sociedade de capital devem ser imputadas as obrigações assumidas pela sociedade dominada", superando-se os excessos dogmáticos da doutrina formalista que via na pessoa jurídica uma titularidade subjetiva completamente diversa da de seus membros, com a independência de seus patrimônios e de suas responsabilidades. Foi o sistema de Common Law que, sem o dogmatismo e a sistematização próprios do direito europeu continental, pôde exercer maior controle sobre a pessoa jurídica, na sua atividade jurídica e na realização dos seus fins, chegando à doutrina da disregard of legal entity, do direito americano, ou a do Durchgriff durch die Rechtspersõnlichkeit do direito alemão, segundo os quais "os tribunais podem prescindir ou superar a forma externa da pessoa jurídica, para, penetrando através dela, alcançar as pessoas e os bens que se protegem sob a sua capa, Rolf Serick. Rechform und Realitát juristiche Personen (Aparência y realidad en Ias sociedades mercantiles. El abuso de derecho por médio de Ia persona jurídica), tradução de José Puig Brutau, Barcelona, Ariel, 1958, p 82 e segs. Pierro Verrucoli. // Superamento delia Personalitá Giuridica delle Societá di Capital nella Common Law e nella Civil Law, Milano Giuffre, 1964, p. 75 e segs). Tais doutrinas não põem em dúvida a independência da pessoa jurídica em relação a seus membros, mas sustentam que "embora a pessoa jurídica seja, de regra, um sujeito nitidamente diverso dos seus membros, sua subjetividade deve, porém, em certos casos e sob certas condições, ser colocada de lado" (Serick, op. cit., p. 220). A justificativa destas doutrinas é a necessidade de frustrar o abuso, da parte dos membros da pessoa jurídica, dos benefícios que conseguem quando ao grupo se reconhece a personalidade jurídica. "O instrumento de repressão adotado consiste em romper ou levantar o véu da personalidade jurídica (to lift the corporated veil} e agarrar os indivíduos que atrás desse véu se escondem", Galgano, op. cit., p. 39. Devido, assim, a uma concepção mais realista do direito, dá-se à pessoa jurídica um novo sentido na sua utilização instrumental, que deve processar-se dentro de certos limites, impedindo-se o abuso de direito, a fraude, o negócio simulado, o ato ilícito, como, por exemplo, o da entrega fraudulenta ou ilegal de bens na sociedade, em prejuízo de terceiro (Harry Henn. Handbook of the Law of Corpo-rations, 2- ed., West Publinshing C. St. Paul, Min. 1970. p. 251). Hipóteses mais freqüentes de aplicabilidade da teoria da desconsideração são os de ingresso fraudulento na sociedade de bens ou direitos pertencentes a terceiros, realizado por sócio; a mistura de bens ou de contas entre acionista controlador e participantes da sociedade e a própria sociedade; negócios pessoais feitos pelo administrador como se fosse pela sociedade, confusão de patrimônios de sócio e da sociedade; o desvio de finalidade do objeto social com fins ilícitos ou fraudulentos etc. Hipótese de confusão de patrimônios é, por exemplo, a da Apelação Cível n2 35.623, da 2a CC do TJERJ, sendo Relator o Eminente Desembargador Penalva Santos, que assim decidiu: "Execução fiscal. Embargos de Terceiros. Descabimen-to dos embargos apresentados por sociedade sediada na mesma sala e da qual faz parte o mesmo quotista majoritário equiparado para os fins do presente ao controlador se, depois de se haver conformado com a sentença de julgamento da execução fiscal e da própria penhora, ter pedido o parcelamento do débito. Caracterização da hipótese de confusão de patrimônio das duas sociedades, da executada e da embargante com o do controlador. Configuração da regra "desconsideração da personalidade jurídica" em decorrência de fraude concertada em detrimento do fisco. Provimento do apelo para a improcedência dos embargos, feito o reexame necessário." A configuração de tais problemas, fraude contra credores, abuso de direito, o ato ilícito do sócio deve levar o juiz a "desconsiderar episodicamente a personalidade jurídica", anulando o negócio jurídico fraudulento, considerado o sócio responsável como solidariamente obrigado ou excluindo-o da sociedade ou, ainda, conforme as circunstâncias, decretar a dissolução dessa (Projeto de Código Civil, art. 50 e seu parágrafo). Cf. ainda Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro, \- volume, pp. 129 e 130. 48 Decreto 3.708, de 10 de janeiro de 1919. 49 Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964. 50 Decreto-Lei 7.661, de 21 de junho de 1945. --------------------CAPITULO IX Objeto da Relação Jurídica. Os Bens Sumário: 1. Objeto da relação jurídica. 2. Coisa e bem. 3. Conteúdo da relação jurídica. 4. Classificação dos bens. 5. Bens corpóreos e incorpóreos. 6. A informação como bem jurídico. 7. Bens móveis e imóveis. Origem histórica da distinção. 8 Importância da distinção. 9. Bens imóveis: a) imóveis por natureza; b) imóveis por acessão física; c) imóveis por acessão intelectual; d) imóveis por destinação legal. 10. Bens móveis. Conceito e determinação legal. 11. Bens genéricos e individuais. 12. Bens fungíveis e infungíveis. 13. Bens consumíveis e inconsumíveis. 14. Bens divisíveis e indivisíveis. 15. Bens singulares e coletivos. 16. Bens principais e bens acessórios. 17. Espécies de bens acessórios. 18. Bens públicos e bens privados. 19. Bens comerciáveis e bens incomerciáveis. 20. O patrimônio. Conceito. Composição. Importância. Concepções teóricas. 1. Objeto da relação jurídica. Objeto, do latim objectum, é aquilo que se coloca adiante, fora do sujeito. Diz-se direto ou imediato quando o poder da pessoa sobre ele se exerce sem intermediário, e indireto ou mediato, quando por meio de outrem. Sob o ponto de vista comum, objeto são as coisas que têm existência material. E sob o ponto de vista estritamente técnico-jurídico, objeto da relação jurídica ou do direito subjetivo, são as ações, o comportamento humano. A idéia clássica de objeto dos direitos identifica-o com as coisas materiais, segundo a concepção materialista dos juristas romanos que contrapunham o direito das pessoas ao direito das coisas. A concepção mais moderna considera como objeto da relação jurídica o comportamento, a atividade, a ação ou omissão dos sujeitos. Neste caso, objeto imediato da relação jurídica seria o comportamento do sujeito passivo, consistente em uma ação ou uma omissão, e objeto mediato, as coisas sobre que incide tal comportamento. A maioria dos juristas prefere, todavia, reservar o conceito clássico de objeto para os direitos reais e o conceito moderno para o direito das obrigações. Desse modo, objeto dos direitos reais seriam as coisas sobre que se exercem, de modo direto e imediato, os poderes contidos na relação, e objeto das obrigações seriam as ações ou omissões do sujeito devedor. Em senso amplo, esse objeto pode, portanto, consistir em coisas (nas relações reais), em ações humanas (nas relações obrigacionais), e também na própria pessoa (nos direitos da personalidade e nos de família, em institutos como no pátrio poder, na tutela e na curatela), e até em direitos (como no penhor de créditos, no usufruto de direitos). Nos direitos potestativos, o objeto é sempre um comportamento do sujeito ativo, destinado a produzir efeitos na esfera jurídica de outrem. A maioria dos juristas não aceita, porém, que a pessoa seja objeto de direito porque, sendo um valor-fim, não pode ficar submetida ao poder jurídico de outrem nem mesmo nas relações de família, em que os poderes são poderes-deveres ou poderes-fun-ção, devendo ser exercidos em benefício daqueles a quem se dirigem. O corpo humano é um bem jurídico, é objeto dos direitos da personalidade e, como tal, protegido. Em senso estrito, o objeto compreende as coisas e as ações humanas (prestações). E, em acepção mais estrita ainda, é sinônimo de coisa, objeto dos direitos reais. A doutrina moderna acrescenta ainda, como objeto de direito, as manifestações do espírito humano. Objeto da relação jurídica é, assim, tudo o que se pode submeter ao poder dos sujeitos de direito, como instrumento de realização de suas finalidades jurídicas. Na teoria dos bens enquadram-se hoje novas figuras. A revolução científica e tecnológica e as mudanças sociais levaram à criação de outras espécies, ou deram relevo às já existentes. O meio ambiente, os bens de valor artístico, cultural e histórico, o programa dos computadores, a personalidade humana nos seus diversos aspectos, Objeto da Relação Jurídica. Os Bens 309 o know-how, o software, enfim, a informação, passaram a ter renovada importância e reconhecida proteção jurídica, inclusive de natureza constitucional (CF. art. 5° e pars.), cabendo aqui, naturalmente, estudar apenas os de natureza civil. 2. Coisa e bem. Coisa é tudo aquilo que tem existência material e que é suscetível de medida de valor.1 É coisa de tudo o que existe no universo e que, sendo útil para a satisfação das necessidades humanas, se torna valioso e, por isso mesmo, objeto de apropriação. Há coisas úteis mas não apropriáveis, como as coisas comuns (rés communes) a luz, o ar, o mar, o sol, as estrelas. Não são de ninguém e são de todos. E há coisas que embora suscetíveis de apropriação, como os animais de caça, os peixes, coisas abandonadas (rés derelictae), não pertencem a ninguém (rés nullius). Os animais são coisas, porém objeto de proteção jurídica especial, por si mesmo e como salvaguarda dos sentimentos das pessoas. A utilidade e a possibilidade de apropriação dão valor às coisas, transformando-as em bens. O conceito de bens pressupõe, assim, uma valoração e uma qualificação. Bem é tudo aquilo que tem valor e que, por isso, entra no mundo jurídico, como objeto de direito . A noção de coisa liga-se primariamente à de substância. Consiste em algo fisicamente delimitado, existente no mundo da natureza, e que interessa ao direito, não em si mesma mas com objeto do poder dos sujeitos. Coisa é gênero, bem é espécie, embora haja divergência doutrinária quanto a esta distinção.2 O conceito de bem é histórico e relativo. Histórico, porque a idéia de utilidade tem variado de acordo com as diversas épocas da cultura humana, e relativo porque tal variação se verifica em face das necessidades diversas por que o homem tem passado. Nos primórdios, as necessidades eram puramente vitais, respeitantes à defesa e à sobrevivência do indivíduo e do grupo. As coisas úteis e apropriáveis diziam respeito à vida orgânica e material dos indivíduos. Com a evolução da espécie humana e o desenvolvimento da vida espiritual, expresso na arte, na ciência, na religião, na cultura, enfim, surgiram novas exigências e novas utilidades, passando a noção de bem a ter sentido diverso do que tinha primitivamente. Parte da doutrina, à semelhança do Código Civil alemão,3 restringe coisa para designar os bens de existência corpórea, tangível. Para Teixeira de Freitas, coisa era "todo objeto material suscetível de medida de valor ". O Código Civil brasileiro não faz tal limitação, usando bem para designar valores materiais e imateriais e intitulando o Livro II, da Parte Geral, Dos bens, abrangendo coisas e direitos. Para Clóvis Beviláqua, "bens são valores materiais ou imateriais que servem de objeto a uma relação jurídica."4 É definição correta, abrangendo as coisas de existência material, as de existência imaterial, como as diversas formas de energia, e as ações ou comportamento humano, e também os direitos, quando objeto de outros direitos. As ações humanas são objeto dos direitos de crédito, obrigacio-nais, e denominam-se prestações. Devem ser lícitas, possíveis e determináveis. Consistem em um comportamento do devedor (dar, fazer ou não fazer). Direitos podem ser objeto de outros direitos, como o penhor de créditos (CC. art. 1.451), o exercício de usufruto (CC. art. 1.393), a hipoteca de domínio útil ou direto (CC. art. 1.473, III), usufruto de crédito (art. 1.390), cessão de crédito (art. 286) etc. Podem considerar-se também objeto de direitos ou de relações jurídicas os atributos ou manifestações de personalidade do próprio sujeito (direitos da personalidade), atividades ou serviços de natureza intelectual, técnica ou manual (propriedade intelectual ou industrial), realidades materiais (coisas) e imateriais (energia, créditos),5 e ainda informações técnicas, econômicas e científicas, relevantes para os respectivos titulares. O conjunto de bens economicamente apreciáveis forma o patrimônio da pessoa. 3. Conteúdo da relação jurídica. Do objeto da relação jurídica distingue-se o seu conteúdo, que é o conjunto de poderes e deveres de que dispõem os respectivos titulares. Esse conteúdo consiste, assim, no conjunto de poderes ou faculdades que os direitos subjetivos comportam. Objeto do direito de propriedade é a coisa apropriada. Conteúdo do direito de propriedade são os poderes ou faculdades conferidas pelo ordenamento jurídico ao proprietário. Tal distinção tem a sua importância. O objeto pode ser o mesmo em várias relações, mas o conteúdo será diverso. Por exemplo, o mesmo imóvel pode ser objeto de propriedade, de usufruto e de uma relação obrigacional decorrente de uma compra e venda. As três relações jurídicas diferem, porém, no seu conteúdo, nos poderes de que dispõem seus titulares, conforme sejam proprietários, usufrutuários ou compradores. 4. Classificação dos bens. Classificar é distribuir em grupos segundo determinados critérios, do que decorre um determinado regime jurídico para cada grupo. Cada espécie de bens tem a sua própria disciplina legal, aplicável às questões jurídicas que os envolvem. Por exemplo, a venda de uma casa, que exigências legais comporta? A resposta a tal pergunta decorre da qualificação desse bem, de sua inserção em determinado grupo e da conseqüente sujeição ao respectivo direito. A finalidade de qualquer classificação é separar em grupos e espécies a que se aplicam as mesmas regras jurídicas, admitida a possibilidade de cada espécie ter sua própria disciplina legal. Os bens não se disciplinam juridicamente por unidades, mas em conjuntos, conforme suas características, formando-se, assim, diversas categorias jurídicas a que correspodem diversos regimes. A finalidade da constituição de diversas categorias jurídicas é, assim, submeter cada conjunto de bens ao regime jurídico que lhe é apropriado.6 Os bens classificam-se quanto à sua natureza, à relação com outros bens, à pessoa do respectivo titular e à possibilidade de comercialização. Quanto à natureza, os bens podem ser corpóreos e incorpóreos, móveis e imóveis, fungíveis e infungíveis, consumíveis e inconsumí-veis, divisíveis e indivisíveis, singulares e coletivos. Quanto à relação entre si, principais e acessórios. Quanto à pessoa dos titulares, públicos e privados . Quanto à comerciabilidade, comerciáveis e incomerciáveis. 5. Bens corpóreos e incorpóreos. Bens corpóreos são os que têm existência concreta, perceptível pelos sentidos (rés quae tangi possunt). São os objetos materiais, inclusive as diversas formas de energia, como a eletricidade, o gás, o vapor. Bens incorpóreos são os que têm existência abstrata, intelectual, como os direitos, as obras do espírito, os valores, como a honra, a liberdade, o nome. São criações da mente, construções jurídicas, direitos. Sua existência é apenas intelectual e jurídica. Os bens incorpóreos são criação recente do direito ocidental, conseqüência do desenvolvimento econômico da modernidade, e por vezes com mais valor que os corpóreos. São exemplos de bens incorpóreos o fundo de comércio, a clientela, as marcas de indústria e comércio, o nome comercial, as insígnias, os direitos de autor, a propriedade industrial, os privilégios de invenção, os desenhos e modelos industriais, o software, know-how e, como divulgação de conhecimentos, de modo geral, a informação. Software é termo designativo dos programas de computador (v. Lei 9.609, de 19 de fevereiro de 1998, art. 1°). Know-how (do inglês to know how to do it) é conhecimento técnico de valor econômico, referente à indústria ou ao comércio (c. Lei 9.279, de 14 de maio de 1996). É por meio dos direitos que os bens corpóreos entram na vida jurídica. Nos direitos reais, o respectivo titular exerce-os diretamente sobre a coisa, sem intermediário de outra pessoa, como se verifica na posse, na propriedade etc. Nos direitos obrigacionais, ou de crédito, o direito se exerce sobre o bem por intermédio de uma pessoa, o devedor. É por isso que o direito alemão suprimiu a espécie de bens incorpóreos, substituindo-a pela dos direitos sobre direitos.7 Por exemplo, no direito de propriedade, o direito do proprietário exerce-se diretamente sobre a casa, o apartamento, o automóvel. Já no direito de crédito, derivado de um contrato de locação, o exercício dos direitos do locatário sobre a coisa alugada depende de o locador cumprir sua obrigação, que é a de entregar a coisa. O direito real é ius in ré (direito sobre a coisa), enquanto no pessoal é ius ad rem (direito a uma coisa). A importância da distinção dos bens corpóreos e incorpóreos reside no fato de que alguns institutos só se aplicam aos primeiros. Regra geral, os direitos reais têm por objetivo bens corpóreos. E quanto à forma de transferência, os corpóreos são objeto de compra e venda, doação, troca, enquanto os incorpóreos direitos apenas de cessão. Vendem-se ou prometem-se vender imóveis, cedem-se ou prometem-se ceder direitos, isto é, na cessão faz-se abstração dos bens sobre os quais incidem os direitos que se transferem. 6. A informação como bem jurídico. Na teoria dos bens enquadram-se hoje novas figuras. A revolução científica e tecnológica e as mudanças sociais levaram à criação de outras espécies,ou deram maior relevo às já existentes. O meio ambiente, os bens de valor artístico, cultural e histórico, a personalidade humana nos seus diversos aspectos, os programas dos computadores, o know-how, o software, enfim, a informação, todas essas realidades passaram a ter renovada importância e reconhecida proteção jurídica, inclusive de natureza constitucional (CF, art. 5°). Por seu especial interesse, destaca-se aqui a informação como bem jurídico. --------------1 Teixeira de Freitas. Código Civil, Esboço, art. 317. 2 Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, vol. 2, p. 22. Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 174. 3 O Código Civil alemão (BGB) reserva o termo "coisa" para os objetivos materiais de natureza exterior, dispondo no seu § 90: "Coisas, no sentido da lei, são somente os objetivos corpóreos." O Código Civil italiano, no art. 180 define: "Bens são as coisas que podem ser objeto de direito." O Código Civil português, no art. 202-, afirma: "Dizse coisa tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas", estabelece uma equivalência entre coisa e objeto de direito, o que não é inteiramente correto, pois as coisas, embora sendo a espécie mais corrente de objeto dos direitos, não esgotam a extensão desse conceito. Cf. Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria Geral do Direito Civil, p. 218. 4 Beviláqua. Código Civil Comentado, art. 43. 5 Garcia Amigo. Instituciones de Derecho Civil, p. 592. 6 Christian Atias. Droit civil. Lês biens, pp. 16 e 17. Fréderic Zénai. Lês biens, p. 23. Gerard Cornu. Droit civil. Introduction, p. 294. 7 Castan Tobenas. Derecho Civil Espanol, Comun y Foral, tomo primeiro, H, p. 527. --------------A noção de informação é poliédrica, dadas as suas múltiplas facetas. Pode ser considerada e estudada corno atividade, e então surge como objeto do processo de difusão ao público de notícias e comentários por meio dos instrumentos de comunicação de massa. A par da informação como atividade, tem-se a informação como dever, tipificado em vários ramos do direito, como o civil, o penal, o administrativo, o do consumidor, sendo hoje de maior referência o dever de informar estabelecido no art. 6°, III, do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990), e ainda a informação no que diz respeito à circulação, à apropriação (v.g. os direitos de autor), ao acesso. Neste particular aspecto ressalta-se a importância crescente dos bancos de dados, de variada natureza. Em face das muitas facetas a considerar, a informação pode definir-se como sendo um dado representativo da realidade suscetível de ser comunicado9', ou ainda qualquer mensagem comunicável a outrem por qualquer meio5. Sua importância está no fato de que a atividade de informação por meios eletrônicos constitui-se hoje em setor de grande importância econômica. Ao lado dos três setores tradicionais da economia, a agricultura, a indústria e os serviços, reconhece-se hoje a existência de um quarto setor, que é o da informação. A esse pertencem as técnicas de produção da informação de massa, como os jornais, o cinema, o rádio, a televisão e, por fim, a informática10. A informação deixa de ser apenas um bem econômico para ser também um bem jurídico e, como tal, objeto das relações de direito. 7. Bens móveis e imóveis. Origem histórica da distinção. A distinção dos bens em móveis e imóveis baseia-se, fundamentalmente, na importância social de que se revestem, justificando um especial regime jurídico para as formas e garantias de sua alienação, da constituição dos direitos reais,11 da defesa judicial e proteção dos credores dos respesctivos titulares. São móveis e imóveis os que a lei estabelece de modo cogente, sendo inadmitida a modificação de seu regime jurídico pelo exercício da vontade particular. Essa distinção tem origem histórica. A noção de imóvel sempre se identificou com a terra, e é sobre ela que se baseou a ordem econômica e social até hoje. A existência, porém, de outros bens tornou necessária uma diferenciação que justificasse a diversidade de regimes jurídicos a adotar. Em Roma a principal divisão era entre os bens úteis para a agricultura (rés mancipi], compreendendo as terras, os escravos, os animais, as servidões de passagem e de aqueduto, que eram os mais importantes, e todo os demais (rés nec mancipi). O direito cuidava preferentemente dos primeiros, o que se compreende em face do sistema econômico vigente, que era o da economia agrária. A alienação das rés mancipi era complexa (mancipatió), constituindo-se em verdadeiro cerimonial, enquanto a das rés nec mancipi era muito mais simples (traditio). Essa diferenciação passou a corresponder à existente entre imóveis e móveis, não só pelo critério físico da mobilidade, como pela respectiva importância social. Foi, todavia, consagrada apenas nos últimos períodos do direito romano, encontrando-se a primeira referência legislativa na Constituição de Justi-niano, na lei "De usucapione transformanda", na qual pela primeira vez se usa a palavra imóvel em sentido oposto a móvel.u A distinção entre bens móveis e imóveis é, assim, típica da tradição romanista e latina, embora sujeitos, de modo geral, ao mesmo regime jurídico. No mundo germânico o regime era diverso, havendo um direito especificamente imobiliário, completamente distinto do das coisas móveis, sendo que, inicialmente, só estas eram objeto de propriedade individual. Durante a Idade Média consagra-se tal distinção, tendo-se tornado, com a glosa e o ancien droit, a summa divisio das coisas. O direito feudal consagrava a terra como fator de produção de uma economia essencialmente agrícola, donde a permanência do bem imóvel como base do sistema econômico e, conseqüentemente, do sistema jurídico, constituindo-se a terra no elemento político básico do ordenamento jurídico, e da forma de exploração econômica então vigente. Em contrapartida, os bens móveis não tinham maior valor, como se vê nos brocardos da época rés mobilis rés vilis e vilis mobiliwn possessio permanecendo os imóveis até à Revolução Industrial como única fonte importante de riqueza, como elemento econômico prepoderante e único elemento de garantia para obtenção de crédito. A diferença da importância social dos bens móveis e imóveis justifica, assim, a diversidade dos seus regimes jurídicos, fazendo com que todas as coisas e todos os direitos se incluíssem em uma ou em outra categoria, como se observa no Código Civil francês, onde se diz que todas as coisas se consideram bens móveis ou imóveis (art. 516). Com a Revolução Industrial, a agricultura passa a nível secundário e, com o conseqüente processo de urbanização, os bens móveis e a prestação de serviços crescem de importância, chegando a existir bens móveis mais valiosos que os imóveis. São os títulos de crédito, os valores mobiliários, os metais preciosos, novos instrumentos de riqueza a exigir nova regulamentação jurídica da propriedade mobiliária, superando em importância econômica os imóveis e a tradicional divisão, própria de exigências econômicas ultrapassadas. Em suma, a classificação dos bens em móveis e imóveis é historicamente a grande divisão no direito dos bens, sendo os imóveis mais importantes por traduzirem a idéia de maior valor, estabilidade e importância política que os móveis, mero conceito residual, compreendendo os bens fora do regime dos imóveis. Esse critério está sendo revisto hoje em dia, tendendo-se a substituir a idéia de importância pela de interesse social, público, coletivo, que sugere uma especial disciplina para cada coisa ou categoria de coisas, independentemente da distinção entre móveis e imóveis.13 8. Importância da distinção. A importância da distinção dos bens em móveis e imóveis manifesta-se na diversidade de regras jurídicas, de direito privado e de direito público, que se aplicam em diversas hipóteses tipificadas em lei, como se exemplifica: a) somente imóveis podem ser objeto de bem de família (art. 1-711); b) só entre imóveis se podem estabelecer relações de vizinhança e limitações ao poder de construir; c) o instrumento público é da substância do ato constitutivo ou translativo de direitos reais sobre imóveis de determinado valor (CC, art. 108) salvo o decorrente de contrato do Sistema Financeiro de Habitação (Lei 4.380, de 21.08.64, art. 61, § 5°); d) os móveis podem ser livremente alienados pelo cônjuge que estiver na administração do casal. Os imóveis somente com autorização do outro cônjuge, exceto no regime de separação absoluta (CC, art. 1.647), salvo o caso do art. 1.651, III, com autorização do juiz; e) os móveis adquirem-se por usucapião no prazo de três ou cinco anos, enquanto os imóveis necessitam 5, 10 ou 15 anos (CC, arts. 1.242, par. único, 1.238, par. único, 1.260 e 1.261); f) adquirem-se os imóveis por transcrição do título de transferência no Registro de Imóveis, e os móveis, por tradição (CC, arts. 1.245 e 1.267); g) os pais não podem alienar nem gravar de ônus reais os imóveis dos filhos sob pátrio poder, sem autorização do juiz (CC, art. 1.691); na tutela, além dessa autorização, é preciso hasta pública (CC, arts. 1.748, IV, e 1.750); no entanto, a disposição dos bens móveis pelos pais é livre, desde que no interesse dos menores; h) os imóveis do ausente só se poderão alienar ou hipotecar quando o ordene o juiz para lhes evitar a ruína (CC, art. 31); i) a posse de imóveis faz presumir a dos móveis nele instalados (CC, art. 1.209); j) os móveis são objetos de penhor, os imóveis, de hipoteca (CC, arts. 1.431 e 1.473, I), com exceção dos navios e aeronaves que, sendo móveis, são objetos de hipoteca; 1) só os móveis podem ser objeto de contrato de mútuo (CC, art. 586); m) no direito tributário, os imóveis são objeto de imposto territorial, predial e de transmissão inter vivos ou mortis causa; os móveis, de imposto de circulação de mercadorias, de produtos industrializados, e de transmissão mortis causa; n) no direito penal, somente os móveis podem ser objetos de roubo ou de furto (CP, arts. 155 e 157); o) no direito processual, as ações reais imobiliárias exigem a citação de ambos os cônjuges (CPC, art. 10, parág. único). 9. Bens imóveis: a) imóveis por natureza; b) imóveis por acessão física; c) imóveis por acessão intelectual; d) imóveis por destinação legal. Bens imóveis são os que não podem ser removidos sem alteração de sua substância. O direito considera imóveis o solo e tudo quanto a ele adere, natural ou artificialmente e ainda aquilo que, por questões de conveniência legislativa, deva ser ficticiamente considerado como imóvel. Bens imóveis são, portanto, o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente (CC. art. 79), e também os que a lei assim considera (CC, art. 80). É por essa razão que o Código Civil de 1916 dividia os bens imóveis em imóveis por natureza, imóveis por acessão física, imóveis por acessão intelectual e imóveis por disposição legal, distinção ainda aproveitável, para fins didáticos. a) Imóveis por natureza. Bem imóvel por natureza é o solo, a superfície da terra em seu estado natural, reunindo o solo propriamente dito e o subsolo. O solo compreende a terra, as pedras, as fontes e os cursos de água, superficiais ou subterrâneos, que corram naturalmente. E ainda as árvores e os frutos pendentes. As árvores são imóveis porque a ele se incorporam necessariamente, não podendo ter vida independente. Quando separadas do solo passam a ser móveis, salvo se destinadas ao replantio.14 Também assim se consideram quando, não obstante incorporadas ao solo, constituem já objeto de um contrato que se efetivará na época da separação. Também os frutos são imóveis até que se destaquem das árvores respectivas, já que fazem parte da coisa que os produz.15 Consideram-se móveis por antecipação, segundo a doutrina francesa, quando objeto de um contrato que preveja a sua mobilização. O espaço aéreo correspondente ao solo, embora o código não o considere mais imóvel, assim como o subsolo, integram-se ambos no mesmo direito de propriedade (CC, art. 1.229), o qual é limitado, porém, pela utilidade do seu exercício, como ocorre no caso de existência de recursos naturais ou de potenciais de energia hidráulica, que constituem propriedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União (CF, art. 176). b) Imóveis por acessão física. São imóveis por acessão física tudo quanto o homem incorporar permanentemente ao solo, como a semente lançada à terra, os edifícios e construções, de modo que não se possa retirar sem destruição, modificação, fratura ou dano. Acessão é a aderência de uma coisa a outra.16 Imóvel por acessão física são os móveis que o homem incorpora permanentemente ao solo, desde que não sejam contruções ligeiras, como barracas e pavilhões transitoriamente fixados. A permanência significa duração.17 No caso de sementes, ou plantas, a incorporação é orgânica e a união com o solo se faz por força da natureza, enquanto as construções se incorporam mediante união material.18 É indispensável que essa união se faça de modo a formar uma só coisa, uma só unidade. Uma casa pré-fabricada, materiais de edificação, uma construção simplesmente apoiada, não é imóvel. Os imóveis por natureza e os por acessão física chamam-se prédios, que se dividem em urbanos e rurais, conforme sua destinação. A distinção é relevante em questões locatícias, tributárias e agrárias.19 c) Imóveis por acessão intelectual. Imóvel por acessão intelectual é tudo quanto no imóvel o pró------------------8 Vincenzo Zeno-Zencovich, Informazioni (profili civilistici), in Digesto delle Discipline Privatistiche, IX, Torino, UTET, 1993, p. 421 9 Pierre Catala, Ebauche d'une théorie juridique de V Information, in Informática ediritto, 1983, n°l, p. 15 10 Vittorio Frosini, // diritto nella società tecnológica, Milano, Giuffrè Editore, 1981, p. 233; Pietro Perlingieri, L'informazione come bene giuridico, in Rassegna di diritto civile, 1990, p. 326 11 Zénati, op. cit., p. 16. 12 Castan Tobenas, op. cit., p. 531, nota 1. 13 Biondo Biondi. Los bienes, p. 106. 14 Espínola. Sistema de Direito Civil Brasileiro, p. 487. Joaquim Ribas. Direito Civil Brasileiro, p. 381. 15 Biondo Biondi, p. 115. 16 Silvio Rodrigues. Direito Civil. Pane geral, p. 94. 17 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, ns 70. 18 Biondo Biondi, p. 117. 19 A Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991 regula apenas a locação predial urbana; os imóveis rurais subordinam-se ao Estatuto da Terra, Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964. O Código Civil aplica-se subsidiariamente. Em matéria tributária, o imposto predial incide diversamente conforme a propriedade seja urbana ou rural. O imóvel rural pode ser objeto de reforma agrária, na forma da Lei (CF, art. 184). ------------------prietário mantiver, intencionalmente, empregado em sua exploração industrial, aformoseamento ou comodidade. É a definição contida no art. 43, III, do Código de 1916. São bens móveis que o proprietário destina ao imóvel, ligando-os subjetivamente e com o poder de, a qualquer momento, os mobilizar. Não há aderência material. Destinam-se a explorar, embelezar ou aumentar a utilidade de um imóvel. Denominamse pertenças (máquinas agrícolas, estátuas, pára-raios, aparelhos elétricos etc.) e caracterizam-se por, sem serem partes integrantes, destinarem-se a servir à finalidade da coisa principal. Define-as o Código no art. 93. O objetivo é econômico ou de utilidade. O instrumento agrícola é, assim, imóvel por acessão intelectual, mas não o é o automóvel de passeio do agricultor,20 porque a imobilização da coisa móvel por acessão intelectual "somente pode dar-se quando ela é posta a serviço do imóvel, e não das pessoas". Tal imobilização é uma ficção legal que se funda na conveniência de evitar-se que as coisas móveis, acessórios, se separem do imóvel contra a vontade do proprietário e em prejuízo do interesse geral, integrando-se no imóvel para que este preste os serviços a que se destina. A acessão pode ser de natureza agrícola, industrial, comercial e suntuária,21 conforme a sua destinação. Sua justificativa é impedir que o adquirente do imóvel se prive dos móveis destinados à sua exploração, ou daqueles sem os quais o imóvel não se completa. O objetivo é, portanto, manter a unidade, o conjunto, facilitando a determinação das regras jurídicas aplicáveis ao caso. Desse modo, a venda de uma fábrica sem discriminação engloba também os respectivos móveis.22 Fundamento da acessão é, assim, a relação de utilidade ou serviço entre a coisa principal e a acessória, e a durabilidade desse vínculo. Basta, por isso, dispor que os imóveis por acessão, bens móveis acessórios do imóvel, por serem destinados à sua exploração, não podem ser separados dele contra a vontade do proprietário. O respectivo dispositivo legal, o art. 79 do Código Civil, dispõe, em fórmula sintética que são bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar, natural ou artificialmente. Os imóveis por acessão intelectual podem, a qualquer tempo, ser mobilizados, separando-se do imóvel a que se uniram, desde que de modo definitivo. Os materiais temporariamente separados do imóvel a que pertecem (como tijolos, madeiras, grades, instalações metálicas etc.) não perdem a qualidade de imóveis assim como as edificações que, separadas do solo, mas conservando sua unidade, forem removidas para outro local (CC, art. 81). d) Imóveis por disposição legal. Imóveis por disposições legal são os direitos reais sobre imóveis (propriedade, enfiteuse, servidão predial, usufruto, uso, habitação, rendas constituídas sobre imóveis, penhor agrícola, anticrese, hipoteca), as ações que o asseguram, e o direito à sucessão aberta. Neste caso, não é o direito aos bens componentes da herança, mas o direito a esta, como uma unidade. A inclusão dos direitos reais sobre imóveis tem por objeto a maior segurança nas respectivas relações jurídicas. As ações relativas aos direitos reais compreendem não só as ações destinadas à defesa desses direitos, mas também as destinadas a constituir ou modificar uma relação jurídica pertinente a direitos reais sobre imóveis, como, por exemplo, a destinada a estabelecer ou regular os limites da propriedade, a constituição da servidão, a remissão ou execução da hipoteca, a revogação de doação, a anulação de contrato translativo de propriedade etc., sempre que tendam à atribuição de direitos reais sobre os imóveis. Doutra forma não tem sentido a lei, já que a ação, embora direito subjetivo público, não pode considerar-se um bern destacado do direito que protege. Não entram nessa categoria as ações possessórias, que não são reais, pois somente se podem exercitar contra o autor da turbação ou do esbulho,23 não tendo eficácia erga omnes. 10. Bens móveis. Conceito e determinação legal. Bens móveis são os suscetíveis de movimento próprio ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da desti-nação econômico-social (CC, art. 82). Os primeiros dizem-se semo-ventes. São os animais. Os segundos são as coisas inanimadas. A diferença é irrelevante, pois aplica-se a ambas as espécies o mesmo regime jurídico. Os bens móveis podem sê-lo por sua própria natureza (CC, art. 82) e por disposição legal, compreendendo-se, neste caso, as energias que tenham valor econômico, os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes, os direitos pessoais de caracter patrimonial e as ações respectivas (CC, art. 83). Há ainda bens móveis por natureza que a lei considera imóveis para efeito de garantia, como os navios e as aeronaves (CC, art. 1.473, VI e VII).24 São também móveis os direitos da propriedade industrial, o fundo de comércio, as quotas e as ações do capital social,25 o gás, os títulos de crédito. São ainda móveis os materiais destinados a uma construção, enquanto não utilizados, pois que ainda não incorporados ao imóvel, e os decorrentes de demolição de um prédio (CC. art. 84), como as portas, grades, janelas etc. É bem móvel por disposição legal o know-how (Lei 9.279, de 14 de maio de 1996, art. 5°) Consideram-se ainda móveis por antecipação aqueles que, naturalmente imóveis porque ligados à terra, destinam-se a ser mobilizados, como, por exemplo, os frutos ainda não colhidos e as árvores destinadas a corte.26 Os bens móveis dividem-se em genéricos e individuais, fungíveis e não fungíveis, consumíveis e não consumíveis, divisíveis e indivisíveis, singulares e coletivos. 11. Bens genéricos e individuais. Gênero é o 'conjunto de elementos comuns existentes em diferentes objetos. Por extensão, é o conjunto de espécies que apresentam esses elementos, notas ou caracteres comuns. A espécie forma-se por indivíduos muito semelhantes entre si, com essas notas comuns. Essas categorias lógicas interessam ao direito na medida em que, utilizadas na classificação dos bens, suscitem diversidade no regime jurídico aplicável. Na técnica jurídica, porém, gênero é um conjunto de seres semelhantes, e estes são as espécies. Um bem é genérico quando representa uma categoria de bens individuais que têm as mesmas características, como tal marca cie veículo, tal qualidade de cereal etc. O bem é específico ou individual quando se distingue dos demais por suas próprias características. E um objeto certo, único. Essa classificação é importante em matéria de direitos reais e de obrigações. Os primeiros não podem ter como objeto coisas genéricas, já que implicam em um poder sobre uma coisa específica. Já as obrigações admitem, como objeto, prestações genéricas. Nesse caso, segundo o princípio de que o gênero nunca perece (genera nunquam pereuni], o credor tem direito a obter o bem compreendido no gênero. Por exemplo, a obrigação de entregar "duas arrobas de café, quatro cavalos" tem como prestação uma coisa incerta, indicada, porém, pelo gênero e pela quantidade. Já uma obrigação de entregar açúcar sem a necessária especificação quanto à marca, qualidade e quantidade, nada vale, por ser indeterminada e indeterminável. Como o gênero nunca perece, não pode o devedor liberar-se de sua obrigação alegando perda ou deterioração da coisa, ainda que por caso fortuito ou força maior (CC, art. 246). 12. Bens fungíveis e infungíveis. As coisas genéricas são normalmente fungíveis. Bens fungíveis são os móveis que podem, e infungíveis os que não podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade (CC, art. 85). Exemplo de coisa fungível: os gêneros alimentícios em geral, o gado, o dinheiro etc. Determinam-se pelo número ou medida, e traduzem uma equivalência entre as espécies (100,00 = 100,00). Os bens fungíveis são substituíveis porque são idênticos, econômica, social e juridicamente. A fungibilidade é própria dos móveis e a infungibilidade dos imóveis, mas esta regra não é absoluta. Os bens infungíveis são insubstituíveis, porque tomados em consideração de suas qualidades individuais, como ocorre com o quadro de um pintor. A fungiblidade e a infungibilidade decorrem tanto da natureza quanto da vontade das pessoas, inclusive do legislador. Determinado automóvel, coisa fungível, transforma-se em infungível se individualizado pela marca, ano de fabricação, cor, número de motor, acessórios instalados etc. As ações de uma sociedade e as notas de dinheiro são individualizadas pelo número, todavia são fungíveis, pois o que interessa é o seu valor, que independe da numeração. A fungibilidade da moeda, aliás, é uma necessidade prática. Seria inviável o empréstimo de dinheiro com a obrigação de se devolverem as mesmas notas ou moedas. A fungibilidade é idéia de comparação entre bens que se consideram equivalentes exprimindo a possibilidade de substituição de coisas do mesmo gênero. É própria dos bens móveis, e é alterável por vontade das partes. Uma coisa fungível (moeda, livro, automóvel, quadro etc.) pode convencionar-se como infungível se tiver características que lhe dêem especial valor. Os bens fungíveis são determinados pelo número, peso e medida, o que permite a sua substituição. Se considerados corpo certo, serão insubstituíveis e, como tal, infungíveis. A fungibilidade, embora pertinente à coisa, estende-se a ações humanas (prestações) quando objeto de obrigações. Prestação fungível é a que pode ser feita por outra pessoa que não o devedor (CC, art. 249). Prestação ou serviço infungível é o que tem ser de ser cumprido pelo próprio devedor, por exemplo, um pintor famoso. A importância da distinção entre coisas fungíveis e infungíveis revela-se em alguns institutos do Código Civil, principalmente no direito das obrigações: a) o mútuo é empréstimos de coisas fungíveis (CC, art. 586), em regra, dinheiro, enquanto o comodato é empréstimo de coisa infungível (CC, art. 579). Excepcionalmente pode haver comodato de coisa fungível, como no ad pompam vel ostentationem, quando se empresta um objeto substituível para exposição, devendo ele próprio ser devolvido (livros, garrafas, moedas, arranjo de flores etc.); b) o depósito de coisas fungíveis regula-se como mútuo (CC, art. 645); c) a fungibilidade das dívidas é requisito da compensação (CC, art. 369); d) a locação de coisas tem por objeto o uso e gozo de coisa não fungível (CC, art. 565); e) o pagamento mediante entrega de coisa fungível é eficaz ainda que feito por pessoa sem direito de aliená-la, desde que o credor esteja de boa-fé. Se a coisa for infungível, o pagamento será ineficaz (CC. art. 307, par. único); f) o legado de coisa fungível será cumprido ainda que tal coisa inexista entre os bens deixados pelo testador (CC, art. 1.915); No caso de direitos reais, quanto ao direito de propriedade, não têm maior importância porque as coisas, sejam fungíveis ou infungíveis, podem ser reivindicadas, sendo que na primeira espécie, se impossível o reconhecimento da coisa pertencente ao autor, contenta-se ele em receber coisa equivalente, como também no caso de usufruto (CC, art. 1.392, par. 1°). 13. Bens consumíveis e inconsumíveis. Enquanto a fungibilidade resulta de uma relação de identidade ou equivalência, a consuntibilidade, qualidade do que é consumível, resulta da relação de utilidade entre o titular e a coisa. Consumíveis são os móveis que se extinguem pelo uso normal, ou que se destinam à alienação. Inconsumíveis são os que permitem utilização contínua, sem destruição da substância (CC, art. 86). A consuntibilidade é própria dos móveis e é conceito econômico jurídico que não coincide necessariamente com o sentido físico. É qualidade daquilo que se destrói com o primeiro uso, como os alimentos (consumo natural), ou daquilo que se destina a ser alienado, como as mercadorias de um armazém, roupas, livros etc. (consumo jurídico). A consuntibilidade é, portanto, natural, quando se verifica com o simples uso, e jurídica, quando ocorre com a alienação. As coisas naturalmente consumíveis só podem servir uma vez.27 Consumo natural é, portanto, o que se dá com a destruição do bem pelo uso regular, como acontece com os alimentos, o dinheiro etc. O consumo jurídico é o que se traduz no destino, como acontece com as mercadorias de um armazém, roupas, livros, máquinas etc. Por isso, os bens inconsumíveis tornam-se juridicamente consumíveis quando postos à venda. O livro, inconsumível por natureza, é con-sumível quando está à venda. A consuntibilidade não se identifica com a fungibilidade. Esta deriva de uma relação de identidade ou equivalência, não sendo uma característica natural da coisa, aquela diz respeito ao uso a que a coisa se destina. No entanto, as coisas fungíveis são em geral consumíveis, embora existam coisas fungíveis não naturalmente consumíveis, como livros, móveis etc. Alguns exemplos legais demonstram a importância da distinção: no usufruto de bens consumíveis (quase usufruto), o usufrutuário é obrigado a restituir, findo o usufruto as que ainda houver e, das outras, o equivalente em gênero, qualidade, quantidade, ou não sendo possível, o seu valor estimado ao tempo da restituição (CC, art. 1.392, par. 1°). No comodato ad pompam vel ostentationem28, a coisa consumível é tomada como corpo certo, inconsumível. 14. Bens divísiveis e indivisíveis. Bens divísiveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam (CC. art. 87). As partes singulares, resultantes da divisão, devem ter a mesma natureza, características e função do todo a que pertenciam. Bens indivisíveis são aqueles cuja divisão implica a alteração da própria substância, ou o sacrifício do valor ou o prejuízo do uso a que se destinam. O disposto no art. 87 do Código Civil aplica-se às coisas, bens corpóreos. É conceito de divisão real ou material. Há também a divisão ideal ou intelectual, jurídica, que se aplica tanto às coisas como aos direitos. O critério da divisibilidade jurídica não corresponde, portanto, ao da divisibilidade física.29 Para o direito, o que importa é que a divisão de um bem não implique sua desvalorização econômica.30 As frações devem ter as mesmas qualidades e características do todo a que pertenciam, não podendo o fracionamento significar dano nem desvalorização. A divisibilidade pressupõe, assim, a manutenção do valor econômico, de forma proporcional, e das qualidades do todo a que pertenciam as partes. Indivisível é o imóvel que não pode ser dividido sem dano material e econômico. A indivisibilidade decorre da natureza, da lei ou da vontade das partes (CC, art. 88). Nestas últimas hipóteses, uma coisa materialmente divísivel torna-se indivisível. Da natureza, quando a divisão da coisa implica alteração de sua substância ou diminuição do valor. Afeta móveis e imóveis. Da lei, nos casos de servidão (CC, art. 1.386), herança (CC, art. 1.791, par. único), módulo de propriedade rural (Estatuto da Terra, art. 4°, III), partes comuns no condomínio do edifício (solo, estrutura, telhado, rede de água, esgoto, gás e eletricidade, escadas etc.). No condomínio, se a coisa comum for indivisível ou se tornar, pela divisão, imprópria ao seu destino, será adjudicada a um só dos condôminos, ou vendida, e partilhado o preço (CC, art. 1.322). A indivisibilidade convencional ocorre, por exemplo, nas obrigações indivisíveis (CC, art. 314) e nos direitos decorrentes da qualidade de acionista. Tanto a divisibilidade quanto a indivisibilidade podem converter-se na qualidade oposta. Bem materialmente divisível pode transformar-se, pela vontade das partes, em idealmente indivisível. Também a coisa materialmente indivisível pode ser dividida em partes ideais, como no condomínio. 15. Bens singulares e coletivos. Singulares são os que se consideram em sua individualidade distintos de quaisquer outros. Coletivos ou universais os que, constituídos de bens singulares, se consideram em conjunto, formando um todo unitário.31 -------------------20 Caio Mário da Silva Pereira, op. cit., ns 75; Lucy Rodrigues dos Santos, Bens imóveis, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. II, p. 227. 21 Castan Tobenas, p. 540. 22 "É imóvel por destino, estando sujeito a imposto de transmissão o seu valor, quando alienado com as terras onde estavam, o maquinismo e seus acessórios que aí não se encontram para ornamento e comodidade, mas para exploração industrial" - P CC do TJSP, Ag. Pet. tf 107.438, RT 311/414, apud Wilson Bussada. Código Civil Brasileiro Interpretado pelos Tribunais, vol. I, p. 233. 23 Biondo Biondi, p. 128. Com opinião contrária, Celso Agrícola Barbi. Comentários ao Código de Processo Civil, p. 136. 24 Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986, art. 106, parág. único, e art. 138. 25 Caio Mário, op. cit., p. 364. 26 Boris Stark. Droit Civil, Introduction, p. 108. Jurisprudência Brasileira, vol. 5, p. 77. 27 Teixeira de Freitas. Esboço, art. 354, l* Christian Atias, p. 20. 28 li o empréstimo de coisas para uso em solenidades, festas etc. 29 Roberto de Ruggiero. Instituições de direito civil, II, p. 266. 30 "A divisibilidade de um prédio comum é apreciada pelo aspecto econômico c não pelo jurídico", STF, RE ns 15.084, RT 209/479, apud Wilson Bussada, op. cit., p. 253. " A perda da identidade e a diminuição do valor econômico são traços característicos da indivisibilidade jurídica de coisa comum", RT 227/603. 31 Clóvis Beviláqua. Teoria Geral do Direito Civil, p. 37. -------------------As coisas singulares podem ser simples e compostas. Simples quando suas partes, da mesma espécie, estão ligadas pela natureza (animais, árvores) ou pelo homem (quadro, vaso), formando um todo unitário em que seus elementos perdem a individualidade. Compostas quando suas partes, de espécies diferentes, estão ligadas pela indústria humana (construções, máquinas), mantendo ou não a sua individualidade. As coisas simples nascem, portanto, da natureza ou do engenho humano, já as coisas compostas são sempre artificiais. As coisas simples constituem uma unidade natural incindível; as compostas formam-se de coisas simples. Em face disso, é possível a existência de direitos, tanto sobre a coisa composta, na sua unidade, como sobre os seus elementos componentes, o que não se verifica nas coisas simples. As coisas são normalmente singulares. As coletivas são-no por vontade da lei ou das partes. Umas e outras podem ser materiais (casas, máquinas, animais) e imateriais (direitos). As coletivas formam-se com várias coisas singulares que, reunidas, constituem uma unidade. Com esse sentido, o art. 89 do Código Civil. As coisas coletivas (universitas reruni) dividem-se em universalidade de fato (universitas facti), conjunto de coisas reunidas pela vontade humana para determinado fim, e universalidades de direito [universitas júris), conjunto de coisas e direitos reunidos pela lei com caráter unitário. O Código Civil considera universalidade de fato a pluralidade de bens singulares pertencentes à mesma pessoa e com destinação unitária (CC, art. 90). Os bens que formam essa universalidade podem ser objeto de relações jurídicas próprias. É universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico (CC, art. 91). Distingue-se a universalidade da coisa composta porque esta resulta de uma união material, enquanto aquela é uma união ideal, formando uma entidade complexa que transcende as coisas componentes, com uma única denominação e um só regime jurídico, embora mantendo a individualidade prática e jurídica dos seus elementos. Enquanto a universalidade de fato é uma pluralidade de coisas móveis, reunidas pelo dono para uma destinação econômica, embora não-reconhecida como unidade de direito, a universalidade de direito é um complexo de relações jurídicas que a lei considera unitaria-mente. Sua essência está na unidade. São universalidades de fato o rebanho, a biblioteca, a pinacoteca, o estabelecimento comercial. São universalidades de direito, por exemplo, a herança e o patrimônio geral e também os patrimônios especiais, que a lei disciplina como unidade para determinado fim, a massa falida, os bens do ausente, o dote, os bens conjugais. Universalidade de grande importância r a empresa, se se considera como objeto de direito, isto é, como "conjunto de bens e direitos unitariamente organizados e centralizados na pessoa de um sujeito de direito, o empresário".32 A distinção universalidade de fato/universalidade de direito, que nos vem dos glosadores, da Idade Média, é hoje objeto de viva discussão, sendo por muitos considerada superada. As coisas simples que formam a coisa composta, mantendo sua identidade, denominamse partes integrantes. Se perdem a identidade chamam-se partes componentes.33 As partes integrantes, como as peças de máquinas, podem ser separadas do todo, as componentes, como o cimento de uma parede, não. Na coletividade, desaparecendo todos os seus indivíduos menos um, deixa de existir coisa coletiva para existir coisa singular. Nas universalidades, os bens que as integram podem ser substituídos pelo respectivo valor e vice-versa (rés succedit in locum pretii, pretium succedit in locum rei).34 Subrogar significa substituir o bem objeto da relação jurídica por outro, no caso, pelo seu valor, permanecendo o mesmo regime jurídico da coisa sub-rogada. Por exemplo, se numa coleção de objetos raros algum se destruir, o valor da indenização substitui o valor do objeto danificado. Aplicação prática desse princípio encontra-se nos arts. 1.407, § 2-, e 1.911, par. único, do Código Civil. A sub-rogação é legal quando disposta em lei, e voluntária quando decidida pela vontade particular.35 16. Bens principais e bens acessórios. Bens principais são os que têm existência própria, independentemente de outros. Acessórios, aqueles cuja existência supõe a de outro, principal (CC, art. 92). Considerados isoladamente, os bens não são principais nem acessórios. Essa distinção decorre de um vínculo de subordinação estabelecido entre duas coisas, pela natureza, pela vontade humana ou pela lei. É essa relação de dependência que faz distinguir os bens principais dos que lhe são acessórios. Os primeiros existem por si e para si, os segundos, embora distintos, dependem dos primeiros, formando, porém, um todo com o mesmo destino, salvo disposição em contrário. Essa união difere da que existe na coisa composta, cujas partes formam um todo unitário, integrado e sem relação de dependência. Qual o critério para caracterizar o bem principal? É a sua função econômica, em razão da qual se estabelece a relação de dependência que caracteriza a acessoriedade.36 Regra geral não é o valor, mas o destino da coisa ou uma natural dependência já existente. Nos imóveis, o solo costuma ser principal, sendo acessório tudo o que a ele adere. Nos móveis, principal é a coisa para a qual outras se destinam. A relação de acessoriedade existe entre coisas e entre direitos. Acessórios podem ser móveis e imóveis; podem ser direitos obriga-cionais, como a cláusula penal, as arras, os juros, os dividendos; e direitos reais, como as servidões, o penhor, a anticrese, a hipoteca. A importância da distinção dos bens principais e acessórios manifesta-se nas seguintes regras: 1) Salvo disposição em contrário, a coisa acessória segue a principal. Deste princípio básico, surgem dois corolários: a) o acessório segue a natureza do principal; é o princípio da gravitação jurídica, pelo qual um bem atrai outro para sua órbita, comunicando-lhe seu próprio regime jurídico;37 o móvel colocado no imóvel para completá-lo torna-se imóvel (CC, art. 79). Daí a necessidade de, na venda de um imóvel, por exemplo, uma fazenda, um apartamento, esclarecer-se o destino dos móveis, pertences que o guarnecem; b) o proprietário do principal, de regra, é também do acessório, o proprietário do solo é também dos frutos pendentes; 2) a posse do imóvel faz presumir, até prova em contrário, a dos móveis e objetos que nele estiverem (CC, art. 1.209); 3) o possuidor de boa-fé tem direito à indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis, com direito de retenção, e pode levantar as voluptuárias desde que não prejudiquem a coisa; o de má-fé tem apenas direito de indenização pelas necessárias, sem retenção (CC, arts. 1.219 e 1.220); 4) a obrigação de dar coisa certa abrange-lhe os acessórios, embora não mencionados, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso (CC, art. 233); 5) salvo disposição em contrário, na cessão de um crédito st-abrangem todos os seus acessórios (CC, art. 287); 6) a fiança, como contrato de garantia, segue a sorte do contrato principal. 17. Espécies de bens acessórios. Os bens podem ser natural, industrial e civilmente acessórios. Bens naturalmente acessórios são os que têm origem em fatos da natureza (frutos naturais, produtos orgânicos ou inorgânicos, o subsolo). Bens industrialmente acessórios são os que resultam da indústria humana (construções, plantações, frutos industriais, benfeitorias). Bens civilmente acessórios são os que resultam de uma relação abstrata de direito, sem vinculação material (juros, ônus reais, dividendos, aluguéis, fiança). Consideram-se acessórios os frutos, os produtos, os rendimentos, os produtos orgânicos da superfície, os minerais contidos no subsolo, as obras de aderência permanente feitas acima ou abaixo da superfície e as benfeitorias, não se considerando como tal a pintura em relação à tela, a escultura em relação a matéria prima, e a escritura e outro qualquer trabalho gráfico, em relação à matéria que os recebe. São também acessórios as pertenças, bens que, embora não sendo partes integrantes, destinam-se ao serviço ou aformoseamento de outros. Quanto aos minerais do subsolo, legislação especial e posterior ao Código Civil transformou-os em bens principais. As jazidas pertencem à União, constituindo propriedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamento industrial. Ao proprietário do solo é assegurada, todavia, a participação nos resultados da lavra, cujo direito de exploração se concede a brasileiros, pessoas físicas ou jurídicas.38 Frutos são as utilidades que o bem periodicamente dá, sem diminuição da sua substância. Caracterizam-se pela sua periodicidade, pela inalterabilidade da substância da coisa principal e pela sua separabilidade, embora tais características não se encontrem em todas as espécies. Periodicidade significa que os frutos, principalmente os naturais, nascem e renascem, renovando-se de tempos a tempos. A inalterabilidade da substância da coisa principal diz respeito à possibilidade de reprodução sem que o principal se extinga ou diminua. A separabilidade significa a possibilidade de o bem acessório poder destacar-se do principal, sem destruí-lo, e ser o objeto de relações distintas. Quanto à sua origem, dizem-se naturais, se provêm diretamente da coisa por força da natureza (vegetais e animais); industriais, se devidos à ação humana; e civis ou rendimentos, quando resultam da utilização da coisa por pessoa diversa do proprietário (juros, aluguéis), como correspectivo a essa utilização. Quanto ao estado em que se encontrem, os frutos são pendentes, quando unidos à coisa que os produziu; percebidos (os civis e os industriais) ou colhidos (os naturais), quando já separados; estantes, os já colhidos mas ainda armazenados; percipiendos, os que deviam ser mas não foram colhidos; e consumidos, os já utilizados.39 Essas diferenças têm importância principalmente em matéria de posse (CC. arts. 1.214 e 1.216), onde se dispõe que o possuidor de boa-fé tem direito aos frutos percebidos, não aos colhidos com antecipação nem aos pendentes. Já o possuidor de má-fé não tem direito aos frutos. Quanto ao momento de sua aquisição, os frutos naturais e os industriais adquirem-se com a separação, e os civis, dia a dia (CC, art. 1.215) com o seu vencimento. Vige, na matéria, o princípio geral de que pertecem ao proprietário do bem principal, eventualmente obrigado a indenizar terceiros pelos gastos da produção (CC, arts. 1.214, par. único e 1.216). Produtos são as utilidades que se retiram de uma coisa, diminuindo-lhe a quantidade. Diferem dos frutos pela ausência de periodiciclade e pela redução que provocam na coisa principal. Enquanto os frutos nascem e renascem periodicamente, sem diminuição da substância, os produtos levam à progressiva redução do bem principal, como, por exemplo, os minérios, as pedras retiradas de uma pedreira. A diferença é importante em matéria de usufruto, que só dá direito aos frutos (CC, art. 1.394). Apesar de ainda não separados do bem principal, os frutos e produtos podem ser objeto de negócio jurídico específico (CC, art. 95). Benfeitorias são obras que se realizam na coisa para conservá-la, melhorá-la ou embelezá-la. São necessárias as que têm por fim conservar a coisa ou evitar que se deteriore, como as obras em um telhado ou nas tubulações de água. São úteis as que lhe aumentam ou facilitam o uso, como a instalação de aparelhos. São voluptuárias as que a tornam mais agradável, sem aumentar-lhe o uso habitual, como a instalação de uma piscina (CC, art. 96). A distinção das benfeitorias é importante na posse (CC, art. 1.219), na locação (CC, art. 578) e no exercício do direito de retenção (CPC, art. 744). O valor das benfeitorias decorre dos melhoramentos trazidos à coisa. Se não foram feitas pelo proprietário, este, como reivindicante, é obrigado a reembolsar o seu autor, podendo optar entre o preço do custo e o valor atual (CC, art. 1.222). Não são benfeitorias as acessões naturais que aumentam o valor da coisa, pois aquelas pressupõem a intenção de melhorar o bem (CC, art. 97). Também não se consideram benfeitorias a pintura em relação à tela, a escultura em relação à matéria-prima, a escritura e qualquer trabalho gráfico em relação à matéria-prima que as recebe. Nesse caso, o acessório, pelo seu valor, passa a constituir bem principal. Não é benfeitoria, também, a construção de um edifício. É acessão física. Seus apartamentos são acessões, não benfeitorias. Acessão é modo originário de adquirir a propriedade, pela incorporação, ao objeto principal, de tudo quanto a ele adere, em volume ou valor. Por derivação, chamam-se acessões tudo o que se incorpora naturalmente ou artificialmente ao solo, como o aluvião, a avulsão, as construções, as plantações etc. (CC, art. 1.248). Mas, tecnicamente, a acessão natural não pode criar bem acessório, por não ser o bem incorporado uma coisa distinta. As pertenças são coisas, móveis ou imóveis, que se destinam ao serviço ou ornamento de outras. Dispõe o Código que são pertenças os bens que, não constituindo partes integrantes, se destinam, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento do outro (CC, art. 93).40 Caracterizam-se por sua destinação duradoura ou permanente a serviço de outra coisa, tornando-a mais útil ou mais bonita, como ocorre, por exemplo, com um jardim (pertença) em relação à casa (coisa principal). A relação de pertinência mantém-se entre duas coisas, para viabilizar a função da coisa principal, não o interesse imediato do respectivo dono, se bem que, ao final, seja este o beneficiado. Não são, por isso, pertenças, os móveis da casa, os instrumentos de trabalho, os livros da biblioteca.41 Entre as várias espécies podemos distinguir, em caráter meramente enunciativo, as pertenças agrícolas, máquinas, tratores, instrumentos agrícolas, animais etc., utilizados no preparo, plantio e colheita da produção; as urbanas, tudo o que se incorporar aos edifícios residenciais, como os elevadores, as bombas de água, as instalações elétricas, as estátuas, os espelhos, os tapetes; as industriais, máquinas e equipamentos utilizados no funcionamento da indústria; as mobiliárias, como as molduras do quadros, as garrafas para as bebidas; as navais e aeronáuticas, como os botes de salvamento, os aparelhos e instrumentos náuticos.42 As pertenças são, assim, coisas acessórias que estão a serviço da finalidade econômica de outras, mantendo sua individualidade e autonomia, tanto que podem ser objeto de direito especial, de titular diverso do da coisa principal.43 Com esse sentido, o disposto no art. 94 do Código Civil. Distinguem-se as pertenças das partes integrantes. Estas são acessórios que se incorporam a uma coisa composta, completando-a e tornando possível o seu uso, como, por exemplo, as telhas, as portas, as janelas, os pavimentes de uma casa, o motor e as rodas de um carro. Sem eles nem a casa nem o automóvel estão completos não servindo para seu uso normal. As partes integrantes ligam-se materialmente à coisa principal, embora mantendo sua identidade. Isso não ocorre com as pertenças, que permanecem materialmente desvinculadas, autônomas. Sua relação é econômica ou jurídica, não material. 18. Bens públicos e bens privados. Bens públicos são os que pertencem às pessoas jurídicas tli-direito público interno (a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios, os Municípios, as autarquias e as demais entidades públicas). Bens particulares são os outros, seja qual for a pessoa a que pertencerem (CC, art. 98). É matéria que classifica e regula os bens em relação à pessoas titulares, interessando ao direito civil e ao direito administrativo. Existem coisas que não pertencem a ninguém. São as rés nullius e as rés derelictae. Rés nullius são as coisas que nunca pertenceram a alguém, podendo vir a pertencer pela ocupação (CC, art. 1.2(i3. Rés derelictae são as coisas abandonadas, sem dono, não se confundindo com as perdidas, que têm dono.44 Quanto à sua utilização, os bens públicos dizem-se de uso comum, de uso especial e dominicais (CC, art. 99). Bens públicos de uso comum são os suscetíveis de utilização por qualquer pessoa, na forma da lei. São as coisas que a todos pertencem, por exemplo, os mares, rios, estradas, praias, ruas, praças etc. Essa utilização pode ser gratuita ou paga (pedágio nas estradas, ingresso nos museus) (CC, art. 103) e pode ser restringida e impedida (proibição de tráfego, interdição de porto etc.). Especial referência deve fazer-se ao meio ambiente (CF, art. 215) e aos bens culturais (CF, art. 216), hoje reconhecidos como importantes bens públicos de uso comum. Bens públicos de uso especial são os destinados ao serviço público, como os edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento de administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive o de suas autarquias. Bens dominicais são os que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. Compreendem móveis e imóveis, como terrenos de marinha,45 ilhas formadas nos mares territoriais -----------------32 Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 206. 33 Francesco Ferrara. Trattato di diritto civile italiano, p. 797; Castan Tobenas, op. cit., p. 546. 34 "A coisa substitui em lugar do preço, o preço substitui em lugar da coisa." 35 Cf. CC. arts. 1.753, § 1° e 2° e 1.425, §, 1°; Decreto-Lei 6.777 de 08.08.44, art. 1°. 36 Christian Atias, op. cit, 21. 37 San Thiago Dantas. Programa de Direito Civil. I. 38 Constituição Federal, art. 176; Código de Mineração, Dec.-Lei 227, de 28. 02. 67, art. l*. 39 Teixeira de Freitas. Esboço, art. 376. 40 Código Civil italiano, art. 817. 41 Biondi, p. 194. 42 Biondi, pp. 201/204. 43 Larenz. Allgemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts, p. 254; Projeto de Código Civil, art. 94. 44 Rés nullius ou coisa sem dono eram no direito romano, por exemplo, os animais selvagens e as coisas capturadas do inimigo. Rés derelictae eram as coisas nec mancipi abandonadas por seus proprietários. 45 "Terrenos de marinha" são os que se situam na faixa de terra banhada pelo mar, lagoas ou rios, de 33 metros para dentro da terra, a partir da linha de preamar média. Pertencem ao domínio da União e são regidos pelo Dec-Lei n2 9.760, de 5 de setembro de 1946. -----------------ou nos rios navegáveis, terras de fronteira, terras devolutas;46 estradas de ferro, instalações portuárias, arsenais, telégrafos, oficinas e fazendas nacionais, bens perdidos pelos criminosos, bens vagos, quedas-d'água, jazidas de minério, títulos de dívida pública etc. A matéria é regulada no art. 20 da Constituição do Brasil e, quanto aos imóveis da União, no Decreto-Lei n- 9.760, de 5 de setembro de 1940. É possível a utilização dos bens dominicais pelos particulares na forma da legislação estabelecida pelo Poder Público. Os bens públicos caracterizam-se por serem inalienáveis, salvo os dominicais (CC, art. 101), imprescritíveis (não sujeitos a usucapião), impenhoráveis e incomerciáveis. Não se admite a usucapião de bens públicos (CF, art. 183, § 32, e 191, par. único) (CC, art. 102). O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem (CC, art. 103) 19. Bens comerciáveis e bens incomerciáveis. Comércio é circulação econômica. É troca de bens. Bens comerciáveis [rés in commercio) são os suscetíveis de alienação. Bens incomerciáveis [rés extra commercium) ou indisponíveis são os que não podem ser apropriados nem alienados. Há três espécies de bens incomerciáveis: a) os insuscetíveis de apropriação por natureza; b) os legalmente inalienáveis; c) os inalienáveis por vontade humana. São bens insuscetíveis de apropriação os que pertencem a todos, rés communnes omnium, como o ar, a água corrente, a lu/. do sol. São bens legalmente inalienáveis ou indisponíveis os que :\ lei proíbe de alienação, como a herança de pessoa viva (CC], art. 426), os benefícios previdenciários,47 os bens públicos (CC, art. 100), os bens das fundações, o capital que garante o pagamento tia pensão alimentícia (CPC, art. 602, §§ l2 e 4*). São bens inalienáveis por vontade humana aqueles tornados in disponíveis pela manifestação de vontade pessoal a c|in' a lei m o nhece validade. São os bens gravados com a cláusulas de inaliruahi lidade, temporária ou vitalícia, na forma prevista em lei. lista ina lienabilidade é estabelecida em doação ou testamento (CC, arl. 1.911), ou resulta ainda da instituição do bem de família (CC, ai t. 1.715). O bem de família é o instituto que permite, mediante escritura pública, que o chefe de família separe do seu patrimônio, com o fim de protegê-la, um prédio urbano ou rural de valor ilimitado, observadas as disposições legais pertinentes, com a cláusula de não ser executável por dívida, salvo decorrente de impostos, destinando-o ao domicílio da família, enquanto viverem os cônjuges e até a maioridade dos filhos. Morrendo o instituidor ou seu cônjuge, o prédio não entra em inventário.48 Está regulado nos arts. 1.711 a 1.722 do Código Civil.49 O exercício desse direito pelo chefe da família pressupõe a inexistência de dívidas, no ato de instituição, cujo pagamento possa ser prejudicado. O imóvel escolhido fica a salvo da execução por dívidas posteriores ao ato, mas não pode se1 r alienado, ou ter outro destino, sem anuência dos interessados. A respectiva escritura pública deverá registrar-se no competente registro geral de imóveis, e publicar-se, pela imprensa, para completa e geral ciência. 20. O patrimônio. Conceito. Composição. Importância. Concepções teóricas. Patrimônio, provavelmente de patris munium, é o complexo de relações jurídicas economicamente apreciáveis de uma pessoa.50 Reúne os seus direitos e obrigações, formando uma unidade jurídica, uma universalidade de direito. Apresenta três elementos característicos: a unidade do conjunto de direito e de obrigações, sua natureza pecuniária, e sua atribuição a um titular.51 Compreende os créditos e os débitos de uma pessoa. No primeiro caso, temos o ativo, conjunto de direitos que formam o patrimônio (direitos reais, direitos pessoais e direitos intelectuais), no segundo, temos o passivo, o conjunto de obrigações (dívidas). Para a doutrina moderna, porém, o passivo não integra o patrimônio; é apenas uma carga, um ônus sobre ele.52 Dele não participam os direitos personalíssimos (vida, liberdade, honra etc.), os direitos de família puros, as ações de estado e os direitos públicos que não têm valor econômico. Integram-no, ainda, as expectativas de direito de valor econômico,53 variando o seu valor conforme a possibilidade de realizar-se a condição. Não entram no patrimônio os objetos dos direitos, as prestações, os bens. Entram, apenas, os respectivos direitos. É por isso que os atos de disposição somente se referem a direitos. O patrimônio forma-se, na verdade, apenas de direitos (CC, art. 91). O nome comercial e o fundo de comércio integram o patrimônio porque são direitos. A clientela, embora com valor, não o integra.54 Não fazem parte do patrimônio as qualidades ou aptidões de uma pessoa, como o seu conhecimento técnico ou profissional. Há, porém, patrimonialidade intermédia naquelas relações jurídicas que resultam da lesão de direito personalíssimo e que exprimem o direito à respectiva indenização.55 A demonstração contábil do patrimônio, com indicação detalhada dos componentes do ativo e do passivo, chama-se balanço, de grande importância no direito comercial e tributário por demonstrar a posição financeira da pessoa em um determinado período. A importância do patrimônio manifesta-se em dois aspectos: a) constitui a garantia dos credores (CPC, art. 591), e b) fixa a universalidade, o conjunto de direitos de uma pessoa no momento de sua morte, quando se transmite aos respectivos herdeiros (CC, art. 1.784). Daí dizer-se que o patrimônio é a base sobre que se ergue o edifício das sucessões.56 Quando o patrimônio da pessoa responde integralmente por suas obrigações, diz-se que a responsabilidade dela é ilimitada (se bem que limitada às forças desse patrimônio). A responsabilidade é limitada quando a lei permite a formação de um patrimônio especial destinado a fim específico, como ocorre em algumas espécies de sociedades comerciais, as sociedades limitadas (por cotas de responsabilidade limitada e por ações). No direito civil, são casos de responsabilidade limitada a do herdeiro pelas dívidas da herança (CC, arts. 1.792 e 1.997), e a do fiador, quando assim convencionado (CC, arts. 822 e 823). Instrumento de limitação convencional é a cláusula penal (CC, art. 411) onde, na verdade, o que se limita é a obrigação, não a responsabilidade. O patrimônio tem ainda interesse teórico e prático, quer como conceito básico de direito, como projeção da personalidade jurídica, e nesse aspecto se constitui numa das categorias fundamentais do direito privado, quer como explicação para alguns institutos, como aquisição da propriedade a título universal, a obrigação de reparar o dano fundada no dever de restabelecer o patrimônio lesado, a obrigação decorrente do pagamento indevido etc. Duas teorias procuram caracterizar juridicamente o patrimônio. Para a teoria clássica ou subjetiva, o patrimônio é uma universalidade de direito, um conjunto unitário de bens e obrigações, que se apresenta como projeção e continuação da personalidade individual. Sua marca dominante seria a vinculação subjetiva com a personalidade, do que decorreriam os seguintes princípios: a) somente as pessoas, naturais ou jurídicas, têm patrimônio; b) todas as pessoas são titulares de um patrimônio; c) o patrimônio é intransmissível inter vivos', d) o patrimônio é unitário e indivisível. Tudo isso se conjuga para demonstrar que o patrimônio é a continuação da personalidade, é sua projeção econômica, ou, até, atributo. Todos o têm, sendo impossível transmiti-lo, totalmente, cm vida. O patrimônio é o total dos direitos da pessoa, de valor econômico, mas não é objeto de direito. Não há direito de propriedade sobre o patrimônio, se bem que ele seja o meio de que os credores dispõem para realizarem seus créditos.57 O patrimônio diz-se unitário porque representa um conjunto de direitos titulados pela mesma pessoa. Por ser unitário e por pertencer a uma só pessoa é que se considera como uma universalidade de direito (universitas iuris) (CC, art. 91), um conjunto que transcende os elementos que o formam, o que se contesta. Na verdade, só adquire o caráter unitário com a morte do titular quando se transforma em herança. E é indivisível porque não pode ser fracionado; a pessoa não pode ter vários patrimônios. Para a teoria moderna ou realista, que critica o patrimônio como universalidade, o patrimônio seria apenas ativo, deixando fora as dívidas. Também não seria unitário e indivisível, mas formado de vários núcleos separados, conjuntos de bens destinados a fins específicos. É a chamada teoria da afetação, exemplificada, na substituição fideicomissária (CC, art. 1.951), na massa falimentar, nas garantias reais (penhor, hipoteca, anticrese), na herança. Tais bens seriam vinculados a uma destinação para garantia, transferência ou utilização, formando patrimônios afetados, isto é, destinados a um fim, desfazendo-se a unidade e a indivisibilidade tradicionais. A situação particular de tais patrimônios especiais decorreria, assim, dos fins que presidiram à sua formação, só fazendo parte de tais acervos os direitos especificados em lei. Os outros formam o patrimônio geral. A Medida Provisória n° 2.221, de 4 de setembro de 2001 altera a Lei de Condomínio e Incorporações (Lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964) para instituir o patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias, separando o terreno e as acessões objeto da incorporação imobiliária, do patrimônio do incorporador. A conclusão a que se chega é que, enquanto a teoria clássica defende a tese de que uma pessoa só tem um patrimônio, a teoria moderna admite a existência de várias massas patrimoniais na esfera jurídica do mesmo titular. Objeta-se, contudo, que a teoria da afetação não implica a superação da teoria tradicional. Nada há que impeça destacaram-se determinados bens do patrimônio geral para se afetarem a fim específico. Tais bens, entretanto, continuam no patrimônio geral da pessoa. Em face disso pode-se reiterar que: 1) uma pessoa tem apenas um patrimônio; 2) toda pessoa tem necessariamente um patrimônio. Como decorrência do conceito de patrimônio, os direitos subjetivos dizem-se patrimoniais e extrapatrimoniais. Os primeiros são avaliáveis em dinheiro e transmissíveis em sua generalidade, salvo os estabelecidos intuitu personae58 como os de uso e habilitação. Os extrapatrimoniais são intransmissíveis e insuscetíveis de transação, como ocorre nas questões relativas ao estado das pessoas, legitimidade do matrimônio, pátrio poder, relações pessoais entre cônjuges, filiação, enfim, matéria pertinente aos direitos personalíssimos, aos direitos familiares e às ações de estado. A transferibilidade constitui, assim, o caráter normal dos direitos patrimoniais. A transmissão do patrimônio só é total ou universal no caso de morte (pessoas naturais) ou no de fusão ou incorporação (pessoas jurídicas), e é parcial, de alguns direitos apenas, quando entre vivos. ------------------------46 Terras devolutas, espécie de terras públicas, são as terras inicialmente pertencentes à Coroa ou aos seus representantes no Brasil, terras essas que, com a proclamaçáo da República, deveriam voltar ao patrimônio da União, mas que até hoje nele estão registradas, não usando a União ou os Estados sobre eles o seu direito de propriedade. Compreendem tanto as terras devolvidas ao domínio da União como as que se acham vagas, não-ocupadas, por não terem sido dadas, ou não usadas pelo Poder Público. O que as caracterizam é o fato de não serem utilizadas economicamente. Cf. Cretella Júnior, Tomás Pará Filho, Telga de Araújo e T.H. Miranda Lima, in Enciclopédia Saraiva de Direito, vol. 72, verbete Terras Devolutas. 47 Lei Orgânica da Previdência Social, Lei 3.807, de 26 de agosto de 1960, art, 59. 48 Caio Mário da Silva Pereira, p. 310. 49 Completam as disposições do Código Civil nessa matéria a Lei de Registros Públicos, Lei 6.015, de 21.12.73, arts. 260 a 265, e a Lei 8.009, de 29.3.90, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, considerando como tal o imóvel residencial do casal ou da entidade familiar (art. lº). 50 Clóvis Beviláqua. Código Civil Comentado, art. 57. 51 Castan Tobenas, p. 582. 52 Henri de Page. Traité élémentaire de droit civil belge, V, pp. 554 e 555. 53 Pontes de Miranda. Tratado, vol. 5, p. 136; Von Thur, p. 391. 54 João Eunápio Borges. Curso de Direito Comercial Terrestre, p. 195; Rubens Ucquião, Curso de Direito Comercial, I, pp. 228 e 229. 55 Christian Atias, p. 42. 56 San Thiago Dantas, p. 242. 57 Caio Mário, p. 271. Von Thur. Teoria General dei Derecho Civil Aleman, I, p. 403. 58 Intuitu personae (Em caráter puramente pessoal). --------------------------CAPITULO X Os Fatos Jurídicos. A Autonomia Privada Sumário: 1. Os fatos jurídicos. 2. O papel da vontade na nomogênese jurídica. Vontade, liberdade, autonomia da vontade e autonomia privada. 3. Autonomia privada. Conceito, natureza, âmbito de atuação e limites. 4. Perspectivas histórica, lógica e funcional da autonomia privada. 5. Fundamentos da autonomia privada. A liberdade e o personalismo ético. 6. A formação histórica do conceito. Fatores morais, políticos e econômicos na sua formação. 7. A função histórica da autonomia privada. Fundamento ideológico. 8. Conseqüências jurídicas do princípio da autonomia privada. 9. As críticas à autonomia privada. Argumentos de natureza filosófica, moral e econômica. 10. A intervenção do Estado e os limites da autonomia privada. 11. A funcionalização dos institutos de direito privado. A autonomia privada em uma perspectiva funcional. 1. Os fatos jurídicos. Fatos jurídicos são acontecimentos que produzem efeitos jurídicos, causando o nascimento, a modificação ou a extinção de relações jurídicas e de seus direitos.1 Os fatos jurídicos dizem-se positivos, quando implicam uma ação ou declaração de vontade, e negativos, quando consistem em uma abstenção ou omissão, como o não pagamento, a prorrogação tácita de um contrato, o silêncio circunstanciado etc.; simples, quando consistem em um único evento, como o nascimento, a morte, e complexos, quando requerem o consenso de vários acontecimentos simples, ou de vários elementos, como no caso de usucapião, de contrato etc. No fato complexo, se os efeitos se contam desde o início, diz-se que a eficácia é ex tunc, se do fim, ex nunc. Tais acontecimentos podem constituir-se em simples manifestação da natureza, sem qualquer participação da vontade humana. São acontecimentos naturais e chamam-se fatos jurídicos em senso estrito. Podem ser ordinários, os mais comuns e de maior importância, como o nascimento, a morte, o decurso de tempo, a doença, e extraordinários, como o acaso, nas suas espécies de caso fortuito ou força maior. E podem consistir em manifestações da vontade humana. Neste caso são fatos voluntários e chamam-se atos jurídicos (ato, de agere, agir). Quando tais atos consistem em simples declarações de vontade que produzem efeitos já estabelecidos na lei, dizem-se atos jurídicos em senso estrito, como, por exemplo, o casamento, o reconhecimento de filho, a fixação de domicílio, a apropriação de coisa abandonada, ou de ninguém. Quando tais atos consistem em declarações da vontade humana destinadas a produzir determinados efeitos, permitidos em lei e desejados pelo agente, isto é, quando contêm determinada intenção, chamam-se negócios jurídicos, como os contratos, o testamento, as declarações unilaterais de vontade. Temos então que, no ato jurídico, a eficácia decorre da lei, é ex lege, enquanto no negócio jurídico decorre da própria vontade do agente, é ex voluntate. Outra diferença existe na circunstância de que o ato jurídico em senso estrito é simples atuação de vontade, enquanto o negócio jurídico é instrumento da autonomia privada, poder que os particulares têm de criar as regras de seu próprio comportamento para a realização de seus interesses. Como terceira espécie de atuação da vontade humana ao lado do ato jurídico e do negócio jurídico, que se constituem em com-partamento lícito, isto é, não violador do direito, temos o ato ilícito, aquele que, praticado com culpa, produz lesão a um bem jurídico e faz nascer a obrigação de indenizar. O Código Civil atual, diversamente do de 1916, que, no seu art. 81 excluía o ato ilícito da espécie ato jurídico, porque eivado de antijuridicidade, qualidade do que é contrário ao direito, compreende na categoria dos fatos jurídicos o negócio jurídico, o ato jurídico lícito e ato ilícito, considerando também este como jurídico, pois que também produz efeitos jurídicos2. Numa classificação sistemática e conclusiva, podemos então distinguir os fatos jurídicos em fatos naturais & fatos humanos ou voluntários. Os voluntários subdividem-se em fatos lícitos e fatos ilícitos. Os fatos lícitos subdividem-se em negócios jurídicos e atos jurídicos lícitos? Para alguns autores, ainda, os atos jurídicos em senso estrito dividem-se em atos materiais e participações.4 Atos materiais são as manifestações de vontade sem destinatário e sem finalidade específica, como no caso de ocupação, derrelição, fixação de domicílio, descoberta de tesouro, comissão, confusão, adjunção, especificação, pagamento indevido etc. Participações são declarações de vontade para ciência de intenções ou de fatos, como a intimação, a interpelação, a notificação, a oposição, o aviso, a confissão, a denúncia etc. 2. O papel da vontade na nomogênese jurídica. Vontade, liberdade, autonomia da vontade e autonomia privada? A atividade espiritual do homem desenvolve-se de dois modos diversos, o conhecer e o querer. Pelo primeiro, apreendem-se os objetos, faz-se a sua captação mental; pelo segundo, exercita-se uma faculdade em direção a um fim ou valor. O estudo deste direcionamento interessa à psicologia, à ética, à filosofia e ao direito. Para a psicologia, a vontade é uma faculdade espiritual do homem que traduz uma tendência, um impulso para algo, a realização de um valor intelectualmente conhecido. Para a ética, representa uma atitude ou disposição moral para querer algo. Metafísica ou filoso-ficamente, é uma "entidade a que se atribui absoluta subsistência e se converte, por isso, em substrato de todos os fenômenos". A vontade aparece, assim, como um motor, impulsionando e dirigindo o movimento em todo o reino das faculdades. Em razão do fim proposto, a vontade move-se a si mesma. Para o direito, a vontade tem especial importância porque é um dos elementos fundamentais do ato jurídico. Manifestando-se de acordo com os preceitos legais, a vontade produz determinados efeitos, criando, modificando ou extinguindo relações jurídicas. Vontade psicológica e vontade jurídica não coincidem porém. Enquanto a psicologia conhece a vontade como "tipo especial de tendência psíquica, associada à representação consciente de um fim e de meios eficientes para realizá-lo", estudando-a no campo do ser, o direito aprecia-a no campo do dever ser, reconhecendo-a como fator de eficácia jurídica nos limites e na forma que ele mesmo estabelece. Para o direito, portanto, a vontade tem grande importância na gênese dos direitos subjetivos, sendo critério diferenciador dos fatos e atos jurídicos, e critério doutrinário de justificação desses mesmos direitos. A possibilidade de a pessoa agir de acordo com sua vontade, podendo fazer ou deixar de fazer algo, chama-se liberdade, que, sendo conceito plurívoco, extremamente complexo, compreende várias espécies, como a liberdade natural, a social ou política, a pessoal e a jurídica, que é a que nos interessa.6 A liberdade jurídica é a possibilidade de a pessoa atuar com eficácia jurídica.7 Sob o ponto de vista do sujeito, realiza-se no poder de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas. Encarada objetivamente, é o poder de regular juridicamente tais relações, dando-llirs conteúdo e efeitos determinados, com o reconhecimento e a proteção do direito. A esfera de liberdade de que o agente dispõe no âmbito do direito privado chama-se autonomia, direito de reger-se por suas próprias leis. Autonomia da vontade é, assim, o princípio de dircilo privado pelo qual o agente tem a possibilidade de praticar uni alô jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os eleitos. Seu campo de aplicação é, por excelência, o direito obrigadonal, aquele em que o agente pode dispor como lhe aprouver, salvo disposição cogente em contrário. E, quando nos referimos especificamente ai poder que o particular tem de estabelecer as regras jurídicas de SIM próprio comportamento, dizemos, em vez de autonomia da vontade autonomia privada. Autonomia da vontade, como manifestação di liberdade individual no campo do direito, e autonomia privada, comi poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas, vale dizer, poder de alguém de dar a si próprio um ordenamento jurídico objetivamente, o caráter próprio desse ordenamento, constituíd pelo agente, diversa mas complementarmente ao ordenamento es tatal.8 A autonomia privada constitui-se, portanto, em uma esfera d< atuação do sujeito no âmbito do direito privado, mais propriamenti um espaço que lhe é concedido para exercer a sua atividade jurídica Os particulares tornam-se, desse modo, e nessas condições, legisla dores sobre seus próprios interesses. ; 3. Autonomia privada. Conceito, natureza, âmbito de atuação c limites. A autonomia privada é o poder que os particulares têm de regula pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que participai! estabelecendo-lhes o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. Sinônimo de autonomia da vontade para grande parte da doutrin contemporânea, com ela porém não se confunde existindo entr ambas sensível diferença. A expressão "autonomia da vontade" tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um rnodo objetivo, concreto e real. Sob o ponto de vista institucional e estrutural, dominante na teoria geral do direito, a autonomia privada constitui-se em um dos princípios fundamentais do sistema de direito privado9 num reconhecimento da existência de um âmbito particular de atuação com eficácia normativa. Trata-se da projeção, no direito, do personalismo ético, concepção axiológica da pessoa como centro e destinatário da ordem jurídica privada,10 sem o que a pessoa humana, embora formalmente revestida de titularidade jurídica, nada mais seria do que mero instrumento a serviço da sociedade.11 Sob o ponto de vista técnico, que revela a importância prática do princípio, a autonomia privada funciona como verdadeiro poder jurídico particular de criar, modificar ou extinguir situações jurídicas próprias ou de outrem. Funciona, também, como princípio informa-dor do sistema jurídico, isto é, como princípio aberto, no sentido de que não se apresenta como norma de direito, mas como idéia diretriz ou justificadora da configuração e funcionamento do próprio sistema jurídico.12 E funciona ainda como critério interpretativo, já que aponta o caminho a seguir na pesquisa do sentido e alcance da norma jurídica, e de que são exemplos, no direito brasileiro, os arts. 112, 114, 819 e 1.899 do Código Civil. Por outro lado, o princípio da autonomia privada faz presumir que, em matéria de direito patrimonial, campo por excelência de aplicação desse princípio, as normas jurídicas são de natureza dispositiva ou supletiva. No caso de serem cogentes, sua interpretação é restritiva (como se vê, por exemplo, com as normas do art. 497 do CC). Tal poder não é, porém, originário e ilimitado. Deriva do ordenamento jurídico estatal, que o reconhece, e exerce-se nos limites que esse fixa, limites esses crescentes, com a passagem do Estado de direito para o Estado intervencionista ou assistencial.13 Sua esfera de aplicação é, basicamente, o direito patrimonial, aquela parte do direito civil afeta à disciplina das atividades econômicas da pessoa. Não se aplica, assim, a autonomia, ou aplica-se de modo restritíssimo, em matéria de estado e capacidade das pessoas e família. Seu campo de realização é o direito das obrigações por excelência, onde o contrato é a lei, nas suas diversas espécies de liberdade contratual, nas promessas de contratar, nas cláusulas gerais, nas garantias etc. No direito sucessório, realiza-se no testamento, negócio jurídico com que a pessoa dispõe de seus bens ou estabelece outras prescrições para depois de sua morte. Os limites da autonomia privada são a ordem pública e os bons costumes. Ordem pública como conjunto de normas jurídicas que regulam e protegem os interesses fundamentais da sociedade t- do Estado e as que, no direito privado, estabelecem as bases jurídicas fundamentais da ordem econômica. E bons costumes como o conjunto de regras morais que formam a mentalidade de um povo e que se expressam em princípios como o da lealdade contratual, da proibição de lenocínio, dos contratos matrimoniais, do jogo etc. A autonomia privada distingue-se da autonomia pública pelo fato de esta ser um poder atribuído ao Estado, ou a seus órgãos, de criar direito nos limites de sua competência, para proteção dos interesses fundamentais da sociedade. Seu objetivo é de natureza pública e seu poder é originário e discricionário. Já na autonomia privada, os interesses são particulares e seu exercício é manifestação de liberdade, derivado e reconhecido pela ordem estatal. Seu instrumento é o negócio jurídico. Embora reconhecendo que o problema da autonomia privada transcenda o campo do direito civil e diretamente se ligue à temática das fontes do direito, limitamo-nos aqui à matéria cível, cuja base --------------------1 Clóvis Beviláqua. Teoria Geral do Direito Civil, p. 210 e segs. Eduardo Espínola, Sistema do Direito Civil Brasileiro, 2º vol., p. 226. 2 Cfr. Moreira Alves, A Parte Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro, p. 85/86 3 Acerca da possibilidade de distinção de espécies no ato jurídico existem duas teorias, a unitária e a dualista. Para a primeira a categoria básica e única é o ato jurídico como manifestação de vontade, inexistindo razão para distingui-lo do negócio jurídico nele compreendido. Para a segunda, o ato jurídico comporta duas subespécies, o ato jurídico em senso estrito e o negócio jurídico, ambos manifestações de vontade humana mas com características próprias que as tornam autônomas e distintas. Barbero apresenta interessante critério de distinção, conforme os elementos que se reúnem, a saber, o fenômeno, a vontade e a intenção. Quando se verifica o fenômeno com eficácia jurídica, temos o fato jurídico. Se acrescentarmos vontade, temos o ato jurídico, e se reunirmos o fenômeno, a vontade e a intenção configura-se o negócio jurídico. Cf. Domenico Barbero. Sistema dei derecho privado, I, p. 422. Cf. ainda San Tiago Dantas, Programa de Direito Civil, p. 254. 4 Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 223; Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, p. 209. 5 Este item e os que se lhe seguem reproduzem, com algumas modificações, o artigo A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica. Perspectivas estrutural e funcional, escrito para o livro em homenagem ao Prof. Doutor Antônio Ferrer Correia, Reitor Emérito da Universidade de Coimbra, em 1989. 6 Joaquim de Souza Teixeira, Liberdade, m Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. 3, p. 1.099 e segs. 7 Manuel Garcia Amigo. Instituciones de Derecho Civil, I, Pane General, p. 207. 8 Luigi Ferri. L'autonomia privata, p. 5; Santi Romano. Frammenti di i dicionário giuridico, p. 24 e segs. 9 Werner Flume. Allgemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts. Das Rechtsgeschãft, p. 1. Antônio Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, p. 343 e segs. 10 Larenz. Allgemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts, p. 29. 11 José Antônio Doral e Miguel Angel dei Arco. El Negocio Jurídico, p. 11. 12 Larenz. Metodologia da Ciência do Direito, p. 576. 13 Estado de direito era o Estado liberal ou burguês, do séc. XVIII, caracterizado por ser um sistema jurídico baseado na separação de poderes, na limitação do poder político e na garantia dos direitos individuais. Sua finalidade era proteger esses direitos, principalmente a liberdade e a propriedade. Cf. Salvatore Valitutti, Liberalismo, in Enciclopédia dei diritto, vol. XXIV, p. 210. Estado social é o que se serve do direito não para garantir o status quo mas como instrumento de reforma social, caracterizando-se, precisamente, pelo primado que concede ao bem comum e à justiça social como seus objetivos. Cf. Paulo Bonavides, Do Estado Liberal ao Estado Social, p. 208. Cf. ainda José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 99 e segs. e Jorge Miranda Teoria do Estado e da Constituição, p. 49 e segs. --------------------e fundamento é a pessoa humana,14 e no capítulo seguinte, ao seu instrumento de realização que é o negócio jurídico, onde se levanta, precisamente, o problema fundamental de sua eficácia e de seus limites, isto é, a autonomia privada como princípio e o negócio jurídico como instrumento ou processo de sua realização. 4. Perspectivas histórica, lógica e funcional da autonomia privada. Para compreendermos o significado, a importância e a função da autonomia privada, devemos estudá-la em uma perspectiva histórica, como expressão de uma experiência que se desenvolve ao longo dos tempos e que nos dá os elementos necessários à percepção da gênese, desenvolvimento, cristalização e, finalmente, declínio do conceito, para depois chegar a uma perspectiva lógica, em que se considere a hipótese de um ordenamento jurídico que privilegie ou se baseie na vontade particular. Isto compreende a chamada autonomia negociai, que pressupõe o negócio jurídico como ato e como instrumento da autonomia privada. Além desses aspectos, levantando o fio de continuidade histórica de sucessivas experiências jurídicas, que levaram ao nascimento do conceito de autonomia como expressão do poder jurígeno dos particulares, devemos considerar também uma perspectiva funcional, na qual o direito surge como produto de uma experiência jurídica geral (e não de uma classe), livre, inovadora, e, acima de tudo, pluralística, na eleição e na concretização normativa de seus valores. Ora, num sistema aberto assim, têm cada vez mais importância as fontes extralegislativas,15 o que vai contra um dos mais caros dogmas do positivismo, o da lei como única fonte do direito. E abrem-se as portas para os pluralismos sociais, políticos e jurídicos expressos em correlates subsistemas, todos inter e complexamente relacionados entre si.16 E nesse aspecto de vinculações que situamos a autonomia privada, princípio normativo-jurídico, fundamento da civilística contemporânea. O que está em crise não é propriamente a autonomia em si, mas uma sua determinada concepção ou perspectiva. Quanto à importância do tema e do seu estudo, a autonomia privada constitui-se em categoria lógica e princípio fundamental do direito civil e do direito constitucional (na versão da liberdade de iniciativa econômica), e também em categoria histórica e dogmática, consagrada que foi como expressão da liberdade individual, especialmente em matéria de contratos. E, se por um lado, a tão falada crise do direito a afeta, não só quanto à sua própria existência, mas também quanto à própria eficácia e limites, devido à crescente intervenção do Estado no domínio privado, por outro lado reafirma-se a sua importância e função com o "recrudescimento da mística contratual"17 e o uso crescente do negócio jurídico como instrumento de sua realização e ainda como faculdade de instituir juízo arbitrai para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis (Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996). 5. Fundamentos da autonomia privada. A liberdade e o personalismo ético. Fundamento ou pressuposto da autonomia privada é, em termos imediatos, a liberdade como valor jurídico, e, mediatamente, a concepção de que a pessoa é causa do sistema social e jurídico e de que a sua vontade, livremente manifestada, pode ser instrumento de realização de justiça. Corolário dessa concepção é o negócio jurídico como fonte principal de obrigações. O direito civil é o ordenamento jurídico dos interesses e das relações jurídicas privadas, fundado no princípio da igualdade dos homens perante a lei e elaborado histórica e continuadamente em torno do reconhecimento de uma esfera de soberania individual que tem suas manifestações no princípio da liberdade, com referência à pessoa, na propriedade, com referência aos bens, e no contrato, com referência à atividade econômica das pessoas.18 Pode assim caracterizar-se como sendo aquele setor do ordenamento jurídico em que se exercita ou realiza a autonomia reconhecida aos sujeitos de direito, aceita como princípio fundamental mas limitada pelas exigências da ordem pública e do bem comum. O princípio da autonomia privada baseia-se, portanto, ou tem, como pressuposto, a liberdade individual, que, filosoficamente, se entende como a possibilidade de opção, como liberdade de fazer ou de não fazer, e sociologicamente, como ausência de condicionamentos materiais e sociais. Sob o ponto de vista jurídico, a liberdade é o poder de praticar ou não, ao arbítrio do sujeito, todo ato-ordenado nem proibido por lei, e, de modo positivo, é o poder que as pessoas têm de optar entre o exercício e o nãoexercício de seus direitos subjetivos.19 A liberdade, como valor jurídico, permite ao indivíduo a atuação com eficácia jurídica, que se concretiza em duas manifestações fundamentais, uma subjetiva, que é o estabelecimento, modificação ou extinção de relações jurídicas, e outra, objetiva, que é a norma-tivização ou regulação jurídica dessas mesmas relações. Configuram-se, desse modo, duas facetas da liberdade jurídica — uma, a liberdade de criar, modificar ou extinguir relações; outra, a de estabelecer as normas jurídicas disciplinadoras dessa atividade, no exercício do seu poder jurídico de criar, nos limites legalmente estabelecidos, normas de direito. A autonomia privada significa, assim, o espaço livre que o ordenamento estatal deixa ao poder jurídico dos particulares, uma verdadeira esfera de atuação com eficácia jurídica, reconhecendo que, tratando-se de relações de direito privado, são os particulares os melhores a saber de seus interesses e da melhor forma de regulá-los juridicamente. O princípio da autonomia privada submeteu-se nas últimas décadas a um processo de revisão crítica, reduzindo-se o campo de sua atuação com a intervenção do Estado, embora permaneça como essência do negócio jurídico, particularmente de sua principal categoria, o contrato. Por outro lado, a mundialização da economia, com o uso crescente dos modelos contratuais, e o reconhecimento de uma pluralidade nas fontes de direito e nos meios de composição de conflitos (v.g. a arbitragem) apontam para o recrudescimento de sua utilidade e aumento do seu campo de aplicação. 6. A formação histórica do conceito. Fatores morais, políticos e econômicos na sua formação. O princípio da autonomia privada é histórico e relativo, no sentido de que fatores de ordem moral, política e econômica contribuíram para a sua configuração ao longo do tempo, transformando-o em um dos princípios fundamentais da ordem jurídica privada. A compreensão de sua natureza e função exige, assim, o conhecimento prévio dessas condições históricas e culturais em que se formou. Pode-se considerar, de maneira geralmente aceita, que seu antecedente imediato é o individualismo, doutrina segundo a qual se concede à pessoa humana um primado relativamente à sociedade, o indivíduo como fonte e causa final de todo direito. Diferentes aspectos ou vertentes podem-se visualizar nessa doutrina. Filosoficamente, o individualismo explica os fenômenos históricos e sociais como decorrência da atividade "consciente e interessada dos indivíduos". Politicamente opõe-se ao estatismo, à intervenção do Estado. Por outro lado opõe-se também ao conformismo e ao tradiciona-lismo. Para ele, a sociedade não é um fim em si mesmo, nem o instrumento de um fim superior aos indivíduos que a compõem, devendo as instituições sociais ter por fim a felicidade e a perfeição dos indivíduos. Significa, então, o individualismo uma "tendência a colocar as instituições políticas, jurídicas e sociais de um país ao serviço dos interesses particulares dos indivíduos que compõem a população, de preferência aos interesses coletivos". Sob o ponto de vista econômico, considera que o indivíduo deve ter a máxima liberdade de atuação no campo da economia, opondo-se, assim, ao dirigismo estatal e, nesse particular, confunde-se com o liberalismo. Defende o "livre jogo da atividade econômica individual", com o mínimo de intervenção do Estado, que deve limitar-se a garantir a liberdade de trabalho e do comércio, e a propriedade dos bens. Juridicamente considera que "as normas jurídicas são obra dos indivíduos e não da sociedade, ou, mais exatamente, um sistema jurídico que resulta da atividade individual". E finalmente, na perspectiva da teoria das fontes e dos fins do direito, é "um sistema em que se admite ser o indivíduo a única fonte das regras do direito e a causa final de toda atividade jurídica das instituições, notadamente do Estado".20 Antecedentes encontram-se ainda, mais remotamente, no próprio direito romano, no direito canônico, e no direito internacional privado, e mais recentemente na escola de direito natural, na filosofia política do contrato social, na filosofia de Kant, e no liberalismo econômico. No direito romano temos a lex privata como primeira forma de expressão do "ius civile". A lex era uma declaração solene com valor de norma jurídica, baseada em um acordo entre declarante e destinatário. Tinha por base um negócio particular, que se realizava quando alguém dispunha de uma coisa sua (lex rei suae dieta]. A lex privata era, assim, forma de expressão do direito privado, conforme disposto na Lei das XII Tábuas: "uti língua nuncupassit, ita ius esto".21 Depois da lex privata é que surge a lex publica, quando aprovada pelo povo, nos comícios, uma proposta do magistrado. Consagrava-se, desse modo, o poder jurígeno da vontade individual. Em seguida vem o cristianismo, que coloca o homem no centro das reflexões de ordem religiosa, filosófica e social, e dogmatiza, no direito canônico, a declaração de vontade como fonte de obri-gações jurídicas. O contratante é obrigado, por sua própria consciência, a respeitar a palavra dada, o que implica a necessidade de o consentimento dos contratantes não estar viciado, donde a importância dos vícios do consentimento na teoria do negócio jurídico. É importante, também, que não se configure o enriquecimento injusto, donde as idéias de lesão e de usura consagradas pelos canonistas. É preciso, enfim, que não se tenha dado a palavra por nada ou por uma causa ilícita ou imoral, donde a origem da teoria da causa, tão importante no regime dos contratos. Reconhecendo como pecado a violação da palavra dada, o direito canônico consagra ainda o acordo de vontades como fonte de obrigações morais e religiosas.22 Com os glosadores, principalmente Bartolo de Saxoferrato,23 firma-se o princípio da autonomia da vontade no direito internacional privado, reconhecido aos particulares o poder de escolher a lei aplicável aos seus contratos. A vontade particular passa a estabelecer o critério de solução dos conflitos de leis em matéria contratual e, assim, a ser fonte de direito, o que vem a ser aceito no direito civil, que também reconhece a vontade particular como poder de estabelecer as regras de sua atuação jurídica, pelo menos no campo das obrigações, como disposto no art. 1.134 do Código francês, segundo o qual "as convenções legalmente estabelecidas fazem lei entre as partes". O que era para os internacionalistas uma noção puramente técnica passou a ser para os civilistas um conceito teórico, traduzindo a convicção de que "a vontade pode, como o Estado, criar direito".24 Com a escola do direito natural, a idéia da origem divina do direito substitui-se pela das liberdades naturais, que se consideram fundamento e fim do direito. "Declara-se que existem leis da natureza descobertas pela razão que devem dominar as legislações. Essas leis fundamentam e favorecem a sociedade dos homens. Ora, não há regra mais favorável à sociedade dos homens que aquela que consiste em dizer que se é obrigado pelo contrato e porque se quis isso. O contrato é a manifestação da vontade humana, e a liberdade contratual, uma das liberdades naturais."25 Também a teoria do contrato social, de Jean-Jacques Rousseau, contribui, no plano filosófico, para a teoria da autonomia da vontade. O homem é naturalmente livre; a vida em sociedade exige, todavia, um certo abandono desta liberdade, mas este abandono não se concede senão quando livremente consentido, nos limites e nas condições que este contrato social determinou.25 Segundo essa teoria, a autoridade pública tem por base a concordância dos sujeitos de direito, que se unem para formar a sociedade, abandonando, pelo contrato social, uma parte dos direitos que a natureza lhe tinha dado. A vida em sociedade não seria possível se cada um quisesse exercer ao máximo sua liberdade, sendo preciso renunciar a alguns direitos pelo contrato social. A convenção, o acordo, é a base de toda autoridade entre os homens, sendo que a própria autoridade pública extrai o seu poder de uma convenção. Com a filosofia de Kant, que teve definitiva influência, a autonomia da vontade adquire conotação dogmática, passando a imperativo categórico de ordem moral, afirmando-se na Metafísica do Direito (1796) que "a vontade individual é a única fonte de toda obrigação jurídica".27 Na Alemanha, suas idéias serviram de substrato à famosa Willenstheorie,2S e na França, a tradução do seu livro consagra definitivamente a autonomia da vontade, expressão tirada da sua obra Crítica da razão prática. Argumentos decisivos da autonomia da vontade como princípio e forma de poder jurídico encontram-se ainda no campo econômico, impondo-se em toda a sua plenitude com a doutrina do liberalismo "pelo qual o livre jogo das vontades particulares assegura o máximo de produção e os preços mais baixos, corno efeito da livre concorrência". O seu instrumento é o contrato que deve ser preservado como produto da liberdade integral de suas partes, afastados os obstáculos à livre circulação dos bens. E o princípio do laissez-faire, laissez-passer, laissez-contracter, que vem a ser juridicamente formalizado no art. 1.334 do Código Civil francês, como acima referido. Na Alemanha e na Itália, o notável desenvolvimento da doutrina leva o princípio da autonomia da vontade a nova dimensão, com significado até diverso para alguns juristas, que passaram a considerá-lo, objetivamente, como verdadeiro poder jurídico dos particulares, denominando-se, por isso, autonomia privada,29 poder de estabelecer normas jurídicas individuais para regulamentar sua própria atividade jurídica, manifestada a vontade por meio de figura específica, o negócio jurídico. No direito civil brasileiro não tivemos até agora maior receptividade para essa doutrina, o que se compreende à luz da evolução política da sociedade brasileira, onde os valores tio individualismo e do liberalismo sempre foram postergados pela atuação de um Estado historicamente unitário, centralizador, auto-crático e intervencionista.30 Diversa é, todavia, a opinião no campo da filosofia do direito, onde se reconhece o poder e a legitimidade da vontade particular como fonte do direito31. 7. A função histórica da autonomia privada. Fundamento ideológico. A concepção teórica da autonomia privada é produto do individualismo que reúne e consolida tendências anteriores já verificadas no direito romano, no direito canônico, na teoria do contrato social e no liberalismo econômico, e que se manifesta, historicamente, no jusnaturalismo e, filosoficamente, na doutrina de Kant, cujo pensamento é uma das expressões mais rigorosas do estado liberal.32 Seu fundamento básico é a liberdade como poder jurídico, e sua função se deduz das condições econômicas e sociais em que se afirmou como poder jurídico. Importante, pois, para explicitar-se tal função, o processo econômico em que nasceu e se desenvolveu ----------------------14 Hernandez Gil. El Concepto dei Derecho Civil, apud Federico Puig Pena, Compêndio de Derecho Civil Espanol, I, p. 21. 15 Castanheira Neves, Fontes do direito, in Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. 2, p. 1.566; Noberto Bobbio. Dalla strutura alia funzione. Nuovi studi di teoria dei diritto, p. 51. 16 Paul Orianne. Introduction au système juridique, p 145 e segs. 17 Rosário Nicoló, Diritto civile, in Enciclopédia dei diritto, vol. XII, p. 909. Cesare Grassetti e Ugo Carnevalli, Diritto civile, in Novissimo digesto italiano, apêndice II, p. 1.160 e segs. 18 Giuseppe Stolfi. Teoria dei Negozio Jurídico, p. XXI. Rosário Nicoló, p. 907. 19 Eduardo Garcia Maynez. Filosofia dei Derecho, pp. 389 e 391. 20 Mareei Walline. L'individualisme et lê droit, pp. 14, 18 e 20. 21 Quando alguém celebrar um contrato, "conforme o que for deliberado, seja direito, tenha força de lei". Lei das XII Tábuas, Tábua Sexta, De domínio et possessione (do direito de propriedade e da posse), Sebastião Cruz. Direito Romano, p. 202. 22 O direito canônico é o direito da Igreja latina. Seu nome deriva do fato de, no Oriente, as leis eclesiásticas chamarem-se cânones. Constitui-se das normas estabelecidas pelo Papa e pelos concilies ecumênicos, das concordatas entre a Santa Sé e os Estados e as leis e decretos de autoridades eclesiásticas inferiores. Seu principal instrumento é o Código de Direito Canônico, promulgado o último pelo Papa João Paulo II, a 25 de janeiro de 1983, para viger a partir de 27 de novembro do mesmo ano. 23 Bartolo de Saxoferrato (1314-1357), o mais célebre dos pósglosadores, um dos construtores do direito internacional privado, com os princípios locus regit actum e lex rei sitae. Cf. Haroldo Valladão. Autonomia da vontade no direito internacional privado, p. 34. 24 Veronique Ranouil. L'autonomie de La volante. Naissance et évolution d'un concept, p. 68. 25 Alex Weil et François Terré. Droit civil. Lês obligations, p. 51. 26 Boris Stark. Obligations, p. 341. 27 Emmanuel Kant. Princípios sobre a metafísica dos costumes, p. 144. Sobre a origem da expressão, Cf. Veronique Ranouil, op. cit., pp. 42, 76 e 84. 28 Willenstheorie (teoria da vontade), segundo a qual, nas declarações de vontade, o intérprete deve atender mais à vontade subjetiva do agente do que ao aspecto formal de sua declaração. 29 Hans Kelsen, Teoria generale dei diritto e dello stato, p. 139; Luigi Ferri, L"autonomia privata, p. 5. Ana Prata. A Tutela Constitucional da Autonomia Privada, p. 5; Mário Bigotte Chorão. Temas Fundamentais de Direito, p. 254 e segs.; Orlando Gomes, Autonomia privada, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 9, São Paulo, 1977, p. 258; Do autor. Da Irretroatividade da Condição Suspensiva, p. 43 e segs. E ainda, A autonomia privada como poder jurídico, in Estudos jurídicos em homenagem ao Prof. Caio Mário da Silva Pereira, 1984, p. 286. Werner Flume, Allgemeiner Teil dês Eürgerlichen Rechts, p. l e seg. Rodolfo Sacco, Autonomia nel diritto privato, in Digesto delle Discipline Privatistiche, I, p. 517. 30 R. A. Amaral Vieira, Intervencionismo e Autoritarismo no Brasil, pp. 15 e 20; Emilia Viotti da Costa, Da Monarquia à República. Momentos Decisivos, pp. 6, 9 e 27. 31 Miguel Reale, Lições Preliminares do Direito, p. 179 32 Noberto Bobbio. Diritto e status nel pensiero di Emmanuel Kant, p. 1. ----------------------o princípio da liberdade, ou melhor, do poder individual como fonte normativa. Com o desenvolvimento do comércio e da indústria, da divisão do trabalho e da especialização, aumenta o intercâmbio de bens e serviços, e o princípio da autonomia da vontade torna-se extremamente útil para o desenvolvimento desse processo, acreditando o pensamento econômico liberal, na sua expressão mais pura, que a lei da oferta e da procura responde aos interesses da sociedade. Nessa perspectiva econômica, uma breve revisão histórica mostra-nos que o dogma da vontade nasce também do direito de propriedade. Na Idade Média, a fonte principal da riqueza e produção era a terra, e o direito principal, a propriedade. A evolução política e econômica torna, porém, distinta a propriedade da terra da dos demais bens de produção, estes a base do comércio e da indústria, de que eram titulares os construtores da economia capitalista, os burgueses, interessados no desenvolvimento do intercâmbio comercial. Esse processo leva à jurisdicização das relações de troca, isto é, a um direito que permitisse a livre circulação dos bens e dos sujeitos, na dinâmica do próprio sistema. A generalização das trocas configura uma nova força, um novo poder, que se destaca do direito de propriedade, e que é, precisamente, o poder da vontade que se realiza na liberdade de troca e na liberdade de atuação no mercado, correspondente ao que hoje denominamos liberdade de iniciativa econômica. A autonomia da vontade traduz, portanto, um poder de disposição diretamente ligado ao direito de propriedade, dentro do sistema de mercado da circulação dos bens por meio de troca, e de que o instrumento jurídico próprio é o negócio jurídico. Essa autonomia significa, conseqüentemente, que o sujeito é livre para contratar, escolher com quem contratar e estabelecer o conteúdo do contrato. A autonomia privada teria, assim, como fundamento prático, a propriedade particular e, como função, a livre circulação dos bens,33 o que pressupõe, também, a igualdade formal dos sujeitos, isto é, a igualdade de todos perante a lei. A autonomia privada revela-se, portanto, como produto e como instrumento de um processo político e econômico baseado na liberdade e na igualdade formal, com positivação jurídica nos direitos subjetivos de propriedade e de liberdade de iniciativa econômica. Seu fundamento ideológico é, portanto, o liberalismo, como doutrina que, entre outras formulações, faz da liberdade o princípio orientador da criação jurídica no âmbito do direito privado, pelo menos no seu campo maior que é o do direito das obrigações. Com a intervenção posterior do Estado, e a respectiva legislação especial, limita-se a autonomia da vontade e visa-se estabelecer outro tipo de igualdade, a material, esta referente à possibilidade de acesso a todos os bens e às oportunidades da vida econômico-social. O princípio da autonomia perde seu absolutismo, mas persiste ainda como princípio básico da ordem jurídica privada.34 O interesse geral e a justiça põem-se acima da liberdade individual, mas o direito objetivo respeita o direito subjetivo, pois a superioridade daquele não impede o reconhecimento da autonomia ou, melhor dizendo, de um verdadeiro direito dos particulares. A questão é, apenas, de limites. Permanece, como regra, a liberdade de contratar e de estabelecer o conteúdo do contrato, devendo ser excepcional a intervenção do Estado ao estabelecer a obrigatoriedade de certos contratos e de cláusulas e preços prefixados.35 8. Conseqüências jurídicas do princípio da autonomia privada. Conseqüências imediatas do reconhecimento da autonomia privada são, no direito civil, que é o seu campo por excelência, os princípios da liberdade contratual, da força obrigatória dos contratos, do efeito relativo dos contratos, do consensualismo e da natureza supletiva ou dispositiva da maioria das normas estatais do direito das obrigações, e ainda a teoria dos vícios do consentimento. No campo sucessório, a liberdade de testar e de estabelecer o conteúdo do testamento. E para os que aceitam a vontade como poder jurídico, a concepção normativa do negócio jurídico, isto é, a consideração do negócio como fonte de normas jurídicas, matéria que se inclui no âmbito da filosofia e da teoria geral do direito. A liberdade de iniciativa econômica é a fonte legitimadora da autonomia privada no campo constitucional, como princípio básico da ordem econômica e social. São conceitos correlates mas não coincidentes, na medida em que a primeira focaliza o aspecto econômico, e a segunda, o jurídico, do mesmo fenômeno, havendo, entre eles, uma relação instrumental.36 A liberdade contratual manifesta-se nos seguintes aspectos: liberdade de contratar, de escolher as partes com quem contratar, de estabelecer o tipo, o conteúdo, a forma e os efeitos do contrato. O princípio do consensualismo significa que basta o consentimento, o acordo de vontades, para que o contrato se estabeleça e as obrigações nasçam, não sendo preciso forma especial. Sendo assim, o reconhecimento da autonomia privada contribui para a redução ou até desaparecimento do formalismo típico dos primeiros tempos do direito. A vontade deve ser, porém, livremente manifestada, pelo que os vícios do consentimento revestem-se de grande importância. Se o consentimento não é livre, a manifestação de vontade é defeituosa e, portanto, anulável. Por outro lado, não interessam os motivos da declaração de vontade. Sendo o contrato manifestação de liberdade, não importam os motivos que levaram a tal manifestação. A vontade vale por si mesma, se lícito o respectivo objeto. O princípio da força obrigatória dos contratos significa que a vontade particular, autônoma, estabelece uma lei entre as partes contratantes que se vinculam ao cumprimento das obrigações estabelecidas por essa vontade. Já o efeito relativo dos contratos significa, por sua vez, que a eficácia do contrato, isto é, as obrigações e as regras estabelecidas para o seu cumprimento, produzem efeitos apenas entre as respectivas partes, não afetando terceiros. Para os que vêem na vontade individual um poder jurígeno, o negócio jurídico, seu instrumento, tem eficácia normativa, vale dizer, a manifestação de vontade é fonte de regras jurídicas que, ao lado das estabelecidas em lei, disciplinam as obrigações nascidas desse negócio. As normas que nascem da declaração de vontade são jurídicas, ao lado das que nascem do poder estatal, ou dos costumes, ou dos princípios gerais do direito. "Qualitativamente não há diferença entre as distintas fontes normativas que integram o complexo regulador da relação jurídica concreta, ainda que se estabeleça uma hierarquia entre a norma procedente de cada fonte."37 E no processo de revisão da teoria das fontes de direito, o negócio jurídico, como expressão da autonomia privada, é tido como "ato constitutivo de normatividade jurídica", subordinado à lei mas não dela normativa-mente derivado.38 Em face disso, as normas jurídicas que a lei estabelece no campo da autonomia privada, que é por excelência o das obrigações, são em grande maioria, salvo disposição expressa em contrário ou em virtude de sua natureza de ordem pública ou de bons costumes, dispositivas ou supletivas. 9. As críticas à autonomia privada. Argumentos de natureza filosófica moral e econômica. As mudanças econômicas e sociais decorrentes da revolução industrial e tecnológica, com a passagem de uma economia agrícola e rural para uma industrial e urbana, causaram grandes alterações no sistema de direito privado. Surgiram novos institutos jurídicos, como a empresa, os contratostipos, os de adesão e outras figuras contratuais próprias do desenvolvimento econômico e capitalístico. Tudo isso provoca restrições à liberdade jurídica da parte do Estado intervencionista, que dirige a economia e organiza a produção, dando margem a críticas à autonomia privada que tem profundamente reduzido o seu campo de atuação, limitado aos pequenos negócios da microeconomia. Tais críticas são, também, como os fatores que a fizeram crescer, de ordem filosófica, moral e econômica. Sob o ponto de vista filosófico, constata-se facilmente que ao individualismo se contrapõem as tendências sociais da idade contemporânea. O homem é um ser social, vive necessariamente em grupo, do que lhe advêm inevitáveis restrições e condicionamentos na sua capacidade de agir. Sob o ponto de vista moral, tem-se demonstrado que os princípios da liberdade e da igualdade não se realizam harmonicamente. A igualdade perante a lei é meramente formal; no campo material, vale dizer, no campo das relações sociais e das oportunidades de progresso econômico, as desigualdades são profundas. O exercício da liberdade contratual, por exemplo, pode levar os segmentos sociais mais carentes de recursos e, por isso mesmo, desprovidos do poder de confronto ou de negociação, a acentuados desníveis econômicos, do que é exemplo a miséria das classes menos favorecidas, o que leva o Estado a intervir para equilibrar o poder das partes contratantes, estabelecendo normas imperativas em matéria de ordem pública ou de bons costumes. O legislador limita, assim, a autonomia privada, para o fim de proteger os pólos mais fracos da relação jurídica patrimonial, principalmente em matéria de contratos (locação, empréstimos, seguros, operações financeiras típicas etc.). Sob o ponto de vista econômico, justifica-se a intervenção do Estado na organização e disciplina dos setores básicos da economia, alegando-se a inconveniência, a impossibilidade até, de se deixar às forças do mercado a condução da economia nacional, principalmente nos países em vias de desenvolvimento, onde são mais flagrantes as disparidades econômicas e sociais. A realização dos valores fundamentais da ordem jurídica, a segurança, a justiça, o bem comum, a liberdade, a igualdade e a paz social exigem uma presença cada vez maior do Estado no sentido de equilibrar as forças econômicas e sociais em conflito. Não mais se admite a economia liberal do século XIX, que se substitui por uma economia concertada, com uma intervenção crescente do Estado para o fim de proteger as categorias sociais menos favorecidas, como os trabalhadores assalariados, e organizar a produção e distribuição dos bens e serviços por meio de um conjunto de medidas cuja disciplina jurídica toma o nome de ordem pública econômica. Finalmente, um argumento de natureza ideológica. O princípio da autonomia privada encontra sua razão de ser na expressão mais pura do liberalismo econômico, na época em que o Estado tinha uma função mais política do que econômica ou social. Era o Estado de direito, organizado juridicamente para garantir o respeito aos direitos individuais que encontravam nesse princípio o instrumento de sua plena realização. Com a revolução industrial e tecnológica, e os problemas sociais dela decorrentes, com guerras mundiais de permeio, surge o Estado social, intervencionista, para orientar a vida econômica, protegendo os mais desfavorecidos e promovendo iguais oportunidades de acesso aos bens e vantagens da sociedade contemporânea. No campo do direito privado, dá-se a socialização do direito civil,39 o que representa o primado dos interesses sociais sobre os individuais e, conseqüentemente, a redução do âmbito de atuação soberana da pessoa humana no campo do direito. 10. A intervenção do Estado e os limites da autonomia privada. Assim postas as coisas, vê-se que o individualismo do séc. XIX — resultante das concepções jusnaturalistas e iluministas que se positivaram no Código de Napoleão e no Código Civil alemão (BGB), nos quais a pessoa humana, com sua liberdade e autonomia, era o centro por excelência do universo jurídico, e o direito civil "a garantia dos fins individuais relativos à família e aos bens"40 — foi-se reduzindo gradativamente a partir do começo do século e, acentuadamente, com a Segunda Guerra Mundial, mercê duma progressiva intervenção do Estado, que limita a autonomia privada quando não a elimina totalmente. A intervenção estatal na matéria econômico-jurídica demonstra, assim, a superação do liberalismo econômico e político do séc. XIX, intervindo o Estado com princípios autoritários na economia privada e na vida jurídica em geral. Advoga-se o predomínio dos interesses gerais sobre os particulares e sobrepõe-se o espírito da socialidade e da justiça social ao do puro individualismo dos códigos civis, exigindo-se destes, não a tradicional postura dogmática adequada ao Estado de direito, mas o caráter instrumental de utilidade próprio do Estado social. A passagem do Estado liberal para o Estado intervencionista, com a sua crescente ingerência na organização da vida econômica, conduz assim ao declínio da concepção liberal da economia e a uma conseqüente crítica ideológica do dogma da vontade, principalmente pela doutrina marxista. E os princípios e institutos fundamentais do direito civil, a propriedade, o contrato, --------------------33 Pietro Barcellona. Diritto privato e processo econômico, p. 201, e ainda, Formazione e sviluppo dei diritto privato moderno, p. 274. 34 Jacques Ghestin. Obligations. Lê contrai, p. 119. 35 Barcellona. Diritto privato e processo econômico, p. 226. 36 Francesco Galgano. Rapponi economia, p. 5. A eficácia jurídica da autonomia privada no âmbito constitucional liga-se diretamente ao problema da organização econômica da sociedade que encontra a sua fonte suprema na chamada Constituição Econômica, orientada pelos seguintes princípios: 1) reconhecimento e garantia da propriedade privada (CCF art. 52 e art. 170, II); 2) da liberdade de iniciativa econômica dos particulares (CF art. l2, IV e 170]; 3) a iniciativa pública econômica do Estado quando necessária por motivo de segurança nacional ou de relevante interesse coletivo e 4) o reconhecimento do poder normativo e regulador do Estado, de caráter indicativo para os particulares. É nesse contexto que se conformam os institutos civis da autonomia privada, a propriedade, o contrato, o testamento, a associação e a fundação. Limites da autonomia privada são a ordem pública e os bons costumes. Cfr. A. Lopez/V.L Montes, Derecho Civil, Parte General, pp. 561 e segs. 37 Garcia Amigo, op. cit, p. 215. 38 Castanheira Neves, op. cit., p. 1.566. 39 Jean Carbonnier. Droit civil, p. 69. 40 Grassetti, op. cit., p. 1.162. --------------------o casamento etc., emigram para o texto das Constituições, levando juristas de nomeada a falar na publicização do direito privado.41 Todas essas modificações alteram a fisionomia tradicional do direito civil, repercutindo nas fontes e nos institutos fundamentais, enfim, em toda a matéria do direito privado. No que tange às fontes, além das modificações profundas que o Código Civil sofreu, em grande parte derrogado por abundante legislação específica que fragmentou a unidade legal do direito privado, passando-se da era da codificação (séc. XIX) para a dos microssistemas jurídicos (séc. XX),42 há um aspecto de suma relevância já aludido, que é a consagração de princípios constitucionais pertinentes ao direito privado, diretivas básicas de natureza constitucional sempre vistas como normas programáticas sem eficácia normativa, como os princípios da liberdade, da propriedade e da iniciativa econômica. Além de reconhecidos como princípios normativos, pois que incorporados a textos constitucionais modernos, como o italiano, o português, o brasileiro, o que os torna integrantes do sistema político e lhes confere uma implícita garantia contra eventuais abusos do legislador ordinário, têm o efeito de reduzir o campo das diferenças entre o direito público e o direito privado, hoje conjugados na ação comum de prover ao bem-estar social. Ora, se por um lado vemos a redução do individualismo subjacente aos postulados liberais do direito civil burguês, por outro lado, temos o reconhecimento constitucional desses mesmos postulados, revestidos, é certo, de uma dimensão pública, geral e funcional, no sentido de que, integrados na ordem econômica e social, servem como instrumentos de desenvolvimento e de justiça social. Reconhecida constitucionalmente a liberdade de iniciativa econômica, indiretamente se garante a autonomia privada, em face da íntima relação de instrumentalidade existente entre ambas. Conceitos conexos, mas não coincidentes, a autonomia privada tem caráter instrumental em face da liberdade de iniciativa econômica, pelo que as limitações que a esta se impõem também atuam quanto àquela. E esses limites são a ordem pública, na sua espécie de ordem pública e social de direção, sob a forma de intervencionismo neoliberal ou de dirigismo econômico, e os bons costumes, as regras morais, sendo que o intervencionismo neoliberal não se opõe à liberalidade contratual nem à livre concorrência, apenas visa evitar a que for desleal, r a proteger o consumidor, enquanto que o dirigismo, opondo-se à liberdade contratual, submete-se às exigências da planificação econômica, imperativa ou indicativa.43 Tudo isso implica a redução do âmbito de atuação da autonomia privada. Como princípio fundamental da ordem jurídica civil, teve maior importância nas épocas de mais acentuado individualismo, mas, com as tendências sociais em matéria de contrato, a proliferação das leis especiais e as crescentes restrições à liberdade contratual, assiste-se à redução de seu campo, embora permanecendo como princípio fundamental do direito privado, aplicável nos setores em que o direito estatal permite, basicamente, o direito das obrigações. O problema da autonomia privada é, portanto e somente, um problema de limites que se colocam, por exemplo, com o dever ou a proibição de contratar, a necessidade de aceitar regulamentos predeterminados, a inserção ou substituição de cláusulas contratuais, o princípio da boa-fé, os preceitos de ordem pública, os bons costumes, a justiça contratual, as disposições sobre abuso de direito etc., tudo isso a representar as exigências crescentes de solidariedade e de socialidade. Um bom exemplo das limitações da autonomia é o do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990) nos dispositivos referentes à responsabilidade civil (cap. IV) às práticas comerciais (cap. V), à proteção contratual (cap. VI, seções I e U). 11. A funcionalização dos institutos de direito privado. A autonomia privada em uma perspectiva funcional Aspecto novo a salientar no tratamento desta matéria é o da funcionalização dos principais institutos de direito civil, a propriedade e o contrato e, conseqüentemente, a autonomia privada. Que significa a funcionalização de tais institutos? Para a concepção estrutural, científica, do direito, a ciência jurídica não deve ocupar-se com as funções que ele possa desempenhar, mas somente com os seus elementos estruturais, deixando-se a análise funcional para a sociologia e a filosofia. Ocorre, porém, que o recurso às ciências sociais permite melhor compreensão do fenômeno jurídico, revelando, outrossiin, a íntima relação que existe entre a teoria estrutural do direito e a abordagem técnico-jurídica, de um lado, e a teoria funcional e o estudo sociológico, de outro. Esta conexão é característica dos estudos jurídicos contemporâneos, considerando-se essencial para o jurista saber não apenas como o direito é feito mas também para o que serve, vale dizer, a sua causa final. Aparece assim o conceito de função em direito, significando o papel que um princípio, norma ou instituto desempenha no interior de um sistema ou estrutura.44 A referência à função social ou econômico-social de um princípio, um instituto, uma categoria jurídica, neste caso a autonomia privada e o seu instrumento de realização, o negócio jurídico, significa a aproximação do direito com as demais ciências sociais, como a sociologia, a economia, a ciência política, antropologia, em um processo interdisciplinar de resposta às questões que a sociedade contemporânea apresenta ao jurista, considerado não mais como a "figura tradicional de cultor do direito privado, ancorado aos dogmas das tradicionais características civilísticas", mas atento à realidade do seu tempo, a exigir-lhe uma postura crítica em prol de uma ordem mais justa na sociedade.45 A funcionalização dos institutos jurídicos significa, então, que o direito em particular e a sociedade em geral começam a interessar-se pela eficácia das normas e dos institutos vigentes, não só no tocante ao controle ou disciplina social, mas também no que diz respeito à organização e direção da sociedade, abandonando-se a costumeira função repressiva tradicionalmente atribuída ao direito, em favor de novas funções, de natureza distributiva, promocional e inovadora, principalmente na relação do direito com a economia. Surge, assim, o conceito de função no direito, ou melhor, dos institutos jurídicos,46 inicialmente em matéria de propriedade e, depois, de contrato. Representa, assim, a função econômicosocial, a preocupação com a eficácia social do instituto, e, no caso particular da autonomia privada, significa que o reconhecimento e o exercício desse poder, ao realizar-se na promoção da livre circulação de bens e de prestação de serviços e na auto-regulamentação das relações disso decorrentes, condicionam-se à utilidade social que tal circulação possa representar, com vistas ao bem comum e à igualdade material para todos, idéia que "se desenvolve paralelamente à evolução do Estado moderno como ente ou legislador racional". De tudo isso resulta que a funcionalização de um princípio, norma, instituto ou direito implica, na sua positivação normativa, o reconhecimento de limites que o ordenamento jurídico, ou algum de seus princípios vinculantes, estabelece para o exercício das faculdades subjetivas (em face de situações concretas) que possa caracterizar abuso de direito. Emprestar ao direito uma função social significa considerar que os interesses da sociedade se sobrepõem aos do indivíduo, sem que isso implique, necessariamente, a anulação da pessoa humana, justificando-se a ação do Estado pela necessidade de acabar com as injustiças sociais. Função social significa não-individual, sendo critério de valoração de situações jurídicas conexas ao desenvolvimento das atividades da ordem econômica. Seu objetivo é o bem comum, o bem-estar econômico coletivo. A idéia de função social deve entender-se, portanto, em relação ao quadro ideológico e sistemático em que se desenvolve,47 abrindo a discussão em torno da possibilidade de se realizarem os interesses sociais, sem desconsiderar ou eliminar os do indivíduo. Sistematicamente, atua no âmbito dos fins básicos da propriedade, da garantia de liberdade e, conseqüentemente, da afirmação da pessoa. E ainda, historicamente, o recurso à função social demonstra a consciência político-jurídica de se realizarem os interesses públicos de modo diverso do até então proposto pela ciência tradicional do direito privado, liberal e capitalista. Neste particular, pode-se dizer que "revoga um dos pontos cardeais do sistema privatista, o direito subjetivo modelado sobre a estrutura da propriedade absoluta", o que poderia sugerir uma certa incompatibilidade entre a idéia de função social e a própria natureza do direito subjetivo. Mas o que se assenta, é que a função social se configura como princípio superior ordenador da disciplina da propriedade e do contrato, legitimando a intervenção do estado por meio de normas excepcionais, operando ainda como critério de interpretação jurídica. A função social é por tudo isso, um princípio geral, um verdadeiro standard jurídico, uma diretiva mais ou menos flexível, uma indicação programática que não colide nem torna ineficazes os direitos subjetivos, orientando-lhes o respectivo exercício na direção mais con-sentânea com o bem comum e a justiça social. E é precisamente o contrato, instrumento da autonomia privada, o campo de maior aceitação dessa teoria, acolhida primeiramente no Código Civil italiano, art. 1.322, segundo o qual podem as partes determinar livremente o conteúdo do contrato nos limites impostos por lei e celebrar contratos atípicos ou inominados, desde que destinados a realizar interesses dignos de tutela, segundo o ordenamento jurídico. Do mesmo modo e de forma idêntica a consagra o Código Civil português no seu art. 405-, ao dispor que as partes podem livremente fixar o conteúdo do contrato, nos limites da lei, e celebrar contratos diferentes dos previstos no mesmo Código, completando-se esse com o art. 280-, que fixa limites ao exercício da autonomia privada, estabelecendo a nulidade do negócio jurídico contrário à ordem pública ou aos bons costumes. Consagrada, assim, a função econômico-social dos institutos jurídicos e, implicitamente, da autonomia privada, temos que o exercício deste poder jurídico deve limitar-se, de modo geral, pela ordem pública e pelos bons costumes e, em particular, pela utilidade que possa ter na consecução dos interesses gerais da comunidade, com vistas ao desenvolvimento econômico e ao seu bem-estar social. O que se pretende, enfim, é a realização da justiça social, sem prejuízo da liberdade da pessoa humana. É precisamente com esse entendimento que a autonomia privada pode e deve direcionar-se. A idéia de justiça que se realiza na dimensão comutativa, entre particulares, iguais nos seus direitos, e distributiva, entre esses e o Estado aparece agora com nova dimensão, a justiça social que se insere em uma outra categoria, a justiça geral, que diz respeito aos deveres das pessoas em relação à sociedade,48 superando-se o individualismo jurídico em favor dos interesses comunitários e corrigindo-se os excessos da autonomia da vontade dos primórdios do liberalismo e do capitalismo. O direito é, assim, chamado a exercer uma função corretora e de equilíbrio dos interesses dos vários setores da sociedade, para o que limita, em maior ou menor grau de intensidade, o poder jurídico do sujeito, mas sem desconsiderá-lo, já que ele é, em última análise, o substrato políti-cojurídico do sistema em vigor nas sociedades democráticas e desenvolvidas do mundo contemporâneo que se caracterizam, precisamente, pela conjunção da liberdade individual com a justiça social e a racionalidade econômica. Embora, sob o ponto de vista técnico-jurídico, o princípio da autonomia privada se apresente bastante limitado nas possibilidades de seu exercício pela ingerência do Estado na economia, hoje em dia menor pela tendência à privatização e à desregulamentação que perpassa pelas nações desenvolvidas do mundo ocidental, por outro lado, sob o ponto de vista político, constitui-se em um âmbito de atuação político-jurídico individual com eficácia jurídica, garantia de sobrevivência e de realização dos postulados básicos da liberdade e do valor jurídico da pessoa humana. Exemplo do reconhecimento e da limitação funcional da autonomia privada no direito brasileiro é o disposto no art. 421 do Código Civil, segundo o qual a liberdade de contratar será exercida nos limites da função social do contrato. Significa isso que esse poder só pode exercer-se em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boafé e da probidade49. -------------------41 René Savatier. Du droit civil au droit public, p. 13. 42 Orlando Gomes, A caminho dos microssistemas, p. 40 e segs.; Natalino Irti. L'ela delia decodificazione, p. 27. 43 Washington Peluso Albino de Souza. Direito Econômico, pp. 189/195; Ghes-tin, op. cit., pp. 83/85; Gérard Farjart. Droit économique, p. 70. 44 Bobbio, op. cit., p. 90; J. Durão Barroso, Função, p. 1.606. 45 Castanheira Neves, O direito como alternativa humana, p. 34. Para uma visão crítica do direito civil, utilizando categorias fundamentais do marxismo (como formação econômica e social, conflitos de classe etc.), e visando a construir uma ciência jurídica própria do capitalismo contemporâneo, cf. Orlando Gomes. Transformações Gerais do Direito das Obrigações, e Novos Temas de Direito Civil, Orlando de Carvalho. A Teoria Geral da Relação Jurídica; Vital Moreira. A Ordem Jurídica do Capitalismo; Stefano Rodotà. // diritto privato nella societá moderna; Pietro Barcellona. Diritto privato e societá moderna; Francesco Galgano. Lê istiluzione deli'economia capitalistica; Francesco Galgano e Stefano Rodotà. Rapporti fíconomici; Francesco Lucarelli, Diritto civile e istituti privatistici; Cláudio Varro-ne. Ideologia e dogmática nella teoria dei negozio giuridico; Karl Renner. Gli istituti dei diritto privato; André-Jean Arnaud, Essai d'analyse structurale du Code Civil jrançais e Lês Juristes face à Ia societê; Michel Miaille. Uma Introdução Crítica do Direito; Michael Tigar e Madeleine R. Levy. O Direito e a Ascensão do Capitalismo. 46 Karl Renner. Gli istituti dei diritto privato, p. 46. 47 Galgano, op. cit., p. 95. "Historicamente, o recurso à função social serve para destacar uma dimensão segundo a qual o aumento da compressão dos poderes dos proprietários por efeito da intervenção do Estado é acompanhado da convicção de que tal acontece pela necessidade de realizarem-se interesses públicos de modo diverso do tradicional. Conceitualmente, revoga um dos eixos da dogmática privada, o do direito subjetivo, modelado precisamente sobre a estrutura da sociedade absoluta. Ideologicamente, abre a discussão em torno da possibilidade de realização verdadeira de interesses sociais sem eliminar-se integralmente a propriedade privada dos bens." Stefano Rodotà. Rapporti economici, p. 112. 48 Bigotte Chorão, Justiça, p. 914. 49 Miguel Reale, O Projeto do Novo Código Civil, p. 71 -------------------CAPITULO XI Teoria Geral do Negócio Jurídico Sumário: l. O negócio jurídico. Conceito. Distinção do ato jurídico em senso estrito. Importância. 2. Notícia histórica. Nascimento e evolução do conceito. Razão de ser e função ideológica. 3. Crítica e superação do conceito de negócio jurídico. 4. A importância da vontade e da declaração na teoria do negócio jurídico. Concepções subjetiva e objetiva. 5. As teorias perceptiva e normativa. 6. O problema da norma jurídica negociai. 7. A relação entre a vontade e seus objetivos. 8. Classificação dos negócios jurídicos. 1. O negócio jurídico. Conceito. Distinção do ato jurídico em senso estrito. Importância. Por negócio jurídico deve-se entender a declaração de vontade privada destinada a produzir efeitos que o agente pretende o o direito reconhece. Tais efeitos são a constituição, modificação ou extinção de relações jurídicas, de modo vinculante, obrigatório paro as partes intervenientes.1 O Código Civil brasileiro de 2002 acolhe expressamente a figura cio negócio jurídico, como categoria geral compreensiva das declarações de vontade destinadas à criação, modificação e extinção das relações jurídicas. Afastou-se, assim, da concepção unitária do ato jurídico perfilhada pelo Código Civil de 1916, art. 81, embora esse artigo, referindo-se ao ato, definisse o negócio jurídico. Seguiu, também, o Código de 2002, a orientação, nesse particular, dos Anteprojetos anteriores de Código de Obrigações.2 A formulação do conceito parte de dois elementos: a) uma vontade particular dirigida à produção de determinados efeitos, com o que as pessoas regulam os seus interesses; e b) o reconhecimento, pelo sistema legal, do poder de os particulares regularem assim os seus interesses (autonomia privada). Este princípio, embora fundamental nos sistemas de direito privado de natureza liberal, não está expressamente previsto no direito civil brasileiro, salvo no seu pressuposto constitucional, que é a liberdade de iniciativa econômica (CF, art. l-, IV]. De qualquer modo, o negócio jurídico é o meio de realização da autonomia privada,3 e o contrato o seu símbolo. Ato jurídico em senso estrito e negócio jurídico são manifestações de vontade, mas diferem quanto à estrutura, à função e aos respectivos efeitos. Quanto à estrutura, enquanto no primeiro temos uma ação e uma vontade simples, no segundo, temos uma ação e uma vontade qualificada, que é a de produzir um efeito jurídico determinado. No negócio jurídico a vontade caracteriza-se por sua finalidade específica, que é a gênese, modificação ou extinção de direitos.4 É chamada vontade negociai, que tem objetivo próprio e é normativa e vinculante, no sentido de estabelecer as normas reguladoras dos interesses das partes. O negócio jurídico é, portanto, exercício de autonomia privada, tendo, por isso, conteúdo normativo. A sua essência está nos dois elementos, vontade e autonomia privada. O ato jurídico em senso estrito não tem esse conteúdo. A vontade que exprime não se dirige à produção de efeitos jurídicos específicos desejados pelo agente. Eles dependem da lei, onde já estão previstos. Quanto à função que podem exercer, o negócio jurídico é o instrumento com que o particular dispõe de seus direitos, o que não se verifica com o ato jurídico em senso estrito, cujos efeitos é a lei que estabelece. Diz-se, por isso, que este serve aos interesses gerais da comunidade, enquanto aquele se encontra a serviço dos interesses privados.5 Quanto aos efeitos, no ato jurídico em senso estrito é a própria lei a determiná-los, enquanto no negócio jurídico é a vontade dos particulares. A eficácia do primeiro está prevista em lei, não tendo especial importância a intenção do agente. Já o negócio, ao contrário, não produz efeitos que o agente não tenha querido.6 No contrato, por exemplo, espécie mais importante no gênero negócio jurídico, os efeitos são os que as partes lhe conferem, no exercício de sua autonomia, desde que conforme à lei, à ordem pública e aos bons costumes. Já no casamento, ou na aquisição de propriedade móvel (por ocupação, confusão, comistão, adjunção ou usucapião), espécies de ato jurídico em senso estrito, os efeitos são os que a própria lei, o Código Civil, estabelece para a declaração de vontade. Certo é também que o mesmo evento, conforme a natureza da vontade expressa, pode ser um fato, ato ou negócio, por exemplo, a aquisição da propriedade imóvel. No caso de acessão (CC, art. 1.248, I, II, III), existe um fato jurídico, um acontecimento natural conduzente à aquisição originária da propriedade. A aquisição por ocupação prolongada (usucapião), sendo comportamento voluntário, é ato jurídico em senso estrito. Já a aquisição derivada, por compra e venda, ou doação, devidamente transcritas, é negócio jurídico. Conclui-se, portanto, que no ato jurídico em senso estrito os eleitos são ex lege, enquanto no negócio jurídico são ex voluntate. Ainda como critério distintivo pode acrescentar-se que no negócio jurídico, pela importância de que se reveste a vontade, têm maior relevo os chamados vícios do consentimento (erro, dolo e coação) do que no ato jurídico em senso estrito. Em resumo, a diferença específica entre as duas espécies reside na circunstância de o negócio jurídico ser instrumento da autonomia privada, do que lhe advêm certas peculiaridades quanto à estrutura, função e efeitos. Para finalizar, cabe dizer qual a utilidade do conceito de negócio jurídico, sabido que os conceitos e as construções teóricas não têm valor em si mas como instrumento de compreensão e realização do direito. O conceito é útil porque está a serviço da liberdade e da autonomia privada, desempenhando relevante papel na criação e modificação das relações jurídicas e nos direitos subjetivos, servindo para distinguir os atos que pertencem à categoria do negócio dos outros que lhe são estranhos. Logo, onde não for admitida a autonomia privada, como na quase totalidade dos atos de direito de família, não haverá negócio jurídico. Por outro lado, como categoria lógica, permite à doutrina reunir, classificar, definir,7 o que facilita a interpretação dos atos mais comuns da vida humana, contratos, testamentos, promessas etc. Além disso, como figura abstrata que é, reúne os princípios comuns às várias espécies de manifestação de vontade com que as pessoas dispõem juridicamente de seus interesses. Temos na prática jurídica diária muitos atos que não se encaixam nos tipos legais previstos. Vendas, empréstimos, acordos etc., manifestações volitivas que não correspondem ao que a lei estabelece, criados pela necessidade de se dar forma jurídica às mais diversas manifestações de vontade. Daí a vantagem de uma figura abstrata, como a do negócio jurídico, que reúna os elementos essenciais das variadíssimas manifestações de autonomia privada, com uma disciplina comum para todas. E como os atos jurídicos em senso estrito não constituem uma categoria homogênea, não sendo, por isso, possível submetê-los a uma única disciplina, a eles se aplicam, no que couber, as disposições legais do negócio jurídico (CC. art. 185).8 2. Notícia histórica. Nascimento e evolução do conceito. Razão de ser e função ideológica. A compreensão do significado, importância, razão de ser e função ideológica do negócio jurídico exige breve notícia histórica sobre a sua gênese e evolução. O negócio jurídico é categoria recente. Nasce durante o séc. XVIII, como produto do grande esforço de abstração dos civilistas alemães, que criaram um sistema de direito privado baseado na liberdade dos particulares, tendo ao centro o negócio jurídico como paradigma típico da manifestação de vontade.9 Afirma-se, por isso, ser a teoria do negócio jurídico a glória da ciência pandectística alemã. Elabora-se a sua teoria a partir dos textos romanos de Justiniano, do Corpus iuris civilis, considerado direito comum, tendo como fundamento o princípio da autonomia da vontade. O direito romano não conheceu o negócio jurídico como categoria lógica, que seria fruto de uma abstração a que os juristas romanos, práticos e objetivos, não se dedicaram. Mas já continha os elementos com que a pandectística alemã trabalharia na elaboração de tal conceito, isto é, a vontade humana e os efeitos que dela podem diretamente derivar. O termo negócio jurídico, de nec + otium, com o sentido de atividade que realize interesse de ordem patrimonial, deve-se a Nettelbladt, em 1749,10 mas a sua completa formulação dá-se com Savigny,11 que o define como "espécie de fatos jurídicos que não -----------------1 Do Autor, Negócio jurídico, p. 170; José de Abreu. O Negócio Jurídico e sua Teoria Geral, p. 72; Antônio Junqueira de Azevedo. Negócio Jurídico, Existência, Validade, Eficácia, p. 20; Eduardo Espínola. Sistema do Direito Civil Brasileiro, p. 236; Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, p. 3; Vicente Ráo. Ato Jurídico; Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 237; Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, vol. I, p. 327; Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de Direito Civil, p. 359; Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, \- volume, p. 212; Fábio Maria de Mattia, Ato jurídico em senso estrito e negócio jurídico, p. 36; Manoel Domingues de Andrade. Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 25; Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria Geral do Direito Civil, p. 379; João de Castro Mendes. Direito Civil, Teoria Geral, vol. III, p. 29; Manuel Garcia Amigo, Instituciones de Derecho Civil, I, p. 654; Karl Larenz. Allgemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts, p. 272; Warner Flume. Allgemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts. Dês Rechtsgeschãft, p. 23; Francesco Galgano, Negozio giuridico, in Enciclopédia dei diritto, XXVII, p. 932; Giuseppe Mirabelli. Negozio Giuridico (Teoria), XXVII, p. 1; Stefano Rodotà. // diritto privato nella societá moderna, p. 205 e segs.; Santos Cifuentes. Negócio Jurídico, p. 126; Pietro Karcellona, Diritto privato e societá moderna, Napoli, Jovene Editore, 1996, p. 421 e segs. 2 Anteprojeto de Código de Obrigações de Orozimbo Nonato, Hahnemann Guimarães e Filadelfo Azevedo, 1941, e Projeto de Código de Obrigações de Caio Mario da Silva Pereira, de 1965. 3 Larenz, op. cit., p. 422; Flume, op. cit. p. 48; do Autor, op. cit., p. 175. 4 Savigny. Sistema dei Derecho Romano Atual, vol. III, p. 114. 5 Francisco Santoro-Passarelli, Atto giuridico, in Enciclopédia dei diritto, IV, p. 209. 6 Galgano, op. cit., p. 932. 7 José Antônio Doral e Miguel Angel dei Arco. El Negocio Jurídico, p. 34. 8 Orlando Gomes, op. cit., n2* 170 e 171. "A importância da teoria do negócio jurídico no processo de elaboração conceituai da modernidade é notável; ela constitui a mais eficaz representação do princípio da liberdade jurídica no campo das relações patrimoniais e, ao mesmo tempo, a inovação conceituai destinada a produzir as mais profundas modificações na organização das relações interindivi-duais." Barcellona, op. cit., p. 426/427. 9 Giuseppe Stolfi. Teoria dei Negocio Jurídico, p. XVIII. 10 Francesco Calasso. // negoiio giuridico, p. 340; Mirabelli, op. cit., p. 1. nota 1; Pontes de Miranda, op. cit., p. 4, de modo diverso. 11 Savigny, op. cit., tomo II, p. 202. -----------------são apenas ações livres, mas em que a vontade dos sujeitos se dirige imediatamente à constituição ou extinção de uma relação jurídica". A criação do conceito deve-se a razões de ordem filosófica, política e econômica. No plano filosófico é produto do jusnaturalismo, que reafirmava a liberdade como princípio inato dos indivíduos, liberdade como poder de a vontade atuar com eficácia. Quod radix libertatis est voluntas}2 Sob esse aspecto, é categoria elaborada dentro de uma teoria jurídica que privilegia o sujeito de direito, e pensada em função da unidade desse sujeito.13 Ao lado da liberdade figurava outro valor — também fundamental nesse período histórico —, a igualdade. Mas esta era meramente formal, dos sujeitos perante o direito, independentemente de suas condições pessoais de existência e de igualdade de oportunidades. O objetivo era, assim, criar um direito igual para todos, sem distinção de classes, o que obtém-se com a obra dos pandectistas, que chegam a notável ponto de abstração, como o conceito de negócio jurídico, aplicável a todos os atos jurídicos em que o sujeito visasse determinados fins. O negócio jurídico resulta, assim, de um processo de abstração, a partir da liberdade e da igualdade formal de todos perante o direito, processo que se inicia com a Revolução Francesa e que tem por objetivo estabelecer um direito geral e abstrato, aplicável a todos, sem distinções de classe. Vontade e liberdade dentro do processo social e do processo econômico, onde se reconhece a propriedade privada dos bens de produção e a circulação dos bens como processo de cooperação entre os indivíduos.14 A esse aspecto ligava-se o político, que via na vontade particular um instrumento de luta contra o feudalismo e seus privilégios. E o negócio jurídico, como instrumento dessa vontade, firmava-se como conseqüência do princípio político da autonomia privada, considerada como fonte e medida dos direitos subjetivos, como força criadora do direito, enfim. E na esteira das idéias filosóficas de Hobbes e Rousseau, que contrapunham os direitos individuais aos do Estado e das corporações, Emmanuel Kant confere ao dogma da vontadr a sua formulação mais precisa e categórica, ao estabelecer que a vontade individual é a única fonte de toda obrigação jurídica.1^ O direito reconhece, então, eficácia jurídica à declaração de vontade individual destinada a produzir efeitos que o agente pretende, principalmente no setor econômico. Tal declaração é o negócio jurídico, com função paralela ao do direito subjetivo, pois ambos estão a serviço da liberdade e da autonomia da vontade.16 E causa da dinâmica jurídica, como instrumento de realização do princípio da liberdade no direito privado.17 A categoria do negócio jurídico surge, assim, como produto diurna filosofia político-jurídica que, a partir de uma teoria do sujeito, com base na sua liberdade e igualdade formal, constrói uma figura unitária capaz de englobar, reunir, todos os fenômenos jurídicos decorrentes das manifestações de vontade dos sujeitos no campo da sua atividade jurídicopatrimonial. Artífices desse processo foram, depois de Savigny, Windscheid e Dernburg, inserindo-se tal figura no Código Civil alemão.18 Liberdade e igualdade constituem-se, assim, nos princípios orientadores do processo de criação jurídica desse período, diretamente ligado ao processo econômico, de que o poder da vontade como exercício de liberdade jurídica era exigência essencial,19 pois "o desenvolvimento do comércio e da indústria, a divisão do trabalho e a especialização multiplicam o escambo". A lei econômica da oferta e da procura e a liberdade contratual atendem ao interesse de todos e à justiça, de modo que, para favorecer o intercâmbio e o desenvolvimento econômico, é necessário eliminar os obstáculos à livre circulação dos bens. É o princípio do laissez-faire, laissez-passer que se completa com o laissez-contracter.20 São as convenções que estabelecem o preço justo, sendo a "justiça contratual um fato determinado pela livre concorrência, não uma exigência ideal". Surge assim, no campo econômico, e com evidente conotação ideológica, a idéia de que o negócio jurídico foi o instrumento criado para facilitar à classe mercantil a circulação de bens e serviços, e assim desenvolver o sistema de produção e consumo.21 Segundo tal perspectiva, o processo de produção e o de circulação de bens em um mercado de concorrência justificaria a criação de tal figura no quadro do sistema jurídico. Nascida no direito alemão, primeiro na doutrina, depois objetivada no Código Civil (BGB), a teoria do negócio jurídico passa à doutrina italiana, à espanhola, à portuguesa.22 O direito francês permanece, porém, com a figura unitária do ato jurídico, não distinguindo o Código os atos jurídicos em senso estrito do negócio jurídico. O Código Civil de 1916 não adotava expressamente a figura, seguindo a posição unitária francesa, embora seu art. 81, dedicado ao ato jurídico, já contivesse a definição de negócio. O Código Civil de 2002 já consagra, porém, a posição dualista, com referência expressa aos negócios e aos atos jurídicos lícitos deles diversos,23 de acordo com a doutrina brasileira contemporânea, que é dominante no preferir esta concepção. De tudo isto se conclui que o conceito de negócio jurídico é um fato histórico24 e uma categoria lógica. Como fato histórico representa o envolver de uma experiência em que se reuniram circunstâncias de natureza filosófica, política e econômica, até o surgimento, a cristalização do conceito. Como categoria lógica, produto desse fato histórico, representa uma síntese, uma "redução à unidade" das diversas posições subjetivas que se podem configurar na atividade jurídica, de que a declaração de vontade é uma das causas imediatas. "Construída com a noção de negócio uma figura concreta, composta de elementos especificamente individualizáveis, essenciais, acidentais e naturais, podemse reconduzir a este esquema todas as modalidades da atividade humana e estudá-las com critérios o métodos unitários."25 3. Crítica e superação do conceito de negócio jurídico. O negócio jurídico permanece ainda hoje como instrumento unitário do poder da vontade individual no campo da dinâmica jurídica, isto é, como poder criador de efeitos jurídicos. Tem sido, porém, objeto de alguma oposição dirigida, tanto ao caráter abstrato da figura — que os críticos consideram incapaz de englobar unita-riamente figuras diversas como os contratos, testamentos, promessas, convenções etc. — quanto à sua função ideológica, que o caracterizou como símbolo de um liberalismo econômico jurídico superado pela presença crescente do Estado na organização e direção da economia. Essa intervenção reduz o campo da autonomia privada e, conseqüentemente, a importância do negócio jurídico, como categoria, não obstante a utilidade crescente de uma de suas espécies, o contrato, em todos os regimes, capitalistas ou socialistas. O conceito de negócio jurídico é uma categoria técnico-jurídica que tem sua razão de ser em argumentos de natureza filosófica, política e econômica, como já visto. É, assim, uma categoria histórica e lógica. E, como categoria lógica, ou se a aceita ou se a recusa.20 Como categoria lógica, é instrumento de atuação dos interesses econômicos individuais, dentro do sistema de produção e distribuição de bens, traduzindo a concepção de um direito igual para todos, capaz de realizar, na igualdade, os interesses contrapostos das diversas classes sociais, formulado pelos juristas que eram, à época, os intérpretes privilegiados da realidade social e econômica.27 Mudaram porém as condições favoráveis ou determinantes desse notável trabalho intelectual, que foi o esforço de abstração jurídica que resultou no conceito de negócio jurídico. Não mais existem as condições políticas e econômicas que justificaram essa criação, assim como os juristas que a fizeram não mais detêm o monopólio da reflexão e da disciplina da vida social. O direito compartilha hoje, com outras ciências sociais (a sociologia, a antropologia, a psicologia etc.), o universo sócio-cultural que até o início deste século lhe competia como campo de atuação e controle. Mudando tais circunstâncias, muda-se a construção jurídica correspondente, o negócio jurídico, surgindo uma série de críticas à conveniência atual dessa figura, críticas essas de natureza sistêmica e de natureza político-social. Sob o ponto de vista sistêmico, contesta-se a possibilidade de redução a uma única figura, de todas as espécies de declarações de vontade. Afirmase a "impossibilidade de reduzir à unidade as posições subjetivas dos contratantes". Sob o ponto de vista político-social, que suscita o problema da correspondência entre a categoria do negócio jurídico e as exigências da sociedade, considera-se ter sido essa figura, no nascimento da moderna sociedade industrial, o instrumento da classe proprietária dos bens de produção e da burguesia comercial, para transferência do seu direito de propriedade por simples declaração de vontade, sem necessidade de forma especial. Nessa época, o indivíduo era um ser isolado, protegido pelos ideais de liberdade e de igualdade que o Estado de direito garantia com o reconhecimento de uma esfera de ampla autonomia. Hoje as condições são diversas. Os indivíduos não se situam como átomos isolados, em regime de concorrência que a publicidade e os acordos entre os grupos econômicos eliminaram. Suas relações têm secundária importância em face dos conflitos de interesses entre os grupos privados, entre empresários e trabalhadores, entre empresários e consumidores. E os interesses que atualmente o direito protege são os das pessoas que desempenham funções na sociedade, não os indivíduos em si, isolados, átomos da vida social. Cai por terra o mito do sujeito jurídico como figura unitária, assim como o da igualdade de todos perante o direito (igualdade formal), que procura hoje realizar a igualdade material, isto é, a igualdade de oportunidade para satisfação das necessidades fundamentais. E não sendo mais o ato individual de troca o "fenômeno central das relações econômico-sociais", fica superada a figura do negócio jurídico e destinada ao ocaso, juntamente com o mito da unidade do sujeito jurídico e com a ilusão da igualdade formal de direito.28 De tudo isto se conclui que, sendo o negócio jurídico unia categoria histórica e lógica, foi válida e útil enquanto vigentes as condições que a determinaram. Mudadas as condições e destituído o conceito de sua função ideológica, não se justificaria a sua manutenção. O que permanece com pleno vigor, como causa da dinâmica jurídica, é o ato jurídico como gênero, e, como categoria específica de crescente importância, o contrato. A doutrina, no entanto, divide-se, sendo ainda majoritária a corrente que acredita na utilidade do conceito e na possibilidade de sua reconstrução.29 4. A importância da vontade e da declaração na teoria do negócio jurídico. Concepções subjetiva e objetiva. O negócio jurídico é declaração de vontade que se destina à produção de certos efeitos jurídicos que o sujeito pretende e o direito reconhece. Seu elemento essencial é a vontade, que se dá a conhecer através da sua respectiva declaração e que tem, por isso, relevante significado econômico e social, por ser meio de se alcançar o efeito jurídico pretendido. No caso de a vontade exteriorizada ser diversa da vontade real, consciente ou inconscientemente por parte do declarante, surge o problema de saber-se o que deve prevalecer, a vontade ou a declaração, isto é, qual o elemento que na verdade produz os efeitos jurídicos, matéria de significativa importância para as partes, para terceiros e para o comércio jurídico em geral. Acerca do predomínio de um destes elementos, a vontade ou a declaração, existem duas concepções opostas, a subjetiva, que dá --------------------------12 Federico de Castro y Bravo. El Negocio Jurídico, p. 57. citando S. Tomás de Aquino. Suma Theologica l, 2, ac, 9.17,1 ad. 2. "Quod radix libertatis est voluntas" (a vontade é o que está na raiz da liberdade). 13 Galgano, op. cit., p. 936. 14 Stolfi, op. cit., p. XII. 15 Emmanuel Kant, Princípios sobre a metafísica dos costumes, in Textos Selecionados, p. 144. 16 "O direito subjetivo é estático, conserva e protege, enquanto o negócio jurídico é dinâmico, produz e renova", Manuel Albaladejo. El Negocio Jurídico, p. 37; Emílio Betti, Negozio giuridico, in Novíssimo digesto italiano, XI, p. 209. 17 Garcia Amigo, op. cit., p. 654. 18 Bürgerliches Gesetzbuch (Código Civil alemão), Parte Geral Seção Terceira. 19 Mirabelli, op. cit., p. 2. 20 Jean Carbonnier. Droit civil. Lês obligations, Paris, p. 41. 21 Mirabelli, op. cit, p. 15; Galgano, op. cit, p. 936; Pietro Barcellona. Dirítto privato e processo econômico, p. 195 e segs. 22 Cf. nota l. 23 Código Civil, art. 185: Aos ato jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior. 24 Calasso, op. cit., p. 345. 25 Mirabelli, op. cit., p. 2. 26 Calasso, op. cit., p. 345, nota 41. 27 Mario Bellomo, Negozio giuridico (Dirítto intermédio], in Enciclopédia dei diritto, XXVII, p. 931. 28 "Eis por que, tanto do ponto de vista teórico como prático, político, ou técnico, a conservação da categoria negócio jurídico é a consagração de um retrocesso, e o propósito de reentronizá-lo numa parte geral do Código Civil despropositada não passa de vã tentativa para salvar valores agonizantes do capitalismo adolescente, quando não seja crassa ignorância em doutores de que a categoria pandectística foi elaborada num contexto jurídico ultrapassado, e para atender às exigências de uma ordem econômica e social que deixou de existir." Orlando Gomes. Novos Temas de Direito Civil, p. 89. 29 Mirabelli, op. cit., p. 16. Caio Mário da Silva Pereira. Reformulação da Ordem Jurídica e Outros Temas, p. 221; José Abreu, op. cit., p. XI; Maria Helena Dini/., op. cit., p. 212; Serpa Lopes, op. cit., p. 358. --------------------------realce à vontade, e a objetiva, que enfatiza a declaração, levando, respectivamente, à teoria da vontade e à teoria da declaração. Para a primeira, subjetiva, voluntarista,30 de Savigny e seus imediatos seguidores (Windscheid, Dernburg, Unger, Oertmann, Enneccerus), o negócio jurídico é essencialmente vontade, a que deve corresponder exatamente a sua forma de declaração, que é simples instrumento de manifestação dessa vontade. Essa teoria protege, naturalmente, os interesses do declarante. Por isso, todas as questões acerca da formação ou do conteúdo do ato levam à pesquisa da real intenção do agente. É no âmbito dessa teoria que surge o problema e a discussão dogmática em torno do que deve prevalecer, no caso de divergência, a vontade ou a declaração, independentemente do declarado ser ou não o pretendido. Para a Willenstheorie, havendo divergência, deve prevalecer a vontade, podendo até, em casos extremos, anular-se o negócio jurídico, não valendo nem a vontade real nem a declarada. Pela especial importância da vontade, procura-se defendê-la dos chamados vícios (erro, dolo, coação, simulação, reserva mental), assim como também cresce em importância a interpretação, quer do ato, quer das normas que o regulam, para o fim de se averiguar qual a intenção do agente, a partir, naturalmente, do instrumento de declaração. Preocupa-se ainda essa teoria com os motivos, razões psicológicas da prática do negócio, objeto dos chamados elementos acidentais (a condição, o termo e o encargo), com os quais o agente procura adequar os efeitos do ato a tais motivos. Para a teoria da declaração?1 a eficácia do ato depende exclusivamente da declaração, independentemente desta corresponder ou não à vontade do agente. A natureza e as características do negócio jurídico residem fundamentalmente no comportamento objetivo do agente, como autoregulamento de seus próprios interesses. Para essa teoria não tem maior importância a divergência entre a vontade e a declaração, já que esta é sempre o ponto de referência, salvo se desprovida de sentido ou conteúdo; os motivos são irrelevantes e o que se interpreta não é o pretendido pelo agente mas o perceptível pela declaração. Com ela protege-se não mais o sujeito declarante, mas o destinatário e terceiros de boa-fé e, conseqüentemente, a circulação de direitos. Ambas as teorias são inaceitáveis c-m suas posições extremas, que seriam, quanto à eventual divergência entre a vontade e a declaração, no caso da teoria subjetiva, a nulidade do negócio, e no caso da objetiva, a validade, desde que de boa-fé o destinatário. Para evitar os extremos, temperando a oposição, surgiram concepções intermediárias, a teoria da responsabilidade e a teoria da confiança. Para a primeira, mais ligada à vontade, havendo divergência entre essa e a declaração, responde o declarante pelos danos que causar, se tiver culpa na divergência. "Quem emite declaração de vontade no comércio jurídico sujeita-se às conseqüências disso decorrentes."32 Para a teoria da confiança, modalidade mais próxima da declaração, "esta prevalece sobre a efetiva vontade quanto tenha suscitado legítima expectativa no destinatário, conforme as circunstâncias objetivas". Verificada a boa-fé do destinatário, a declaração é válida conforme a confiança que nele tenha despertado. Não havendo boa-fé do destinatário, não prevalece a declaração e o negócio é anulado. Nesta teoria, portanto, transfere-se ao destinatário o elemento culpa, enquanto na teoria da responsabilidade fica essa a cargo do declarante.33 Qual a opção do direito brasileiro? O problema do predomínio da vontade ou da declaração como elemento determinante da eficácia do negócio jurídico manifesta-se principalmente em matéria de interpretação e de erro. Quanto à primeira, o art. 112 do Código Civil, estabelecendo a regra geral, dispõe que "nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem", em uma aparente opção pela teoria da vontade, o que faz compreensível a tendência doutrinária por essa tese.34 Creio, porém, ser mais acertado dizer que o sistema do Código Civil de 2002, tomando como ponde de partida a declaração de vontade (onde a intenção se consubstancia) e como critério de interpretação a boa-fé e os usos do lugar (art. 113), optou pela concepção objetiva e, consequentemente, pela teoria da declaração. Já em matéria de erro, é dominante a teoria subjetiva.35 5. As teorias preceptiva e normativa. Dentro da teoria objetiva do negócio jurídico, pela qual a vontade só tem relevância jurídica por meio da sua declaração, destacam-se as concepções preceptiva e normativa. Para a teoria preceptiva de Betti, o negócio jurídico é meio dinâmico de realização de interesses privados, dotado de tanto significado que deve sair da concepção tradicional de mero fato psicológico para ser considerado como importante fato social, instrumento da autonomia privada. Seu conteúdo forma-se de regras que o direito considera e que se constituem em preceitos dirigidos aos participantes da relação jurídica. O negócio jurídico não é, então, simples manifestação da vontade subjetiva, mas dispositivo com que o particular disciplina suas próprias relações. A teoria normativa vai mais longe e o considera como ato criador de normas jurídicas, disciplinadoras das relações estabelecidas. Tal concepção baseia-se na existência de duas vontades distintas no negócio. Uma, subjetiva, psicológica, que se esgota no momento da prática do ato,36 outra, objetiva, exteriorizada pela declaração, que se configura exatamente quando termina o processo volitivo, acompanhando o negócio em sua existência concreta.37 A vontade que se faz exterior e se objetiva na norma negociai não se identifica com a outra, psicológica, que fez nascer o negócio. Essa vontade objetiva, aliás, é que é objeto da interpretação. A concepção normativa não é nova. No direito romano, Ulpiano já reconhecia que "legem enim contractus dedit"38 e que "contractus enim legem e% conventione accipiunt.. ,"39 Os canonistas ressaltavam o valor da palavra dada (pacta sunt servanda), e antes, entre os comentadores e os glosadores, Giovanni D'Andrea já dizia "Quilibet in domo sua dicitur rex" e Andréa D'Isernia "in ré sua quilíbet etiam privatus est moderador et arbiter ut sibi placet".40 No direito medieval, os aforismos da época, mi palabra es ley, Ein Man, ein Worl, convenances vainquent loys.4} E como exemplo de direito positivo, os artigos 1.134 do Código Civil francês, 1.123 do italiano de 1865, 1.372 do atual, e o 1.091 do espanhol. A luz da evolução histórica e da existência de textos legais que consagram tal teoria, inexistem razões para que não se considere a autonomia privada como poder jurídico e o negócio como instrumento e expressão desse poder. O negócio jurídico é, por isso, modo de expressão das regras jurídicas estabelecidas pela vontade dos particulares. É fonte formal de direito, ou, também, fato de produção jurídica.42 A existência de relações jurídicas e dos respectivos direitos subjetivos pressupõe a existência de uma norma jurídica. Aceitando como indiscutível que o negócio jurídico é fonte de relações jurídicas, conclui-se que o negócio é fonte de direito objetivo.43 Negando-se ao negócio jurídico a função criadora de direito objetivo, também se lhe nega a função de criar relações jurídicas. Não há incompatibilidade entre a vontade individual e a vontade legal. O negócio jurídico pode ser ato regulado pelo direito e conter direito. As fontes criam normas e são reguladas por normas. A própria lei é ato jurídico,44 regulada na sua criação e eficácia pela Constituição. O negócio é um fato que contém em si direito. Kelsen afirma que o negócio jurídico é um fato produtor de normas, à medida que a ordem jurídica confere a tal fato essa qualidade. Afirma também que é importante peculiaridade do direito, a de regular sua própria criação, o que se aplica ao negócio jurídico. No mesmo sentido Miguel Reale.45 ------------------30 É a chamada Willenstheorie (teoria da vontade). 31 É a chamada Erklãrungstheorie (teoria da declaração). 32 É o princípio da auto-responsabilidade, C. Massimo Bianca. Diritto civile, U contratto, p. 21. 33 Cifuentes, op. cit., p. 91. 34 Cf. Orlando Gomes e Antunes Varela. Direito Econômico, p. 146. 35 Antônio Junqueira de Azevedo, op. cit., p. 128; Silvio Rodrigues. Dos vícios do consentimento, p. 51. 36 Emílio Betti. Interpretazione delia legge e degli atti giuridici, p. 274. 37 Luigi Ferri. L'autonomia privata, p. 56. 38 Digesto Ulpiano, 50, 17, 23. Legem enim contractus dedit (a lei resulta do contrato). 39 D. l, l, 16. Contractus enim legem ex conventione accipiunt (os contratos consideram-se como lei a partir da convenção). 40 Francesco Calasso, Autonomia (storia), in Enciclopédia dei diritto, IV, p. 355. Quilibet in domo sua dicitur rex (qualquer um em sua casa é considerado rei). In ré sua quilibet etiam privatus est moderator et arbiter ut sibi placet (naquilo que é seu, qualquer um é moderador e árbitro como lhe aprouver). 41 Garcia Amigo, op. cit, p. 213. "Umhomem, uma palavra." "As conveniências superam as leis." 42 Tomaso Perassi. Introduzione alie scienze giuridiche, p. 57; Miguel Reale. Lições Preliminares de Direito, p. 179. 43 Ferri, op. cit., p. 19. 44 Cf. Caio Mário da Silva Pereira. Projeto de Código de Obrigações, p. XII, na linha de Duguit. Traité de droit constitucionnel I, p. 30 e segs. 45 Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito, p. 350. Miguel Reale, op. cit. p. 179. Segundo Ferri, enquanto para o negócio jurídico se tem posto em evidência sua natureza de "fattispecie", deixando de lado seu aspecto normativo, para a lei se tem caído no excesso oposto só se vendo a norma, esquecendo-se de que a norma jurídica é também fattispecie de uma norma superior. O problema de validade é comum a todas as normas jurídicas, qualquer que seja sua fonte de produção. Concludentemente, o negócio que não for conforme à lei não será fonte normativa. Admitindo-se, com Kelsen, que a validade de uma norma reside em outra, não há por que se excluir o caráter de fonte normativa do negócio jurídico somente pelo fato de ele se basear no direito objetivo. A objeção teria sentido se considerássemos o negócio como fonte de direito autônoma e originária, o que não é o caso (autônoma, aqui, no sentido de totalmente independente de qualquer outra norma). ------------------O negócio jurídico como fonte normativa leva à questão da hierarquia das fontes. O sistema jurídico não se compõe de normas de igual grau. Assim como o negócio jurídico é fattispecie, também a lei ordinária é fattispecie de uma norma superior, de natureza constitucional. Como diz Ferri, a exemplo de inúmeros juristas,46 não há motivo para que não se considere o negócio jurídico como fonte de direito e a autonomia privada, de que ele é expressão, verdadeiro poder normativo. Aceitar a autonomia privada como poder de criar regras jurídicas é, aliás, estabelecer mais um critério para distinguir os atos jurídicos, em senso estrito, dos negócios jurídicos. Estes, ao contrário daqueles, criam regras jurídicas. A principal característica do negócio jurídico é, desse modo, a criação de normas jurídicas. Seu conteúdo é, portanto, normativo, o que os distingue dos demais atos jurídicos não-negociais. Para estes, é a lei a fonte imediata dos efeitos jurídicos, que, muitas vezes, o próprio agente desconhece, o que torna menos relevante o erro, a direção da vontade, a interpretação. Na maioria das vezes, os negócios jurídicos criam normas jurídicas individuais e concretas. Eventualmente, normas gerais e abstratas, como nos estatutos das grandes associações, empresas, clubes etc. líssas normas, uma vez criado o negócio jurídico com os requisitos legais, adquirem existência própria, separando-se dos sujeitos e da sua vontade, tal como ocorre com as leis, os atos administrativos, a sentença judicial. A vontade subjetiva esgota-se no momento em que o negócio se realiza, mas a normatividade começa quando o processo volitivo se acaba. Os próprios sujeitos podem, inclusive, nada mais querer, e, todavia, a declaração de vontade permanece eficaz e normativa. O testamento demonstra que a força vinculante do negócio jurídico não está na vontade subjetiva da parte, mas na vontade objetivada nas normas jurídicas que dele nascem. 6. O problema da norma jurídica negociai. Reconhecem-se como habituais características da norma jurídica, ou da lei, a estatalidade, a bilateralidade, a generalidade ou universalidade, a abstração, a imperatividade e a coatividade.47 A estatalidade significa que as normas jurídicas são normas de comportamento que emanam do Estado, que lhes garante o respectivo cumprimento. Seu objetivo é a segurança, a ordem e a justiça, e seus destinatários, aqueles a quem disser respeito. Pressupõe a existência do Estado como ente superior à comunidade e como criador da ordem jurídica. Essa concepção é unilateral, pois todos são iguais perante o direito, inclusive o Estado. A tese de supremacia ou relação de subordinação entre sujeitos vinculados juridicamente não é aceita pela maioria doutrinária. Como diz Rudolf Stammler, não se pode estabelecer uma relação de dependência do direito ao Estado. "Sendo a noção de direito o prius lógico do conceito de Estado, e não vice-versa, aquele, como modalidade peculiar da vontade vinculatória, não pode basear-se neste."48 Não se confunda soberania com a superioridade do direito objetivo. A soberania do Estado manifesta-se em face dos outros Estados e dos particulares, mas não em face das normas estabelecidas por eles. O fato de o Estado limitar ou revogar a norma privada não é obra dele, como ente soberano, porém obra do ordenamento jurídico que ele criou. Há hierarquia de normas, não de sujeitos. Assim como o Estado se submete ao sistema jurídico vigente, também os particulares o fazem. Isso não impede a existência da autonomia privada ao lado da autonomia estatal. A bilateralidade significa que a norma jurídica, ao aplicar-se, atribui poderes a um sujeito e deveres a outro. Transforma a relação social em relação jurídica. Bilateralidade significa abertura para dois lados, para dois sujeitos, unidos por uma relação jurídica.49 A norma jurídica privada apresenta a mesma característica. As regras contidas em um contrato, espécie mais comum no gênero jurídico, contêm poderes e deveres, atribuídos aos respectivos credores e devedores. A generalidade ou universalidade consiste na indeterminação dos sujeitos a que se aplica a lei.50 A abstração significa que a norma se destina a casos típicos indeterminados. Generalidade e abstração seriam a garantia de igualdade e de imparcialidade na aplicação ao direito.51 Na generalidade, as normas são universais com respeito ao destinatário; na abstração, são universais com respeito à ação.52 Aliás, o reconhecimento da generalidade como atributo da norma jurídica resulta da sua falsa identificação com a lei. Esta é geral, aquela não, necessariamente. Além disso, a teoria do direito reconhece a existência de normas individuais, dirigidas a uma só pessoa, e de normas concretas, que regulam uma só ação. O direito objetivo constitui-se, portanto, também de normas individuais. Nada há assim a opor à validade ou vigência das normas que emanam do negócio jurídico. São proposições normativas com estrutura igual à das legais. Tem foros de antigüidade a doutrina segundo a qual a norma jurídica é um imperativo, um comando.53 Contrariamente a essa tese, há teorias que negam serem as normas jurídicas imperativos. Para essas, as proposições jurídicas são juízos hipotéticos (se é A, deve ser B), c juízos hipotéticos não são comandos. Kelsen e seus seguidores defendem esta última concepção. A teoria da norma como imperativo é, todavia, dominante na Alemanha.54 No Brasil, encontra em Goffredo Telles Júnior uma reformulação, ao ser definida a norma jurídica como "imperativo autorizante" harmonizado com a ordenação étrica vigente.55 Concepções intermediárias, como a de Bianca,56 consideram a imperatividade como característica não-es-sencial da norma jurídica, pois existem normas imperativas e normas nãoimperativas (dispositivas e supletivas). A discussão sobre a imperatividade como característica da norma jurídica ou não e o reconhecimento de que, efetivamente, ela não o atributo essencial da proposição jurídica é indiferente à questão da norma negociai. Esta, em princípio, é sempre imperativa.57 A coatividade consiste na possibilidade de se obrigar o infrator da proposição jurídica, usando-se da sanção. A coatividade (não coercibilidade) significa, portanto, a possibilidade de a norma ser cumprida de modo não-espontâneo pelo devedor. Ora, tanto a norma estatal quanto a norma negociai dispõem de sanção. As críticas feitas à idéia da norma jurídica negociai não têm maior fundamento. As características reconhecidas na norma jurídica estatal, como a bilateralidade, encontram-se também nos preceitos emanados do negócio jurídico, que faz nascer ou modificar as relações jurídicas, expressão dos poderes e deveres que traduzem a bilateralidade. 7. A relação entre a vontade e seus objetivos. Acerca da relação entre a vontade e seus objetivos, vale di/er, a vontade e seus efeitos, existem duas teorias, a dos efeitos jurídicos e a dos efeitos práticos.58 Pela primeira, de Savigny, Windscheid, Zittelman, a vontade visa produzir determinados efeitos jurídicos, sendo necessária perfeita conjugação entre a vontade e os efeitos do negócio. Como conseqüência, a falta de vontade leva à inexistência ou à invalidade do negócio. Nessa concepção baseia-se uma das notas que diferenciam o negócio do ato jurídico em senso estrito. Neste, os efeitos são e% lege, enquanto naqueles são ex voluntate. A teoria dos efeitos práticos, seguida pela maior parte da doutrina italiana (Coviello, Fadda, De Ruggiero, Santoro-Passarelli, D'Avanzo, Branca etc.), combate a primeira concepção, alegando seus defensores que as pessoas, ao praticarem negócios jurídicos, fazem-no visando fins práticos, econômicos, desconhecendo normalmente os efeitos jurídicos que poderão surgir. A vontade do declarante dirige-se a resultados válidos para o direito. Teoria intermediária, de Manuel Domingues de Andrade, defende a tese de que a vontade dirige-se aos efeitos práticos que as partes tenham querido, sob a proteção do direito, embora sem noção exata do caráter jurídico de tais efeitos. "Contenta-se com que os declarantes, visando em primeira linha certos resultados práticos, tenham querido para ela a sanção das leis, isto é, se tenham proposto alcançá-los por via jurídica, sem todavia ser necessário que tenham formado idéia exata e completa desses efeitos."59 8. Classificação dos negócios jurídicos. Classificar é distribuir ou agrupar em classes, o que implica a diversidade do regime legal aplicável a cada uma. Classificam-se os negócios jurídicos segundo vários critérios: 1) número de partes componentes; 2) vantagens para as partes; 3) forma a observar; 4) tempo em que produzem os efeitos; 5) causa da atribuição patrimonial; e 6) modificação que produzem no conteúdo dos direitos. Quanto ao número de partes componentes, os negócios jurídicos classificam-se em negócios unilaterais, bilaterais e plurilaterais. São negócios unilaterais os que se formam com uma só declaração de vontade, por exemplo o testamento, a renúncia de direitos, a procuração, os títulos de crédito, o endosso, o aval, a confissão dr dívida, a remissão de dívida, a renúncia à herança etc. São negócios bilaterais os que resultam da manifestação de duas partes, produzindo efeitos para ambas, como nos contratos. Negócios plurilalerais são os que se formam com várias manifestações de vontade, riu sentido paralelo, como nos acordos. Note-se que parte não é sinônimo de pessoa. Cada parte pode formar-se de uma ou de várias pessoas, com interesses análogos. No caso de uma só pessoa, dizse individual ou unipessoal; no caso de mais pessoas, a parte é pluripessoal ou plúrima. Os negócios pluripessoais, aqueles em que a parte é formada por várias pessoas, compreendem, como subespécies, os atos colegiais, que decorrem de uma deliberação de assembléia, e os atos complexos, coletivos ou conjuntos, que reúnem declarações dirigidas ao mesmo fim, como, por exemplo, a constituição de uma pessoa jurídica. Quanto às vantagens decorrentes para as respectivas partes, os negócios jurídicos bilaterais dizem-se onerosos e gratuitos. Onerosos, quando geram vantagens e sacrifícios para ambas as partes, como acontece na compra e venda, na troca, na locação, no seguro etc. Gratuitos, quando uma das partes concede à outra vantagens sem contraprestação, como na doação, no mútuo, no comodato, no mandato, no depósito, na fiança. Nos primeiros existe uma recíproca transmissão de direitos, enquanto nos segundos há vantagem exclusiva para uma das partes. Os negócios jurídicos onerosos dividem-se em comutativos e aleatórios. Nos primeiros, existe uma relação de causa e efeito entre as respectivas atribuições patrimoniais. A vantagem corresponde ü contraprestação. Nos segundos, inexiste a mesma relação de causa e efeito. A extensão das prestações de uma ou de ambas as partes não é certa, porque depende de acontecimento incerto, como ocorri1 nos contratos de jogo, aposta, seguro, venda de coisa futura (CC, art. 458). Neste caso, o risco é da essência do negócio, podendo a álea (risco) versar sobre a existência ou quantidade da coisa, objeto do negócio. Quanto à forma a observar, os negócios jurídicos dizem-se solenes e não solenes. Os primeiros têm sua forma prescrita em lei, não valendo se não for observada, como no testamento, na alienação de imóvel acima de certo valor, na constituição de hipoteca. A forma é requisito essencial para a sua validade, é da substância do ato. Os não solenes são os que podem realizarse de qualquer modo. -------------------------46 Na doutrina italiana, são adeptos da concepção normativa do negócio jurídico, isto é, o negócio jurídico como fonte normativa, entre outros, Ascarelli, Esposito, Tedeschi, Carnelutti, Pergolesi, Santi Romano, D'Eufemia, Salvatore Romano e 1'asserin D'Entréves; na Alemanha, Büllow, Danz, Kelsen, Manigk, Nawiasky, Alexeiev. Têm opinião contrária Betti, Trimarchi, Scognamiglio, Messineo, Stolfi, (iariota-Ferrara. Cf. Ferri, trabalho citado, p. 33. No Brasil, a concepção dominante é a tradicional, que não vê o negócio jurídico como fonte normativa. Cf. Walküre Lopes Ribeiro da Silva, A autonomia privada como fonte de normas jurídicas trabalhistas, n2 44, p. 64. 47 Mário Aliara. Lê nozione fondamentali dei diritto civile, I, pp. 20 e 21. 48 Rudolf Stammler. Tratado de Filosofia dei Derecho, p. 342. 49 Norberto Bobbio, Normagiuridica, in Novíssimo digesto italiano XI, p. l .333. 50 Lex est commune praeceptum, Digesto, l, 2, 3. 51 Aliara, op. cit., p. 14. 52 Norberto Bobbio. Teoria delia norma giuridica, p. 231. 53 Legis virtus haec est imperare, vetare, permittere, punire, D. 1,7, l, 3. É a communis opinio. Sua formulação clássica é de Augusto Thon. Norma giuridica e dirítto soggetivo, p. 187. 54 Karl Larenz. Metodologia da Ciência do Direito, p. 219. 55 Goffredo Telles Júnior. Direito Quântico, p. 262. Idem. Iniciação na Ciência do Direito, p. 103 56 Bianca, op. cit., p. 12. 57 Bobbio. Norma giuridica, op. cit., p. 1.333. 58 São as conhecidas teorias do direito alemão. Rechsfolgentheorie (teoria dos efeitos jurídicos), e a Grundfolgentheorie (teoria dos efeitos práticos). 59 Manuel Domingues de Andrade, op. cit, p. 30. ---------------------------Quanto ao tempo em que se devem produzir os efeitos, os negócios jurídicos dividem-se em inter vivos, se devem produzi-los em vida das partes, e mortis causa, se após a morte; neste caso, o testamento, única espécie em nosso direito. A morte é pressuposto necessário de sua eficácia.60 Quanto à causa da atribuição patrimonial que vai favorecer as partes, os negócios jurídicos dividem-se em causais e abstratos. A causa significa aqui o "resultado jurídico que se pretende com o negócio realizado".61 A verificação de sua existência é importante porque, nos casos em que existe atribuição patrimonial sem causa, configura-se o enriquecimento sem causa, que é fonte de responsabilidade civil. Os negócios causais são, assim, aqueles em que existe causa da atribuição patrimonial, e negócios abstratos aqueles em que tal causa não se configura, ou melhor, é irrelevante para o direito. São exemplos de negócios abstratos, a letra de câmbio, o título de crédito ao portador, a renúncia. Quanto à modificação que os negócios possam produzir no conteúdo dos direitos, distinguem-se os negócios de disposição, ou dispositivos, dos negócios obrigacionais e dos negócios de administração. São negócios de disposição ou dispositivos aqueles em que o agente atua com poder de disposição, isto é, poder de alienar, modificar ou extinguir direitos, como se verifica, por exemplo, no caso da remissão de dívida, constituição de usufruto, tradição de uma coisa etc. Negócios dispositivos são, portanto, os que se fazem para modificar uma relação jurídica ou um direito, de natureza exclusivamente patrimonial. Objeto de disposição é o direito, não o bem. Quem vende uma casa dispõe do seu direito de propriedade. Os atos a título gratuito são sempre negócios de disposição.62 São negócios obrigacionais os que se destinam a criar obrigações, relações jurídicas em que uma das partes pode exigir de outra unia certa prestação. A espécie mais importante é a dos contratos. Há negócios que são, simultaneamente, dispositivos e obrigado nais, como a compra e venda de coisa móvel acompanhada de tradição, que é de disposição para o vendedor e de obrigação para o comprador, que deve pagar o preço. Há pessoas que não têm poder de disposição, têm apenas o de administrar o bem objeto do direito disponível. São negócios de administração os praticados no exercício de um poder de geslao patrimonial limitada, que não permite certas operações, capa/.es de prejudicar os bens administrados. Compreendem as medidas de conservação normal dos bens administrados visando o seu rendimento e desfrute.63 Tal matéria é relevante porque só pode praticar negócios dispositivos quem tiver poder de disposição, sob pena de ineficácia. Os atos de administração compreendem apenas as faculdades de uso e fruição, permanecendo a faculdade de disposição com o titular do direito. Os negócios dispositivos exigem a titularidade e legitimação, havendo certas situações jurídicas que limitam o poder de dispor. O cônjuge, por exemplo, tem a titularidade de direitos patrimoniais mas não pode aliená-los senão com o consentimento do outro cônjuge, nas hipótese que a lei estabelece (CC. art. 1.647). A importância de tais distinções reside na circunstância de que os negócios dispositivos produzem efeitos de modo absoluto, perante todos, enquanto os obrigacionais são relativos, são eficazes perante determinadas pessoas. Têm importância também em matéria de representação, quanto aos poderes do representante de praticar atos de disposição ou somente de administração.64 Como figuras especiais de notável importância, segundo o modo de obtenção do resultado, temos ainda os negócios diretos, os indiretos e os fiduciários. Negócio jurídico direto é o que tem por objetivo a obtenção imediata do resultado. Negócio indireto é aquele em que se utiliza um procedimento oblíquo para alcançar o resultado não obtenível de modo direto.65 As partes usam determinado tipo de negócio para atingir fim diverso daquele que normalmente lhe corresponde. A espécie é inadequada ao fim pretendido, como ocorre, por exemplo, quando se outorga uma procuração para cobrança de uma dívida com dispensa de prestação de contas, ou no caso da procuração em causa própria com efeitos de cessão, ou ainda na venda por preço irrisório, visando uma doação, ou ainda uma compra e venda com cláusula de retrovenda, visando apenas um negócio de garantia. Sua utilização decorre da falta de tipo mais adequado à manifestação da vontade dos agentes, do que resulta uma discrepância entre a intenção das partes e a causa típica do negócio. Caracteriza-se pelo desvio da finalidade da espécie negociai utilizada, pela divergência entre o objetivo das partes e a função típica do esquema negociai adotado.66 A matéria tem importância sempre que, por meio dessa figura, se tente elidir a aplicação de normas cogentes, numa fraude à lei. Não é, porém, negócio indireto a renúncia de um direito visando a uma doação.67 Negócio fiduciário é aquele em que alguém, o fiduciante, transmite um direito a outrem, o fiduciário, que se obriga a devolver esse direito ao patrimônio do transferente ou a destiná-lo a outro fim. Dá-se a transferência do domínio ou de outro direito, para fins de administração ou garantia, sem que esses fins requeiram a transferência.68 Caracteriza-se pela circunstância de que o meio utilizado transcende o fim perseguido, não se compatibilizando o aspecto econômico com o aspecto jurídico do negócio, como ocorre, por exemplo, quando "alguém transmite a propriedade de um bem com a intenção de que o adquirente o administre, obtendo dele o compromisso, por outro negócio jurídico de caráter obrigacional, de lhe ivstituir o bem vendido"69. Chama-se fiduciário porque se baseia na confiança, ou fidúcia, no comportamento daquele a quem se transfere inicialmente o direito. Distingue-se do negócio simulado, em que :\ aparência é contrária à realidade, porque no fiduciário inexiste di vergência entre a vontade real e a declarada; as partes querem exatamente o efeito visado. E distingue-se do negócio indireto pela causa fiducial, a confiança que o fiduciente tem de que o fiduciário lhe devolva o direito transferido. O negócio jurídico fiduciário conjuga dois elementos, a transmissão de um direito (real ou de crédito), e a obrigação desse direitC ser restituído ao transmitente ou a outrem. Existe, assim, um duplr efeito, um real e outro obrigacional.70 Para outros, porém, de tendência mais moderna, inexiste um duplo efeito, mas apenas "um;i transmissão de propriedade sob condição resolutiva". Aplicação prática dessa figura no direito brasileiro é a alienação fiduciária eu: garantia, negócio jurídico bilateral em que uma das partes transfere à outra a propriedade de coisa móvel ou imóvel, como garantia cit pagamento de obrigação contratual. Instituído pelo art. 66 da Lê de Mercado de Capitais, Lei n2 4.728, de 14 de julho de 1965, fo disciplinado pelo Decreto-Lei n2 911, de l- de outubro de 1969,71 e pela Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997 que, dispondo sobri o Sistema Financeiro Imobiliário, instituiu a alienação fiduciária dt coisa imóvel. Outras aplicações do mesmo negócio encontramos IH fideicomisso (CC. art. 1.951) e na cessão de créditos ou de título,1 com fins de garantia. ------------------60 Alberto Trabucchi. Istituzioni di diritto civile, p. 138. 61 Orlando Gomes, op. cit., p. 300. Sobre a causa no negócio jurídico, ver capítulo XII, n2 11. 62 São atos de disposição, ou de administração extraordinária, os que alienam, gravam ou desvalorizam bens do ativo patrimonial, por exemplo a venda de um imóvel, de um caminhão da fazenda, de animais reprodutores; a hipoteca de uma casa, a venda de um imóvel rural; a doação de um bem patrimonial; a renúncia a direitos etc. São atos de administração o pagamento de impostos, o pagamento de juros, o pagamento ou recebimento de aluguéis, a exploração agrícola de um imóvel, a reparação de um edifício, a cobrança de dívidas etc. Cf. Cifuentes, op. cit, pp. 231 e 232. 63 O comerciante falido perde, desde o momento da abertura da falência, o direito de administrar seus bens e deles dispor (Decreto-Lei 7.661, de Z 1.06.45, art. 40). O pai e a mãe são os administradores legais dos bens dos filhos que se achem sob o seu poder (CC. art. 1.689). Não podem, todavia, praticar atos de disposição sobre os bens imóveis dos filhos, nem contrair obrigações que ultrapassem os limites de simples administração, salvo no caso de necessidade ou evidente utilidade, mediante prévia autorização judicial (CC. art. 1.691). Também perdem o poder de disposição e de praticar atos que não sejam de mera administração os pródigos interditados (CC. art. 1.782); o cônjuge interditado perde o poder de administração dos bens do casal (CC. art. 1.570). 64 Cifuentes, op. cit., p. 233. 65 Cifuentes, op. cit., p. 240. 66 Pietro Trimachi. Istituzioni ai diritto privato, p. 225; José Abreu op. cit. p 115. 67 Orlando Gomes, op. cit., p. 314. 68 Larenz, op. cit., n2 438. Sobre negócio fiduciário, cf. ainda Otto de Souza Lima. Negócio Fiduciário, p. 157 e segs. 69 Orlando Gomes, op. cit., ps. 309 e 310. 70 É a teoria do duplo efeito de origem alemã; Orlando Gomes, op. cit., p. 3 l l 71 Cf. do Autor, A alienação fiduciária em garantia no direito brasileiro, p 157; Orlando Gomes. Alienação Fiduciária em Garantia; José Carlos Moreir; Alves. Da Alienação Fiduciária em Garantia. ------------------CAPÍTULO XII Elementos do Negócio Jurídico Sumário: 1. Elementos do negócio jurídico. 2. A declaração de vontade e sua função. Declaração expressa, tácita e presumida. Declaração receptícia e não-receptícia. Declaração direta e indireta. 3. Reserva Mental. 4. O silêncio como declaração de vontade. 5. Capacidade e legitimidade. 6. Objeto e conteúdo do negócio jurídico. 7. Forma e formalidades. Consensualismo e formalismo. Forma livre e vinculada. Instrumento público e instrumento particular. 8. Prova do negócio jurídico. 9. Publicidade. 10. Interpretação. 11. O Princípio da Boa-Fé. 12. Integração. 13. A causa como elemento do negócio jurídico. 14. Notícia histórica. A diversidade doutrinária acerca do conceito e utilidade da causa. 15. O direito brasileiro. 1. Elementos do negócio jurídico. Elementos do negócio jurídico são os itens que compõem a sua estrutura. A eles se opõem os pressupostos, logicamente anteriores, e os requisitos, qualidades desses elementos. Elementos do negócio jurídico são a vontade, o objeto e a forma, a que devem juntar-se os requisitos da capacidade, da idoneidade e da legalidade para que o negócio exista e seja válido (CC. art. 104). A doutrina não distingue os elementos dos requisitos, sendo freqüente a utilização desses termos como sinônimos, assim como também quanto aos pressupostos. Fala-se, assim, indiferentemenk1, de elementos ou de requisitos, com referência à estrutura do negócio. Usam-se também pressupostos, circunstâncias, na verdade, estranhas à estrutura negociai mas aceitas como sinônimo de elementos. A classificação tradicional divide-os em essenciais, naturais e acidentais. Critica-se, porém, tal classificação, própria da escolástica medieval, pela circunstância de que, desconhecendo os romanos a categoria do negócio jurídico, aceitando apenas determinadas figuras típicas, não poderiam usála a não ser para os atos que conheciam. Essa classificação não tem, assim, foros de generalidade, mas pode aceitar-se por sua simplicidade didática. Elementos essenciais (essentialia negotti) são aqueles indispensáveis à existência do ato: vontade, objeto, forma e, para certa corrente doutrinária, a causa.1 Elementos naturais (naturalia negotii) na verdade não são elementos, mas efeitos decorrentes da própria natureza do negócio, fixados em normas jurídicas supletivas e que, por isso, podem ser excluídos em cláusula contrária. Não exigem especial referência pois derivam da própria natureza do ato, por exemplo, na compra e venda, a responsabilidade do vendedor por vício redibitório, ou pela evicção, (CC, arts. 443 e 447) ou, nos efeitos das obrigações, o lugar do pagamento, quando não-convencionado (CC, art. 327). Seu estudo não é da Parte Geral, mas de figuras típicas da parte especial, principalmente contratos. Os elementos acidentais (accidentalia negotii] são os que podem figurar ou não no negócio. Desnecessários à formação do ato, as partes deles se utilizam para modificar a eficácia do ato, adaptando-a a circunstâncias futuras. Estabelecidos em cláusulas acessórias, são a condição, o termo e o encargo ou modo. Não é a lei, mas sim as partes que os estabelecem, no exercício da autonomia privada.2 A validade do negócio jurídico exige que esses elementos tenham determinados requisitos ou atributos, qualidades que a lei indica (CC, art. 104): a declaração de vontade deve resultar de agente capaz, o objeto deve ser lícito, possível, determinado ou determinável e a forma deve ser conforme à lei. 2. A declaração de vontade e sua junção. Declaração expressa, tácita e presumida. Declaração recepticia e não-receptícia. Declaração direta e indireta. A vontade é elemento fundamental na produção dos eleito jurídicos, sendo necessário, como é óbvio, que ela se manifeste, s> exteriorize. A manifestação da vontade é todo comportamento, ativo oi passivo, que permite concluir pela existência dessa vontade.3 Usa-S' em doutrina, para exprimir tal manifestação, o termo declaração d vontade, e sua importância é tanta que, sem ela, o ato ou negóci' simplesmente inexiste. A declaração de vontade é, assim, o instru mento da manifestação de vontade.4 Consiste na expressão, O' comunicação, dirigida a publicar a vontade preexistente. Para Hn neccerus, é "uma exteriorização da vontade privada (não as declam ções de vontade das autoridades públicas, como a sentença) dirigid a produzir uma conseqüência jurídica".3 O princípio da segurança jurídica torna conveniente que, nest matéria, se adote um critério objetivo, vale dizer, o significado qu a declaração pode ter para terceiros, especialmente aqueles a quer se destine. Na declaração de vontade pode-se distinguir a forma, ou decl; ração propriamente dita, que é o aspecto exterior do comportament do agente, e o conteúdo ou a vontade, que é o elemento intern que a declaração revela. A declaração propriamente dita é um con portamento exterior do agente que revela, de acordo com o coi vencionado pelas partes, o estabelecido pela lei, ou pelos usos costumes, a vontade do negócio jurídico. Tal comportamento extern faz-se, geralmente, por palavras, escritas ou faladas, mas tambói por outros sinais como movimentos de cabeça ou de mãos etc., o até o próprio silêncio.6 O conteúdo dessa declaração, a vontade propriamente dita, como elemento interno, compreende uma vontade de agir, uma vontade de declarar, e uma intenção de obter resultado econômico, juridicamente protegido. É essa intenção de resultado que caracteriza a chamada vontade negociai, vontade que se dirige à produção de determinado efeito que o direito reconhece e protege. E ela, em última análise, que distingue o negócio jurídico do ato e do fato jurídico,7 caracterizando-se como verdadeiro preceito normativo, expressão da automomia privada. Mas a declaração de vontade pode ter por objetivo apenas a comunicação da vontade interna do agente, com um valor apenas expositivo, como ocorre quando o agente se manifesta para dar ciência de sua vontade (proposta e aceitação de um contrato, rescisão), como também pode apenas avisar a realização imediata da vontade, sem fins de comunicação, somente de atuação (apropriação, renúncia, revogação do testamento etc.)8 A declaração de vontade tem assim uma dupla função. Por um lado, a "realização de vontade do agente para a produção de efeitos jurídicos", por outro, "manifestação de vontade dirigida ao conhecimento dos outros, como ato de comunicação social",9 dando origem às chamadas declarações de vontade e declarações de ciência que correspondem aos chamados negócios declarativos e negócios de atuação}0 O comportamento do agente que traduz a declaração de vontade é ativo, se da parte do declarante, e passivo, se da parte do destinatário, surgindo, neste particular, a questão do silêncio como declaração de vontade. No que diz respeito ao comportamento ativo, a manifestação de vontade pode ser expressa, tácita e presumida. Expressa é a que se faz por meio da linguagem, da escrita, de sinais ou gestos, permitindo o conhecimento imediato da vontade declarada, como ocorre, por exemplo, na realização de contratos verbais ou escritos, na emissão de títulos de crédito, no envio de cartas, telegramas, telex, e-mail, etc. Além da linguagem escrita — a mais conveniente pela segurança que oferece — ou falada, outros meios podem utilizar-se, como a gesticulação dos surdos-mudos, ou os gestos consagrados pelo uso, c onio ocorre nas Bolsas de Valores ou nos leilões, ou ainda, a simples compra de um bilhete para o transporte rodoviário, ou o ato tlr pagar, em silêncio, uma publicação na banca de jornais etc. l V acordo com Savigny, é desde a Idade Média que a declaração por escrito se faz assinando-se o nome ao pé da folha redigida pelas partes ou por terceiros, significando a assinatura que o ato expressa o pensamento e a vontade do signatário.11 Os sinais ou gestos devem fazer referência a determinados objetos, não sendo ambíguos.1" Casos há, todavia, em que a lei exige que a declaração srja expressa, como nas obrigações solidárias (CC. art. 265), na stib-ro-gação convencional (art. 347) etc. Tácita é a que se deduz do comportamento do agente (fada concludentia) ainda que a vontade não seja revelada pelo meio adequado. Verifica-se, por exemplo, nos casos da aceitação da herança, que se deduz da prática de atos compatíveis somente com a condição de herdeiro (CC. art. 1.805), nas hipóteses de aquisição de propriedade móvel pela ocupação (CC. art. 1.263) ou ainda, a exposição dos objetos nas vitrines ou nas prateleiras dos estabelecimentos comerciais, o estacionamento de táxis nos respectivos pontos, a instalação de aparelhos automáticos em locais públicos, tudo isso a caracterizar uma declaração tácita de oferta. Presumida é a declaração de vontade que, não sendo expressa, a lei deduz do comportamento do agente, como acontece, por exemplo, com as presunções de pagamento contidas no CC. arts. 322, 323 e 324, ou com a presunção de remissão do art. 387, ou de aceitação de herança do art. 1.807, ou de prorrogação da locação nos prédios urbanos quando o contrato se extingue e o locador nada faz para reaver o imóvel (Lei 8.245, de 18.10.91, art. 46, par. l"). Enquanto na declaração tácita é o destinatário que a deduz do comportamento do declarante, na declaração presumida é a lei que a estabelece, a deduz ou a presume, tendo em vista que a conduta do sujeito corresponde à vontade presumida.14 Disso resulta que, provado não ter tido o agente a vontade que a lei presume, não se produzirão os efeitos previstos, vale dizer, a declaração presumida admite prova em contrário. Todavia, se a declaração presumida produzir os efeitos previstos, sua eficácia é e% lege, não e% voluntate, donde não ser negócio jurídico, mas simples ato jurídico.15 As declarações de vontade dizem-se receptícias quando se dirigem a destinatários especiais, que dela devem ter ciência sob pena de ineficácia do ato. As declarações receptícias precisam, portanto, de uma determinada direção e de uma recepção para terem eficácia.16 São exemplos a proposta de contrato, a sua aceitação, a revogação do mandato, a despedida do empregado etc, que precisam ser recebidas pelos respectivos destinatários. As declarações não-recep-tícias são as que não se dirigem a ninguém, especificamente, produzindo efeitos independentemente da recepção, como ocorre com a promessa de recompensa, o testamento e sua revogação, a ocupação de coisa móvel, a aceitação da herança etc. Poder-se-ia dizer, sinte-ticamente, que as declarações receptícias são endereçadas, emitidas para que cheguem ao destinatário, enquanto as não-receptícias são nãoendereçadas, não se dirigem a ninguém especificamente.17 A declaração de vontade é direta, quando feita sem a intermediação de qualquer pessoa ou instrumento, e indireta quando o declarante se utiliza de outras pessoas (como o núncio) ou meios, como cartas, telegramas, telex etc., para que a declaração chegue ao respectivo destinatário. Essa distinção é importante no caso de a declaração indireta ser transmitida de modo incorreto, sendo até possível um engano proposital. O Código Civil alemão (§ 120), o Código Civil italiano (art. 1.433) e o Código Civil português (art. 247-] estabelecem que à transmissão inexata se aplicam as regras do erro. No mesmo sentido, dispõe o Código Civil brasileiro que a transmissão errônea da vontade por meios interpostos é anulável nos mesmos casos em que o é a declaração direta (art. 141). Por outro lado, se o responsável pela divergência for o declarante, responderá por perdas e danos. Pode o comportamento do destinatário ser passivo. Nesse caso, teremos o problema do silêncio como manifestação de vontade (CC, art.lll). 3. Reserva Mental A vontade é elemento tão importante no comportamento tio sujeito jurídico que o direito impõe, em casos determinados, a forma para a sua exteriorização. Assim, as declarações classificam-se em solenes e não solenes, conforme devam, ou não, observar determinada forma.Temos também as declarações receptícias e as não receptít ias conforme se destinem a produzir, ou não, efeitos jurídicos na eslrra de terceiro. O que o sistema jurídico exige é que haja perfeita coincidência entre a vontade e sua declaração, sob pena de invalidade do ato. Essa natural relação pode, eventualmente, alterar-se, por força de fatores externos que viciem a vontade ou a declaração, instaurando a divergência onde deveria existir perfeita coincidência. Por exemplo, no lançamento de um livro, o seu autor, para garantir uma venda maior, declara que a renda editorial se destina a determinada campanha filantrópica, ou ainda, no seu testamento, o testador, para prejudicar herdeiro, dispõe em favor de falso devedor18. Neste dois exemplos se verifica que o declarante manifesta algo diverso que realmente deseja, com o fim de enganar o destinatário de sua declaração. A esta atitude psicológica chama-se, no direito, reserva mental. Do problema da relevância da vontade, no caso de divergência com a sua correspondente declaração, ocupou-se a doutrina do século XIX, primeiro a alemã, depois a italiana19. Os casos de divergência mais freqüentes dividiam-se em voluntários e involuntários. Seriam voluntários, os casos de declarações não sérias, feitas por brincadeira (causa ludendi), por exemplo, a promessa de pagamento em dia inexistente no calendário (30 de fevereiro),ou feitas com fins didáticos (o professor que, para dar exemplo de negócio jurídico, Ia/, uma declaração sem pretender vincular-se a alguém) ou de representação teatral (o ator que, fiel ao seu personagem, emite declaração de vontade que, fora de cena, seria juridicamente vinculante), e ainda os casos de simulação e os de reserva mental. Casos -----------------1 Tais elementos essenciais são gerais no sentido de que integram qualquer espécie de ato ou negócio. Mas há elementos essenciais particulares no sentido de que são próprios de determinadas espécies, por exemplo, o preço no contrato de compra e venda, o instrumento de próprio punho no testamento particular etc. 2 Luigi Cariota-Ferrara. // negozio giuridico nel diritto privato italiano, p. 116. 3 Jacques Ghestin e Gilles Goubeaux. Traitê de droit civil. La fonnalion i, contraí, p. 349. V. também Alfred Rieg, Lê contraí dans lês doctrines allemand. du X/X siècle, in Archives de philosophie du droit, XIII, p.31. 4 João Castro Mendes. Direito Civil, Teoria Geral, vol. III, p. 143. 5 Ludwig Enneccerus e Hans Carl Nipperdey. Tratado de Derecho Civil, II, 65. Cf. Werner Flume, op. cit. par. 4°. 6 V. adiante item n- 3. 7 Domenico Barbero. Sistema dei diritto privato italiano, I, p. 250. 8 Heinrich Lehmann. Tratado de Derecho Civil, p. 219. 9 Karl Larenz. Allgemeiner Teil dês Bürgêrllichen Rechts, p. 291. 10 Francesco Santoro-Passarelli. Dottrine generali dei diritto civile, p. 136. 11 Santos Cifuentes. Negocio Jurídico, p. 65. 12 Andreas Von Thur. Teoria General dei Derecho Civil Alemán. vol. 2, p. 61, vol. l, p. 75. 13 Ghestin, op. cit.; p. 351. 14 Manuel Albaladejo. El Negocio Jurídico, p. 94. 15 Idem, ibidem. 16 Lehmann, op. cit, p. 224. 17 Santoro-Passarelli, op. cit., p. 139; Albaladejo, op. cit., p. 85. 18 Moacyr de Oliveira. Reserva Mental, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol.65, São Paulo,1977, p. 266. 19 Cfr. por todos Michele Giorgianni. Volontà (dir.pri.), in Enciclopédia dei diritto, XLVI, Milano,Giuffrè Editore, 1993, p. 1059. -----------------de divergência involuntária seriam os decorrentes de violência física (vis absoluta) e de certas formas de erro (erro obstáculo)20. A evolução doutrinária levou, porém, a um redimensionamento do tema, para considerar que os únicos casos relevantes de divergência para o direito seriam o erro obstáculo (v. capítulo XV) e a reserva mental. Há reserva mental quando o declarante manifesta uma vontade que não corresponde à sua vontade real, com o fim de enganar o declaratário21. A reserva mental é, assim, um estado psicológico no qual o declarante se propõe a não querer aquilo que todavia declara. Quer a declaração, mas não quer o seu conteúdo jurídico22. Declara-se intencionalmente coisa diversa daquilo que efetivamente se quer, sem qualquer combinação ou entendimento com a outra parte, e sem que esta perceba a divergência. Por isso mesmo, como a pessoa destinatária da declaração não se apercebe da divergência, o negócio é válido, isto é, a reserva não prejudica a validade da declaração. Assim dispõe o Código Civil, no seu art. 110, que a manifestação de vontade subsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento. Em face disso, pode afirmar-se que a reserva mental desconhecida do declaratário, não afeta a validade da declaração, que produz seus normais efeitos, como se não tivesse havido a reserva mental23. Na hipótese contrária, de tratar-se de reserva mental conhecida do destinatário, dispõe a lei que a manifestação de vontade não subsiste, configurando-se a hipótese de ausência de vontade e consequentemente, de inexistência do negócio jurídico24. É o entendimento25 dominante. Depreende-se então que a lei contempla duas espécies de resc-rv;i mental, a desconhecida e a conhecida pelo destinatário da declaração. Se é desconhecida não afeta a validade da declaração, que produz seus efeitos normais, como se inexistente a reserva26. Se for conhecida a reserva, pelo destinatário,o negócio jurídico não subsiste, é inexistente. Não deve ser, contudo, considerado simulação, já que-esta pressupõe um acordo simulatório,o que, em princípio, não se verifica na declaração com reserva mental. 4. O silêncio como declaração de vontade. Não se aplica ao direito o conhecido provérbio "quem caiu consente" (qui tacet, consentire videtur). Na verdade, quem cala não diz nada (qui tacet neque negat, non utique facetur). Excepcionalmente, porém, o silêncio pode corresponder a uma declaração de vontade, quando se verifiquem as condições que a lei estabeleça e quando se trate de comportamento próprio do destinatário. E o chamado silêncio circunstanciado que assim se qualifica quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa (CC, art. 111). No mesmo sentido, o art. 1.807, pelo qual o silêncio do herdeiro, nas circunstâncias ali prefixadas, faz presumir a aceitação da herança. Ou ainda nas hipóteses de natureza processual em que o silêncio do réu firma a presunção de veracidade dos atos afirmados pelo autor (CPC, art. 319), ou de usos e costumes observáveis na atividade diária e na prática societária, como ocorre, por exemplo, nas assembléias de associados em que se estabelece valer o silêncio como manifestação de voto.27 Renan Lotufo, Código Civil Comentado, volume I, São Paulo, Editora Saraiva, 2003, p.299. 5. Capacidade e legitimidade. Enquanto a vontade é elemento necessário à existência do ato ou do negócio, a capacidade é requisito necessário à sua validade e eficácia, assim como também o poder de disposição do agente. Trata-se aqui da capacidade de fato ou de exercício, aptidão para a prática dos atos jurídicos, que se presume existir em todas as pessoas não-incluídas nas espécies dos arts. 3° e 4° do Código Civil. A capacidade de fato é, assim, regra geral e a incapacidade, exceção, pois a lei não diz quem tem capacidade para a prática dos atos ou negócios jurídicos, mas sim quem a não tem. Disso resulta que o ônus da declaração de ineficácia de um ato jurídico, por incapacidade do agente, compete a quem tiver interesse nessa ineficácia. Agente capaz é o que tem capacidade de fato, aptidão para exercer direitos e contrair obrigações (capacidade de fato ou de exercício). Nas pessoas jurídicas, a capacidade de fato manifesta-se nos órgãos de direção e de execução. A capacidade de fato é plena com a maioridade ou com a emancipação (CC, art. 5°, par. único). Antes disso, o agente é absoluta ou relativamente incapaz (CC, arts. 3° e 4°) e o negócio por ele praticado é nulo ou anulável (CC, arts. 166 e 171). Trata-se aqui de incapacidade decorrente da idade. No caso de incapacidade por motivos de saúde (enfermidade, deficiência mental, prodigali-dade), o maior pode ser declarado interdito e, assim, incapaz para os atos da vida civil (CC, art. 1.767). Supre-se a incapacidade, quando absoluta, pela representação, e, quando relativa, pela assistência. Representação é o instituto pelo qual uma pessoa, o representante, pode substituir alguém, o representado, na prática de ato ou negócio jurídico, agindo em nome e no interesse do re-presentado. É manifestação de vontade em nome de outrem, com efeitos jurídicos na esfera desse. A representação é legal quando prevista em lei, e nesse caso o representante está designado na lei, e convencional, quando resulta de acordo entre partes. A representação de que aqui se trata é a legal. São representantes legais os pais, o tutor, o curador. Os pais representam os menores (CC, art. 1.634, V); o tutor, os órfãos e os filhos de pais declarados ausentes, ou destituídos do poder familiar (CC, art. 1.728 e 1.747); o curador, os doentes mentais, os que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir sua vontade-, os pródigos (CC, art. 1.767 e os ausentes (CC, art. 22). Os podorrs de representantes não são absolutos. Para a prática de alguns atos é necessária prévia autorização judicial (CC, art. 1.691). Assistência é instituto pelo qual alguém, autorizado em UM, comparece ao ato para validar a manifestação de vontade do relativamente incapaz. Representação e assistência competem aos pais, aos tutores e aos curadores (CC, arts. 1.690, 1.747 e 1.774). Além da capacidade de fato, exige a lei, para certos atos, legitimação, que é o poder de agir da pessoa em face de certos bens ou interesses,28 traduzindo-se na inexistência de impedimentos ou de restrições para o negócio jurídico pretendido.29 É conceito próprio e originário do direito processual, significando aptidão para o estabelecimento de certas relações jurídicas, por exemplo (CC, arts. 496 e 497). Nos negócios dispositivos, com que se modificam relações ou direitos subjetivos, é preciso também poder de disposição. Autorização é a concordância necessária para certos atos (CC, art. 1.647). A manifestação de vontade toma nos negócios bilaterais o nome de consentimento.30 Sendo resultante de duas manifestações de vontade, o consentimento ou consenso é próprio dos contratos, inexistindo nos negócios jurídicos unilaterais. O negócio jurídico praticado por agente absoluto incapaz é nulo; pelo relativamente capaz é anulável. A diferença entre ambas as sanções é apenas de grau. A incapacidade de uma das partes não pode ser invocada pela outra em proveito próprio, nem aproveita aos co-interessados capazes, salvo se, neste caso, for indivisível o objeto de direito ou da obrigação comum (CC, art. 105). Significa isso que, na hipótese cie as partes do negócio serem, de um lado, pessoa capaz, e de outro simultaneamente, um capaz e um relativamente incapaz, só este poderá anular parcialmente o ato, só a ele aproveitando a anulação, salvo se indivisível o objeto. A rescisão por incapacidade não aproveita ao co-interessado capaz, salvo se indivisível o objeto.31 O art. 105 do CCB só se aplica aos casos de incapacidade relativa, pois jamais o ato pode ser válido em caso de nulidade absoluta. 6. Objeto e conteúdo do negócio jurídico. Na teoria geral do negócio jurídico, o termo objeto compreende o objeto jurídico e o objeto material. Objeto jurídico, ou conteúdo do negócio, é o que sujeitos estabelecem, as prestações ou o comportamento a que se obrigam. Compreende as determinações que se colocam para a auto-regula-mentação dos respectivos interesses. Num contrato, por exemplo, é o conjunto de direitos e deveres fixados. É esse conteúdo o objeto da interpretação jurídica, constituindo-se também no ponto de referência para a classificação do negócio. E é ao conteúdo que a lei se refere ao estabelecer a licitude do objeto como requisito de validade do negócio jurídico (CC, art. 104). O conteúdo, ou objeto jurídico, distingue-se dos efeitos do negócio. Aquele representa a vontade das partes na sua expressão estática, estes significam as mudanças jurídicas que se processam como decorrência dessa vontade. Do objeto jurídico, ou conteúdo do negócio, distingue-se o objeto material, os bens (coisas ou prestações) sobre os quais incidem os poderes contidos na relação jurídica nascida. Se por exemplo, A vende uma casa a B, conteúdo ou objeto jurídico do negócio é a obrigação de transferir o domínio da casa ao comprador e a obrigação deste de pagar o preço (CC, art. 481). Objeto material é a casa e o preço em dinheiro.32 O objeto jurídico deve ser idôneo, isto é, deve apresentar os requisitos ou qualidades que a lei exige para que o negócio produza os efeitos desejados a saber, a licitude, a possibilidade e a determi-nabilidade. Objeto lícito é aquele não-contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes. É um requisito negativo, pois, a licitude é precisamente, a ausência de violação desse ordenamento. A possibilidade do objeto desdobra-se em possibilidade física ou material, e possibilidade jurídica. Objeto fisicamente impossível é que não existe, tornando-se inviável o cumprimento da obrigaç;' Note-se, todavia, que a existência da coisa verifica-se no momento da eficácia do negócio, não no da sua formação, mesmo porque r legalmente prevista a venda de coisas ainda não existentes, coisas futuras.33 A possibilidade jurídica consiste na sua viabilidade legal. Constitui objeto juridicamente impossível a venda de coisa pública ou fora do comércio, exemplo, a gravada com a cláusula de inalir-nabilidade. A impossibilidade jurídica distingue-se da ilicitude. A primeira refere-se a um ato não-permitido pelo direito, como a venda de bens legalmente inalienáveis, ou o contrato sobre herança de pessoa viva (CC, art. 426). A segunda refere-se ao negócio que, embora possa ser materialmente praticado, é reprovado em lei, como a venda de tóxicos. Viola um dever legal. A impossibilidade diz-se absoluta quando o objeto é completamente irrealizável, e relativa se, impossível para o devedor, terceiro puder realizar a prestação. A impossibilidade manifesta-se apenas em relação ao sujeito devedor da prestação, mas nada impede que a prestação seja realizada por terceiros. Nesse caso, a impossibilidade relativa determina mudança qualitativa no conteúdo da obrigação.34 A impossibilidade relativa só se pode encontrar, e isso excepcionalmente, nas obrigações de fazer, como, por exemplo, na hipótese de um transportador, cujo caminhão se acidentou, realizar o transporte por intermédio de outro.35 Se a prestação tiver por objeto uma coisa, há que distinguir se ela se trata de uma coisa genérica ou de corpo certo. No primeiro caso, a impossibilidade absoluta desaparece em face da possibilidade de o devedor adquirir as coisas -------------------20 Francesco Messineo. Manuale de diritto civile e commerciale, volume primo, nona edizione, Milano, Giuffrè Editore,1957, p.487. 21 Carvalho Fernandes Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 2a. Edição, Lisboa, LEX, 1966, p. 266. 22 Messineo, op. cit.p.487. 23 Heinrich Ewald Hõrster. A Parte Geral do Código Civil Português, Coimbra, Almedina,1992, p. 548. 24 José Carlos Moreira Alves A Parte Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro, São Paulo, Editora Saraiva, 1986, p. 102. 25 Nelson Nery Júnior, Vícios do ato jurídico e reserva mental, p.80 e 81, apud 26 Heinrich Ewald Hõrster. op. cit. p. 548 27 O Código Civil português dispõe, no art. 2182, que o silêncio vale como declaração negociai, quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção. Quanto a mercadorias recebidas, juntamente com a proposta de aquisição, o silêncio do destinatário não significa aceitação, não sendo ele obrigado a restituí-las de modo próprio, devendo, entretanto, conserválas. Cf. Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria Geral do Direito Civil, p. 428. 28 Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 326. 29 Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, I, p. 310. 30 Consentimento, de cum e sentire, já traduz a concordância recíproca de ambas as partes. 31 Carvalho Santos, João Manuel. Código Brasileiro Interpretado, I, p. 279. 32 Tanto o conteúdo é diverso do objeto material que este pode ser objeto de diversos direitos, com diversos conteúdos: o mesmo apartamento pode ser objeto do direito de propriedade de A, do direito de usufruto de B e do direito locatário de C. Cf. Orlando Gomes, op. cit., p. 326. 33 Enquanto os elementos e requisitos de ordem subjetiva devem existir n momento da conclusão do negócio, os de ordem objetiva devem estar presentes no momento da eficácia, Santoro-Passarelli, op. cit., p. 133. Com opinião diversa, Jacques Ghestin, op. cit., p. 325. 34 Orlando Gomes, op. cit., p. 325. 35 Gabriel Marty et Pierre Raynaud. Droit Civil. Obligations, p. 167. -------------------de que não dispõe, salvo em casos especiais, como, por exemplo, se se tratar de produto fabricado em país estrangeiro, de importação proibida. Quando se trata de corpo certo, a impossibilidade absoluta confunde-se com a inexistência da coisa.36 A impossibilidade inicial do objeto não invalida porém, o negócio jurídico se for relativa (CC, art. 106). Só a impossibilidade absoluta (CC, art. 166, II). O objeto deve ser determinado ou determinável, vale dizer, deve permitir uma perfeita identificação pelas partes. A indeterminabilidade pode afetar tanto o conteúdo, ou objeto jurídico, como no caso de o declarante não explicitar os direitos a que se refere (atribuo a Carlos direitos sobre a minha casa da Rua Direita) quanto ao objeto material (atribuo a Carlos direito de propriedade sobre tudo o que existe na casa da Rua Direita).37 A necessidade de determinação do objeto do negócio jurídico decorre da existência de "proteção das partes quanto ao arbítrio das outras". Determinam-se os bens por sua designação ou identificação. No caso de obrigação de dar coisa incerta, será esta indicada pelo gênero ou pela quantidade (CC, art. 243). 7. Forma e formalidades. Consensualismo e formalismo. Forma livre e vinculada. Instrumento público e instrumento particular. O Código Civil exige ainda, como requisito de validade do negócio jurídico, a forma prescrita ou não-defesa em lei (CC, art. 104, III). Tal requisito refere-se à forma que a declaração deve ter, ao "modo concreto" da manifestação de vontade. Forma é, então, o meio de expressão da vontade, o aspecto externo que a declaração assume,38 sendo, assim, elemento estrutural do negócio jurídico. Distingue-se a forma, modo de exteriorização da vontade, das formalidades ou solenidades, conjunto de atos que compreendem a forma e as medidas preparatórias ou conseqüentes do ato, necessárias à respectiva eficácia, como, por exemplo, o conjunto de atos jurídicos necessários à realização do casamento e o registro da escritura de aquisição de um imóvel no Registro de Imóveis. Quanto à forma como requisito do negócio jurídico existem dois princípios ou posições doutrinárias opostas, o consensualismo ou liberdade de forma, e o formalismo ou da forma obrigatória, imposta por lei ou pela própria vontade das partes. Para o primeiro, a manifestação de vontade obriga ou vincula o declarante, independentemente da forma adotada. O nosso Código Civil adota-o no art. 107. Esse princípio surgiu na Idade Média por influência da moral cristã e dos teólogos que pregavam o respeito à palavra dada, o que também vinha ao encontro das necessidades do tráfico mercantil e da prática comercial desenvolvida em torno das grandes feiras.39 Por influência do dogma da autonomia da vontade, aci-n-tua-se a sua aceitação, consagrando-se no Código Civil francês, se bem que de modo indireto (arts. 1.107 e 1.138). Para o princípio do formalismo "são as formas, independen-tc-mente da vontade real das partes, que realizam o negócio jurídico".'10 São vantagens do formalismo: a) assegurar uma mais elevada dose de reflexão das partes. Nos negócios formais, o tempo que medeia entre a decisão de concluir o negócio e sua celebração permite repensar o negócio e defender as partes contra a sua ligeireza ou precipitação. No mesmo sentido concorre a própria solenidade do formalismo; b) separa os termos definitivos do negócio da fase pré-contratual (negociação); c) permite formulação precisa e completa das partes; d) proporciona um mais elevado grau de certeza sobre a celebração do negócio e dos seus termos, evitando-se os perigos ligados à falível prova das testemunhas. O direito romano era inicialmente formalista, dando mais importância à forma do que propriamente à vontade. Só mais tarde, na época clássica, é que surgem os primeiros contratos consensuais, formados só pelo acordo das partes. O direito germânico era também formalista, modificando-se, porém, por influência do cristianismo, que defendia o respeito à palavra dada, e sob as necessidades do intenso movimento comercial da Idade Média. Passava-se, assim, do formalismo conservador ao princípio da liberdade da forma, por influência da religião dominante no mundo europeu, o cristianismo, e das conveniências do processo econômico. Atualmente existe certo movimento de regresso ao formalismo, não por apego à solenidade, mas por simplificação, celeridade e segurança nos negócios jurídicos (títulos de crédito, contratos padronizados) . O formalismo e a publicidade são garantias do direito. Com o desenvolvimento das funções do Estado, acentuaram-se alguns aspectos do formalismo, que se apresenta hoje, não com a importância do direito romano, mas como "exigência suplementar" necessária à eficácia dos atos e negócios jurídicos. A forma não seria requisito de existência, mas de eficácia. O consensualismo é, no entanto, a regra, o formalismo é exceção. As formas que a lei prevê são o instrumento público e o particular. O primeiro é feito por oficial público, tabelião, escrivão, ou qualquer funcionário (CPC, art. 364), compreendendo as escrituras, procurações e testamentos lavrados em Ofícios de Notas, os atos judiciais e suas certidões dos livros dos Registros Públicos, as notas dos corretores tiradas de livros regularmente escriturados, os protestos de títulos etc. Quando lavrado nos livros dos tabeliães, tem fé pública, isto é, presunção legal de autenticidade. A lei exige escritura pública para diversos casos (CC, arts. 62, 1.711, 108, 1.653, 1.609, II.). O conteúdo formal da escritura está também previsto em lei (CC, art. 215 § 1°). Traslados são as cópias do que está escrito nos livros de notas dos tabeliães (CC, art. 217). O primeiro traslado é o que vulgarmente se denomina escritura pública e tem o mesmo valor original lavrado no livro do tabelião. Certidão é também cópia, mas com declaração do oficial público de que o que nela contém consta de seus livros, ou de autos. Traslados e certidões são instrumentos públicos se os originais se houverem produzido em juízo como prova de algum ato (CC, art. 218). O conteúdo do traslado é o que foi copiado, e o da certidão é o fato que se certifica,41 contido em qualquer documento (CC, art. 216). Pública-forma, hoje em desuso, é o instrumento público que reproduz instrumento particular apresentado ao tabelião (CPC, art. 385). É a cópia que não tem a eficácia da certidão nem do traslado, por ser feita por pessoa diversa da que elaborou o documento, enquanto a certidão, ou o traslado, é fornecida pelo cartório que o fez. Instrumento particular é o documento assinado pela própria parte interessada, sem intervenção da autoridade pública e referente- a fatos privados. As delarações nele constantes presumem-se verdadeiras quanto aos signatários (CC, art. 219). A anuência ou a autorização de outrem, necessárias à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento (CC, art. 220). Também se considera como tal o documento impresso ou datilografado, desde que assinado pelo dc-clarante, como o telegrama (CPC, art. 374). O telegrama, quando contestada a sua autenticidade, faz prova mediante conferência com o original assinado (CC, art. 222). A cópia fotográfica de documento, conferida por tabelião de notas, valerá como prova de declaração de vontade mas, impugnada sua autenticidade, deverá exibir-se o original (CC, art. 223) Quem não pode assinar não pode ser figurante em instrumento particular.42 Quando esse for capaz prova as obrigações convencionais de qualquer valor (CC, art. 221) entre as mesmas partes. Para ser eficaz perante terceiros, somente depois de registrado no Registro Público competente. O documento é considerado autêntico quando o tabelião reconhecer a firma do signatário, declarando que foi aposta em sua presença (CPC, art. 369). O reconhecimento atesta que a assinatura é da pessoa a quem se atribui. Nada impede, por isso, que se reconheça firma de documento em branco, desde que o oficial ressalve essa circunstância.43 A utilização de meios informáticos na transmissão de dados fez surgir uma nova espécie de documento, o documento eletrônico ou digital, que é uma mensagem eletrônica passível de materializar-se em papel escrito. Pode ser público ou privado, e tem eficácia probatória quando autêntico, íntegro c- de autoria certa (CPC, Art. 332). Não tem, no Brasil, disciplina normativa específica, embora seja reconhecido pela Medida Provisória n° 2.200, de 20.6.01, art. 12, havendo, no Congresso Nacional, vários projetos para sua regulamentação legal. A subscrição do documento eletrônico é a chamada firma digital, que não é a assinatura do autor mas um conjunto de símbolos a ser decifrado mediante procedimento eletrônico preestabelecido.44 As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fono-gráficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte contra quem forem exibidos, nãos lhes impugnar a exatidão (CC, art.225). Mas essa prova não supre a ausência do título original nos casos em que a lei ou as circunstâncias exijam sua exibição. No contrato celebrado com a cláusula de não valer sem instrumento público, este é da substância do ato (CC, art. 109), é da sua essência, sem ele não pode existir. A forma pode ser então livre e vinculada. Livre, quando permite qualquer meio de manifestação de vontade. O direito brasileiro adota o princípio de liberdade da forma ao dispor que a validade das declarações de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir (CC, art. 107). Vinculada ou necessária quando exigida em lei (forma legal) ou pela própria vontade das partes (forma convencional), para a validade do negócio jurídico. Nesse caso, é preciso observá-la para que a declaração de vontade seja válida e eficaz. Não vale o ato que deixar de revestir a forma especial determinada em lei (CC, art. 104, III e 166, IV). Nesse caso, diz-se que a forma dá ao ato a própria existência (forma dat esse rei). Ao exigir a forma vinculada, a lei tem por objetivo: a) garantir a autenticidade do ato; b) chamar a atenção das partes para a seriedade do que estão praticado; c) facilitar a prova do negócio jurídico; e d) facilitar a publicidade do negócio jurídico. Se a forma vinculada é indispensável à validade do ato, diz-se que ela é da substância desse (ad substantiam); por vezes é necessária apenas para sua prova (ad probationem). Com base nessa distinção, classificam-se os atos jurídicos em formais ou solenes, e não-formais ou consensuais. 8. Prova do negócio jurídico. Prova é a demonstração de um fato jurídico. Não se provam direitos, mas sim os fatos que lhes dão origem. Os fatos são provados pela parte interessada, permitindo ao jui/. concluir quem tem o direito pretendido. C) ônus da prova incumbe, portanto, a quem alega o fato do qual se induz a existência do direito (CPC, art. 333). Ao direito civil cabe indicar os meios de prova admissíveis e seus requisitos; ao direito processual compete a técnica de sua apresentação e apreciação pelo juiz. O Código Civil brasileiro indica, no art. 212, os meios de prova para os atos que não dependem de forma especial. Tais meios são a confissão, os documentos públicos ou particulares, testemunha, presunção e perícia que compreenda exame, vistoria ou avaliação (CPC, art. 420). Confissão é a admissão, pela parte, da verdade de um fato, contrário ao seu interesse e favorável ao adversário (CPC, art. 348). E judicial quando feita em juízo, e extrajudicial quando fora dele, oralmente ou por escrito. Os seus requisitos de processamento e eficácia estão disciplinados no Código de Processo Civil (arts. 349 a 354). É ineficaz a confissão pertinente a direitos indisponíveis. E irrevogável, salvo se viciada por erro de fato ou coação (CC, art. 214). Não tem eficácia a confissão se provém de quem não é capaz de dispor do direito a que se referem os fatos confessados. Se feita a confissão por um representante é eficaz somente nos limites do poder de representação (CC, art. 213). Documentos são papéis escritos. Chamam-se instrumentos quando se destinam a produzir efeitos jurídicos, podendo ser públicos ou particulares. Os públicos são formados por oficial público no exercício de suas funções45. Entre eles devem figurar os atos processados em juízo, aqueles que já foram objeto de processo ou cuja existência ou validade foi reconhecida por sentença, como, por exemplo, alvarás judiciais, cartas de adjudicação, formais de partilha etc. Utilizando-se o computador, surge o documento digital ou eletrônico, como já assinalado. Os documentos redigidos em língua estrangeira terão de ser vertidos em português para terem efeito no Brasil (CC, art. 224). A escritura pública, lavrada em notas de tabelião, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena. Seus requisitos estão nos art. 215 e parágrafos. ------------------36 Castro Mendes, op. cit., p. 111. 37 Castro Mendes, op. cit., p. 93; Rui Alarcão, Forma dos negócios jurídicos, p. 177 e segs. 38 Ghestin, op. cit., p. 349 e segs. 39 Idem, p. 203. 40 Ghestin, op. cit., p. 330. Mota Pinto, op. cit., p.. 430. 41 Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, tomo III, p. 430. As cartas têm a eficácia de instrumento particular do art. 221 do Código Civil, idem, p. 353. 42 Carvalho Santos, op. cit., III, p. 154. 43 Pontes de Miranda, op. cit., III, p. 370. Sobre os serviços notariais r dr registro, cfr. Lei 8.935, de 18.11.94, arts. 6º e 7º. 44 Newton de Lucca, Títulos e Contratos Eletrônicos, p. 54. 45 Moacyr Amaral Santos, Comentários ao Código de Processo Civil, p. 168. ------------------Testemunhas são as pessoas que presenciam fatos e que, por isso, podem ser chamadas a confirmar-lhes a existência. São judiciárias quando se destinam à prova em juízo, e instrumentárias quando atestam a existência de um documento. Neste caso, conferem publicidade ao ato e servem de garantia da sua celebração. A prova exclusivamente testemunhai só se admite nos contratos de valor não excedente a dez vezes o maior salário mínimo vigente no momento da celebração (CC, art. 227). No entanto, qualquer que seja o valor do contrato, a prova testemunhai é admissível como subsidiária ou complementar da prova documental (CC, art. 227, par. único). Não podem servir de testemunhas os menores de dezesseis anos; os privados de discernimento por enfermidade ou doença mental; os cegos e surdos, quando a ciência do fato que se prova depende dos sentidos que lhes faltam; o interessado no objeto do litígio, o amigo íntimo ou o inimigo capital das partes; os cônjuges, o ascendente, descendente ou colateral até o terceiro grau de alguma das partes, por consangüinidade ou afinidade (CC, art. 228). Ninguém é obrigado a depor sobre fato que lhe seja prejudicial ou sobre o qual deva guardar sigilo ou sobre fato a que não possa responder sem desonra própria, de seu cônjuge, parente sucessível, ou amigo íntimo, ou ainda, que o exponha, ou às referidas pessoas, a perigo de vida, de demanda, ou de dano patrimonial imediato (CC, art. 229). Presunções são as conseqüências que a lei ou o magistrado tiram de um fato conhecido para provar um desconhecido. A presunção é um processo da técnica jurídica com o qual o direito diz que é o que é provável que seja, como, por exemplo, quando se afirma que o marido é o pai dos filhos de sua mulher (f ater is est quem nuptiae demonstrant], que a coisa julgada é tida como verdadeira (rés judicata pró veritate habetur). Distingue-se da ficção, também processo da técnica jurídica, com o que o direito estabelece que é o que, na verdade, não é, como, por exemplo, a retroatividade nos atos jurídicos, ou a consideração do feto como já nascido (infans conceptus pró iam nato habetur, quotiens de eius commodo agitur). As presunções não são, na verdade, meios de prova, mas processos lógicos que se baseiam nas regras da experiência da vida (CPC, art. 335), segundo o que "um fato é conseqüência típica de outro". Nascem da dificuldade ou até impossibilidade da prova de certos fatos, o que obriga o legislador a contentar-se com indícios para que O juiz possa extinguir os conflitos de interesse.'10 Dividem-se IMM presunções legais e presunções de fato, ou do homem, ou judiciais. A dedução que se opera em ambos é o mesmo processo, só que, nas presunções legais, a ilação é feita de uma vez por todas pelo legislador, impondo-se ao juiz, enquanto nas de fato é esse que, pessoalmente, estabelece a dedução.47 As presunções não legais, isto é, as de fato ou judiciais, não se admitem nos casos em que a lei exclui a prova testemunhai (CC, art. 230). As presunções legais subdividem-se em presunções simples (iurís tantum) e presunções absolutas [iure et iure). As primeiras admitem prova em contrário, como, por exemplo, a presunção de pagamento ou remissão se o devedor estiver na posse do título, (CC, arts. 324 e 386) a presunção de que o direito real pertence à pessoa em nome de quem está registrada48, a presunção filho nascido na constância do casamento (CC, art. 1.597). A presunção simples estabelece o ônus da prova. O que se beneficia da presunção está dispensado de provar o fato a que ela conduz.49 O interessado é que tem de contrariar a dedução legal, demonstrando não ser verdadeira. A presunção simples serve ainda para substituir a prova dos fatos de difícil ou impossível realização, como, por exemplo, uma filiação paterna, e serve ainda de princípio de interpretação no sentido de assegurar coerência nas regras do sistema jurídico: presumem-se os dispositivos legais conforme a Constituição, as leis nacionais conforme os tratados, as normas especiais conforme o direito comum.50 As presunções absolutas, indiscutíveis, não admitem prova em contrário, corno, por exemplo, a de que todos conhecem a lei (nerno ius ignorare censetur), ou a de que a coisa julgada é verdadeira (rés iudicata pró veritate habetur]. Justificam-nas razões de segurança e de paz social. A prova pericial consiste em exame, vistoria ou avaliação (CPC, art. 420). Exame é a inspeção de pessoas ou bens móveis e semoventes para verificação de fatos ou circunstâncias que interessam à causa, como o exame de sangue, nas ações de investigações de paternidade, o exame médico, nas interdições, o exame de livros contábeis, o exame grafotécnico. Aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa (CC, art. 231). Vistoria é a inspecção ocular, normalmente de imóveis.51 É freqüente nas ações possessórias, demarcatórias e de responsabilidade civil. A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame (CC, art. 232). Arbitramento é a estimação do valor, em moeda corrente, de coisas e direitos; ocorre nos casos de indenização por ato ilícito, nas desapropriações e nas ações de alimentos.52 Quando feito em processo de execução ou inventário, chama-se avaliação. 9. Publicidade. Para maior garantia das relações jurídicas, é conveniente que determinados fatos, situações ou negócios jurídicos possam ser conhecidos por outras pessoas que não as respectivas partes. Esse objetivo se realiza pela publicidade, que permite a terceiros conheceram o conteúdo dos atos jurídicos realizados, dando-lhes maior autenticidade, segurança e eficácia. A publicidade pode ser declaratória e constitutiva. No primeiro caso, destina-se apenas a levar ao conhecimento de terceiros interessados a criação ou modificação da relação jurídica. Sua omissão não invalida o ato, mas pode sujeitar o infrator a determinada pena. A publicidade constitutiva é a necessária à perfeição do ato jurídico. Sem ela, o ato não é válido, não é oponível a terceiros, como ocorre com os negócios constitutivos de direitos gerais (CC, art. 1.245 e 1.227). A publicidade se realiza por meio dos registros públicos (Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973), que disciplinam o registro civil de pessoas naturais (nascimentos, casamentos, óbitos, emancipações, interdições, ausência, opções de nacionalidade, sentenças de adoção, nulidade ou anulação de casamento, reconhecimento de filhos r escrituras de adoção, LRP, art. 29), o registro civil de pessoas jurídicas (atos constitutivos e estatutos de associações, sociedades simples, fundações, partidos políticos), o registro de títulos (instrumentos particulares, penhor de móveis, caução de títulos, contratos agrários) e documentos e o registro de imóveis (atos constitutivos, extintivos e translativos da propriedade e de outros direitos sobre bens imóveis). O termo registro tem dois sentidos. O primeiro, de ofício público destinado à publicidade dos negócios e situações jurídicas; o segundo, do ato ou assento praticados nos livros desse ofício.53 O assento principal e original de um fato ou ato jurídico chama-se inscrição. No caso de propriedade imóvel, é a matrícula. O assento posterior, referente ao mesmo ato, destinado a modificá-lo, chama-se averbação. O registro integral de documento, isto é, a reprodução integral do título, chama-se transcrição. A inscrição, a transcrição e a averbação compreendem-se na designação genérica de registro. Os serviços de registro, destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, disciplinam-se pela Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994. 10. Interpretação. Interpretar o negócio jurídico é procurar o sentido e o significado da norma jurídica que nasce da declaração de vontade. A interpretação é um processo que se destina, portanto, a precisar o sentido juridicamente relevante do conteúdo da declaração de vontade,5'1 isto é, os direitos, faculdades, deveres, pretensões dela decorrentes. E assim como se interpretam as leis e as normas jurídicas nelas contidas, também se interpretam os negócios jurídicos, buscando-se a vontade concreta das partes, não a vontade interna, psicológica, mas a vontade objetiva, o conteúdo, as normas que nascem da sua declaração. Embora a interpretação das leis seja regida por normas diversas da interpretação dos atos jurídicos, o intérprete tem a mesma função. Procura investigar a vontade das partes em conjunto, atribuindo-lhes um sentido jurídico. Tanto procura conhecer a intenção do declarante quanto o sentido da declaração.55 E, sendo o negócio jurídico instrumento e expressão da autonomia privada, seus efeitos devem corresponder ao consenso das partes. É o princípio da correspondência entre o conteúdo e os efeitos do ato, princípio geral de direito privado.36 A primeira operação a fazer-se, portanto, é a interpretação desse consenso, para se estabelecer quais os efeitos que se quiserem produzir. Os princípios que orientam o intérprete constituem uma teoria da interpretação, na qual se destacam duas principais tendências, a subjetiva ou da vontade, e a objetiva ou da declaração, que têm orientado as regras sobre a matéria nos principais sistemas legislativos. O ponto de vista subjetivo ou voluntarista, que é o da escola tradicional, defende a tese de que o sentido da declaração negociai corresponde à vontade do declarante. Busca-se, principalmente, a intenção do agente em detrimento do sentido literal das palavras. O ponto de vista objetivo ou declarativista relega a segundo plano a intenção do agente. Interessa-lhe não essa intenção mas a vontade concreta, objetivada, como foi declarada, ou como se deduz das circunstâncias objetivas do caso. Essas teorias não se podem aplicar unilateralmente, mas combinadas de modo que o intérprete estabeleça, em face da declaração e de suas circunstâncias, qual seja, objetivamente, a vontade real do declarante. A interpretação que adotar o critério subjetivo, procurando a intenção pura dos declarantes, desenvolverá uma pesquisa histórica, visando reconstruir o pensamento e os objetivos dos declarantes. Já a interpretação que adote o critério objetivo buscará um sentido, um significado preciso, concreto, contido na declaração negociai, independente da vontade psicológica dos agentes. Essas duas tendências opostas são temperadas por duas posições intermediárias, respectivamente, a teoria da responsabilidade — segundo a qual o declarante é responsável, se agir com culpa, pelos prejuízos causados ao destinatário — e a teoria da confiança, que afirma ser válida a declaração conforme a confiança que tenha despertado no destinatário. A esses critérios deve-se acrescentar o princípio da boa-fé que traduz a "correção, a lisura, retidão ou lealdade recíproca com que as pessoas devem agir no exercício dos seus direitos ou no cumprimento de suas obrigações" (CC, art. l 13). Tais critérios, o respeito à boa-fé e à confiança dos destinatários, assim como a responsabilidade de declarante, devem combinar-se no sentido de se precisar a intenção do agente consubstanciada na declaração, não a simples intenção ou vontade interna, psicológica. A interpretação jurídica não deve procurar a vontade interna das partes, mas sim a vontade expressa objetivamente na declaração, com o sentido que for objetivo para as partes.57 O Código Civil brasileiro, muito sucinto na matéria, estabelece poucos dispositivos sobre a matéria de interpretação dos negócios jurídicos: os arts. 112, 113 e 114, como normas gerais, e os arts. 842, 819 e 1.899, como normas especiais. O Código Civil francês (arts. 1.156 a 1.164), o italiano (arts. 1.362 a 1.371) e o português (arts. 2362 a 2392) são mais pródigos na disciplina dessa matéria.58 A primeira leitura que se faz do art. 112 induz à convicção de que o Código Civil brasileiro adotou na íntegra o dogma da vontade, seguindo a concepção subjetiva, o que aliás era a tradição do direito comum.59 Clóvis Beviláqua dizia textualmente: "..... a parte essencial ou nuclear do ato jurídico é a vontade. Ê a ela, quando manifestada de acordo com a lei, que o direito dá eficácia." O sistema do Código, porém, que não dispõe de muitas normas de interpretação, afasta essa idéia, como se pode deduzir do próprio art. 112 e de outros dispositivos. Sabido que a teoria subjetiva protege os interesses do declarante, dando grande importância aos motivos, à razão psicológica -------------------46 Claude du Pasquier. Introduction à Ia theorie générale et à Ia philosophie du droit, p. 181. 47 Jacques Ghestin. Traité de droit civil. Introduction générale, 4e édition, p. 699. 48 Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, art. 252. 49 CPC, art.334. IV Código Civil português, art. 350S, e Código Civil francês, art. 1.352. 50 Pierre Pescatore. Introduction à Ia science du droit, p. 219. 51 Moacyr Amaral Santos. Comentários do Código de Processo Civil, p. 336. 52 Washington Barros Monteiro. Curso de Direito Civil, p. 256. 53 Afrânio de Carvalho. Registro de Imóveis, p. 107. 54 Bianca, op. cit., p. 378. 55 Luís Diez Picazo y Antônio Gullon. Sistema de Derecho Civil, I, p. 509. Para os adeptos de uma teoria unitária da interpretação, são idênticas as questões. Cf. Cesare Grassetti, Interpretazione dei negozio giuridico, in Novíssimo digesto italiano, VIII, p. 903 e segs.; Manuel de Andrade. Teoria Geral da 'Relação Jurídica, vol. H, p. 306. 56 Giuseppe Branca. Istituzioni di diritto privato, p. 450; Natalino Irti. Intro-duzione alio studio dei diritto privato, p. 174. 57 Ferrer Correia. Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, p. 200. 58 O Código Civil francês, com o art. 1.156 e o Código Civil alemão, com o § 133, são os mais próximos pontos de referência da norma geral contida no a ri. 85 do Código Civil brasileiro. 59 Ordenações Filipinas, I, 62, § 53; Código Comercial brasileiro, art. 131, I. -------------------do ato, facilmente se demonstra que o Código Civil brasileiro não adota o dogma da vontade. Quanto aos motivos, o art. 140, ao dispor que "o falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante", afasta-os do domínio do direito, pois que, sendo objeto da psicologia, "o direito não os investiga, nem lhes sofre a influência".60 Também se afirma que a norma legal "não pode ser interpretada no sentido de fazer tábua rasa da receptividade das pessoas que confiaram na manifestação de vontade. Assim, nas declarações e manifestações de vontade não receptícias, que se dirigem a largo círculo de pessoas, como se dá na promessa de recompensa, nos títulos ao portador, a interpretação tem de atender às circunstâncias que as pessoas componentes do largo círculo poderiam conhecer".61 Nas declarações receptícias, tem de se levar em conta o que o destinatário conheça, podia ou devia conhecer, atendidas as circunstâncias. O Código Civil de 2002 introduz o princípio da boa-fé: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração." Temos então que na interpretação do negócio jurídico a orientação não é puramente subjetiva. Se é certo que se tem de partir da declaração, que é a forma de exteriorização da vontade, certo é também que não se busca somente a intenção, os motivos psicológicos do agente, mas sim, o sentido mais adequado a uma interpretação que leve em conta a boa-fé, e o contexto e o fim econômico do negócio jurídico. Como diz Espínola, "são precisamente o respeito à boa-fé e à confiança dos interessados e a conseqüente responsabilidade do autor que, no caso de interpretação judicial do ato jurídico, mandam atender, em regra, à intenção consubstanciada na declaração, ao invés de procurar o pensamento íntimo do declarante".62 Não se visa a vontade psicológica do agente, mas sim a vontade jurídica, criada pelo declarante para servir de lei entre ele e seus co-interes-sados. Ao dispor o art. 112 que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciaddas do que ao sentido literal da linguagem, o Código reconhece a vontade como elemento da interpretação, mas de modo objetivo e não o único, pois o processo intrrpretativo deve levar em conta outros elementos, como as cir-t unslâncias, o ambiente, os interesses das demais pessoas a que .se dirige a declaração.63 Assim é que, nos atos jurídicos não-patrimoniais, como os de personalidade, de estado, de capacidade, de família, deve-se dar mais ênfase ao elemento subjetivo do que ao objetivo, tendo-se em vista o caráter personalíssimo desses direitos, a sua íntima ligação i om os respectivos titulares. Nos negócios jurídicos mortis causa, mais especificamente o testamento, consagra-se o critério subjetivo (CC, art. 1.899). Também nos negócios jurídicos a título gratuito predomina o critério subjetivo sobre o objetivo, considerando-se a circunstância de que o declarante pratica uma liberalidade, aumentando o patrimônio do destinatário, sem contraprestação equivalente, critério também aplicável no caso de atos de renúncia de direitos, pelas mesmas razões. Com esse sentido, dispõe o art. 114 do Código que os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente. Nos atos pré-contratuais, como a proposta à pessoa ausente (CC, art. 428, IV), prevalece o critério objetivo, tendo-se em vista que, não rhegando a retratação ao conhecimento da outra parte em tempo hábil, fica o proponente sujeito ao respeito da declaração de vontade contida em sua proposta, ainda que sua vontade real a esta declaração não mais corresponda. Nos negócios jurídicos bilaterais deve-se buscar a vontade real na declaração, mediante os tradicionais processos interpretativos, levando-se em conta o conjunto das cláusulas da declaração, o objeto das partes e as circunstâncias em que se praticou o ato, considerando-se ainda a necessária estabilidade e segurança de que se devem revestir as relações jurídicas obrigacionais. Finalmente, nos títulos de crédito, por força de sua própria natureza e literalidade, segundo a qual "o direito decorrente do título é literal no sentido de que, quanto ao conteúdo, à extensão e às modalidades desse direito, é decisivo, exclusivamente, o teor do título",64 a declaração predomina sobre a vontade, com mais intensidade nos abstratos, menos intensamente nos títulos causais. No campo doutrinário, entre as diversas regras de interpretação adotadas, normalmente remontando-se a Pothier, destacam-se duas, principalmente: a) as cláusulas não devem ser consideradas isoladamente, mas sim no seu contexto; b) devem-se considerar também as disposições legais, de caráter imperativo, dispositivo e supletivo. Aliás, não só as disposições legais, como também os usos, os costumes, a eqüidade.05 11. O Princípio da Boa-Fé. O Código Covil Brasileiro dispõe no seu art. 113 que Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Este artigo não tem correspondente no Código Civil de 1916,constituindo importante inovação do Código de 2002,que introduz, assim, expressamente, o princípio da boa-fé na sistemática legal de direito civil. São fontes desse novo dispositivo os Códigos civis francês (art. 1.135), o alemão (par. 157), o italiano (art. 1.366), o português (art. 239). Qual o sentido, alcance e importância dessa nova disposição? A boa-fé é um princípio geral de direito que oferece duas perspectivas de análise e consideração. Para a primeira, de nature/,a subjetiva ou psicológica, a boafé é a crença de que se procede com lealdade, com a certeza da existência do próprio direito, donde a convicção da licitude do ato ou da situação jurídica. Está de boa-fé quem não tem conhecimento da real situação jurídica. É um estado de consciência, uma crença de agir conforme o direito66, é o respeito consciente ao direito de outrem67. Para a segunda perspectiva,de natureza objetiva, a boa-fé significa a consideração, pelo agente, dos interesses alheios, ou a imposição de consideração pelos interesses legítimos da contraparte, o que é próprio de um comportamento leal, probo, honesto, que traduz, um dever de lisura, correção e lealdade, a que o direito italiano chama de correttezza. O princípio da boa-fé caracteriza-se pela sua ampla generalidade. A boa-fé subjetiva tem seu campo de atuação nas matérias de posse-, casamento putativo, usucapião, tradição de bem móvel, pagamento indevido, cessão de crédito, revogação de mandato, mandato aparente, herdeiro aparente. A boa-fé objetiva exige-se, ou aplica-se nos processos de formação, interpretação e execução dos negócios jurídicos, de modo geral, mas com alcance, também, na atividade extranegocial. Destinatários do princípio da boa-fé são os intérpretes da declaração de vontade, as mais das vezes os magistrados chamados a resolver um conflito de interesses. O princípio da boa-fé é um valor normativo histórico e univer-sal,de grande importância já no direito romano. O primeiro testemunho da presença da fides encontra-se na antiquíssima norma patronus si clienti fraudem fecerit, sacer esto (Lei das XII Tábuas, 8, 21), embora a tradição atribua esta norma ao próprio fundador da cidade, isto é, a norma é tão antiga quanto a instituição da clientela68. A fides era assim considerada como o núcleo normativo dos contratos de direito privado, com a função de exigir dos contraentes o respeito à palavra dada (pacto, sunt servanda), isto é, os fatos devem corresponder às palavras, chegando-se a considerar que o grande mérito do pensamento jurídico no final da República, o século de Cícero, foi pôr em evidência a necessidade de conceber-se o direito como inseparável do seus valores éticos69. Na idade média acentuou-se a importância da boa fé no campo das obrigações contratuais e em matéria de posse, surgindo, com base nos textos romanos, uma dupla perspectiva. A primeira em matéria de posse, a boa fé como atitude psicológica, uma falsa crença daquele que desconhece o vício da sua posse. A segunda em matéria contratual, particularmente na compra e venda, como expressão de um valor ético que se exprime em um dever de lealdade e correção no surgimento e desenvolvimento de uma relação contratual. Com o processo histórico da codificação, sob a égide das idéias jusraciona-listas, os códigos francês, italiano e alemão acolheram o princípio da boa-fé, nas suas duas dimensões, a psicológica, ou subjetiva, que se fundamenta em uma crença errada, em uma falsa representação da realidade, e a objetiva, que exprime a necessidade de um comportamento ético, de lealdade, de correção, na gênese, execução e interpretação dos negócios jurídicos. O Código Civil brasileiro, ao dispor no seu art. 113 que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de celebração, refere-se à boa-fé no sentido objetivo, como regra de comportamento. Ora na boa-fé objetiva reconhecem-se três funções, a interpretativa, no sentido de ser um critério para se estabelecer o sentido e alcance da norma, a integrativa, no sentido de que se constitui em princípio normativo a que se recorre para preencher eventuais lacunas, e ainda uma função limitadora de direitos subjetivos, principalmente no campo da autonomia privada. No caso do art. 113 do Código Civil, tem-se uma boafé objetiva imprópria, no sentido de que, sendo um princípio normativo que se realiza por meio da integração, é, neste caso, invocado como critério orientador no processo de fixação do conteúdo e sentido da declaração de vontade70. Seria, a meu ver, um princípio com função interpretativaintegrativa. Quanto aos usos do lugar a que se refere o mesmo dispositivo legal, trata-se de regras observadas de modo uniforme, público e constante pelas pessoas de uma mesma localidade, e por elas consideradas juridicamente obrigatórias para, na falta da lei, regularem determinados negócios71. 12. Integração. Enquanto a interpretação diz respeito ao conteúdo da declaraçj de vontade, a integração refere-se aos respectivos efeitos, não havendo, entre ambas, fronteiras ou solução de continuidade. Integração do negócio jurídico é o processo pelo qual se preenchem as lacunas eventualmente nele existentes, entendendo-se como lacuna a ausência de norma aplicável à hipótese de fato concreto. Quando os intérpretes, que podem ser o juiz, as partes ou até terceiros interessados, não encontram no negócio jurídico a norma adequada à solução da controvérsia, configura-se uma lacuna, um vazio na disciplina legal. Recorre-se então ao processo de integração, preenchendo-se tal vazio com a aplicação de outra norma, ou cie outras fontes externas e, por isso, heterônomas. A integração decorre do fato de as partes não terem previsto todos os efeitos de sua declaração, como ocorre por exemplo, na hipótese de, ao convencionarem uma compra e venda, acordando sobre o objeto e o preço, não determinarem o local da entrega da coisa, ou ainda no caso de nada estabelecerem para a hipótese de vícios redibitórios. Nestes casos, preenchem-se tais lacunas com normas de lei ou dos usos e costumes. Fundamento desse processo técnico-jurídico não é a vontade presumida das partes, mas uma solução justa e equilibrada do legislador, completando a vontade das partes já manifestada acerca dos elementos essenciais do negócio, indispensáveis à respectiva existência. A integração é cogente quando se realiza pela aplicação de normas imperativas, como, por exemplo, as que fixam de modo inderrogável os preços e a forma de seu pagamento72 e, nesse caso, além de ----------------------60 STF, 15 Turma, A. I. n^ 10.923, RT 163/382, apud Wilson Bussada. Código Civil Brasileiro Interpretado pelos Tribunais, vol. I, tomo II, p. 38. 61 Pontes de Miranda, op. cit., III, p. 326. 62 Espínola. Dos fatos Jurídicos, p. 186 e segs. 63 Pontes de Miranda, op. cit., III, p. 337. 64 Túlio Ascarelli. Teoria Geral dos Títulos de Crédito, p. 37. 65 Robert Joseph Pothier. Traité dês obligations n% 91 a 102, apud Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 452 e segs.: 1£) Nas convenções deve-se atender mais à intenção das partes que ao sentido gramatical das palavras. 2°) Quando uma cláusula é suscetível de dois sentidos, deve-se entendê-la naquele em que pode ser exeqüível. 3S) Quando num contrato as palavras admitem dois sentidos, devem entenderse no que mais convenha à natureza. 4£) O que é ambíguo interpreta-se segundo o uso do país. 52) Quando as cláusulas contratuais apresentam modalidades impostas pelos usos locais, ou usos do respectivo negócio, deve-se examinar se a cláusula duvidosa tem o sentido de qualquer desses usos. 62) As cláusulas de um contrato devem ser interpretadas umas pelas outras. 7°) Na dúvida, a cláusula interpreta-se contra o que estipula e a favor do que se obriga. 82) Por mais genéricos que sejam os termos de um contrato, só abrangem as coisas sobre as quais as partes contrataram e não as de que não cogitaram. 92) Quando se esclarecer uma hipótese para a explicação de certa obrigação, a respeito da qual poderia haver dúvida se nela estaria compreendida, não se estende por isso a obrigação restrita aos outros casos, que, por direito, nela se compreendam. 10°) As disposições legais, quer imperativas, quer supletivas, devem ser levadas em consideração na interpretação dos contratos. II2) Uma cláusula concebida no plural distribui-se, muitas vezes, em diversas cláusulas singulares. 12S) O que está no fim de uma frase, ordinariamente, se refere a toda ela, e não somente àquela que a preceda imediatamente, contanto que esse final concorde, em gênero e número, com toda a frase. 66 Judith Martins Costa. A boa fé no direito privado, p. 411; Flávio Alves Martins. A Boa-fé Objetiva e sua Formalização no Direito das obrigações Brasileiro, p. 17 67 Jean-François Ramain. Théorie Critique du Príncipe General de Bonne Foi en Droit Prive, p. 750750 68 Paolo Frezza, FIDES BONA, in Studi sulla Buona Fede, Milano, Giuffrè Editore,1975, p. 3 69 idem, p. 15 70 José Luis De Los Mozos, El Principio de Ia Euena Fé, Barcelona, Bosh, Casa Editorial, 1965, p. 180 71 J. X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro,vol.I,7a.edição,Rio de Janeiro, Freitas Bastos,1963, p.173 72 Exemplo disso são as disposições da Lei do Inquilinato, Lei 8.245, de-18.10.91, arts. 22 e 23, e do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, deli.7.90, art. 51. ----------------------integrado, o negócio é alterado, e é supletiva, quando se realiza apenas na falta da manifestação de vontade das partes, determinando o conteúdo da relação jurídica. Entre a interpretação, que se faz para estabelecer o sentido da declaração de vontade, e a integração, que decorre da existência de lacunas, e que se situa no plano dos efeitos, a doutrina alemã visualizou um tertius genus, a interpretação integrativa,73 que consiste num processo misto, em que a interpretação se completa com o auxílio de normas externas ao negócio, necessárias para o esclarecimento de dúvidas ainda existentes acerca do disposto nas cláusulas negociais. A diferença entre as três espécies seria a seguinte: enquanto a interpretação se realiza para precisar o sentido e o conteúdo da declaração de vontade, trabalhando sobre as cláusulas existentes com o auxílio eventual de normas interpretativas como as dos arts. 112 ou 327 do Código Civil brasileiro, a interpretação integrativa recorre à aplicação de outras normas, para dirimir dúvidas existentes (cfr. Código Civil italiano, art. 1.367 a 1.371, que estabeleceu normas sobre a conservação do contrato, a interpretação de cláusulas ambíguas das expressões etc.). Já a integração refere-se exclusivamente aos efeitos, fixando as conseqüências em um negócio já interpretado. Realiza-se com normas supletivas, como as da garantia da evicção, ou dos vícios redibitórios, ou com as normas cogentes, tanto no conteúdo, quanto nos efeitos.74 A integração completa o negócio, verificando-se, também, na hipótese em que terceiro determina os elementos do contrato, como nos casos dos arts. 485 do Código Civil brasileiro. O nosso código não especifica as hipóteses de interpretação integrativa e de integração do negócio.75 13. A causa como elemento do negócio jurídico. Parte da doutrina civilista e alguns sistemas de direito positivo consideram também a causa como elemento do negócio jurídico, o que tem suscitado acirradas controvérsias. O problema que se apresenta é o de se estabelecer o conceito, a natureza, a importância e a função da causa na teoria do negócio jurídico e, particularmente, no direito civil brasileiro.76 Para a filosofia, ciência dos primeiros princípios, causa é aquilo de que uma coisa depende para existir, distinguindo-se em quatro espécies: eficiente, material, formal e final, maneiras pelas quais o ser pode dar origem a alguma coisa.77 Causa eficiente é o que, por sua ação física, produz efeito. Causa material é aquilo de que uma coisa é feita. Causa formal é a forma de que se reveste a matéria. Causa final é aquilo para que o efeito se produz. É a causa das78 causas. No direito utiliza-se a causa com três significados: como causei eficiente, como causa final e como causa impulsiva, ou motivo dos atos. Como causa eficiente significa o fato jurídico, isto é, tudo aquilo que produz efeito jurídico. Já dizia Teixeira de Freitas, em comentário ao art. 317 do seu Esboço de Código Civil, que "todos os direitos deste Código não existem a priori, são sempre efeito de-um fato, sua causa produtora; e não se deve confundir esse fato causai com os fatos que são objeto de direitos"... Seu campo, por excelência, é o das obrigações, no capítulo das fontes, isto é, dos fatos jurídicos que as fazem nascer (os contratos, as declarações unilaterais de vontade, o ato ilícito). O sentido de maior relevo e, por isso mesmo, mais polêmico é o de causa final, exprimindo a direção da vontade na produção de efeitos jurídicos. A causa impulsiva significa os motivos ocasionais e ocultos que levam a gente 'a prática de um ato. Tem aplicação em matéria testamentária, servindo como estímulo à liberdade, mas sem efeito decisivo.79 A causa final aparece, assim, como razão determinante do ato jurídico. O comprador quer adquirir determinado objeto, o vendedor visa receber o preço, o doador pretende fazer uma liberalidade etc., todos atuam em função de determinadas razões que, sob certas circunstâncias, são importantes para o direito. O ato jurídico não é um fim em si mesmo; ele se realiza tendo em vista determinado fim, que é a sua causa. Na teoria do negócio jurídico, a causa seria, portanto, a razão determinante das relações que se estabelecem, qualquer razão, de natureza objetiva ou subjetiva, pela qual as pessoas manifestam a sua vontade com eficácia jurídica, devendo ser conforme a lei, a ordem pública, os bons costumes. Quanto à sua natureza, a causa não é propriamente um elemento do negócio jurídico como a doutrina costuma apresentá-la. Ela não atua no plano de existência do negócio, como a vontade, o objeto, a forma, mas como requisito de validade ou de eficácia, com uma função de proteção à parte que acreditou na sua existência.80 Conforme opinião dominante na doutrina contemporânea, ela tem uma função econômico-social, figurando como "justificação da autonomia privada".81 Com esse sentido, o art. 1.322 do Código Civil italiano e o 405° do Código Civil português, segundo os quais as partes podem realizar contratos atípicos desde que destinados a realizar interesses merecedores de tutela, segundo o direito positivo. Estaria, assim, a causa diretamente ligada à função social do contrato. Acerca da aceitação da causa como elemento do negócio jurídico existem duas nítidas posições, a dos causalistas, que a aceitam e a dos anticausalistas, que a repudiam por considerá-la inútil. Todavia, a solução de variados problemas em direito, tais como a existência de negócios jurídicos abstratos, a tipicidade dos contratos, a importância jurídica dos motivos na declaração de vontade, a simulação nos atos jurídicos, a resolução dos contratos pelo descumprimento das obrigações etc., para o que tem especial relevo a noção de causa, revela a sua presença em todos os ordenamentos jurídicos, de modo implícito ou explícito82, e justifica o seu estudo e sua disciplina legal. Parte da doutrina, na esteira do Código Civil francês, aplica a noção de causa apenas ao campo das obrigações, enquanto outra, de orientação germânica, a incorpora a todos os negócios jurídicos. 14. Notícia histórica. A diversidade doutrinária acerca do conceito e utilidade da causa. A compreensão do conceito, natureza e razão de ser da causa, na teoria do negócio jurídico, justifica uma breve notícia histórica acerca do surgimento e evolução do conceito. O direito romano não conheceu teoria da causa. Embora com inúmeras referências, não tinha um conceito unitário ou um sentido técnico preciso, usando-se, quer como causa eficiente, quer como causa final, principalmente no campo das obrigações.83 Sua utilização era variada e seu sentido técnico, plurívoco. Já o direito canôniCO trouxe notável contribuição. Reconhecendo a importância da palavra dada, o "valor dos atos humanos e a seriedade das posições assumidas", e considerando-a como fundamento dos acordos de vontade não-tipificados em lei, a doutrina canonista reputava eficazes as simples promessas, partindo da premissa de que "toda promessa vale e obriga". Era o reconhecimento da autonomia da vontade como fonte jurígena, estabelecendo que "a obrigação nasce da só vontade do obrigado sob a condição de existir uma causa que a explique e justifique".84 Desse modo, condenavam-se os contratos com causa ilícita ou imoral e a usura, considerando-se rescindíveis os contratos em que houvesse lesão ou em que o preço não fosse justo. No direito medieval os glosadores fizeram novas colocações que enriqueceram a problemática sem alterar o referencial teórico já existente,85 mas é com a doutrina francesa anterior ao Código Civil, principalmente com Domat, que se estabelecem as bases das modernas teorias sobre a causa.86 Na qualidade de um dos mais brilhantes representantes da escola do direito natural, e como profundo racio-nalista, Domat introduz o racionalismo cartesiano na ciência do direito,87 estabelecendo que, no campo das obrigações, pelo menos, nenhum acordo seria obrigatório sem uma causa que justificasse (nula obbligatio est sine causa). Esse jurista considerava a causa como fato jurídico determinante das obrigações, não propriamente como elemento do ato jurídico. E de causa da obrigação passou a ser considerado também causa do contrato, confundindo-se ambas. Depois de Domat, Pothier ressalta ser indispensável uma causa lícita para o surgimento das obrigações da dos contratos. E por sua influência o Código Civil francês adotou a doutrina da causa em matéria contratual, a ela se referindo expressamente nos arts. 1.108, 1.131, 1.132 e 1.133, não distinguindo, assim, a causa do contrato da causa das obrigações. Seu objetivo era, basicamente, a condenação, a invalidade dos contratos ilícitos ou imorais.88 Adotaram a linha do Código francês os Códigos espanhol, italiano de 1865, libanês, uruguaio, colombiano, chileno e argentino. De modo diverso veio a dispor o Código Civil alemão, o BGB. Imune à influência doutrinária de Domat e de Pothier, os legisladores alemães relegaram a causa a nível secundário, situando-a no campo dos negócios jurídicos de atribuição patrimonial, mais propriamente no campo do enriquecimento ilícito, dela se utilizando para distinguir os negócios jurídicos abstratos dos causais, assinalando que "nestes a transmissão de um direito ou assunção de uma dívida requer um fundamento jurídico". Temos então que, para o direito alemão, a causa não é requisito necessário do contrato, embora seja reconhecida como indispensável a todo enriquecimento, de modo que, se1 for ilícito, cria a obrigação de restituir o indevidamente obtido,89 Seguiram a orientação alemã os Códigos austríacos, o suíço das obrigações, o português e o brasileiro. A partir do Código Civil francês e do Código Civil alemão, o problema da causa suscitou duas concepções doutrinárias distintas, a dos causalistas, aceitando a causa como requisito do ato jurídico, e a dos anticausalistas, negando-a ou atribuindo-lhe importância secundária, pelo fato de a considerarem uma noção falsa e inútil. Dentro das causalistas distinguem-se ainda duas orientações, n objetiva e a subjetiva. Para a concepção objetiva, a causa é o requisito de validade, não dos contratos, mas do negócio jurídico em gr m l, conceituando-se como a "razão econômico-jurídica", o "fim prático" ou a "função econômico- social" do negócio,90 que o direito reconhece como relevante para seus fins e que justifica a proteção jurídica da autonomia privada. É a linha do Código Civil e de grande parte da doutrina. A causa é, assim, a função que o sistema jurídico atribui a cada tipo de ato.91 Por exemplo, a compra e venda tem a função de trocar coisa por dinheiro; na locação, a troca do uso de uma coisa por dinheiro, que é o aluguel; na doação, o enriquecimento tio donatário, por liberalidade. A concepção objetiva da causa torna necessária a sua distinção dos motivos que possam levar o agente à prática de um negócio jurídico, pois a causa não se confunde com eles. Os motivos são razões de natureza psicológica, mais propriamente os interesses que a pessoa visa realizar com o negócio jurídico, estranhos, porém, ao conteúdo desse ato. Por serem de natureza psicológica, não ficando evidentes na manifestação de vontade, os motivos são, geralmente, considerados irrelevantes para os efeitos do ato, salvo se expressamente estabelecidos como sua razão determinante (CC. art. 140). A causa distingue-se também do conteúdo do negócio, considerado este como o conjunto de direitos e deveres criados pela decla-------------------73 É o caso da interpretação integrativa ou interpretação completativa, como lhe chama Pontes de Miranda, op. cit., p. 342, inserção automática de cláusulas de preço, ou de cláusulas de uso. 74 É o caso da aplicação dos usos, da eqüidade, da boa-fé. Cfr.Branca. Istituzioni di diritto privato, p. 453. 75 O direito português disciplina a integração no art. 239£, estabelecendo que "na falta de disposição especial, a declaração negociai deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ser de acordo com os ditames da boafé, quando outra seja a solução por eles imposta". 76 Sobre a causa, um dos temas mais complexos do direito civil, Pontes de Miranda, op. cit., pp. 65/115; Orlando Gomes, op. cit., n- 220 a 222; Caio Mário, op. cit., n£ 87; Antônio Chaves, Causa (direito civil), p. 34 e segs; Silvio de Macedo, Da causa jurídica e o direito comparado, p. 168 e segs.; Paulo Barbosa de Campos Filho. O Problema da Causa no Código Civil Brasileiro, p. 38 e segs.; Henri Capitant. De Ia cause dês obligations, p. 17 e segs.; Ghestin, op. cit., \i. 524 e segs.; Louis Josserand. Lês mobiles dans lês actes juridiques du droit prive, pp. 140/214; Michele Giorgianni, Causa (diritto privato), in Enciclopédia dei diritto, VI, p. 547 e segs.; Federico de Castro y Bravo. El Negocio Jurídico, \i. 163 e segs.; Henri de Page. Traité élémentaire de droit civil belge, I, p. 464 e segs. 77 Régis Jolivet. Curso de Filosofia, p. 296. 78 Os escolásticos enumeravam cinco causas, com o seguinte exemplo, tirado de Aristóteles: Policleto (causa eficiente) esculpiu em um pedaço de mármore (causa material) a estátua (causa formal) de Apoio (causa exemplar) para ganhai talentos de ouro (causa final). 79 Carlos Maximiliano. Direito das Sucessões, II, p. 159; Itabaiana de Oliveira. Tratado de Direito das Sucessões, II, p. 501. 80 Junqueira de Azevedo, op. cit, p. 152. 81 Francesco Galgano. Diritto privato, p. 226. 82 Silvio de Macedo, op. cit., p. 165. 83 Ghestin, op. cit., p. 821; Giuseppe Grosso, Causa (Diritto romano], in Enciclopédia dei diritto. VI, p. 533. 84 Ghestin, op. cit, p. 821. 85 Ennio Cortese, Causa (Diritto intermédio), in Enciclopédia dei diritto, VI, p. 546. 86 De Castro y Bravo, op. cit, p. 171. 87 Franz Wieacker. História do Direito Privado Moderno, p. 234. 88 Diez-Picazo. Fundamentos dei Derecho Civil Patrimonial, p. 165. 89 De modo geral, a doutrina considera como causa a conseqüência jurídica que as partes pretendam com a realização do negócio jurídico. Cf. Enneccerus-Nip-perdey, op. cit., I, § 148; Larenz, op. cit., § 18, II, d); Lehmann, op. cit., p. 233; Flume, op. cit., § 12; Bürgerliches Gezetzbuch (Código Civil alemão), § 812. 90 Emílio Betti. Teoria Geral do Negócio Jurídico, I, p. 329 e segs. 91 Pontes de Miranda, op. cit., vol. 3, p. 78. -------------------ração de vontade, como ato de autonomia privada. A causa é o porquê, a razão última e determinante; o conteúdo, ou objeto jurídico, e o que.92 A teoria subjetiva considera a causa como a finalidade do contrato, a intenção das partes, o seu propósito específico. É a causa final da escolástica. É a representação mental das circunstâncias que está na base da vontade negociai. É a concepção de Capitant e de Planiol, para quem a causa é o motivo determinante da obrigação. Ambas as concepções são passíveis de crítica. A objetiva não explica como pode um negócio típico, com uma função econômi-co-social também típica, ter uma causa ilícita, como, por exemplo, uma doação com propósito de união sexual.93 E a teoria subjetiva, considerando como causa os motivos do agente, estabelece uma noção, que é, na prática, completamente inútil, salvo nos contratos sinalagmáticos. Outra direção teórica, de natureza híbrida, eclética, combinando as duas teorias, a subjetiva e a objetiva, defende a idéia de que é necessário "confrontar a vontade concreta dos sujeitos e dos fins que perseguem com a função jurídica do negócio". O problema da causa situa-se então na harmonia entre a vontade dos sujeitos e o esquema preestabelecido na norma,94 ou, de outro modo, na fusão em uma só idéia do resultado prático objetivo com o propósito das partes sobre esse resultado. Chegando a um conceito unitário, a causa seria o "propósito das partes de alcançarem a finalidade prática tutelada pelo ordenamento jurídico", combinando-se, assim, a "vontade específica e concreta dos agentes com o esquema preestabelecido na norma jurídica". Esta concepção permitiria explicar o negócio sem causa (aparência do negócio), ou com falsa causa (negócio simulado) e a ilicitude (ilegalidade ou imoralidade) do propósito ou do resultado. Por sua vez, as teorias anticasualistas alegam a inutilidade da causa e a sua insubsistência como elemento do negócio jurídico, confundindo-a, quer com o respectivo objeto, como nos contratos sinalagmáticos, quer com o consentimento, como nos gratuitos. A importância da causa estaria então na possibilidade de distinção entre os negócios causais, aqueles em que "a existência e a licitude da causa seriam pressupostos de validade e eficácia do negócio", e os negócios abstratos, que se apresentam como independentes de sua causa, embora esta existisse. A figura dos negócios abstratos é fundamental nos sistemas de circulação de direitos, baseado na segurança jurídica, encontrando sua principal aplicação nos contratos abstratos de transmissão de domício, próprios do direito alemão t1 a promessa de dívida e reconhecimento abstrato de dívida. 15. A causa no direito brasileiro. Qual a orientação do direito brasileiro? Nosso Código Civil, à semelhança do alemão, não adotou expressamente a causa como elemento do negócio jurídico, deixando Clóvis Beviláqua de inseri-la como requisito de validade dos negócios jurídicos, no art. 82 do Código Civil de 1916. O nosso legislador sustentava a desnecessidade e até inconveniência da causa como elemento do ato jurídico, em face das dificuldades e controvérsias que marcaram o direito civil francês, a partir de seu código. E a referência do art. 90 desse Código, ao dispor que "só vicia o ato a falsa causa, quando for expressa como razão determinante ou sob forma de condição" — o que aliás se torna supérfluo em face dos elementos acidentais do negócio, a condição, o termo e o encargo, que são precisamente os instrumentos jurídicos com que o agente adapta os efeitos futuros do ato aos seus motivos, propósitos pessoais — quer significar apenas os motivos psicológicos do ato. A inexistência de dispositivo legal referente à causa como elemento do negócio jurídico não significa que ela não se faça presente no sistema de nosso ordenamento jurídico, se bem que de modo implícito. Figura no art. 69, como causa solvendi, no art. 62 como causa donandi, no art. 564, I e II, como causa credendi, no art. 564, III, como causa indebiti, e ainda nos arts. 876, 879, 861, 863, 864, 869, 873, 540, 476 e 461, de obrigações e contratos.95 A evolução doutrinária do nosso direito tem-se orientado porém no sentido de reconhecê-la e admiti-la, principalmente no aspecto de sua função social, próprio da concepção objetiva. Se não chega a ser considerada como elemento ou requisito do negócio jurídico, a causa é aceita nas hipóteses legais já especificadas. A interpretação jurisprudencial, por sua vez, tem-se processado no sentido de impedir a causa ilícita ou imoral nos atos jurídicos.96 E o Código Civil disciplina, como fonte da obrigação de indenizar, o enriquecimento sem causa (arts. 884 a 886). O direito brasileiro adota, assim, uma posição de transigência,97 não se furtando à indagação da causa quando necessário à realização da justiça. ---------------------92 O objeto jurídico é a resposta à pergunta quid debetur?, enquanto a causa é a resposta à pergunta cur debetur?. 93 Barbero, op. cit., I, p. 538. 94 Diez-Picazo, op. cit., p. 169. 95 Silvio de Macedo, op. cit., p. 177. 96 RTJ 124/752, RT 624/251, RT 599/185, RT 590/92. 97 Caio Mário, op. cit, n- 87. ---------------------CAPITULO XIII Representação Sumário: l. Introdução. Conceito. Razão de ser. Fundamento. Pressupostos. 2. Notícia histórica. 3. Espécies de representação. 4. A representação voluntária. O poder de representação. Conceito. Natureza. Fonte. 5. Conteúdo do poder de representação. Poderes gerais e especiais. 6. Exercício do poder de representação. 7. A procuração. 8. Os sujeitos na procuração. 9. A forma da procuração. 10. A relação jurídica da representação. O elemento subjetivo. 11. O elemento objetivo. 12. O conteúdo da relação jurídica. Direitos e deveres. 13. O substabelecimenlo. 14. O contrato do representante consigo mesmo. A autocontratação. 15. Extinção da representação. 16. A procuração irrevogável e a procuração em causa própria. 1. Introdução. Conceito. Razão de ser. Fundamento. Pressupostos. Os direitos adquirem-se por ato do próprio adquirente ou por intermédio de outrem. Temos então que a declaração de vontade pode ser feita pelo próprio interessado ou por outra pessoa, em nome dele, isto é, como se fosse o próprio a declarar. Configura-se, assim, o instituto da representação e quem pratica o ato é o representante, e a pessoa em nome de quem ele atua é o representado. Isso ocorre, por exemplo, quando A, em nome de B, e nos limites do poder que este lhe concedeu, vende a casa de B a C. Quem pratica o ato é A, o representante, mas de modo que os efeitos do negócio se verifiquem na esfera jurídica de B, o representado. Representação é, assim, a atuação jurídica em nome de outrem1. Concretiza o poder que uma pessoa tem, o representante, de praticar atos jurídicos em nome e, geralmente, no interesse do representado, de modo que os efeitos do ato se verifiquem na esfera deste. É uma verdadeira legitimação para agir por conta de outrem.2 Esse poder nasce da lei, no caso da representação legal, que é a dos pais, tutores, curadores, síndicos, administradores etc., ou decorre de negócio jurídico específico, a procuração. Discute-se em doutrina se o interesse do representado é pressuposto da representação, se esta é a prática não só no nome mas também no interesse dele, vale dizer, com a finalidade de lhe proporcionar vantagens de natureza patrimonial ou moral. A defesa do interesse do representado não é elemento do conceito de representação, diz Larenz.3 "Para existir a representação, basta que o negócio seja concluído em nome do representado, não sendo já necessário, contrariamente ao que por vezes se supõe, que o seja no interesse do representado."4 A representação legal tem sempre lugar no interesse do representado, enquanto a voluntária ou convencional pode realizar-se no interesse do próprio representante, como ocorre, por exemplo, na procuração em causa própria. A representação como instituto, como conjunto unitário de normas jurídicas que regulamentam a atuação jurídica, de alguém em nome de outra pessoa, é comum a vários ramos do direito, pelo que o seu estudo compete à teoria geral. Mas é no campo do negócio jurídico que encontra maior aplicação, como demonstram as regras a respeito contidas nos mais importantes códigos da atualidade.3 No direito civil brasileiro, por influência do francês, sua disciplina está principalmente nas disposições do contrato de mandato (CC. art. 653), embora não se confundam mandato e representação. Em face desses aspectos, distingue-se a representação direta da indireta. A representação direta, própria ou imediata, é aquela cm que o representante pratica o ato em nome do representado, com a mesma eficácia como se fosse este a praticá-lo.6 A representação indireta, imprópria ou mediata, ou de interesses, segundo a doutrina alemã, é aquela em que o representante age em nome próprio mas no interesse de outrem, como ocorre nos contratos de comissão, ou de mandato sem representação, em que o mandatário age em nome próprio embora por conta do mandante. Tal diferença leva setores ponderáveis da doutrina a reconhecer a impossibilidade de tratamento unitário das duas figuras, reconhecendo-se como verdadeira representação apenas a direta, que é objeto aqui do nosso estudo. Como figura e como instituto jurídico é a representação a resposta do direito ao problema da cooperação dos sujeitos na conclusão de seus negócios jurídicos. Funciona como importante instrumento de dinamização da vida jurídica e, conseqüentemente, do processo de desenvolvimento econômico e social, permitindo que as pessoas M-substituam na sua atividade, realizando negócios jurídicos sem a presença física dos respectivos agentes. Sob o ponto de vista da técnica, consiste, pois, a representação, na prática de um ato por pessoa diversa da do titular, que é parte substancial da relação jurídica. O representante, embora praticando o ato, não assume a titularidade da relação, nem é, de regra, o destinatário de seus efeitos, nem responsável por sua execução.7 A representação pode verificar-se quando o agente declara a sua vontade, como também quando recebe a que é emitida por outrem. No primeiro caso diz-se ativa, no segundo, passiva. Seu fundamento é a liberdade jurídica das pessoas, a autonomia privada, que permite a delegação de poderes do representado ao representante para que este atue em nome dele. Pressupõe, por tudo isso: a) a substituição de uma pessoa (representado) por outra (representante) na prática de um ato jurídico: b) atuação deste em nome do representado (contemplatio domini); c) dentro dos limites do poder de representação concedidos ao representante. 2. Notícia histórica. O instituto da representação resulta, na sua configuração atual, de um longo processo histórico em que se conjugam elementos de direito romano, de direito canônico e de direito medieval, dando todos a seu tempo, e de modo diverso, resposta aos problemas jurídicos que iam surgindo em cada uma "das sucessivas fases da cultura ocidental e européia".8 O direito romano não conhecia a representação como hoje se apresenta. Sendo esse instituto, como os demais do sistema jurídico, uma resposta da doutrina e do direito positivo às exigências da vida econômica e social, não tinha a sociedade romana necessidades que o justificassem conforme se apresenta nos ordenamentos jurídicos modernos e contemporâneos. Razões de ordem econômica, como a existência de um comércio primitivo a caracterizar uma atividade primária; razões de ordem jurídica, como a concepção personalíssima das obrigações, que atuavam exclusivamente entre as partes vinculadas, e ainda o formalismo das fontes e das obrigações, que era incompatível com o mecanismo da representação; e também razões de ordem familiar, como no caso do pater famílias poder servir-se dos filhos, escravos e das pessoas sob seu poder como auxiliares de sua atividade jurídica,9 de modo que os efeitos repercutissem no patrimônio dele — tudo isso a tornava dispensável em Roma. Todavia, embora não empregasse a representação direta, utilizava já a indireta em algumas hipóteses. E também, excepcionalmente, a representação direta como no caso da aquisição da posse e, através dela, da propriedade, em que se admitia a aquisição por terceiro, assim como também no caso do institor, correspondente à figura atual do gerenu-ou feitor, ou do magister navis (capitão do navio), cuja atividade obrigava o proprietário ou dominus negotti. A regra geral era, todavia, a de que ninguém poderia adquirir por outrem (per extraneam, jx-r liberam personam nemo adquiri potest) .10 O ato jurídico só produ/ia efeitos entre os participantes, no seu patrimônio na sua esfera jurídica. Foi com o direito romano da Idade Média, o chamado direito comum, e, principalmente, com o direito canônico, que se começou a contestar a proibição da representação direta. Por força das necessidades econômicas e sociais, e também dos interesses da igreja, essa regra coinr-çou a ser contrariada, vindo o Código de Direito Canônico a permitir a representação direta no título De diversis regulis iuris (potest quis per alium quod potest facere per se ipsum).}l A investidura de um benefício eclesiástico, no caso de ausência do cônego beneficiado, assim como a celebração do matrimônio, na ausência dos nubentes, tornam-se possíveis por meio de mandatário especial.12 É, porém, no século XIX, com os juristas alemães, que se elabora definitivamente a teoria geral da representação. A doutrina da representação começa, na verdade, com Domat e Pothier, que influíram no trabalho dos redatores do Código Civil francês, principalmente no contrato de mandato, causando, com a influência desse Código, a confusão ainda hoje existente entre mandato e representação. É dos juristas alemães, porém, a construção da teoria. Numa das mais notáveis contribuições doutrinárias ao direito, com a ciência pandectista correspondendo às necessidades do capitalismo do séc. XIX, eles constróem, a partir do direito romano, um instituto jurídico que permite a prática de um ato por alguém, em nome e no interesse de outrem, o dominus negolii. Savigny inicia o estudo da matéria no Sistema de Direito Romano Atual.13 Mas é Windscheid, aproveitando-se dos trabalhos de Buchka, Ihering e Scheurl, que elabora a chamada doutrina clássica da representação, consagrada no Código Civil alemão, segundo o qual "uma declaração de vontade, emitida pelo representante nos limites do poder de representação em nome do representado, produz diretamente seus efeitos a favor e contra o representado".14 O Código Civil italiano, de modo diverso, disciplina a matéria na parte geral dos contratos;15 o Código Civil português, à semelhança do alemão, na Parte geral;16 o brasileiro de 1916, adotando o modelo francês, limitava-se a estabelecer os diversos casos de representação legal, inserindo a representação voluntária na disciplina do contrato de mandato. O Código de 2002 estabelece os preceitos gerais da matéria na Parte Geral, arts.l 15a 120, remetendo para as respectivas normas da parte especial, principalmente do Direito de Família (poder familiar, tutela e curatela), a disciplina da representação legal e da voluntária, esta no contrato de mandato (CC. art. 120).17 O direito anglo-saxão serve-se do truste e da agency para realizar as mesmas funções da representação.18 Representação e mandato são, porém, diversos em sua natureza e independentes entre si. O mandato é o contrato pelo qual alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses, modalidade, portanto, do contrato de prestação de serviços. Pode haver representação sem contrato de mandato, como nos casos de representação legal, em que o pai, tutor ou curador praticam atos em nome e no interesse dos seus representados, ou mesmo nos casos de representação convencional em que o respectivo instrumento, a procuração, existe independentemente de mandato, ou com ele ou com qualquer outro contrato, como o de trabalho. E pode ainda haver mandato sem representação, nos casos em que o mandatário tem poderes para agir por conta do mandante mas em nome próprio, como na comissão mercantil, ou mesmo no mandato sem representação (CC, art. 663). Temos então que pode haver mandato sem representação, quando o mandatário age em seu próprio nome, embora no interesse do mandante. F, há representação sem mandato, quando nasce de um negócio unilateral, a procuração, que pode ser autônoma ou coexistir com um contrato de mandato, de prestação de serviços etc. Fiel à influência francesa, embora também siga o modelo alemão no tocante às regras gerais da representação, que localiza na Parte Geral, o nosso Código Civil dispõe no art. 653 que "a procuração é o instrumento do mandato". 3. Espécies de representação. Quanto à sua origem, a representação direta pode ser legal e voluntária, conforme nasça da lei ou da manifestação de vontade do representado (CC, art. 115). A representação legal supre a falta de capacidade do representado, como se verifica no poder familiar, na tutela e na curatela, quando aos atos que o representado não pode praticar sozinho. Sua fonte c-disciplina estão na lei, independentemente da vontade do representante, que não pode ser privado do respectivo poder por ato cio representado.19 Esse poder é intransferível ou indelegável pelo titular, pelo caráter personalíssimo do seu exercício (CC, arts. 1.634, V, 1.747, I e 1.774). A representação voluntária ou convencional é a que se constitui por declaração de vontade do representado, necessariamente capa/. Se relativamente capaz, deve ser assistido por seu representante legal. Sua fonte mais freqüente é o mandato com representação (CC, art. 653). Tem por finalidade viabilizar a ajuda de uma pessoa na gestão ou defesa de interesses alheios, superando as dificuldades de ordem material que impeçam a atuação própria do principal interessado, o representado. Enquanto a representação legal tem a função de facilitar a prática de atos que o representado sozinho não --------------------1 Clóvis Beviláqua. Teoria Geral do Direito Civil, p. 61; Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, III, p. 231 e Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil, p. 377 e segs.; Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, p. 426 e segs.; Werner Flume. Allgemeiner teil dês Bürgerlichen Rechts, p. 749 e segs.; Andreas von Thur. Teoria General dei Derecho Civil Alemán, III, 2- parte, § 84, p. 3 e segs.; Ludwig Enneccerus. Tratado de Derecho Civil, vol. I p. 166 e segs.; Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria Geral do Direito Civil, p. 535 e segs.; Luis DiezPicazo. La Representación en ei Derecho Privado, p. 125 e segs.; Manuel Garcia Amigo. Instituciones de Derecho Civil, I, Parte General, p. 771 e segs.; José Castan Tobenas. Derecho Civil Espanol, Comum y Foral, p. 736 e segs.; C. Massimo Bianca. Diritto civile. II contrato, p. 72 e segs.; Roberto de Ruggiero. Istituzioni di diritto civile, p. 240 e segs.; Pietro Perlingieri, Manuale di diritto civile, Napoli, p. 352 e segs. 2 Bianca, op. cit., p. 74. 3 Karl Larenz. Allgemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts, p. 509. 4 Mota Pinto, op. cit., p. 411. Cfr. A. Lopez-V. L. Montes (coords.), Derecho Civil. Pane General, p. 587 e segs., para quem a doutrina mais recente põe ênfase no interesse, mais do que na atuação do representante em nome do representado. 5 Código Civil alemão, §§ 164 a 181; Código Civil italiano, arts. 1.387 a 1.405; Código Civil português, arts. 2582 a 2692. 6 Bianca, op. cit., p. 73; Orlando Gomes, op. cit., p. 377. 7 Bianca, op. cit., p. 76. 8 Diez-Picazo, op. cit., p. 25. 9 Castan Tobenas, op. cit., p. 739. 10 Diez-Picazo, op. cit., pp. 29 e 30. 11 "Qualquer um pode fazer por meio de outro o que pode fazer por si mesmo." 12 Código de Direito Canônico, Cânones 1.104 e 1.105. 13 Friedrich Karl von Savigny. Sistema dei Derecho Romano Atual, § 113. 14 Bernardo Windscheid. Diritto delle pandette, I, p. 280; Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch), § 164. 15 Código Civil italiano, art. 1.388. 16 Código Civil português, art. 258°. 17 Código Civil brasileiro, arts. 653 a 692. No direito reinícola, as Ordenações Filipinas eram extremamente lacunosas na matéria, referindose a ela apenas na disciplina do mandado judicial. Ordenações, livro l2 Tomo 48, § 15, e Livro 3-, Tomo 29, princípio. Cf. Teixeira de Freitas. Consolidação das Leis Civis, nota l ao art. 456. 18 Garcia Amigo, op. cit, 778. O trust é um negócio jurídico pelo qual uma pessoa entrega bens ou valores a outra para serem administrados em favor da primeira ou de outrem por ela indicada. Também na agency, uma pessoa (agent) age no interesse de outra, contratando e dispondo como se fosse ela. 19 Castan Tobenas, op. cit., p. 742. --------------------pode concluir, na representação voluntária, o representante nada pode fazer que o representado também não possa. Nesta, o poder de representação é concedido pelo representado, que pode revogá-lo potestativamente, praticando ele próprio os atos que incumbira ao representante. Tanto em uma como em outra, não pode haver conflito de interesses entre representado e representante, que torne incompatível o poder representativo e a finalidade ou função desse poder. Na hipótese, pouco estudada, de representante e representado, na representação voluntária, praticarem separadamente atos diversos, com o mesmo objetivo, por exemplo, praticando o representado o ato para o qual tinha nomeado representante, agindo este de igual modo, qual dos atos deverá prevalecer, e os seus efeitos? Como a outorga do poder de representação não tira do representado o direito de ele próprio praticar o ato, em princípio, o ato que primeiro se concluir é o que será válido e eficaz, ficando o outro sem efeito por falta de objetivo, ressalvada a responsabilidade do representado ou do representante, em caso de culpa ou erro.20 Dispõe o Código que, no tocante à representação legal, seus requisitos e efeitos são os estabelecidos nas respectivas normas, enquanto que os da representação voluntária estão fixados na Parte Especial (art. 120). Parte da doutrina admite ainda outra espécie de representação, a judicial, outorgada, na forma da lei, pelo juiz, nos casos de falência, concordata, inventário etc. Na verdade, nada mais é do que uma representação legal, pois prevista em lei. Outra espécie seria ainda a orgânica, compreendendo aspectos da representação legal e da voluntária.21 Representação orgânica é a que compete aos órgãos externos com que uma pessoa jurídica atua. Caracteriza-se pela circunstância de o órgão representativo ser parte integrante da própria estrutura, agindo não individualmente mas como parte do próprio ente. Sendo, porém, a declaração de vontade emitida pela pessoa física encarregada de representar o ente, para o que deve estar devidamente qualificada, a distinção entre essa pessoa física, que atua como órgão de representação, e a pessoa jurídica propriamente dita, explica a alegada representação orgânica. Outros entendem que a hipótese é apenas de representação legal, já que, na forma da lei, as pessoas jurídicas devem ter órgãos que manifestem a sua vontade. A opinião dominante é no sentido de que a chamada representação orgânica consiste apenas na atuação da própria pessoa jurídica por meio dos seus órgãos (CC. art. 46, III), não constituindo, de per si, espécie autônoma do fenômeno da representação. Como diz Pontes de Miranda, "o órgão da pessoa jurídica não é representante legal. A pessoa jurídica não é incapaz. O poder de representação, que ele UM n, provém da capacidade mesma da pessoa jurídica, por isso mesmo r dentro e segundo o que se determinar no ato constitutivo, ou nas deliberações posteriores". "Quando o órgão da pessoa jurídica praticar o ato (...), não há representação, mas presentação."22 4. A representação voluntária. O poder de representação. Conceito. Natureza. Fontes. A representação voluntária pressupõe uma declaração de vontade, um negócio jurídico unilateral, com que o declarante concede a outrem o poder de representá-lo na prática de atos jurídicos. Poder de representação é o poder que alguém (o representado) concede a outrem (o representante), para agir, com eficácia jurídica, em nome do concedente. Caracteriza uma situação jurídica atribuída ao representante, na qual este pode atuar com eficácia na esfera jurídica alheia.23 Quanto à sua natureza jurídica, divergem as teorias. Para alguns/''1 o poder de representação é um desdobramento da capacidade de fato. Assim como a pessoa tem aptidão para agir no âmbito de sua própria esfera jurídica, também o pode fazer na de outrem, desde que se lhe outorgue poder de representação. Segundo outros/5 o poder de representação seria um direito subjetivo. Para outros ainda,26 seria um poder funcional a serviço do interesse de terceiros. Tais concepções são criticáveis. Considerar o poder de representação como manifestação da capacidade de fato do representado é ampliar as dimensões dessa capacidade, o que não é correto, considerando-se o caráter personalíssimo desse atributo. Equiparar o poder de representação a um direito subjetivo não parece mais aceitável, o que aliás se manifesta na doutrina alemã, onde "existe grande incerteza acerca da situação jurídica criada pela representação". São dois conceitos inadequados entre si. O direito subjetivo é um poder de agir e de exigir de outrem determinado comportamento. É categoria jurídica definida e precisa, a serviço dos interesses do próprio titular. Tal não ocorre com o poder de representação, que não está a serviço de um titular, nem é completamente livre. Do mesmo modo quanto ao direito potestativo. Aceitável seria considerar esse poder como instrumento de cooperação social, com poder de agir em nome e no interesse do representado. Seria um conceito funcional. Para outros ainda, a representação configuraria uma outorga de legitimidade, uma autorização concedida a alguém para atuar juridicamente na esfera jurídica do autorizante,27 como "exercício de um direito alheio". O poder de representação tem sua fonte na autonomia privada (representação voluntária), na lei (representação legal) ou em decisão judicial (representação judicial), para os que distinguem esta última espécie. Na primeira, é a vontade do outorgante, expressa no negócio jurídico da procuração. Só há representação se o representado quiser. Na segunda, é a própria lei que outorga os poderes representativos, como nos casos do pátrio poder, da tutela, da curatela, limitando-os e disciplinandolhes o respectivo exercício. Finalmente, existem casos em que é o juiz que designa "a pessoa que, em determinadas circunstâncias, deve representar outra", como nas hipóteses do síndico, do comissário, do liquidante e do inventariante nos processos de falência, concordata, dissolução de pessoas jurídicas ou inventário. 5. Conteúdo do poder de representação. Poderes gerais e especiais. Conteúdo do poder de representação são as faculdades de atuação de que dispõe o representante. Classificam-se, conforme a sua extensão e eficácia, em poderes gerais e especiais (CC, art. 660). Poderes gerais são os conferidos para os atos de administração ordinária, isto é, os atos de gerência que não implicam em alienação, salvo no caso de bens de fácil deterioração e dos destinados especificamente à venda.28 Seu objetivo é a conservação das coisas c dos direitos do representado. Existem, porém, atos de disposição que são atos de administração, como a venda dos frutos e produtos obtidos pelo administrador, assim como dos materiais inservíveis. Poderes especiais são os que se concedem para certo e deterrni nado ato jurídico, precisando-se o bem objeto do ato, assim como a natureza jurídica deste.29 Sendo exceção, constituem sempre uma exigência da lei, como no caso de celebrar-se um casamento poi procuração. Outro aspecto distintivo está em que "o caráter especial de poder permite um tipo de revogação tácita, como a designação de um novo procurador para o mesmo negócio" (CC, art. 687), o que não se verifica no caso de poderes gerais. A lei refere-se expressamente a alguns atos para os quais são necessários poderes especiais, como para alienar (vender, doar), hipotecar, transigir, assim como quaisquer outros que exorbitem da administração ordinária (CC, art. 661, par. 1°). A regra geral é a necessidade de poderes especiais para os atos que saiam do âmbito da administração ordinária, por exemplo, assinar compromisso judicial ou extrajudicial, receber e dar quitação, confessar dívida ou obrigação, remitir dívidas, renunciar a direito, fazer novação, contrair empréstimo, fazer opção, emitir, endossar e avalizar títulos de crédito, receber-lhes os juros, casar e praticar, em geral, qualquer ato de direito de família, prestar fiança, tomar posse, dar queixa-crime ou denúncia, assinar escritura de constituição de sociedade, participar de assembléia-geral de sociedade por ações, requerer naturalização, receber citação, confessar, arrematar, adjudicai ou remir bens, desistir da ação ou de qualquer recurso, ratificar, requerer homologação de carta de sentença, requerer falência, assinar termo de inventariante ou de testamenteiro, prestar declarações no inventário e contas da testamentaria, fazer partilha amigável, requerer 20 Ruggiero, op. cit., p. 245. Com opinião contrária, no sentido de verificar-se uma revogação tácita quando o representante pratica, ele mesmo, o ato para que constituíra representante, Clóvis Beviláqua em comentário ao art. l. 316 do Código Civil. o registro de marcas de indústria e comércio, constituir bem de família, aceitar doação com encargo, recusar doação com ou sem encargo, emprestar, abrir créditos em bancos, aceitar ou repudiar herança, empenhar ou penhorar bens, reconhecer filho natural.30 Os poderes especiais interpretam-se restritivamente; é a opinião dominante,31 porque constituem exceção. Conforme a natureza dos poderes concedidos, a procuração é geral quando se destina a todos os negócios do outorgante, não distinguindo os atos a cuja prática se destina, e especial quando se destina, determinadamente, a um ou mais atos (CC, art. 660). 6. Exercício do poder de representação. O representante deve agir em nome do representado, de modo a produzir efeitos jurídicos na esfera jurídica dele, configurando vantagens de qualquer espécie (CC, art. 116). Se o representante ultrapassar os limites da procuração, haverá excesso de poder; se agir sem o necessário poder, caracterizará a hipótese do falso ou aparente procurador.32 É por isso que o Código Civil determina que o mandatário apresente a procuração às pessoas com quem tratar em nome do mandante, sob pena de responder a elas por qualquer ato que lhe exceda os poderes (CC, art. 118). Neste caso, será considerado mero gestor de negócios enquanto o representado não lhe ratificar os atos (CC, art. 665). Pode surgir um conflito de interesses quando os do representante forem incompatíveis com os do representado. A hipótese mais conhecida é a do contrato consigo mesmo, (v. item 14) aquele em que "o representante assume posição de parte substancial contraposta ao representado, ou estipula, representando as partes contrapostas". Nesse caso, "a vontade de uma só pessoa regula dois interesses em contraposição". O exercício do poder de representação compreende uma série de atos jurídicos, da mais variada espécie, que o procurador pratica em nome e geralmente no interesse do representado. Essa atividade jurídica deve ser exercida, em princípio, pelo próprio procurador, em virtude da confiança nele depositada pelo representado. Daí falar-se em um "ingrediente fiduciário", um intuitus personae na relação jurídica representativa,33 do que resulta o aspecto personalíssimo da obrigarão de fazer que o representante assume perante o representado. E o procurador, pessoalmente, quem deve cumprir a obrigação, o que não impede que ele se utilize de terceiros, às vezes indispensáveis, para o cumprimento da prestação. A questão da possibilidade, ou não, de o representante se substituir por terceiro no cumprimento da sua obrigação orienta-se por dois princípios fundamentais. O primeiro é aquele segundo o qual a essência da representação é a confiança do representado no seu representante, do que decorre o caráter personalíssimo da atuação deste. O segundo é o da "máxima eficácia da representação e tia conveniência da fungibilidade da atuação representativa". De acordo com o primeiro princípio, a confiança do representado no seu representante é a base da relação jurídica, pelo que deve ser esse, pessoalmente, a executar as tarefas que lhe foram confiadas, podendo eventualmente transferi-las a outrem, se e como o representado autorizar. Segundo o outro princípio, o da eficácia máxima e da possível fungibilidade da atuação representativa, deve permitir-se a substituição do representante sempre que ele não possa atuar, como, por exemplo, no caso de se encontrar doente, viajando, ou de qualquer modo impedido de executar a prestação devida. E evidente que a qualquer momento o representado pode substituir o representante, no exercício de um seu direito potestativo. O problema que se levanta é o da substituição do representante feita por ele mesmo, por meio do chamado substabelecimento. Km que limites e sob que condições é válida a substituição do representante, que transfere a outrem a sua obrigação de representar o outorgante, e quais as conseqüências no caso de tal substituição ultrapassar tais limites? (v. item 13) 7. A procuração. Na representação voluntária, o poder de representação nasce r se exerce por meio da procuração, negócio jurídico unilateral com --------------------------21 Garcia Amigo, op. cit., p. 783; Bianca, op. cit., p. 79. 22 Pontes de Miranda, p. 233. 23 Diez-Picazo, op. cit., p. 125. 24 Oertmann, Beitzk, Kohler, Eichler, apud Diez-Picazo, op. cit., p. 126. 25 Krome e Von Thur, idem, ibidem. 26 Carnelutti, Invrea, idem, ibidem. 27 Diez-Picazo, op. cit., p.128. 28 Clóvis Beviláqua. Código Civil Comentado, art. 1.295; João Luís Alvos. Comentários ao art. 1.295. 29 Diez-Picazo, op. cit., p. 173. 30 Carvalho Santos. Código Civil Brasileiro Interpretado, vol. XVIII, pp 173/179. 31 Pontes de Miranda. Tratado, vol. 3, p. 257. 32 Walter d'Avanzo. htituzioni di dirítto privato, p. 46. 33 Diez-Picazo, op. cit., p. 191. --------------------------que uma pessoa (dominus negotii) outorga voluntariamente a outra o poder de representação. Quanto à sua natureza jurídica, a procuração é negócio jurídico unilateral, receptício e abstrato; negócio jurídico por ser declaração de vontade, preceito de autonomia privada dirigido à regulamentação de uma situação de interesses; unilateral porque, para a sua existência, validade e eficácia, necessita apenas da declaração de vontade do outorgante, independentemente da aceitação do outorgado representante; receptício no sentido de que a declaração de vontade dirige-se a determinada pessoa, estabelecendo entre ela e o representado a relação jurídica representativa. No que diz respeito à sua causa, desde que fixada a diferença entre o negócio unilateral da procuração e o bilateral do mandato, cuja existência requer a aceitação do mandatário, considera-se a procuração como negócio jurídico abstrato, independente de outras relações entre representante e representado, ainda que determinantes, como no caso de sociedade, mandato, prestação de serviços, contrato de trabalho etc. Sua eficácia decorre apenas da concessão do poder pelo representado, e não de relações jurídicas subjacentes, porventura já existentes entre ambos. A tese da procuração como negócio jurídico abstrato baseia-se em duas premissas fundamentais: a diferença entre mandato e representação, e a diferença entre representação e procuração, o negócio jurídico que cria.34 Disso resulta que a procuração existe e é eficaz ainda que não exista, ou seja ilícita, uma relação jurídica subjacente a que esteja diretamente ligada, como, por exemplo, um mandato. A tese da procuração como negócio jurídico abstrato facilita a circulação de direitos e, no caso de conflito de interesses entre o dominus negotii e terceiro que contrata com o representante, prevalece o interesse do terceiro. Não é de admitir-se que este deva investigar ou preocupar-se em conhecer a relação existente entre representado e representante, desde que, evidentemente, o terceiro esteja de boa-fé. Embora o direito positivo brasileiro não adote a teoria da procuração como negócio jurídico abstrato, considerando-o como instrumento do mandato que lhe serve de causa (CC, art. 653), visa também proteger o terceiro de boa-fé, em face do qual "a procuração produz seus efeitos independentemente da relação jurídica subjacente". Ao contrário, para quem não estiver de boa-fé, a relação subjacente repercute na eficácia da procuração. Exemplo da proteção ao terceiro de boa-fé está na hipótese legal do pagamento a credor putativo (CC, art. 309), assim como na eficácia do negócio jurídico celebrado com mandatário que ignore a extinção do mandato, por morte ou outra causa, do mandante (CC, art. 689). 8. Os sujeitos na procuração. Podem outorgar procuração todas as pessoas capazes mediante instrumento público ou particular (CC, art. 654), podendo figurai um ou vários agentes, como representantes ou representados. Haverá pluralidade de outorgantes no caso de co-titularidade de direitos, como na hipótese de condôminos, co-herdeiros, co-credores etc. Ao darem procuração, fazem-no de modo conjunto, em uma ou várias declarações de vontade, configurando um só negócio jurídico. A procuração outorgada por duas ou mais pessoas para o mesmo negócio implica em solidariedade ativa, vale dizer, cada uma delas fica solidariamente responsável perante o procurador por todos os compromissos e efeitos da procuração, garantido o direito de regresso entre os outorgantes pelas quantias pagas (CC, art. 680). Pode também haver pluralidade de representantes. Neste caso, o poder de representação poderá ser exercido por todos em conjunto, individualmente, ou por alguns somente. Diz a lei que na hipótese de pluralidade de procuradores, nomeados no mesmo instrumento, qualquer deles poderá exercer os poderes outorgados, se não foram expressamente declarados conjuntos, nem especificamente designados para atos diferentes ou subordinados a atos sucessivos (CC, art. 672). Significa isso que os procuradores são nomeados para que atuem uns na falta dos outros. No caso de procuradores declarados conjuntos, será ineficaz o ato praticado sem interferência de todos, salvo havendo ratificação, que retroagirá à data do ato (CC, art. 672). O representante deve ter capacidade de fato para praticar os atos em nome do representado. A lei brasileira admite porém, como representante convencional, o maior de dezesseis anos não-emanci-pado (CC, art. 666), sendo que o representado só poderá reclamar contra o menor, assim como o terceiro que com ele contrata, na medida do seu enriquecimento.35 9. A forma da procuração. Existe plena autonomia na escolha da forma do instrumento, guardadas as disposições imperativas da lei. A procuração pode ser expressa ou tácita, verbal ou escrita (CC, art. 656). Para os atos que exigem forma escrita, isto é instrumento público ou particular, não se admite a forma verbal (CC, art. 657). E necessário que a procuração tenha a mesma forma do negócio a cuja celebração se destina (CC, art. 657). Não obstante a independência da procuração (o Código Civil alemão dispõe, no 167, que "a procuração não precisa da forma estabelecida para o negócio a que o poder se refere"), o Código Civil brasileiro atual diversamente do anterior, exige que a procuração adote a mesma forma do negócio a que se destina, pelo que não pode constituir-se um procurador por instrumento particular para representar alguém na assinatura de um instrumento público. A procuração é expressa quando se utiliza da forma escrita ou verbal, isto é, um processo destinado à comunicação com outras pessoas. É tácita quando a outorga do poder de representação se deduz do comportamento do declarante, dos chamados fatos concludentes, como ocorre, por exemplo, no caso dos empregados domésticos, que se presumem representantes de seus patrões para a prática dos atos que entram no exercício normal de sua profissão,36 ou no caso da gestão continuada de uma empresa, com aquiescência do proprietário. Também a aceitação do representante pode ser expressa e tácita. Neste caso, pode deduzir-se do começo de execução da atividade para que lhe foi conferida (CC, art. 659). A aceitação da procuração tácita consagra a teoria da aparência nos atos jurídicos, vale dizer, é idônea para suscitar em terceiro a confiança ou a representação mental de que dita aparência corresponde à realidade. É a aplicação da concepção objetiva da interpretação jurídica que, entre os interesses do representado e os de terceiro, visa proteger preferencialmente rstr último, o que é mais conforme aos interesses gerais da dinâmica jurídica e aos princípios Urrais cia boa-fé e da segurança do tráfico jurídico. O que tem valor, assim, é o significado objetivo do comportamento adotado.37 10. A relação jurídica da representação. O elemento subjetivo. O poder de representação realiza-se na prática de atos jurídicos em nome do representado, do que resultam três espécies de relações jurídicas: uma, entre esse (dominus) e o representante, outra, entre o representante e terceiros, na qual o representante é parte rui srntido formal, e uma outra ainda, entre esses e o dominus, qur (• parte em sentido material. A relação jurídica entre o representado e o representante, objeto do nosso estudo, deve traduzir as faculdades outorgadas a esse, qur deve respeitar e agir dentro dos respectivos limites. A relação estabelecida entre representante e terceiros decorre da atuação do representante, que age como parte, mas em sentido formal. A terceira relação é a que se estabelece entre terceiros e o dominus, por efeito da atuação do representante em nome e no interesse deste, que surge como parte em sentido material. Para que isso ocorra, é necessário porém que o representante tenha agido em nome do representado (contemplatio domini). A expressão contemplatio domini significa, portanto, a vontade consciente, o elemento psicológico, a intenção comum dos agentes — que participam do negócio jurídico em que uma das partes atua como representante — de produzir efeitos jurídicos para o representado. Tão importante é que o art. 663 dispõe que "sempre qiir o mandatário estipular negócios expressamente ern nome do mau damnte, será este o único responsável; ficará porém, o mandatário pessoalmente obrigado, se agir no seu próprio nome, ainda qur o negócio seja de conta do mandante" Se não há contemplatio domini, não há representação não há eficácia. A atuação em nome do representado é, portanto, requisito de qualificação do ato como representativo.38 Na relação jurídica entre o representado e o representante, o primeiro é a pessoa em nome e, geralmente, no interesse de quem atua o segundo e sobre quem recaem os efeitos jurídicos dessa atuação. E o dono do negócio (dominus negotti). O ausente pode ser representado (CC. art. 22) destinando-se a curadoria de ausentes a proteger-lhes os interesses. Também o nascituro pode ser representado, com a mesma finalidade (CC. arts. 1.778 e 1.779). Na representação voluntária, porém, o representado deve ser plenamente capaz para que possa outorgar a outrem sua representação (CC. art. 654). O incapaz não pode constituir procurador e o relativamente incapaz poderá fazê-lo com assistência do seu representante legal. No caso de o representado ser pessoa jurídica, existe um problema teórico ou dogmático, que é o de se saber se as pessoas físicas que atuam em nome ou por conta das pessoas jurídicas são seus representantes ou apenas órgãos de entidade. Segundo a tese da "representação orgânica", já vista anteriormente, a pessoa jurídica "possui órgãos permanentes" com essa função, independentemente da possibilidade de outorgar a terceiros o direito de representá-la no campo de sua atividade jurídica. Essa é a doutrina dominante na Alemanha, a Organtheorie, que considera a pessoa jurídica como um ser com plena capacidade de atuar por meio de seus órgãos, de tal maneira que os atos realizados por eles nos seus limites de competência valem como atos da pessoa jurídica, sem qualquer intermediação. A pessoa considerada como órgão é a mesma pessoa jurídica atuando. Já, de acordo com a teoria da representação, a pessoa jurídica só pode atuar por meio de um representante, sendo incapaz de agir por si mesma. A importância prática da distinção está na responsabilidade por ato ilícito. Se considerada a pessoa jurídica como incapaz, o seu representante, não ela, será o responsável, pois ela só pode ser representada nos limites da representação, vale dizer, no âmbito dos negócios jurídicos, não na prática de ato ilícito. E seu órgão de representação extrapolar os seus poderes, a pessoa jurídica não se obriga. O direito brasileiro parece adotar nesta matéria a teoria orgânica ao referirse à representação nos atos judiciais e extrajudiciais das pessoas jurídicas no art. 46, III, do Código Civil e no 12, VI, do Código de Processo Civil. Talvez fosse melhor falar de uma representação necessária, nem legal nem voluntária, estabelecida pelos próprios membros da pessoa jurídica no exercício de sua autonomia privada,39 estabelecida no respectivo estatuto. Seria uma representação orgânica, enquanto diversa cia representação legal e da voluntária, o que não exclui que a pessoa jurídica tenha também esta modalidade. Pode uma pessoa jurídica ser representante de outra. l l. O elemento objetivo. Objeto da representação é o serviço que o representante deve prestar, caracterizando uma obrigação de fazer, na defesa de um bem jurídico ou de um interesse do representado. Tal obrigação consiste em emitir ou receber uma declaração de vontade que se imputará ao representado, no exercício de uma representação ativa ou passiva. A atuação do representante pode verificar-se na prática de negócios e de atos jurídicos, podendo requerer, reclamar, interpelar, notificar, constituir em mora o devedor do representado, interromper a prescrição, escolher a obrigação alternativa que interesse ao representado credor, receber e fazer pagamentos etc. O objeto deve ser, todavia, como de toda a relação jurídica, possível, lícito e determinado ou determinável. Regra geral é que todos os interesses do representante admitem representação no campo do direito patrimonial. Proibições ou impedimentos são, portanto, de natureza excepcional. Nos atos de direito de família é restrita a representação convencional por tratar-se de matéria onde quase não vige o princípio da autonomia privada. Inadmissível, em princípio, no exercício de di reitos personalíssimos, não cabe também nos casos que impliquem mudanças de estado. Admite-se porém a representação no casamen to, mediante procuração, por instrumento público, que conceda poderes especiais ao representante para receber, em nome do ou torgante, o outro contraente (CC. art. 1.542). Pode haver representação na emancipação, na adoção, no pacto antenupcial. Nesse ramo do direito não se admitem poderes gerais de representação, só especiais. --------------34 Diez-Picazo, op. cit., p. 139. 35 Carvalho Santos, op. cit, p. 224; Pontes de Miranda, op. cit, vol. 3, p. 266. 36 Carvalho Santos, op. cit., p. 133. 37 Diez-Picazo, op. cit., p. 158. 38 Bianca, op. cit., p. 95. 39 Diez-Picazo, op. cit., p. 72. --------------No direito das sucessões, o testamento não admite representação (CC, art. 1.858), por ser negócio jurídico personalíssimo, sendo porém admissível na aceitação ou na renúncia da herança.40 A confissão judicial admite representação, desde que o ato ou negócio jurídico tenha sido praticado pelo mesmo representante (CPC, art. 349, par. único). A confissão extrajudicial admite, sem quaisquer entraves, a representação (CPC, art. 353). Finalmente, a representação pode outorgar-se para um ou para uma variedade de serviços. Exemplo desta última hipótese temos no caso dos diretores ou administradores de pessoas jurídicas que se consideram representantes para todos os atos relacionados com a atividade normal da pessoa, sem embargo de não serem considerados propriamente, como visto, verdadeiros representantes. 12 .O conteúdo da relação jurídica. Direitos e deveres. A relação jurídica da representação é um vínculo entre representante e representado que se caracteriza por especial conteúdo de direitos e deveres recíprocos, que exprimem um sentimento de confiança e lealdade que deve existir entre as partes. Há um aspecto pessoal de grande influência na disciplina jurídica da relação, de modo que qualquer mudança nesse particular pode levar à revogação ou à renúncia do poder representativo (CC, art. 682, I, II, III). Com base nessa confiança recíproca, configuram-se diversos deveres, direitos e obrigações, a saber (CC, arts. 667 a 681): a) o emprego, pelo representante, da diligência possível, exercendo pessoalmente os poderes de representação que lhe foram outorgados (CC, art. 667), salvo na hipótese de substabelecimento autorizado; b) o dever do representante comunicar, informar, enfim, dar contas de sua gerência ao representado, colocando-o a par de tudo o que se verificar na execução de sua atividade, inclusive prestação de contas das vantagens recebidas, transmitidas ou a transmitir ao representante (CC, art. 668); c) o dever de custódia e de conservação dos "bens que lhe tenham sido entregues pelo ou para o dominus, o que se enquadra "na obrigação geral de diligência do mandatário"; d) o dever de lealdade do representante para com o representado, baseado no princípio da boa-fé e no "critério geral de diligência específica aplicável aos negócios de gestão (CC, art. 866), clcvn esse que se ramifica na proibição de apropriação indébita dos valores entregues pelo representado, e no dever de manter este sempre informado do andamento da gestão representativa, abstendo-sr tlr utilizá-los em seu próprio interesse ou de receber de terceiros qualquer retribuição como efeito de sua atividade de representante, abstendo-se ainda de assumir outras re-presentações incompatíveis com as já existentes, independentemen-te da cláusula de exclusividade porventura estabelecida. Conseqüência imediata desse devei de lealdade é a proibição do contrato de representante consigo mesmo, salvo se permitido. Ainda ligado ao dever de lealdade do representante, está a proibição de compra, por ele, dos bens de cuja administração ou alienação esteja encarregado (CC, art. 497, IV e CPC, art. 690, II), salvo no caso de venda feita diretamente pelo dono, ou por ele posteriormente ratificada.41 Pela inexecução total ou parcial desses deveres responde o representante por perdas e danos, aplicando-se-lhe as regras gerais da inexecução das obrigações (CC, arts. 389 a 404) e as especiais, do contrato de mandato (CC, art. 667). Quanto ao representado, tem ele o dever de proporcionar ao representante os meios necessários para o perfeito exercício da representação (CC, art. 675), cumprindo as obrigações por este assumidas em nome e no interesse do dominus, assim como o dever de pagar a remuneração ajustada (CC, art. 676), os juros do que o representante adiantar (CC, art. 677) e o ressarcimento das perdas que sofrer com o cumprimento da representação (CC, art. 678). 13. O substabelecimento. Substabelecimento é o ato pelo qual o representante transfere a outrem os poderes concedidos pelo representado. Seu objetivo é facilitar a gestão representativa, sempre que o representante não possa, ele próprio, praticar os atos a que se obrigou. O Código Civil disciplina a matéria no art. 667, §§ 1° a 4°. Quatro hipóteses podem surgir: a) o representante pode substabe-lecer (CC, art. 667, par. 2°); b) o representante não tem poderes para fazê-lo; c) o representante está expressamente proibido de fazê-lo (CC, art. 667, par. 3°); d) a procuração é omissa quanto ao substabelecimento (CC. art. 667, par. 4°). Se a procuração permite o substabelecimento, realizado este, o procurador não é responsável pelos atos do substabelecido, salvo, no caso de culpa in eligendo, se tiver escolhido para substituí-lo pessoa de evidente incapacidade ou insolvência, ou in faciendo, se lhe der instruções para a gestão representativa. Havendo poderes de substabelecer, só serão imputáveis ao mandatário os danos causados pelo substabelecido, se tiver agido com culpa na escolha deste ou nas instruções dadas a ele (CC, art. 667, par. 2°) Se o representante não tem poderes para substabelecer, e o fizer, será responsável perante o representado pelos atos culposos do substabelecido. O Código prevê a hipótese do substabelecimento sem autorização, como se deduz da parte final do art. 667. A conseqüência é a responsabilidade do procurador pelo procedimento culposo do substabelecido. O procurador responde "por culpa sua ou daquele a quem substabelecer, sem ter poderes especiais e expressos para isso".42 Se a procuração expressamente proibir o substabelecimento e, no entanto, o representante o fizer, o procurador é responsável pelos danos verificados na gestão do substabelecido, embora decorrente de caso fortuito, salvo provando que o caso teria ocorrido ainda que sem substabelecimento (CC, art. 667, § l2). Se a proibição de substabelecer constar da procuração, os atos praticados pelo substabelecido não obrigam o mandante, salvo ratificação expressa, que retroagirá à data do ato. Sendo omissa a procuração quanto ao substabelecimento, o procurador será responsável se o substabelecido proceder culposamente. Não há forma especial para o substabelecimento, podendo ser por instrumento particular, ainda que a procuração tenha sido por instrumento público (CC, art. 655). Quanto aos poderes transferidos, o substabelecimento pode ser feito com reserva de poderes, o que significa dizer que o transmitente reserva para si iguais poderes, podendo agir separadamente ou em conjunto com o substabelecido; e sem reserva de poderes, quando a transferência é definitiva, eqüivalendo à renúncia, ao poder de representação que lhe fora outorgado.43 Os poderes substabelecidos podem ser iguais ou menores do que os concedidos ao representante, jamais superiores, e podem ser revogados pelo representado ou pelo próprio representante, nos limites do que foi concedido a este. Sendo a relação jurídica criada pelo substabelecimento (acessória da originariamente estabelecida entre representado e representante), sua existência, validade e eficácia dependem da relação principal. Assim, a revogação ou a renúncia do poder de representação extin-guem também o substabelecimento. 14. O contrato do representante consigo mesmo. A autocontratação. O negócio jurídico do representante consigo mesmo, também chamado de autocontratação, surge quando o procurador pratica o ato com dupla qualidade, a de representante e a de parte, em negócio jurídico bilateral. Por exemplo, "A", procurador de "B", compra em nome próprio o objeto que está vendendo em nome de "B".4'1 A mesma pessoa tem poder dispositivo sobre dois patrimônios independentes, o seu e o do representado. Sua origem está na prática mercantil das cidades medievais italianas e alemães, em que os banqueiros e comerciantes em geral, intitulando-se representantes de seus clientes, contratavam, pessoalmente, em nome deles, consigo mesmos. Embora inicialmente condenada pelos juristas, essa prática generalizou-se, podendo dizer-se que, teoricamente, nada há que impeça a construção de tal figura jurídica. O Código Civil brasileiro parece condenar, a priori, a autocontratação, ao proibir, nos arts. 1.749 e 497, a compra, ainda em hasta pública, pelos representantes legais, convencionais ou judiciais, dos bens confiados à sua guarda e administração. O Código de Processo Civil é expresso, nesse sentido, ao proibir a arrematação pelos mandatários quanto aos bens, de cuja administração ou alienação estejam encarregados (CPC, art. 690, II). Vem-se admitindo, porém, esse negócio jurídico, quando a representação é convencional e o representante tem poderes para administrar ou vender a coisa.45 No caso de outorga de outros poderes, não haverá impedimento para essa aquisição.46 Além disso, Código não proíbe a compra, pelos mandatários, dos bens cuja administração ou alienação estejam encarregados (CC, art. 497). São pressupostos da autocontratação, um negócio jurídico bilateral, uma intervenção do agente com dupla qualidade, isto é, em seu próprio nome e interesse, e em nome do seu representado, vale dizer, um negócio com duas partes e uma declaração de vontade de um só agente. Embora teoricamente possível na teoria geral do direito, e praticamente utilizada, a figura da autocontratação sofre restrições por parte de alguns setores doutrinários que não a aceitam, dada a possibilidade de conflito entre os interesses do representado e os do representante. Se impossível tal conflito — e não se ponha em risco a imparcialidade do representante ou ainda, se existir autorização do dominus negou — não há razão para se inadmitir tal figura. O autocontrato é válido, portanto, sempre que exista concordância do representado, ou não haja conflito de seus interesses com os do representante, sendo impossível o abuso da confiança neste depositada. E o consagrado nos mais recentes Códigos Civis, como o italiano, art. 1.395, e o português, art. 2612. A concordância do representado pode ser anterior ou posterior ao ato (ratificação). Inexiste possibilidade de conflito quando o re-presentante, realizando o autocontrato, segue as recomendações do representado quanto às condições contratuais, designadamente, a forma, o preço e as condições de pagamento, o prazo contratual etc. Neste caso, o representante, adquirindo a coisa do representado, fá-lo nas mesmas condições que qualquer outra pessoa. O Código Civil de 2002, todavia, dispõe ser anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo, salvo se o permitir a lei ou representado (CC, art. 117). Complementa-se esse dispositivo com o art. 119, segundo o qual é anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesse com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele contatou. Os interesses do representante são incompatíveis com os do representado. 15. Extinção da representação. Não contendo o Código Civil brasileiro uma disciplina autônoma da representação, estabelecendo apenas princípios gerais no.s atls. 115a 120, na matéria do negócio jurídico, é no capítulo do mandato que se devem buscar as regras pertinentes à extinção do poder de representação. Extinguem o poder de representação a sua revogação, a renúncia, a morte ou interdição de uma das partes, a mudança de estado que inabilite o mandante para conferir os poderes, ou o mandatário para os exercer, e o término do prazo ou a conclusão do negócio. Figuram em primeiro lugar a revogação e a renúncia, corno demonstração inequívoca do caráter personalíssimo da relação representativa e da confiança que nela deve existir. Faltando esses elementos, extingue-se a representação, por decisão unilateral (revogação e renúncia), ou pela mudança da situação subjetiva ou clc qualquer das partes (morte, interdição, mudança de estado), ou ainda circunstâncias que modifiquem substancialmente a base objetiva do negócio,47 como término do prazo ou a conclusão do negócio. Distinguindo-se o mandato da representação, também se distinguem a revogação de um e de outro. Mas como o nosso Código Civil não os separa, revogado o primeiro, revogada está a segunda, A revogação é o ato pelo qual o representado priva de eficácia a procuração, extinguindo o poder do representante.48 É decisão unilateral do representado, baseada exclusivamente no seu arbítrio pessoal. O ato de revogação, mais do que exercício de um direito potestativo, é negócio jurídico unilateral e receptício.49 Negócio --------------40 Diez-Picazo, op. cit., p. 90. 41 Súmula n2 165 do STF: Sobre a compreensão e amplitude dessa Súmula, cfr. Roberto Rosas, Direito Sumular, 11a edição, revista e atualizada, São Paulo, Malheiros Editora Ltda, 2002, p. 81. 42 Carvalho Santos, op. cit, p. 242. 43 Orlando Gomes. Contratos, p. 398. 44 Mota Pinto, op. cit., p. 416; Diez-Picazo, op. cit., p. 205. 45 RT 32/40; Wilson Bussada. Código Civil Brasileiro Interpretado pelos Tribunais, vol. 4, tomo IV, pp. 266, 302. 46 RT 489/76. 47 Diez-Picazo, op. cit, p. 293. 48 Bianca, op. cit., p. 103. 49 Pontes de Miranda, op. cit., p. 308; Diez-Picazo, op. cit., p. 299. --------------jurídico por ser ato de autonomia privada, no que tem de criador de uma nova situação jurídica, extinguindo a que nasceu com a procuração; unilateral, porque formado com uma só manifestação de vontade, e receptício porque necessariamente dirigido a uma ou mais pessoas. A revogação pode ser expressa e tácita, considerando-se que a lei não estabelece forma especial para esse ato. Expressa, quando manifestada inequivocamente, e tácita, quando dedutível de um "comportamento incompatível com a vontade de manter no representante o poder de representação", como ocorre, por exemplo, quando o representado outorga a outrem poder de representação para a prática dos mesmos atos (CC. art. 687), ou quando o representado realiza, ele mesmo, a atividade para que constituíra representante.50 Deve a revogação ser comunicada ao representante e a terceiros, pelo que se diz receptícia, sem o que será ineficaz, isto é, a procuração produz efeitos até o momento em que representante e terceiros fiquem cientes da revogação. Desconhecendo estes a revogação, e estando assim de boa-fé, são válidos os atos que praticarem com base nessa representação, ficando o representado "obrigado para com os que trataram com o procurador destituído" (CC, art. 686), podendo agir contra este. É irevogável o mandato que contenha poderes de cumprimento ou confirmação de negócios encetados, aos quais se ache vinculado. Deve-se frisar, porém, que o Código Civil não exige expressamente a notificação, a terceiros, da revogação. A revogação pode ser ainda, total e parcial, objetivando, neste caso, apenas alguns poderes concedidos. A renúncia é ato unilateral do representante que extingue o vínculo representativo. É, também, declaração de vontade receptícia, pois deve ser comunicada ao representado, a fim de permitir que este tome as providências necessárias, quer substituindo o renun-ciante, quer assumindo a gestão do próprio negócio. Qualquer prejuízo decorrente da inoportunidade da renúncia, ou da falta de tempo para substituir o representante, cria para este a obrigação de indenizar o representado, salvo se provado não poder manter-se a representação sem prejuízo considerável para o representante a quem não era dado substabelecer (CC, art. 688). Pode, todavia, obrigar-se este a não renunciar durante certo período,51 respondendo por perdas e danos se descumprir a obrigação assumida. A morte do representado ou do representante extingue o vínculo representativo devido ao caráter personalíssimo deste, salvo no caso de ser condição de um contrato bilateral ou meio de cumprir obrigação contratada (CC, art. 684), como ocorre na hipótese do art. 674, em que o representado deve concluir o negócio já começado se houver perigo na demora. Se falecer o representante, pendente o negócio a ele cometido, os herdeiros devem avisar o representado, tomando as providências necessárias ao cumprimento da representação. Devem limitar-se, porém, às medidas conservatórias, ou continuar os negócios pendentes de modo a evitar prejuízos para o representado (CC, arts. 690 e 691), nos limites dos poderes concedidos ao representante. Também a interdição extingue a representação, pela mudança de estado que acarreta para qualquer das partes (CC, art. 682, II), impedindo a prática pessoal de atos jurídicos. Necessária, porém, a sentença que interdita o representante ou o representado. A mudança de estado que inabilite o representado para conferir os poderes ou o representante para os exercer significa a incapacidade superveniente de qualquer deles para a prática dos atos da vida civil, o exercício dos direitos, o que hoje em dia resume-se, basicamente, à hipótese já considerada da interdição, estando revogadas as restrições antigamente existentes para a mulher casada e o falido. Extingue também a representação o término do prazo ou implemento de condição resolutiva a que esteja subordinada, assim com a conclusão do negócio para que tenha sido concedida. Extinta a representação, não pode o representante agir em nome e no interesse do representado, a não ser para conduzir o negócio já começado, se houver perigo na demora (CC, art. 674). São válidos, quanto aos contraentes de boa-fé, os atos com eles ajustados pelo representante, ignorando este a extinção da representação. As causas de extinção da procuração são assim inoponíveis aos terceiros de boa-fé, que a ignoram sem culpa (CC, art. 686). l6. A procuração irrevogável e a procuração em causa própria. A revogabilidade da procuração é a regra (CC, art. 682, I) por ser a outorga do poder de representação um ato de autonomia privada. A irrevogabilidade seria contrária a tal princípio, assim como ao da igualdade recíproca das partes. A doutrina e a legislação moderna aceitam, porém, a irrevogabilidade da procuração, sendo expresso o Código Civil nesse sentido, no art. 683. A procuração é, então irrevogável quando convencionado que o outorgante não possa revogá-la, ou for em causa própria a procuração dada; nos casos, em geral, em que for condição de um contrato bilateral, ou meio de cumprir uma obrigação contratada, ou ainda, quando conferido ao sócio, como administrador ou liqui-dante da sociedade, por disposição do contrato social, salvo se diversamente se dispuser no estatuto, ou em texto especial de lei (CC, art. 1.019). A irrevogabilidade da procuração poderá decorrer então de ter sido convencionada em cláusula expressa da procuração. Nesse caso, se o representado a revogar, responderá por perdas e danos (CC, art.683). É também irrevogável a procuração em causa própria (in rem propriam, in rem suam), espécie em que se outorgam poderes ao procurador para administrar certo negócio, como coisa sua, no seu próprio interesse,52 como, por exemplo, na procuração conferida ao credor para vender um bem do representado, e pagar-se com o preço da venda. Caracteriza-se por ser irrevogável pelo constituinte, irrenunciável pelo procurador, pois que a "renúncia implicaria a devolução do negócio ao constituinte", inextinguível pela morte de qualquer das partes, pela liberação do representante de prestar contas e por ser título de transferência de direitos pessoais. A procuração em causa própria pode ser outorgada para alienação de bens móveis e imóveis, podendo o representante transferi-los para si mesmo, desde que obedecidas as formalidades legais (CC, art. 685). Pode ser feita por instrumento particular, quando não exigível escritura pública, e substabelecida, desde que sem reserva de poderes, pois que isto desnaturaria o próprio instituto. -----------50 Clóvis Beviláqua. Código Civil Comentado, art. 1.316. Com opinião contrária, Ruggiero. Cf. nota 20. 51 Idem, comentário ao art. 1.320. 52 Domingos Sávio Brandão de Lima. Origens e Evolução da Procuração em Causa Própria, p. 85. -----------CAPÍTULO XIV Elementos Acidentais do Negócio Jurídico Condição. Termo. Encargo. Sumário: 1. Introdução. O negócio jurídico no plano de sua eficácia. Os elementos acidentais. 2. A condição. Conceito e razão de ser. 3. A natureza jurídica da condição. 4. Atos condicionáveis e atos puros. 5. Condição voluntária e condição legal. 6. Condição e pressuposição. 7. Elementos da condição. 8. Espécies de condição. 9. Condições casuais, potestativas e mistas. 10. Condições possíveis e impossíveis. 11. Condições lícitas e ilícitas. 12. Condições suspensivas e resolutivas. 13. Condições positivas e negativas. 14. Pendência da condição. 15. Implemento da condição. 16. O problema da retroatividade da condição. 17. As teorias acerca da retroatividade da condição. 18. O direito brasileiro. 19. O termo. 20. Espécies de termo. 21. Os prazos e sua contagem. 22. Modo ou encargo. 1. Introdução. O negócio jurídico no plano de sua eficácia. Os elementos acidentais. A constituição, modificação ou extinção das relações jurídicas são os chamados efeitos do negócio jurídico e formam, assim, o plano da eficácia. O negócio jurídico existe no momento em que se reúnem os seus elementos estruturais ou essenciais, a manifestação de vontade, o objeto c a forma. Tal existência é momentânea;1 o que se prolonga no tempo são os respectivos efeitos, acontecimentos ou fatos que traduzem mudanças de situações jurídicas externas. Tais efeitos, vale dizer, a eficácia jurídica, são produto e medida da autonomia privada das partes que estabelecem os efeitos que desejam produzir, nos limites estabelecidos pelo direito. Enquanto a existência do negócio jurídico depende da reunião de seus elementos estruturais, por isso mesmo ditos essenciais, a sua eficácia pode ser modificada por outros elementos à disposição do agente que os utiliza, de acordo com os seus motivos e interesses particulares. Tais elementos são acidentais, não no sentido de serem indiferentes ao direito, pois que, uma vez inseridos no negócio jurídico, têm o mesmo valor dos elementos essenciais, mas no de que são estranhos ao esquema típico que a lei prevê.2 Distinguem-se dos primeiros por depender a sua inclusão no negócio da vontade das partes, enquanto naqueles é a lei que os determina. Elementos acidentais são os que se acrescentam à figura típica do ato para mudar-lhe os respectivos efeitos. São, assim, instrumentos de eficácia à disposição do agente para adaptar os efeitos de sua manifestação de vontade a circunstâncias futuras. Esses elementos acidentais são expressos em cláusulas acessórias, modificativas, donde também chamar-se-lhes modalidades. Seu número é infinito, mas os mais freqüentes, e por isso mesmo disciplinados em lei, são a condição, o termo e o modo ou encargo, que as partes podem incluir nas cláusulas dos negócios jurídicos. 2. A condição. Conceito e razão de ser. Condição é o acontecimento futuro e incerto de que depende a eficácia do negócio jurídico. Da sua ocorrência depende o nascimento ou a extinção de um direito.3 Sob o aspecto formal, apresenta-se inserida nas disposições escritas do negócio jurídico, ra/ão por que muitas vezes se define como a cláusula que subordina o efeito do ato jurídico a evento futuro e incerto (CC. art. 121). São exemplos de negócios jurídicos sujeitos a condição uma compra e venda subordinada à existência do objeto em determinada quantidade [CC. art. 459), (uma safra de arroz), a venda a contento (CC, art. 509), uma doação subordinada a um determinado evento pessoal, uma disposição em testamento condicionada à verificação de certo acontecimento, o contrato de alienação fiduciária em garantia, em que a propriedade do adquirente se condiciona ao pagamento total do preço etc. O termo condição, aqui utilizado em sentido estritamente técnico, pode ser empregado com outro significado, como freqüentemente também se faz para designar apenas as simples disposições que formam um contrato ou um testamento, o que mais corretamente devia ser denominado de cláusulas apenas. Com este sentido muito mais geral, não técnico, encontram-se inúmeras referências no Código Civil4. A condição utiliza-se apenas nos negócios jurídicos, porque apenas estes são o instrumento da autonomia privada, aplicando-se, por analogia, a alguns atos jurídicos. Não há condição sem autonomia privada.5 Os atos que não admitem condição denominam-se atos puros.6 Rigorosamente, apenas entre os negócios jurídicos poder-se-iam encontrar atos puros, pois os atos jurídicos não são, em princípio, suscetíveis de condicionamento pela vontade particular, porque não são atos de autonomia privada. A razão de ser da condição está na circunstância de ela constituir-se em instrumento da técnica jurídica com que se assegura a importância dos interesses ou motivos particulares do agente, em princípio juridicamente indiferentes na prática do negócio jurídico.7 O direito reconhece-a como "instrumento jurídico à disposição do agente para adaptar os efeitos de sua declaração de vontade a circunstâncias especiais, imprevisíveis, futuras, de modo que, ocorrendo certos fatos, nasçam ou se extingam certos direitos". O agente pode ter motivos para subordinar o início ou a permanência dos efeitos de sua declaração de vontade à ocorrência de acontecimentos para si relevantes. À existência psicológica dessas razões não é, todavia, suficiente para, de modo concreto e objetivo, impedir ou limitar os efeitos que a ordem jurídica atribui, ou permite sejam atribuídos, à espécie negociai realizada. Os motivos são irrelevantes para a eficácia do negócio jurídico, mormente quando se vê que a pressuposição não foi aceita nos sistemas de direito positivo.8 A condição amplia, assim, o âmbito de atuação da autonomia privada, permitindo que "o sujeito jurídico adapte os efeitos de sua vontade a acontecimentos futuros."9 Não são condições os pressupostos ou requisitos legais de eficácia do negócio, as chamadas condido iuris (condições legais), que são estabelecidas pelo próprio ordenamento jurídico, não pelos sujeitos, como "requisitos de eficácia com possível obtenção posterior, mas que ainda faltam ao concluir-se o negócio".10 3. A natureza jurídica da condição. A natureza jurídica da condição refere-se à sua posição ou enquadramento no sistema jurídico, problema que oferece vários ângulos de apreciação. Sob o ponto de vista da estrutura do negócio jurídico, a condição é elemento acidental, no sentido de ser dispensável à existência do negócio, mas útil e conveniente à produção dos seus efeitos; aci-dentalidade como sinônimo de exterioridade ou extrinsecalidadc," embora se reconheça que, em face de um concreto negócio jurídico, possa caracterizar-se como elemento essencial. Sob o ponto de vista da sua importância na estrutura negociai, a condição é requisito de eficácia, vale dizer, os efeitos do negócio jurídico dependem de verificar-se ou não o evento condicionantc. Sob o ponto de vista da função que desempenha, a condição é útil para subordinar a eficácia do negócio jurídico a acontecimento futuro e incerto, de cuja ocorrência depende o nascimento ou a extinção de um direito. Tem, portanto, função subordinante no que se aproxima do pressuposto e da pressuposição. Ainda quanto à estrutura do negócio condicionado, surge o problema de saber: 1) qual a relação existente entre a declaração da vontade e o evento condicionante; ou ainda, 2) se no negócio jurídico condicionado existem duas vontades, uma, simples, acompanhada de outra, subordinante, ou uma só vontade, porém condicionada. A respeito da primeira questão, a essência da vontade condicionada, domina a opinião de que não é a existência da vontade, mas os próprios efeitos do negócio que dependem da condição. Como dizia Windscheid, o que depende não é a existência da vontade, mas a existência do efeito que se quer obter, não o querer, mas o querido.12 Quanto à segunda questão, sobre a existência, no negócio jurídico condicionado, de uma só vontade, ou de duas, uma limitadora da outra, a doutrina dominante é no sentido de que não existem duas vontades, nem o caráter atribuído à condição lhe tira a influência decisiva sobre a relação jurídica constituída pela declaração de von tade. A condição vulgarmente considerada acessória, elemento acidental do negócio jurídico, não funciona como declaração distinta da que se diz principal. Há uma só vontade. A condição não é negócio acessório do principal, mas parte incidível de um único negócio. Na declaração negociai, a manifestação de vontade já nasce sujeita à condição, dela inseparável.13 Pontes de Miranda denomina a condição e o termo de manifestações inexas, não anexas nem conexas. O qualificativo "inexo", na opinião do mestre, evita o sentido da acessoriedade, pois não há relação de acessório principal entre o ato jurídico e a condição ou o termo. Há um todo inseparável, a inexão é integração.14 Não se deve por isso caracterizar a condição como "autolimitação de vontade", ou como "disposição ou determinação acessória". A limitação não é da vontade, mas dos seus efeitos. Por outro lado, a condição não é acessória, mas elemento integrante do negócio. Temos então que, no tocante à relação vontade-condição, no negócio jurídico condicionado não há vínculo de subordinação da primeira à segunda. São os efeitos, não a vontade negociai, que dependem do evento condicionante. Também quanto à questão da unidade ou dualidade volitiva, o que existe é uma só vontade, nela se integrando a condição, que limita os efeitos, não a vontade. 4. Atos condicionáveis e atos puros. A regra geral é a admissibilidade da condição em todas as espécies de negócio jurídico. São condicionáveis os contratos, as disposições testamentárias e transferência da posse e propriedade de coisas móveis ou imóveis, a constituição, transferência ou extinção dos direitos reais de modo geral, enfim, os atos de autonomia privada, como, por exemplo a venda com pacto de retrovenda, a venda a contento, a venda com reserva de domínio.15 Mas a lei, a natureza dos interesses a proteger e a própria consideração devida à parte contrária, estabelecem limitações a essa regra, criando várias exceções. Não comportam, assim, condição os negócios jurídicos unilaterais que devam ter eficácia imediata, não admitindo incerteza, como a aceitação e renúncia de herança (CC, art. 1.808, 1a parte), ou de legado, a aceitação ou impugnação de inventariante ou testamenteiro, a compensação (CC, art. 368), os títulos de crédito, a revogação, a denúncia,16 a existência de pessoa jurídica.17 Também não comportam condição a procuração judicial, a interpelação, ;\ gestão de negócios, a escolha nas obrigações alternativas.1 Uma outra categoria, a dos atos jurídicos em senso estrito, cm que é irrelevante o intento das partes, também inadmite a condição, precisamente porque os efeitos são determinados em lei, diversa mente do negócio jurídico cuja eficácia é ex voluntate. São, assim, incondicionáveis o casamento, a ratificação de casamento anulável, o exercício dos direitos e deveres conjugais, o reconhecimento da filiação, a adoção, a emancipação, a aceitação de tutela e de curatcla, o exercício do poder familiar, o regime matrimonial. Compreende-se que assim seja. Sendo a condição elemento acidental do negócio jurídico e este, por excelência, o instrumento da autonomia privada, os atos de direito de família, onde quase não há campo para essa autonomia, são incondicionáveis. Também não admitem condição os atos pertinentes ao exercício dos direitos subjetivos personalíssimos, como o direito à vida, à integridade física, à honra, à dignidade pessoal, à liberdade de locomoção, à segurança, à legítima defesa, à liberdade de crença e de opinião, ao direito de propor ação, invocando a tutela jurisdicional do Estado. Pode-se dizer, sinteticamente, que são incondicionáveis: a) os negócios jurídicos que, por sua função, inadmitem incerteza; b) os atos jurídicos lícitos; c) os atos jurídicos de família, onde não atua o princípio da autonomia privada, pelo fundamento ético social existente; d) os atos referentes ao exercício dos direitos personalíssimos. Os atos jurídicos que não comportam condição denominam-sr atos puros (actus legitimi}.19 Na verdade, somente os negócios ju---------------------1 Domenico Barbero. Sistema dei diritto privato italiano, p. 565. 2 Giuseppe Stolfi. Teoria dei negozio giuridico, p. 169: Francisco Messineo. Manuale di dirito civile e commerciale, i, p. 478. 3 Lacerda de Almeida. Obrigações, p. 137; Eduardo Espínola. Manual do Código Civil Brasileiro, Das Modalidades do Ato Jurídico, p. 51; Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, V; Vicente Ráo. O Direito e a Vida dos Direitos; Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil. Cap. 27, XIX; do Autor. Da Irretroatividade da Condição Suspensiva no Direito Civil Brasileiro, p. 77; Carlos Alberto Dabus Maluf. As Condições no Direito Civil, Doutrina e Jurisprudência, p. 4.; Andreas Von Thur. Teoria general dei Derecho Civil alemán, vol. III; Karl Larenz, Algemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts,25; Jacques Ghestin. Traité de Droit Civil. La formation du contraí; Henri de Page. Traité élémentaira de droit civil belge. I e II; Bruxelles. Émile Bruylant, 1962; p. 224 e segs.; Domenico Barbero, Condizione in Novíssimo digesto italiano, III, p. l .097; Piclro Rescigno, Condizione in Enciclopédia dei diritto, VIII, Milano, Giuffrè, 1961, p. 775. 4 Como disposição ou cláusula encontra-se no Código Civil brasileiro nos a rt if,< >s 167, II, 278, 436, parágrafo único. Significando circunstâncias, requisitos, formn lidades, nos arts. 46, VI, 61, par. 2°,1.717, 202,11, 1.617, 1.737, 1.288, 1.322,33.5, II, 515, 654, par. 2°, 823, 932, II, 854, 855, 856, 859. Referindo-se a estado e a circunstâncias pessoais, arts. 152, 1.565, caput, 1.634, VII, 1.740,1, 1.412, 872, 965,1. Tecnicamente, nos artigos 6°, par. 2° da Lei de Introdução, e arts. 140,121, 122, 123, I, II, III, 125, 127 e 128, 129, 130, 126,135, 136, 199, l, l.WJS, 11,1.613, 234, 332, 876, 455, 450, par. único, 456, 457, 458 a 461, 481, 485,486, 489, 482, 492, 494, 490, 491, 495, 496, 497, I, II, III, IV, par. único, 498, 500, par. 1°, 503, 504, 505, 507, 508, 509, 511, 1.808, par. I°e2°, 1.924, 1943,1.949, 1.951 e 1.958. Significando restrição, arts. 1.693, III, 1.320, par. 2", 347, II, 1.900, I, 1.848, todos do Código Civil. Cf. Nehemias Gueiros, Da Condição em face do Código Civil, p. 42, e Pontes de Miranda, op. cit, tomo V, p. l 77. 5 Pontes de Miranda, op. cit., p. 105; Von Thur, op. cit, III, p. 305, nota 5. 6 Ver item ns 4. 7 Rescigno, op. cit., p. 765. 8 Quanto à pressuposição ver item n2 6. 9 Von Thur, op. cit., pp. 305 e 306. 10 Oertman. Die Rechtsbedingung, p. 28, apud Larenz, op. cit., p. 680. Quanto à condição legal ver item n° 5 11 Falzea. La condizione e gli elementi dellatto giuridico, p. 71. 12 Windscheid. Diritto delle pandette, p. 34 13 Cariota Ferrara. // negozio giuridico nel diritto privato italiano, p. 669. 14 Pontes de Miranda, op. cit., pp. 99 e 216. 15 Código Civil brasileiro, arts. 505, 509 e CPC de 1939, arts. 343 e 344. 16 Denúncia é, em direito civil, a notificação ou ciência que se dá a alguóin d;i existência de uma ação ou processo, a fim de que venha a participar de k1. 17 Von Thur, op. cit., p. 323, explicitando-se em nota que o estatuto pode dispor que a duração da associação ou da fundação dependa de uma condição resolutiva. 18 Idem, ibidem. ---------------------rídicos é que poderiam ser considerados puros, pois neles é que'se aprecia o problema da oponibilidade ou não da condição. Os atos jurídicos em senso estrito, onde não há campo para o exercício da autonomia privada, não deveriam suscitar o problema. No entanto, a doutrina que aborda o assunto, contemporaneamente, engloba atos e negócios na perspectiva comum da incondicionalidade. A condição nesses atos é tida em princípio como inexistente. O ato vale e a restrição não é aceita. No casamento, porém, a declaração matrimonial não pode ser condicionada sob pena de nulidade.20 Do mesmo modo, a adoção. Na emancipação que decorre da lei, eventual condição que lhe oponha por vontade das partes é tida como inexistente, porque ineficaz; na que decorre da outorga dos pais, a condição anula-a.21 5. Condição voluntária e condição legal Distingue-se a condição voluntária (condido facti) da condição legal {condido iuris}. Ambas as figuras são requisitos de eficácia do negócio jurídico. A condição voluntária é evento futuro e incerto de que dependem os efeitos do negócio jurídico. São as partes que a estabelecem. Já a condição legal é também um evento condicionante da eficácia negociai, só que estabelecido por lei. A condição legal não é uma condição jurídico-negocial, é um requisito de eficácia do negócio jurídico, inexistente no momento da celebração mas de possível aposição posterior22 por exemplo, a aprovação de um contrato pelos órgãos públicos competentes, ulterior à celebração, como ocorre em matéria de seguros, importação, exportação, transporte público, mineração etc. No Código Civil encontram-se algumas condições legais, como, por exemplo, a morte do testador antes do legatário, para que o legado produza o seu natural efeito (CC, art. 1.939, V). 6. Condição e pressuposição. Figura próxima à condição, com elementos idênticos, é a pressuposição. Ambas traduzem a subordinação da eficácia do negócio a um acontecimento incerto, correspondente aos motivos individuais que levaram o agente a praticar tal negócio, mas, no caso da pressuposição, o evento é "não-declarado (pretérito, presente ou futuro), porém resultante das circunstâncias sem as quais o negócio não se teria realizado e cuja falta, por conseguinte, o rescinde".23 A pressuposição não resulta da declaração de vontade, mas das próprias circunstâncias do caso, representando a aplicação do princípio c In boa-fé, já que seu pressuposto "é que a circunstância cuja não-veri-ficação deverá rescindir o negócio, ainda que não declarada, era, não obstante, tão implícita, nas condições de tempo e lugar em que ocorreu o negócio, que a outra parte não pode, de boa-fé, afirmar não ter entendido que a eficácia do negócio estava a ela subordinada".24 Foi Windscheid quem deu forma a essa figura da técnica jurídica, definindo-a como uma condição não-desenvolvida,2S um meiotermo entre o motivo e a condição. "O declarante quer que se verifique o efeito somente no caso de existir determinada circunstância, mas ele não chega a subordinar e efeito ao evento."26 Não se verificando tal circunstância, deve resolver-se o negócio. De modo sintético, pode dizer-se que a condição diferencia-se da pressuposição nos seguintes aspectos: a) enquanto a primeira se formula expressamente, a segunda está implícita na vontade negociai; b) a condição é acontecimento necessariamente futuro e incerto, enquanto na pressuposição o evento pode ser também passado ou presente; c) na condição, a produção dos efeitos, ou permanência, depende da verificação do evento, enquanto na pressuposição o negócio é puro e simples e produz os seus efeitos desde que nasce.27 A pressuposição só teria interesse quanto a fatos futuros, pois que, quanto aos passados ou presentes se confundiria com o erro na declaração de vontade. E no caso de não se verificar, qual a conseqüência? Deve-se resolver o negócio? O direito brasileiro não aceitou objetivamente essa figura, embora, quanto a circunstâncias futuras, lhe dê certo acolhimento, como no caso da resolução de contratos por onerosidade excessiva (CC, art. 475). Modificou-se, desse modo, a rigidez do princípio da força obrigatória do contrato, segundo o qual o contrato faz lei entre as partes, sendo manifesta porém tal recusa no disposto do art. 90, em que "só vicia o ato a falsa causa (motivo), quando expressa como razão determinante ou sob forma de condição". 7. Elementos da condição. A existência de uma condição pressupõe os seguintes elementos: voluntariedade, futuridade, incerteza e possibilidade. As partes devem querer e determinar o evento. Se a eficácia do negócio jurídico for subordinada por determinação de lei, não haverá condição e sim, condido iuris (CC, art 121). O evento há de ser futuro. Se já verificado ou contemporâneo à prática do negócio, não o condiciona.28 Há de ser também incerto, podendo verificar-se ou não. A incerteza deve ser objetiva, subsistente para todos. O acontecimento certo não é condição, é termo, e o direito decorrente do negócio não condicional, mas certo. A incerteza pode manifestar-se no se e no quando (se o Papa vier ao Rio de Janeiro, dies incertus an, incertus quando], no se, mas não no quando (se o Papa governar 25 anos, dies incertus an, certus quando], somente quando (no dia em que o Papa morrer, dies certus an, incertus quando]. A condição configura-se nas duas primeiras hipóteses; na terceira, um termo.29 A futuridade e a incerteza conjugam-se, sendo inter-relacionadas. O evento há de ser natural e juridicamente possível. Se impossível, não há incerteza e não se verificará o estado de pendência, próprio do ato condicionado. A condição diz-se imprópria. A possi bilidade está em função da seriedade no querer, pois subordinai' ;\ eficácia do negócio jurídico a um evento impossível significa não querer. As condições fisicamente impossíveis têm-se por inexistentes quando resolutivas (CC, art. 124), desde que sejam originárias, isto é, quando já o eram no momento da prática do negócio. Sc- ;i impossibilidade for superveniente, a condição será falha, não se verificará, e o ato vale. A impossibilidade jurídica assemelha-se à ilicitude.30 Condições ilícitas são as contrárias à ordem pública, às normas imperativas, aos bons costumes. As condições física ou juridicamente impossíveis, quando sus-pensivas, invalidam os atos a elas subordinados (CC, art. 123, I).31 A impossibilidade difere da contrariedade, que significa ilogicidacle entre a vontade e o evento, isto é, incompatibilidade entre a condição e a vontade, o que caracteriza as condições contraditórias ou perplexas, incompatíveis com o negócio jurídico, defesas em nosso direito, por privarem o ato de todo efeito (CC, art. 122). Tais condições "pressupõem um fato inconciliável com a subsistência do efeito jurídico querido, produzindo uma contradição na declaração de vontade". Os exemplos são históricos.32 Sua ocorrência produz a nulidade do ato. ------------------19 Sobre os actus legitimi, cf. do Autor. Da Irretroativida.de da Condição Suspensiva, p. 85, nota 32. 20 Pontes de Miranda, op. cit., vol. VII, p. 384; Espínola, op. cit., p. 74; Ráo, op. cit., ps. 293 e 296. 21 Ráo, op. cit., p. 296. 22 Barbero, in Novíssimo digesto italiano, p. 1.103. 23 Barbero. Sistema dei diritto privato italiano, p. 573. 24 Idem, p. 574. 25 Windscheid, op. cit., p. 97. 26 Rescigno. Enciclopédia dei diritto, III, p. 787. 27 Rescigno, op. cit., p. 788. São casos de pressuposição: "a) a caducidade interpretação errônea de textos romanos, por Pothier, pai desse código, principalmente as seguintes passagens do Digesto: Heredes obligatos esse quasi iam con tracta emptione in praeteritum (D. 18, 6, 8, pr. Os herdeiros são obrigados como por uma compra contraída no passado) e Cum enim semel condido extitit, perinde habetur, ac se illo tempore, quo stipulatio interposita est, sine condicione jacta assei (D. 20, 4, 11, pr.I. Uma vez que a condição existe, assim se mantenha, como se não houvesse condição no tempo em que ela foi posta). 56 Orlando Gomes, op. cit, n- 233. 57 É a teoria de Giorgio Giorgi. Teoria de Ias Obligaciones, IV, p. 35, dos redatores do Código Civil francês (Portalis, Maleville, Bigot de Ia Préameneu e Tronchei) e de Guilherme Alves Moreira. Instituições de Direito Civil português I, pp. 481 e 482. 59 É a concepção de Barbero, Dernburg, Coviello, Demolombe, Cf., do Autor, op. cit., p. 111. 58 É a teoria de De Page, Colin et Capitant, de Ruggiero, Scialoja, Mcssim-o, Von Thur, Oertman, Esser, Demogue, Filderman, Verdier, Alvarez Vigaray. Cf., Autor, op. cit., p. 109. E ainda Ângelo Cario Pelosi. La proprietà risolubile nella teoria dei negozio condizionato, p.17 60 Barbero, op. cit., p. 1.106; Ângelo Falzea, op. cit., p. 132, nota 86. 61 Do Autor, op. cit., p. 189. 62 Do Autor, op. cit., pp. 197 a 213. ----------------------19. O termo. Termo é o momento em que começa ou se extingue a eficácia de um ato jurídico. Enquanto a condição é acontecimento futuro e incerto, o termo é acontecimento futuro e certo. O critério distintivo reside na certeza ou na incerteza do evento (do se), não na certeza ou incerteza do tempo (do quando). Por exemplo, quando se condiciona o nascimento de um direito à morte de uma pessoa determinada, o evento funciona como termo, pois que é certo, embora incerta a data de sua ocorrência. Nos negócios jurídicos sob condição suspensiva, existe uma expectativa de direito; nos sob condição resolutiva, um direito resolúvel. No caso de termo, o direito é adquirido imediatamente, podendo ficar suspenso apenas o seu exercício (CC, art.131). Com mais razão, o titular do direito a termo pode sobre ele exercer atos conservatórios. E possível conjugar-se uma condição e um termo no mesmo negócio jurídico ("dou-te um escritório se te formares em direito até os 25 anos"). A incerteza reside no evento, neste caso. Mas poderá ocorrer que a previsão do evento seja feita não para condicionar a relação jurídica mas para fixá-la no tempo ("devolverei o empréstimo que me é feito quando obtiver o financiamento"). Nesse caso é preciso interpretar-se a vontade das partes para se verificar qual o seu intento, subordinar o negócio jurídico a uma condição ou a um termo, observando-se a regra segundo a qual se deve preferir a solução menos gravosa para a parte obrigada.63 Conseqüência importante da diferença entre condição e termo está no fato de que quem paga uma obrigação condicional antes do implemento da condição faz um pagamento indevido, podendo pedir a restituição (CC, art. 876), o que não ocorre no caso de termo, em que a obrigação existe e está perfeita, sendo apenas inexigível. Há negócios e atos jurídicos que não admitem termo, como a aceitação ou a renúncia à herança (CC, art. 1.808), a adoção, a emancipação, o casamento, o reconhecimento de filho (CC, art. 1.613), que não admitem condicionalidade ou incerteza, a confissão, a desistência do pedido, a transação, a nomeação de herdeiro ou legatário (CC, art. 1.898), a legítima (CC, art. 1.846). Além dessas hipóteses previstas em lei, é inoponível o termo sempre que seja incompatível com a natureza do direito a que visa, como os de personalidade, os de família e os que, de modo geral, "reclamam execução imediata". Aposto um termo nos atos que o inadmitem, a sanção é a respectiva nulidade, em princípio. 20. Espécies de termo. Há várias espécies de termo. O termo diz-se inicial ou suspensivo (dies a quo] quando consiste no momento em que o negócio começa a produzir efeitos, e inicial ou resolutivo (dies ad quem] quando faz cessar os efeitos do ato. Ao termo inicial e final aplicam-se as disposições relativas à condição suspensiva e resolutiva, no que couberem (CC, art. 135). Assim, o titular de direito a termo inicial, tendo já adquirido o direito embora não o exerça, pode praticar atos conservatórios de seu direito, não podendo ser prejudicado por eventual ato de disposição do ex-titular.64 Se o termo for final, enquanto não ocorrer, vigorará o negócio jurídico. Verificando-se, cessa o exercício do direito ou o cumprimento das obrigações sem qualquer eficácia retroativa. O termo pode ainda ser certo e incerto (rectius, determinado e indeterminado). É certo ou determinado quando indica uma data precisa; incerto ou indeterminado, no caso contrário. Alguns autores condenam a expressão "termo incerto" em virtude de a incerteza ser própria da condição.65 O termo diz-se ainda essencial quando o efeito pretendido deva ocorrer em momento bem preciso, sob pena de, verificado depois, não ter mais valor. Exemplo: em um contrato que determine a entrega de um vestido para uma cerimônia, se o vestido for entregue depois, não tem mais a utilidade visada pelo credor. 21. Os prazos e sua contagem. Prazo é tempo decorrido entre a manifestação de vontade e a superveniência do termo,66 ou, também, o intervalo entre dois termos (dies a quo e dies ad quem}. O prazo diz-se certo ou incerto conforme também seja o termo determinante. A unidade de tempo é o dia, período entre duas meias-noites.67 Os dias contam-se por inteiro, da meia-noite à meia-noite seguinte. A maior idade não se alcança na hora correspondente à do nascimento, mas à meia-noite do dia respectivo.68 O Código Civil estabelece as seguintes regras: a) salvo disposição em contrário, disposição legal ou convencioanl, computam-se os prazos, excluído o dia do começo e incluindo o do vencimento [dies a quo non computatur in termino; dies ad quem computatur in termino) (CC, art. 132). Assinado em contrato no dia l-, o dia 2 é o primeiro dia do prazo. O dia de vencimento faz parte do prazo, podendo-se praticar durante o seu curso o ato devido; b) se o vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil. São feriados nacionais os dias: l2 de janeiro, 21 de abril, l- de maio, 7 de setembro, 15 de novembro e 25 de dezembro e o dia em que se realizam eleições gerais em todo o país.69 Para efeito forense são feriados os domingos, os feriados nacionais, o dia 8 de dezembro, a terçafeira de carnaval, a Sexta-Feira Santa; e os dias que as leis estaduais designarem,70 como a Semana Santa em alguns Estados; c) considera-se meado o décimo-quinto dia de cada mês; d) considera-se mês o período de tempo contado do dia do início ao dia correspondente do mês seguinte;71 o prazo de um mês que comece no dia 15 de fevereiro termina no dia 15 de março seguinte; e) considera-se ano o período de doze meses contados cio dia do início ao dia e mês correspondente do ano seguinte; quando, no ano ou mês do vencimento não houver o dia correspondente ao do início do prazo, este findará no primeiro dia subseqüente (CC, art. 132, par. 3°);72 um contrato de locação de um ano, a começar no dia l- de janeiro, terminará no dia l- de janeiro do ano seguinte; um contrato de locação comercial com prazo de cinco anos que comece no dia 30 de janeiro de 1990 terminará no dia 30 de jam-iro de 1995; f) os prazos fixados por hora contar-se-ão de minuto a minuto (o que tem importância em matéria de registro civil, pois a hora de nascimento pode ser decisiva na sucessão);73 g) nos contratos, os prazos presumem-se a favor do devedor, r nos testamentos, a favor do herdeiro (CC, art. 133). h) os negócios jurídicos sem prazo estabelecido são exeqüíveis desde logo (CC, art. 331), salvo se a execução tiver de ser feita em lugar diverso ou depender de tempo (CC, art. 134). 22. Modo ou encargo. Modo (do latim modus, i, limite, termo, medida) é o ônus imposto a uma liberalidade com o fim de limitá-la. É manifestação de vontade aposta ao negócio jurídico, criando para o onerado uma restrição à vantagem decorrente desse ato. Essa limitação pode constituir-se em obrigação de dar ("instituo-te meu herdeiro com a obrigação de dares R$ 10.000, 00 por ano aos pobres"), de fazer (dou-te este imóvel com a obrigação de construíres um albergue para os necessitados"), ou de não fazer ("deixo-te esta casa, mas não poderás derrubar a estátua do jardim"). O modo tem, assim, a função de dar relevância ou eficácia jurídica a motivos ou interesses particulares do autor da liberalidade. Não é por outra razão que Windscheid o considerava uma pressuposição.74 Distingue-se porém da condição pela circunstância desta suspender a aquisição e o exercício do direito, se suspensiva, e de resolvê-lo, se resolutiva, enquanto o modo não suspende a aquisição e o exercício do direito, embora obrigue. A condição suspende mas não obriga, enquanto o modo obriga mas não suspende.75 O autor do encargo pode, todavia, impô-lo como condição suspensiva, mas de modo expresso (CC, art. 136). Não se confunde, também, com a condição resolutiva potestativa, porque esta opera de pleno direito enquanto o inadimplemento do encargo para ter efeitos precisa de uma sentença judicial. É claro que se o cumprimento, ou não, do encargo se deixa à simples vontade do onerado, com cláusula expressa de resolução da liberalidade em caso de inadimplemento, está-se em frente de verdadeira condição potestativa resolutiva. A prestação modal deve ser lícita e possível. Se fisicamente impossível, ou não séria, tem-se como inexistente. Se o seu objeto for ilícito e constituir-se em razão determinante da liberalidade, o negócio é integralmente nulo. Também como sanção, considera-se não escrito o encargo ilícito ou impossível, salvo se constituir o motivo determinante da liberalidade, caso em que se invalida o negócio jurídico (CC, art. 137). O modo reduz os efeitos da liberalidade, cabendo, apenas, nos negócios a título gratuito (doação, constituição de renda, promessa de recompensa, instituição de herdeiro), jamais em negócio a título oneroso, pois neste eqüivaleria a uma contraprestação. O Código Civil refere-se ao modo no art. 136, na Parte Geral, onde se realça a sua característica de modalidade acessória do negócio jurídico, e disciplina-o nos arts. 553 e 1.938 da Parte Especial, referentes, respectivamente, à doação e aos legados. De acordo com tais disposições, os beneficiários são obrigados a cumprir os encargos da doação ou do legado, cumprimento esse que pode ser exigido pelo doador, pelo terceiro beneficiado e pelo Ministério Público, depois da morte do doador, se este não o tiver feito. Além da ação para exigir o cumprimento do encargo, pode o doador promover a revogação da doação por inadimplemento, desde que caracterizada a mora do donatário, vale dizer, o atraso no cumprimento da obrigação que o modo encerra. No caso de legado, podem exigir-lhe o cumprimento, o testamenteiro, o beneficiado e o Ministério Público, se o encargo for do interesse geral. ------------------------63 Ráo, op. cit., p.363. 64 CC, art.131: o termo inicial suspende o exercício mas não a aquisição tio direito. Esse direito pode receber garantias reais ou pessoais (aval, fiança), pode ser dado em garantia, é transmissível intervivos ou mortis causa, mas uno (• compensável (CC, art. 369) nem é retroativo. Antes de seu vencimento, não podo o credor exigir o pagamento, pelo que contra ele não corre prescrição (CC, ;ul 199, II). 65 Ráo, op. cit., p. 364. Os juristas romanos, combinando as várias hipóteses do certeza ou de incerteza de um dado acontecimento, elaboraram quatro tipos do termo (dies): a) dies certus an et quando (termo certo, o dia \° de janeiro do 1988); b) dies certus an incertus quando (termo incerto, o dia da minha morto); c) dies incertus an certus quando (o dia da tua maioridade); d) dies incertus negócio jurídico ou somente parte. A nulidade parcial do ato não prejudicará na parte válida, se esta for separável (utile per inulile von vitiatur)(CC. art. 184). É a regra da incomunicabilidade da nulidade que se baseia no princípio da conservação do ato.18 Deve tratar-se, porém, de um negócio unitário, passível de divisão em partes que não possam, individualmente, desnaturar o ato, e que seja suscetível de subsistir independentemente da parte nula. Negócio unitário e divisível, permanecendo os interesses das partes devidamente resguardadas com a parte válida do ato.19 No testamento, a nulidade da cláusula não contamina o resto do negócio, salvo se houver íntima conexão com as demais cláusulas, de modo que uma não possa vigorar sem a outra (CC, art. 1.910).20 Casos há em que a lei veda a nulidade parcial do ato, como ocorre na hipótese de transação em que o negócio será nulo se qualquer de suas cláusulas o for, salvo exceção legal (CC, art. 84S). A nulidade da obrigação principal implica a nulidade da acessória, mas a desta não conduz à da obrigação principal (CC, art. 184). Nulo o contrato de locação, nula a respectiva fiança. Nula a obrigação, nula a respectiva cláusula penal considerando-se a sua natureza de obrigação acessória (CC, art. 184). É o princípio de que o acessório segue o principal, na sua existência, validade e eficácia. A nulidade diz-se textual, se vem declarada na lei, e virtual ou tácita, se, não sendo expressa, é dedutível das normas ou dos princípios do sistema jurídico. As nulidades textuais têm especial importância no direito de família, no qual o casamento só é nulo nos casos precisos da lei,21 enquanto a nulidade de um contrato se depreende dos princípios gerais estabelecidos nas normas do art. 166 do Código Civil. Essa diferença é uma das razões que dificultam a sistematização da matéria das nulidades. Aos negócios jurídicos, que são instrumentos da autonomia privada e que, por isso mesmo, pertencem ao âmbito das relações jurídicas econômicas ou patrimoniais, aplicam-se as nulidades virtuais, enquanto que aos atos jurídicos em senso estrito, como os de família, excluídos do campo da autonomia privada, as nulidades textuais. São os chamados regimes especiais de invalidade, a que se refere o Código Civil português (art. 285°). 5. Causas da nulidade. O Código Civil estabelece no art. 166 as causas determinantes da nulidade do negócio jurídico. Este é nulo quando o agente for absolutamente incapaz, o objeto for ilícito, impossível ou indeter-minável, o seu objeto, o motivo determinante comum a ambas as partes, for ilícito, não revestir a forma prescrita em lei, for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para sua validade, tiver por objetivo fraudar lei imperativa, ou ainda quando a lei, expressamente, o declare nulo ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção (CC, art. 166). A essas causas de nulidade acrescenta o Código, a simulação (CC, art. 167). Outros sistemas jurídicos, como o francês e o italiano, consideram ainda como razão de nulidade a inexistência de causa, mas isso em matéria de obrigações. Agente absolutamente incapaz são as hipóteses do art. 3-, menores de dezesseis anos, os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos, e os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Os absolutamente incapazes poderão todavia praticar negócios jurídicos por meio dos seus representantes legais, pais, tutores e curadores. A incapacidade verifica-se no momento da prática do ato. A incapacidade aqui é a de fato, não de direito. Protegem os incapazes as disposições do art. 182. O objeto é, em termos imediatos, a constituição, modilicacao ou extinção de uma relação jurídica, e em termos mediatos, aquilo sobre que incidem tais relações, vale dizer, coisas ou fatos que se pretende obter com a prática do ato, tudo isso conforme as disposi ções do sistema jurídico, ou seja, possibilidade legal e não contra riedade à lei. O objeto significa, então, o conteúdo do ato, as relações que o sujeito visa a constituir, não o objeto material, a coisa ou o fato sobre que em termos mediatos incidem tais relações. É de objeto ilícito o ato jurídico que atenta contra a lei, a ordem pública ou os bons costumes, por exemplo, os atos que visem a restringir a liberdade profissional, industrial, comercial ou a liberdade de contratar, ou ainda, a corretagem matrimonial.22 São exemplos de negócios jurídicos contrários à ordem pública a renúncia a alimentos futuros, a promessa de voto, o contrato de realização de um dano contra terceiros.23 Além da licitude, deve-se incluir entre os requisitos do objeto a possibilidade física e a determinabilidade. Vige nesta matéria o princípio da autonomia da vontade, salvo disposição legal em con trário. A impossibilidade física ou jurídica verifica-se ao tempo da conclusão do ato.24 Outra causa de nulidade donegócio jurídico é a existência de um motivo determinante, ilícito comum a ambas as partes. Os motivos são fatos psicológicos, via de regra irrelevantes paia o direito, quer porque não se manifestam, quer porque o declarante deles não faz depender a realização do negócio. Só viciam a declaração de vontade quando expressas como razão determinante (CC, art. 140). Têm porém sua influência quando atuam sob forma de condição. À semelhança do que estabelece o direito italiano (Códice Civile, art. 1.343), o legislador brasileiro incluiu o motivo no elenco das causas de nulidade do negócio jurídico, quando fosse determinante do ato, ilícito e comum a ambas as partes. Motivo ilícito é o contrário a normas imperativas, à ordem pública ou aos bons costumes. Por exemplo, um contrato de mútuo, que se destina ao jogo, sendo esse motivo comum ao mutuante e mutuário, ou um contrato de locação cuja razão de ser seja a exploração do meretrício, são negócios jurídicos nulos, por força do art. 166, III. Outro exemplo é a nulidade da doação que tem, como razão determinante, e de comum acordo, a recompensa de uma atividade ilícita. Forma prescrita em lei é a forma estabelecida para os casos de maior relevância, que exigem certa solenidade e publicidade, como nas hipóteses dos arts. 108 e 109 do Código, em que é necessária a presença do tabelião e obrigatória a escritura pública. Não vale o ato que deixar de revestir a forma especial determinada em lei. A nulidade do instrumento não induz a do ato sempre que este puder provar-se por outro meio (CC, art. 183). É nulo ainda o negócio jurídico quando for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade, entendendo-se como tal as exigências que a lei estabelecer como necessárias à validade do ato, por exemplo, a autorização judicial para um pai vender imóvel de seu filho.25 Além da ilicitude, deve considerar-se também nulo o negócio que vise a fraudar norma jurídica imperativa,26 no mais das vezes utilizando um negócio lícito para atingir resultado positivo, combinando-se com outros negócios jurídicos. E, finalmente, é também nulo o negócio jurídico quando a lei taxativamente o declarar nulo, é nulo não em virtude da simulação em si, mas por constituir o negócio real uma venda de ascendente a descendente sem a aquiescência dos demais descendentes. Nulidade independente da prova de simulação." STF, 2^ T., RE 100.440-1, J. em 04.10.83. 6. Simulação. Conceito e âmbito de aplicação. Simulação é uma declaração enganosa da vontade, visando produzir efeito diverso do ostensivamente indicado.27 Não é vício dr vontade, pois não a atinge em sua formação. É antes uma disfotini dade consciente da declaração, realizada de comum acordo com a pessoa a quem se destina, com o objetivo de enganar terceiros. Não existe defeito na vontade, mas no ato concreto de sua declaração, para o fim de se obter efeito diferente do que a lei estabelece, pelo que não se inclui essa figura no elenco dos defeitos do negócio jurídico, juntamente com os vícios do consentimento, como fazia o Código de 1916, (CC, arts. 102 a 105), mas sim nas hipóteses de nulidade (CC, art. 167). O ato simulado é nulo porque a declaração das partes não corresponde ao que na realidade pretendem. Para a doutrina dominante, a simulação consiste em divergência intencional entre a vontade e a declaração, decorrente de acordo entre as partes (declarante e declaratário), com o propósito de enganar terceiros.28 O negócio simulado caracterizar-se-ia, desse modo, pela divergência proposital que se estabelece entre a vontade real das partes e a que efetivamente declaram, sendo que, de acordo com a concepção voluntarista ou subjetiva do negócio jurídico, tal divergência levaria à anulação do ato, pela inexistência de uma vontade correspondente à declaração. Concepção mais moderna, no âmbito da teoria objetiva do negócio jurídico, apresenta a simulação como vício da própria causa do negócio, resultando da incompatibilidade entre esta e a finalidade prática desejada concretamente pelas partes,29 que desejariam, na verdade, atingir um objetivo diverso da função típica do negócio. ------------------------14 Tommasini, op. cit., p. 875. 15 Pietro Barcellona. Intervento statale ed autonomia privata nella disciplina dei rapporti economia, p. 21 e segs. 16 Ghestin, op. cit., p. 633. 17 Não só a distinção entre a nulidade absoluta e a nulidade relativa, como toda a teoria das nulidades, está sendo objeto da crítica jurídica contemporânea. Cf. Orlando Gomes, op. cit., p. 407. Sobre nulidade absoluta e relativa, cfr. (ionclim Filho, Nulidade Relativa, in Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Uri ilr, 1929, p. 302. 18 Francesco Santoro-Passarelli. Dottrine generalli dei diritto civile, p. 301. 19 Cifuentes, op. cit., p. 606. CCB, art. 153. 20 Carlos Maximiliano. Direito das Sucessões, II, p. 136. 21 É o princípio do direito matrimonial francês segundo o qual "en matière de mariage, U riy a pás de nullité sans texte". 22 Espínola, op. cit, pp. 507 e 519. 23 Bianca, op. cit., p. 584. 24 Pontes de Miranda, op. cit., p. 103. 25 Carvalho Santos. Código Civil brasileiro interpretado, III p. 249. 26 Pontes de Miranda, op. cit., p. 193. "Nula é a venda que contraria a proibição expressa no art. 1.132 do CC. Aí, o ato ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção, por exemplo, a doação de todos os bens (CC, art. 548). "Venda de ascendente a descendente (Código Civil, art. 1.132). É ela nula, não simplesmente anulável. Precedentes do STF: RE 59.417, 76.054 e 79.109." "Recurso extraordinário não-conhecido." Recurso extraordinário ns 83.176, Jurisprudência Brasileira, ns 29. p. 171. 27 Teixeira de Freitas. Esboço, art. 521; Clóvis Beviláqua. Código Civil Comeu tado, art. 102. 28 Espínola, op. cit., p. 460 e segs.; Manuel de Andrade, op. cit., p 169; Custódio da Piedade Ubaldino Miranda, Simulação (direito civil), in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 69, p. 80 e segs.; Santos Cifuentes, op. cit., p. 493 e segs. 29 Betti. Teoria Geral do Negócio Jurídico, II, p. 373 e segs.; Bianca, op. dl., p. 658. ------------------------Para outros ainda, a simulação seria um processo criativo de uma aparência enganadora, produzindo, com uma só intenção, duas declarações de vontade, uma secreta e outra ostensiva.30 Mais do que uma divergência entre vontade e declaração, o que existe é uma divergência entre um negócio aparente forjado por duas vontades combinadas entre si e a relação jurídica que efetivamente nasceu desse negócio. A divergência não é entre a vontade e a declaração, mas entre esta e os efeitos realmente desejados pelas partes.31 Há, assim, um negócio externo e um acordo interno entre as partes, que traduz o desejo de estas atingirem um efeito jurídico diverso do produzido pelo aparentemente praticado. Distingue-se a simulação dos defeitos do ato jurídico. Enquanto no erro a divergência é espontânea, tendo o agente uma falsa noção do objeto da relação, no dolo o agente é maliciosamente induzido em erro, e na coação o agente é constrangido a praticar o ato, na simulação há um acordo de vontades destinado a enganar terceiros. As partes do negócio querem a aparência mas não querem os efeitos do ato que demonstram realizar. A simulação surge, assim, como um fenômeno de aparência negociai criada intencionalmente.32 Difere ainda a simulação da reserva mental, pelo fato de nesta não existir um acordo entre as partes para enganar terceiros, apenas uma atitude pessoal do agente, uma declaração não conforme à sua vontade para o fim de enganar o declaratário. A importância da disciplina jurídica da simulação resulta da freqüência com que é utilizada na prática. Dela são exemplos, na vida corrente, a diminuição de preço de imóvel no contrato de compra e venda, para eventual diminuição do imposto de transmissão, a colocação de data anterior à verdadeira em contratos e títulos de crédito, a realização de compra e venda ou doação por interposta pessoa, a venda simulada de imóveis para facilitar o despejo do inquilino, a venda fictícia de bens para evitar sobre eles futuras execuções, a doação de bens à concubina sob a forma de venda, a declaração ou escritura de venda de um imóvel alugado por um preço superior ao real para frustrar a terceiro o exercício do direito de preferência etc. Os contratos são o campo natural da simulação, que também se pode verificar, embora mais raramente, nos negócios jurídicos unilaterais, desde que se verifique o acordo simulatório entre o declarante e o destinatário, entendendo-se como tal a pessoa que suporta os efeitos do negócio. De modo geral, podem ser objeto de simulação todos os negócios jurídicos bilaterais e unilaterais cm que exista declaração receptícia de vontade, isto é, a que se dirigi' a determinadas pessoas, produzindo efeitos a partir de sua ciência (v.g. promessa de pagamento). Conseqüentemente, são insuscetíveis de simulação os negócio unilaterais não receptícios (v.g. o testamento)33, e os atos normativos de direito público (lei, decreto, regulamento etc.), assim como os de reconhecimento constitutivo por ele, como no caso da personificação, de entes coletivos, o que não impede a existência de pessoas jurídicas simuladas, com utilização da autoridade estatal para fins ilegítimos.34 Também os atos processuais dique participe o juiz, bem como, em princípio, os de direito de família, não devem considerar-se como passíveis de simulação, pois não são atos de autonomia privada. 7. Elementos da simulação. A simulação pressupõe três elementos: a) divergência intencional entre a declaração e o efeito pretendido; b) acordo simulatório entre o declarante e o destinatário da declaração (declaratário); e c) objetivo de enganar terceiro. A intencionalidade da divergência reside no fato de as partes quererem a aparência do negócio praticado, estipulando no mais das vezes um contrato com a intenção precisa de que esse não corresponda ao que realmente pretendem obter. O acordo simulatório (pactum simulationis] é o conluio entre declarante e declaratário acerca da divergência entre o que se estipula e a efetiva relação jurídica que nasce. Como último elemento, a intenção de enganar terceiros (animus deficiendi), que não se confunde, todavia, com o intuito de prejudicar (animus nocendi). Também este aspecto serve para distinguir a simulação da reserva mental, pois nesta existe o propósito de enganar o declaratário enquanto na simulação só se quer enganar terceiros. 8. Espécies de simulação. 1) Simulação inocente e simulação maliciosa; 2) simulação absoluta e simulação relativa; 3) simulação total e simulação parcial. A simulação inocente é a que se faz sem o intuito de prejudicar, como ocorre, por exemplo, no caso de um homem solteiro simular qualquer venda à sua companheira, ocultando na verdade uma doação, pois não há qualquer impedimento para este ato (CC, art. 550). Não tem relevância prática no direito civil. A simulação maliciosa, fraudulenta, muito mais freqüente, visa a prejudicar terceiros ou violar dispositivo legal, como se verifica nos exemplos acima. A distinção é desprovida de qualquer importância, a não ser para efeitos criminais, pela falsidade da declaração. 9. Simulação absoluta e relativa. Simulação total e parcial. A simulação pode ser absoluta e relativa. No primeiro caso, as partes não querem realmente praticar o ato, embora aparentem fazê-lo, como, por exemplo, se o devedor simula vender seus bens a parentes ou amigos. Só existe um negócio, que é o simulado. Na simulação relativa, as partes realizam o negócio, mas diverso daquele que efetivamente pretendem, como, por exemplo, no caso de um contrato de compra e venda esconder uma doação. Na verdade, nesta espécie de simulação existem dois negócios: um aparente, o negócio simulado, ostensivo, que não é o verdadeiro, e outro, oculto, disfarçado, que é o realmente pretendido pelas partes, o negócio dissimulado. A simulação relativa apresenta duas modalidades, conforme o elemento do negócio sobre que incida. A simulação subjetiva, ou das pessoas, e a simulação objetiva, sobre o conteúdo do negócio, mais especificamente, sobre a natureza do ato ou sobre o seu valor. Na simulação subjetiva ocultam-se os sujeitos, ou um deles, como é mais freqüente, verificando-se a interposição fictícia ou a interposição real da pessoa. No primeiro caso, a parte principal do negócio não é a que aparece como tal. Existe um acordo simulatório de três pessoas participantes, em que uma delas, o "testa-de-feno" ou "homem-de-palha" serve apenas para emprestar seu nome, como na hipótese de Antônio vender um bem a João para que este venda a José, sabido que o negócio real, pretendido, embora simulado, é a venda de Antônio para José. Havendo acordo entre os três, o caso é de interposição fictícia. Se, porventura, o negócio for apenas cnt.iv Antônio e João, embora no sentido de o bem ser transferido posteriormente a José, a hipótese será de interposição real, configurando verdadeiro mandato sem representação.35 Resumindo: enquanto na interposição fictícia a pessoa interposta, "testa-de-ferro", não c o verdadeiro destinatário dos efeitos do negócio, sendo só aparente a sua intromissão, como parte, no negócio, na interposição real, ao contrário, "a pessoa interposta adquire os direitos decorrentes do contrato, embora com o objetivo de transferi-los a terceiro"."' A simulação objetiva, versando sobre o conteúdo do ato, é pertinente à natureza do negócio, como no caso de alguém vender para na verdade doar, ou ao respectivo valor ou preço fixado pelas partes para enganar o fisco, no caso de ser devido o imposto de transmissão, como na alienação de bens imóveis, ou para enganar terceiro a quem competia direito de preferência, caso em que as partes simulam um preço superior ao que realmente se paga. A simulação é total, como nas hipóteses acima figuradas, quando referente à natureza ou existência do próprio negócio, e parcial, quando incide apenas sobre cláusula ou condição do ato, como, por exemplo, simulação no objeto, no preço, na data, nas modalidades ou acessórios. 10. As hipóteses legais de simulação. 0 Código Civil, no art. 167, par. 1°, especifica as hipóteses cm que pode configurar-se a simulação. Haverá simulação nos negócio jurídicos quando: 1 —aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas a quem realmente se conferem, ou transmitem. É o caso de negócio jurídico por interposta pessoa, como ocorre, por exemplo, com a venda simulada que ascendentes fazem a terceiro para que este, por sua vez, a faça a descendentes daqueles, contornando o disposto no CC, art. 496. Idêntica hipótese a do art. 550 do mesmo diploma. A simulação é relativa, por interposição fictícia de pessoa; II —contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira. Nesta hipótese, a simulação pode ser absoluta ou relativa, conforme não se queira produzir qualquer resultado ou se procure dar aparência diversa ao negócio realmente praticado; III —os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados,37 fato mais freqüente nos contratos e nos títulos de crédito, nomeadamente o cheque, a letra de câmbio e a nota promissória. A simulação é relativa porque as partes visam um resultado diverso do indicado ao estabelecerem um momento diferente da efetiva constituição ou extinção da relação jurídica, com o fim de enganar terceiros. 11. Efeitos da simulação. Os negócios jurídicos simulados são nulos (CC, art. 167). Se a simulação é absoluta, o ato não produz efeito entre as partes, é ineficaz, e, anulado o ato, restituir-se-ão as partes ao estado anterior. Se for relativa, anula-se o negócio simulado, aparente, subsistindo o dissimulado, oculto, se for lícito, e desde que preencha os requisitos de validade, de substância e forma (CC, art. 167). Se a simulação for maliciosa, qualquer interessado ou o Ministério Público poderá demandar a nulidade dos atos simulados (CC, art. 168). Mas terceiros de boa-fé que adquirirem direitos com base no negócio simulado não são prejudicados (CC, art. 167, par. 2°). Em face deles, o negócio simulado é tido como existente e válido, de acordo com a teoria da aparência.38 Sendo a simulação inocente, o ato também é nulo, pois o Código não distingue a simulação inocente da maliciosa. O princípio geral é contudo, o de que o negócio dissimulado supera o simulado, mantendo-se o princípio tradicional de que mais vale o ato que na verdade se quis praticar do que aquele que foi simulado. 12. A ação de nulidade. Efeitos. As nulidades previstas nos arts. 166 e 167 podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público quando lhe couber intervir (CC, art. 168). Tem, assim, legitimidade para propor ação qualquer interessado, entendendo-se como tal a pessoa que tenha um interesse concreto para agir, isto é, a necessidade de invocar a prestação jurisdicional do Estado na defesa de seu direito, inclusive o próprio causador da nulidade. Tem ainda legitimidade o Ministério Público, nos casos em que a lei estabelece. Essa alegação pode fazer-se em ação própria ou no curso de qualquer procedimento judicial. A ação própria destina-se à declaração de nulidade do negócio jurídico, sendo necessária quando o ato se apresenta como título válido,39 e com base nele o sujeito pretenda exercer direitos. Deve ser proposta contra todos os participantes do ato, contra todas as partes. A sentença é de natureza declaratória, porque se limita a declarar a invalidade do ato, sem criação de um novo estado jurídico,40 com eficácia retroativa ao momento em que o ato foi praticado, ex tunc, portanto. Assim, anulado o ato, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente (CC, art. 182) em dinheiro. Quanto a terceiros, declarada a nulidade do ato, desfazse o direito que acaso tenham adquirido com fundamento nesse ato. Isso não impede, todavia, que se apliquem as regras sobre a posse de boa-fé no tocante a frutos, produtos e benfeitorias realizadas na pendência do negócio poste riormente declarado nulo. É também exceção a esse princípio a norma do art. 181, segundo a qual ninguém pode reclamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não provar que -----------------30 Custódio Miranda, op. cit., p 31 Trabucchi, op. cit., p. 152. 32 Bianca, op., cit., p. 656. 33 O Código Civil português dispõe no art. 2.200° ser anulável a disposição Iriln aparentemtente a favor de pessoa designada no testamento, mas que, na realidade, e por acordo com essa pessoa, vise a beneficiar outra. Cfr. o art. 1.802 do Código Civil brasileiro. 34 A teoria da desconsideração da pessoa jurídica deve-se à simulação praür:ul:i na formação de sociedades com o fim de enganar terceiros. Cf. CifuenU-s, o|> , cit., p. 505. 35 Manuel de Andrade, op. cit., p. 187; Mota Pinto, op. cit, p. 361. 36 Bianca, op. cit., p. 664. 37 Instrumento ou título antedatado é o que recebe data anterior àquela em que realmente foi feito; pós-datado é o que recebe data posterior àquela em que foi efetivamente constituído. O chamado cheque pré-datado é, juridicamente, um título pós-datado. 38 Bianca, op. cit, p. 667. 39 Bianca, op. cit., p. 589. 40 É a opinião comum na doutrina. Em posição diversa, considerando tal sentença como de natureza constitutiva-negativa, Pontes de Miranda, op. cit., p. 79. ------------------ a importância paga reverteu em proveito dele. É a chamada prova do benefício. Deve o juiz pronunciá-la de ofício, quando conhecer do negócio ou dos seus efeitos, desde que se encontre devidamente provada. O direito de propor a ação de nulidade não se extingue pelo decurso do tempo, embora se reconheça que a situação criada pelo negócio jurídico nulo se possa convalidar pelo tempo decorrido, no prazo e na forma da lei.41 Não pode o juiz suprir a nulidade, isto é, remediá-la, ainda que a requerimento das partes, pelo que o negócio nulo não pode ser ratificado, confirmado (CC, art. 168, par. único). O único meio é praticá-lo de novo, com observância dos indispensáveis requisitos de validade, a partir do que então o ato produzirá os efeitos desejados. 13. Características do negócio jurídico nulo. De tudo o que foi exposto, vê-se que o negócio jurídico apresenta as seguintes características: a) a nulidade é urna espécie de sanção que visa proteger o interesse público, quando o ato jurídico se pratica sem a observância dos necessários requisitos de validade; b) o negócio jurídico nulo não produz os efeitos próprios da sua espécie (quod nullum est nullum producit effectum), embora possa ser eficaz perante terceiros, como ocorre, por exemplo, no caso de título aquisitivo de direitos, nulo, registrado, enquanto não declarada a nulidade; c) qualquer interessado, ou o Ministério Público, pode alegar a nulidade, que deve ser declarada de ofício pelo juiz, independentemente da provocação da parte interessada; d) o negócio jurídico nulo não admite ratificação (confirmação); e) o negócio jurídico nulo não se convalida pelo decurso do tempo, o que não impede, porém, a usucapião (CC, arts. 1.238 e 1.242), e a prescritibilidade dos direitos pessoais eventualmente surgidos de um ato nulo, quando não declarada a nulidade; f) a sentença de nulidade é simplesmente declaratória, com eficácia retroativa, restabelecendo-se a situação anterior. Não sendo isso possível, indenizam-se as partes com o equivalente, à custa do causador do dano. 14. Anulabilidade. Conceito. Fundamento. Origem. Anulabilidade é a sanção prevista para os atos e negócios jurídicos praticados por agente relativamente incapaz ou em que exista vido de vontade, resultante de errro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores. Sua razão de ser está na proteção que o direito dispensa aos interesses particulares. Depende da manifestação judicial. Diversamente do negócio jurídico nulo, o anulável produz efeitos até ser anulado em ação (CC, art. 177), para a qual são legitimados os interessados no ato, isto é, as pessoas prejudicadas e em favor de quem o ato se deve tornar ineficaz. Além disso, o direito de propor a ação extingue-se pelo decurso de tempo (CC, art. 178). O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiros (CC, art. 172). O vício que o inquina pode causar-lhe a ineficácia, mas pode ser eliminado, convalidando-se o ato.42 A distinção entre nulidade e anulabilidade foi estabelecida com mais nitidez pela pandectística alemã, mostrando a existência de duas espécies de sanção para os atos jurídicos praticados sem a observância dos requisitos legais de estrutura, ou com vícios ou defeitos na formação ou na declaração de vontade. A sanção mais grave é a nulidade, aplicável aos atos em que predomina o interesse geral da comunidade. Sanção menor é a anulabilidade, para os negócios que afetam apenas interesses privados. A origem remota dessa definição encontra-se no direito romano. Como referido, esse direito não conheceu uma teoria sistematizada das nulidades. Sendo extremamente formalista na sua primeira la.sr, a nulidade decorria precisamente da inobservância dos requisitos formais do ato. Cumpridas tais exigências, o ato era válido. Não sendo inicialmente conhecida a anulabilidade, foi esta uma construção do direito pretoriano. O pretor, em face de um ato válido para o direito civil, por terem sido cumpridas as formalidades legais, porém celebrado com a vontade viciada, não podendo anulá-lo devido à observância dos requisitos de lei, concedia ao lesado a restitutio in integrum (restituição por inteiro) restabelecendo a situação anterior como se o ato jurídico não se tivesse praticado. Sem maior desenvolvimento no direito medieval, é a partir do século XVIII que tal distinção se consagra, com os juristas franceses que separavam a ação de nulidade, para os casos de infração das regras fixadas no seu direito nacional (as nulidades de direito) da ação de rescisão, própria dos contratos válidos perante aquele direito mas contra os quais o direito romano admitia a restitutio in integrum. Por outro lado, enquanto certas nulidades podiam ser alegadas por qualquer pessoa (eram as nulidades absolutas ou populares], outras somente podiam ser invocadas por certos interessados. De modo geral, mas não necessariamente, as primeiras eram as nulidades de direito, enquanto as segundas, chamadas de nulidades relativas, eram objeto da ação de rescisão. Surgia assim a distinção entre nulidade e anulabilidade, sistematizada depois por obra da pandec-tística alemã. 15. Causas da anulabilidade. O Código Civil estabelece no art. 171 as causas de anulabilidade do negócio jurídico: incapacidade relativa do agente e existência de vício na formação da vontade, resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores. São incapazes relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer os maiores de 16 anos e menores de 18 anos, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o dissernimento reduzido, os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo e os pródigos. A capacidade dos índios é regulada em lei especial, que dispõe sobre a sua tutela e adaptação à vida civilizada.43 É também causa da anulabilidade a falta de assentimento de outrem que a lei estabeleça como requisito de validade, como, por exemplo, nos atos que um cônjuge só pode praticar com a anuência do outro (CC, arts. 1.647 e 1.649). Quanto aos vícios da vontade e aos defeitos na declaração, reportamo-nos à matéria do capítulo anterior. 16. A ação de anulação. A ação de anulação tem por objeto desfazer o ato ou negócio jurídico eivado de incapacidade ou de vício de vontade, restituindo as partes ao seu estado anterior. A anulabilidade não opera ipso iure, o juiz não pode alegá-la de ofício; deve ser alegada pelos interessados, em ação própria ou cm exceção. Tem legitimidade para propô-la o sujeito incapaz ou aquele cuja vontade foi viciada (CC, art. 171). Só os interessados podem alegar a anulabilidade aproveitando exclusivamente aos que alegarem, salvo o caso de solidariedade ou indivisibilidade (CC, art. 177), em que, por força do regime legal da obrigação solidária e da indivisível, que permite a exigência de cumprimento em sua integralidade, qualquer devedor, mesmo não sendo interveniente no ato anulável, pode invocá-la corno defesa. Entende-se como interessados todos aqueles que podem sofrer os efeitos do ato, assim como também seus sucessores, sub-rogados, credores e os terceiros prejudicados.44 No caso de interessado incapaz, atua o seu representante legal. Não pode porém o menor, entre 16 e 18 anos, que dolosamente ocultou sua idade para praticar o ato, invocá-la para anular o ato e fugir ao cumprimento das obrigações dele decorrentes (CC, art. 180), desde que de boa-fé a outra paru-. O prazo para a anulação é de decadência (CC, art. 178) A ação deve ser proposta, salvo exceções legais, no pra/.o de quatro anos, sob pena de se considerar sanado o negócio jurídico pelo simples decurso do tempo. No caso de coação, o prazo começa a correr do dia em que ela cessa; no de erro, dolo, fraude, contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que se praticou o ato; no caso de incapacidade, do dia em que ela cessar (CC, art. 178). Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de clois ano.s, a contar da data da conclusão do ato (CC, art. 179). A sentença proferida na ação de anulação ou de anulabilidade é de natureza constitutiva, pois modifica a situação jurídica das partes, visando o futuro e privando o negócio de sua eficácia originária. Quanto aos efeitos da anulação, a sentença anulatória produz efeitos ex nunc, isto é, daí para a frente, respeitando os efeitos produzidos pelo ato até essa data, pois o ato anulável reputa-se válido até sua anulação judicial (CC, art. 177). Todavia, quanto à validade, decretada a anulação, a sentença retroage para restituir as partes ao estado anterior ao ato (CC, art. 182). Ninguém pode, entretanto, reclamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não provar que reverteu em proveito dele a importância paga (CC, art. 181). 17. Confirmação do ato anulável. O negócio jurídico anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiros (CC, art. 172). Também o negócio relativamente nulo, isto é, no caso de nulidade relativa. Confirmação ou ratificação45 é o ato com que se convalida o negócio jurídico anulável, eliminando-se-lhe o vício que o inquinava. Os atos nulos não podem ser confirmados, só os anuláveis (CC, arts. 169 e 172). Quanto à sua natureza, a confirmação é negócio jurídico unilateral, nãoreceptício, com eficácia retroativa ao momento da prática do ato (CC, art. 172). Sendo unilateral, compete à parte legitimada para propor a ação de anulação, não necessitando, regra geral, da interveniência da outra parte. Não sendo receptício, dispensa também a manifestação de ciência ou até de concordância da outra parte.46 Quanto à forma, a confirmação pode ser expressa e tácita. Expressa quando por meio de declaração em que se manifesta a vontade de confirmar o negócio jurídico anulável, e tácita quando se cumpre voluntariamente a obrigação, no todo ou em parte, conhecendo o agente o vício (CC, art. 174). O que caracteriza, portanto, a confirmação ou ratificação tácita é o comportamento do agente, incompatível com o propósito de promover a anulação cio negócio jurídico viciado, com uma atividade que dá prosseguimento ao negócio inválido,47 por exemplo, a percepção de juros, as modificações do contrato etc. São requisitos da confirmação expressa a substância da obrigação (CC, art. 173), isto é, a referência sintética ao conteúdo do negócio, e a vontade expressa de ratificá-la, isto é, a intenção de não invalidar o ato, removendo assim a "precariedade legal do negócio anulável".'IH Além disso, também se exige a observância da mesma forma legal necessária para ato confirmado. Por destinar-se a confirmação a validar o ato anulável, é também expressão da autonomia privada. Quanto aos respectivos efeitos, a confirmação, expressa ou tácita, retroage à data do ato e implica a renúncia a todos os procedimentos judiciais contra a validade do ato (CC, art. 175). Exige, portanto, capacidade para renunciar, não havendo confirmação se não emanar da parte com direito de alegar ou demandar a anulação.49 18. Características do negócio jurídico anulável. De modo sintético pode assim caracterizar-se o negócio jurídico anulável: a) a anulabilidade é sanção destinada a proteger o interesse privado, quando o negócio jurídico se pratica por agente relativamente incapaz ou com vício na formação da vontade; b) o negócio jurídico anulável produz os efeitos visados até ser anulado; c) a anulação não opera ipso iure, devendo ser alegada pelos interessados, isto é, as pessoas diretamente afetadas pelo negócio jurídico e em cujo benefício se anula o ato; d) o negócio jurídico anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo o direito de terceiros; e) a anulabilidade e a nulidade relativa sanam-se pelo decurso do tempo, o qual, demonstrando a inércia do interessado, eqüivale à confirmação tácita. O prazo é decadencial, de quatro anos; f) a ação de anulação termina com uma sentença constitutiva, com eficácia ex nunc. Respeita os fatos anteriores do ato mas declara-o anulado, e a seus efeitos, desde que prolatada; g) anulado o ato, restituem-se as partes ao estado anterior. Não sendo isso possível, serão indenizados com o equivalente, observado, como para a nulidade, o disposto no art. 182. 19. Conversão do negócio jurídico. A conversão é o processo pelo qual o negócio jurídico, não o ato jurídico em senso estrito, nulo pode produzir efeitos de um negócio diverso50. Baseia-se no princípio interpretativo, que é o princípio da conservação dos atos jurídicos, segundo o qual, em caso de dúvida, deve interpretar-se o ato no sentido de produzir algum efeito, e não no sentido contrário, de não produzir nada. Coerentemente com esse princípio, a doutrina alemã da segunda metade de séc. XIX criou a figura da conversão do negócio jurídico nulo ou anulável, concretizando-a no par. 140 do Código Civil alemão.51 A conversão é, assim, a transformação do ato que não reúne os elementos necessários para o fim a que se destina, em outro para o qual seja suficiente52, desde que tenha os requisitos de substância e de forma previstos para este ato, e seja querida pelas partes, cientes da invalidade do primeiro. Consagrada em diversos códigos europeus53 foi, também, acolhida expressamente no Código Civil brasileiro de- 2002 (CC. art. 170), embora já conhecida pela doutrina.5/1 O negócio a converter deve ser nulo ou anulável. Se nenhum ato se produziu, não há que pensar-se em conversão.55 Nega, assim, a doutrina dominante, que o instituto da conversão possa aplicar-se ao negócio inexistente.56 São requisitos de viabilidade da conversão: 1) identidade de substância e de forma entre os dois negócios (o nulo e o convertido), 2) identidade de objeto, e 3), adequação do negócio substitutivo à vontade hipotética das partes.57 A conversão diz-se substancial quando importa em mudança de tipo do negócio, como, por exemplo, um comodato que se converte em locação; um título de crédito sem valor como tal, por vício de forma ou por estar prescrito, que vale como prova de obrigação ou até de confissão de dívida, uma deliberação nula de transformação de sociedade que pode valer como ato constitutivo de nova sociedade.58 Diz-se legal quando é a lei que direta e especificamente a estabelece, como ocorre, por exemplo, na hipótese do art. 431 do Código Civil ("a aceitação fora do prazo, com adições, restrições ou modificações importará nova proposta"). Neste caso a conversão liga-se não à vontade das partes, mas à lei, pelo que se diz imprópria, como ocorre, também, no caso da conversão formal quando "o ato convertido apresenta forma diversa da do ato originário, embora mantendo a mesma substância." Por exemplo, a escritura pública de compra e venda sem formalidades essenciais é nula, mas poderá admitir-se a sua conversão em ato de compra e venda por escrito particular.59 ------------------41 V. o capítulo sobre a prescrição, n- XVIII. Contrariamente ao disposto no art. 169, do Código civil e à teoria geral das nulidades, a Lei 9.784, de 29.1.1999, dispõe, no seu art. 54, que o direito da Administração anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos. 42 Clóvis Beviláqua. Teoria Geral do Direito Civil, p. 231. 43 Lei 6.001, de 19.12.73, que dispõe sobre o Estatuto do índio. 44 Clóvis Beviláqua. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, art. 152. 45 Ratificação, de ratificatio, significa aprovação ou confirmação de ato jurídico praticado por outrem, sem os necessários poderes. Por influência dos romanos para quem a ratificação eqüivalia ao mandato (ratihabitio mandato comparatur), passou-se a usar esse termo para designar aprovação do mandato exercido sem poderes necessários. Cfr. Rui de Alarcão, Invalidade dos negócios jurídicos, p. 199-267. 46 Cifuentes, op. cit., p. 675; com opinião diversa, Barbero, op. cit., n2 296, p. 640, que a considera negócio unilateral receptício. 47 Santoro-Passarelli, op. cit., n2 55. 48 Bianca, op. cit., p. 636. 49 Teixeira de Freitas. Esboço, art. 815. 50 Giuseppe Gandolfi. La conversione delVatto invalido, p. 383; Vicenzo Roppo, op. cit., p. 543. 51 Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch), p. 140: "Se um negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro negócio jurídico, vale este último, desde que se entenda que a sua validade seria querida, embora conhecida a nulidade." 52 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, vol. 4, p. 63. 53 BGB, p. 140: CC grego, art. 182; CC italiano, art. 1.424; CC português, art. 2932. 54 Junqueira de Azevedo, Negócio Jurídico. Existência, Validade e Eficácia, \i. 67; Pontes de Miranda, op. cit., vol. 4, cap. IV; Carvalho Santos, Código CÍVÜ Brasileiro Interpretado, vol. III, p. 123; Vieira Neto, Conversão, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 20, p. 312; Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, c Invalidade dos negócios jurídicos, pp. 199-267. 55 Pontes de Miranda, op. cit., p. 63. 56 Vicenzo Franceschelli, Conversione dei negozio nullo, in Digesto dellc Discipline Privatistiche, p. 378. 57 José Abreu, Negócio jurídico e sua teoria geral, p. 337. 58 Franceschelli, op. cit., p. 380. 59 Vieira Neto, op. cit., p. 314. ------------------CAPITULO XVII Atos Ilícitos. A Responsabilidade Civil Sumário: 1. Introdução. O ato ilícito como categoria geral. 2. Ato ilícito. Conceito. Importância. Elementos. 3. A ação ou omissão do agente. 4. A ilicitude. 5. Exclusão de ilicitude. 6. A culpa. Conceito. Elementos. Espécies. 7. Presunções de culpa. 8. O nexo de causalidade. 9. O dano. Conceito. Espécies. 10. O dano moral. 11. A reparação do dano. 12. A responsabilidade civil. Conceito. Natureza. Importância prática e teórica. 13. Notícia histórica. 14. Espécies de responsabilidade civil. 15. Responsabilidade contratual e extracontratual ou aquíliana. 16. O sistema legal da responsabilidade civil. 17. Responsabilidade subjetiva. 18. Responsabilidade por fato de terceiro. 19. Responsabilidade por fato da coisa. 20. Responsabilidade por fato de animal. 21. Responsabilidade objetiva. 1. Introdução. O ato ilícito como categoria geral. Na categoria geral dos fatos jurídicos temos os atos lícitos (atos jurídicos em senso estrito e negócios jurídicos), conformes com o direito, e os atos ilícitos, ações humanas que o ordenamento condena e sanciona. O ato ilícito pode ser penal e civil, conforme resulte da infração de norma de direito público penal, que visa defender a sociedade, prevenindo e penalizando a infração e retribuindo com a pena co minada, ou da infração de norma de direito privado, que tem por objetivo a defesa dos interesses particulares, de natureza pessoal (direitos da personalidade) ou econômica. O ilícito civil ainda se desdobra em ilícito contratual e extra-contratual, conforme a regra infringida esteja no contrato ou na lei. No primeiro caso (ilícito contratual) consiste no descumprimento ou cumprimento defeituoso de obrigação, violando direito subjetivo relativo. No segundo (ilícito extracontratual) consiste no descumprimento de um dever geral de abstenção, violando direitos subjetivos absolutos, como os direitos da personalidade e os reais. Objeto do nosso estudo é o ato ilícito civil. 2. Ato ilícito. Conceito. Importância. Elementos. Ato ilícito é o ato praticado com infração de um dever legal ou contratual, de que resulta dano para outrem.1 Seu conceito e elementos estruturais estão no art. 186 do Código Civil, que assim o tipifica: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilício." Esse dispositivo exprime, assim, a categoria geral do ato ilícito como ato voluntário, não fato,2 consistente em um comportamento ativo ou omissivo que, com culpa do agente, viola direito de outrem, causando-lhe prejuízo. Também comete ato iícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (CC, art. 187). A importância da caracterização, estudo e disciplina do ato ilícito reside no fato de ele ser uma das principais fontes das obrigações, fazendo nascer uma relação jurídica cujo objeto é o ressarcimento do dano causado, a indenização. E como a obrigação de indenizar inclui-se no conceito amplo de responsabilidade civil, um dos mais importantes setores do direito contemporâneo, a importância do ato ilícito está, precisamente, no fato de ser o elemento fundamental da teoria da responsabilidade civil, conjunto de princípios e normas que definem o ato ilícito e a sua autoria e obrigam a reparação do dano causado a outrem. Conforme o ato ilícito seja ou não contratual, teremos responsabilidade civil contratual e extracontratual, que é a divisão clássica nos sistemas de direito civil contemporâneo. 3. A ação ou omissão do agente. Para que se configure o ato ilícito é necessária a conjugação dos seguintes elementos: ação ou omissão do agente, ilicitude, culpa, nexo de causalidade e dano. Ação é o ato humano, voluntário e objetivamente imputávél, Sendo humano, exclui os eventos da natureza. Voluntário, no sentido de ser controlável pela vontade à qual se imputa o fato. Excluen^sc, portanto, os atos praticados durante o sono ou em outro estado de inconsciência (hipnose, delírio febril, ataque epilético) ou sob coação absoluta, porque não constituem ações em sentido jurídico, faltando-lhes a possibilidade de controle do agente,3 mas não se excluem os atos danosos praticados por distração. Imputávél no sentido de poder ser-lhe atribuída a prática do ato. Considera-se imputávél todo aquele que possui discernimento e vontade, liberdade para determinar-se. Não é responsável quem, no momento do fato, não tiver capacidade de entender ou de querer, como os absolutamente incapazes, salvo se o agente se tiver colocado, culposamente, nesse estado, sendo este transitório. O comportamento do agente pode consistir também em omissão, que será causa jurídica do dano se houver dever de agir, de praticar o ato omitido como, por exemplo, no caso do ascendente que deixa de alimentar o descendente pelo qual é responsável; ou o técnico que deixa de prestar o auxílio a quem era obrigado. A omissão é mais freqüente no campo da inexecução das obrigações, isto é, no campo da responsabilidade contratual. 4. A ilicitude. A ilicitude significa contrariedade a um dever jurídico, consistindo na ofensa a direito subjetivo ou na infração de preceito legal, que protege interesses alheios,4 ou ainda no abuso de direito. O ato ilícito pressupõe, portanto, a lesão de direitos personalíssimos ou reais, ou a violação de preceitos legais de tutela de interesses privados.5 Mas esta opinião que restringe o objeto do ato ilícito aos direitos absolutos não é unânime.6 O abuso de direito consiste no uso imoderado do direito subjetivo, de modo a causar dano a outrem. Em princípio, aquele que age dentro do seu direito a ninguém prejudica (neminem laedit qui iure suo utitur). No entanto, o titular de direito subjetivo, no uso desse direito, pode prejudicar terceiros, configurando ato ilícito e sendo obrigado a reparar o dano. Nesse sentido dispõe o Código Civil no art. 187, constituir ato ilícito o ato praticado com abuso de direito, isto é, o exercíco de um direito fora dos seus limites intrínsecos, impostos pela própria natureza do direito e do seu objeto, pelo princípio da boa-fé e pela função ou destino econômico e social do próprio direito.7 5. Exclusão de ilicitude. A respeito da ação ou omissão ilícita do agente, o Código Civil estabelece, no art. 188, hipóteses de especial importância, a legítima defesa e o estado de necessidade como excludentes de ilicitude, isto é, razões que justificam o ato e o tornam lícito. A legítima defesa, como já visto na matéria de direito subjetivo, é a reação dirigida contra agressão injusta, atual, inevitável, não excedendo o necessário à defesa.8 Na definição do Código Penal, consiste no uso dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito do agente ou de outrem.9 A defesa é legítima porque reconhecida aos particulares a faculdade de repelir agressões quando impossível ao Estado impedi-las. Não há dever de indenizar o prejuízo causado em legítima defesa, quando infringido ao agressor, mas deve ser indenizado o dano causado a terceiro (CX '., art. 930, parág. único). O estado de necessidade caracteriza-se pela ação destinada a remover perigo iminente, com a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou lesão a pessoa (CC, art. 188, II). Pressupõe que o alô seja absolutamente exigido pelas circunstâncias e que não exceda os limites do indispensável para a remoção do perigo. A ação não <• ilícita, mas não se isenta o agente do dever de indenizar, salvo se o dono da coisa danificada ou a pessoa lesada for culpada do perigo determinante do estado de necessidade (CC, art. 929). Ainda como excludente de ilicitude, se bem que não-provisla no Código Civil, temos o consentimento do ofendido [yolenli non fit injuria). Se o prejudicado consente na lesão a seu próprio direito, não há ilicitude no comportamento do agente e o dano não é indenizável. Os direitos atingidos devem ser, porém, disponíveis. Esse princípio releva as lesões que se verificam nas competições esportivas, salvo manifesta intenção de causar dano. 6. A culpa. Conceito. Elementos. Espécies. A culpa consiste na violação de um dever que o agente podia conhecer e observar.10 Seus pressupostos são um dever violado (elemento objetivo) e a culpabilidade ou imputabilidade do agente (elemento subjetivo). Esta, por sua vez, desdobra-se em dois elementos: a) possibilidade para o agente, de conhecer o dever (discernimento); b) possibilidade de observá-lo (previsibilidade e evitabilidade do ato ilícito)." Os autores alemães consideram a culpa como fenômeno exclu sivamente moral, compreendendo o dolo, vontade consciente dirigida a resultado ilícito, e a culpa do direito romano, entendida como a omissão do cuidado exigido na vida dos negócios, cuja observância evitaria o resultado ilícito, não-querido pelo agente. Na doutrina servem-se do critério justiniano do bônus pater famílias.12 O legislador brasileiro não definiu culpa, limitando-se a conceituar o ato ilícito (CC, art. 186), onde se vislumbram as duas espécies de culpa: dolo e culpa em senso estrito. Dolo é a ação ou omissão voluntária. Culpa é a negligência ou imprudência. Para a doutrina da vontade, dolo é a vontade encaminhada a produzir resultado antijurídico. Para a teoria da representação, dolo é a previsão do resultado. Na maioria dos casos existe dolo do ponto de vista de ambas as teorias quando alguém pratica um ato prevendo o dano que vai causar, quer esse dano, ainda que atue com fim diverso e considere a lesão como efeito acessório não desejável.13 Dolo, é, portanto, a vontade consciente de violar direito.14 Negligência é a omissão, é a inobservância das normas que nos mandam operar com atenção, capacidade, solicitude e discerni-men-to. Imprudência é a precipitação, procedimento sem cautela. A culpa pode ser contratual, se o dever violado nasce de um contrato (CC, art. 389) e extracontratual ou aquiliana, quando consiste na violação de dever geral, que todos têm de respeitar (CC, art. 186). A distinção importa no ônus da prova. Na contratual, demonstrado pelo credor o inadimplemento, o devedor é que tem de provar a inexistência de culpa, a ocorrência de caso fortuito, força maior ou outra excludente de responsabilidade. O ônus da prova é do devedor. Na culpa aquiliana, cabe à vítima provar a culpa do agente causador do dano. A culpa diz-se ainda in eligendo, se decorrente da má escolha de representante ou preposto; in vigilando, se decorrente da ausência de fiscalização; in comittendo ou in faciendo, quando se age com imprudência; in omittendo, em caso de abstenção, negligência; in custodiendo, falta de cautela ou atenção na guarda de pessoa ou coisa; in concreto, quando se toma em vista o agente e as circunstâncias do ato; in abstrato, quando se toma como paradigma o diligente pai de família. Em matéria de responsabilidade pré-con-tratual, existe uma importante espécie de culpa, a culpa in conlraen-do, que se verifica no processo de formação de um contrato, quando uma das partes, injustificadamente, não o conclui, causando prejuízo à outra. O direito brasileiro adota, como critério, o da culpa in abstraio, na responsabilidade extracontratual, isto é, aferindo-se o comportamento do agente pelo padrão do homem normal.15 Distinguiam-se antigamente três graus de culpa, hoje sem maior importância: culpa lata ou grave, quase dolosa, por negligência im própria do homem comum; culpa leve, falta evitável com atenção ordinária, falta de diligência habitual de bom pai de família e culpa levíssima, falta evitável com atenção extraordinária, omissão dr cuidado de diligentíssimo pai de família. Qual a importância da distinção entre dolo e culpa? Não há responsabilidade sem culpa, salvo disposição legal expressa, como na responsabilidade objetiva; havendo culpa, há obrigação de ressarcir, haja dolo ou culpa em senso estrito. Na responsabilidade contratual, porém, há casos em que só o dolo ou só a culpa geram o dever de indenizar. Assim é que nos contratos benéficos, rsponde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquela a quem não favoreça. Já nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções prevista em lei (CC. Art. 392). Em matéria de acidentes de trabalho o patrão é responsável mesmo que o empregado aja com culpa, mas não se agir com dolo.16 7. Presunções de culpa. Há casos em que a lei, para facilitar a prova do ato ilícito, estabelece presunções de culpa, ficando a vítima exonerada do ônus da prova, que se transfere ao lesante. Presunções são as conseqüências que se tiram de um fato conhecido para provar um desconhecido. ---------------------1 Silvio Rodrigues. Direito Civil. Vol. I. p. 270; Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil. p. 414; Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, l. p. 451. 2 Luigi Cariotta Ferrara. // negozio giuridico nel diritto privato italiano, p. 29. 3 Karl Larenz. Derecho de Obligaciones. II, p. 564; Jaime Santos Bri/.. l.n Responsabilidad Civil, p. 24. 4 Andreas von Thur. Tratado de Ias Obligaciones. Vol. I. p. 265; Larenz, op. cit. p. 568; Antunes Varela. Direito das Obrigações. Vol. I. p. 214. 5 J. W. Hedemann. Derecho de Obligaciones, p. 530. 6 Renato Scognamiglio, Responsabilità contrattuale e extracontrattuale, in Novíssimo digesto italiano. Vol. XV, p. 671. 7 V. capítulo V, n- 17. A teoria do abuso de direito é, no direito brasileiro, construção jurisprudencial pela inexistência das disposições específicas. Cf. Li-mongi França, Abuso de direito, in Enciclopédia Saraiva do Direito. Vol. 2. p. 45. 8 Clóvis Beviláqua. Código Civil Comentado, art. 160. 9 Código Penal, art. 25. 10 René Savatier. Traité de Ia responsabilité civile en dwít français. na 163. 11 Idem, ibidem. 12 f ater familiae ou pater famílias era em Roma o cidadão titular, na sua plenitude, de direitos e autoridade sobre sua casa, sua mulher e filhos. 13 Von Thur, op. cit., p. 169. 14 Agostinho Alvim. Da Inexecução das Obrigações e suas Conseqüências, p. 256. 15 Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro. Responsabilidade Civil, p. 39. 16 Lei dos Acidentes de Trabalho, Lei 5.316 de 14 de setembro de 1967, c Decreto 61.784, de 28 de novembro de 1967. ---------------------Tais presunções são iuris tantum, isto é, valem até que se prove o contrário. No direito pátrio presumem-se culpados (culpa in vigilando) os representantes legais e de direito de família por seus representados; o patrão, amo ou comitente, pelos danos causados por seus empregados, serviçais e prepostos (culpa in eligendo, in instruendo ou in vigilando), os donos ou detentores de animais pelos prejuízos causados por esses a terceiros e o dono do edifício ou construção pelos danos resultantes da ruína. (CC, arts. 932, 936 e 937). 8. O nexo de causalidade. Nexo de causalidade é a relação de causa e efeito entre o fato e o dano. Constitui elemento essencial ao dever de indenizar, porque só existe responsabilidade civil se houver nexo causai entre o dano e seu autor, independentemente da culpa do agente. Pode existir um dano sem que se verifique a necessária relação de causalidade, como ocorre, por exemplo, quando é a própria vítima que o provoca (passageiro que desce do veículo em movimento, pessoa que se lança sob o veículo para suicidar-se). Nem sempre é fácil pesquisar a origem do dano. Como podem surgir várias causas, concomitantes, produzindo um só dano, ou sucessivas, produzindo vários, existem diversas teorias a respeito, sendo as mais importantes a da "equivalência das condições", a da "causalidade adequada" e a da "causalidade imediata". Para a primeira, também conhecida como da conditio sine qua non, existindo várias circunstâncias que poderiam ter causado o prejuízo, qualquer delas poderia ser causa eficiente.17 Para a teoria da causalidade adequada, o fato de que resulta a responsabilidade deve ser apto a produzir o dano causado. Não há essa adequação e não há, portanto, responsabilidade quando "o dano ocorra devido a circunstâncias extraordinárias que fogem à experiência corrente". O efeito deve ser adequado à causa, o que ocorre, por exemplo, si- o viajante, pelo fato de perder o trem, perde também a oportunidade de fechar um bom negócio.18 Para a terceira, a teoria da causalidade imediata, é preciso que exista, entre o fato e o dano, relação de causa e efeito, direta e imediata. É adotada pelo nosso direito (CC, art. 403). Considera-se, portanto, como causa do dano, o fato de que deriva mais proxima-mente. Imediatamente (sem intervalo) e diretamente (sem intermediário).19 Inexiste nexo de causalidade e, conseqüentemente, dever de indenizar, no caso de culpa exclusiva da vítima, de força maior ou caso fortuito (CC, art. 393),20 salvo se o devedor estiver em mora (CC, arts. 394, 395 e 399). 9. O dano. Conceito. Espécies. Dano é a lesão a um bem jurídico. Em sentido estrito é a efetiva diminuição que alguém sofre no seu patrimônio, consistindo na diferença entre o valor atual e o que teria não fosse a prática do ato ilícito. Em sentido amplo, é a diminuição ou subtração de um bem jurídico de valor patrimonial ou moral,21 o que permite considerar passíveis de dano os direitos personalíssimos, como a vida, a liberdade, a honra, a integridade física, moral e intelectual. Existem várias espécies de dano. Patrimonial, quando apreciado monetariamente. Como subespécies temos o dano emergente, quando efetiva a diminuição do patrimônio, que é o que se perdeu, e lucro cessante, o que se deixou de ganhar. E dano extrapatrimonial, ou moral, quando não incidente no patrimônio. Tal classificação não se baseia na natureza do bem ofendido, mas no efeito da lesão. Dano moral é, portanto, a lesão de bem jurídico sem valor patrimonial. Dano direto, o que resulta imediatamente do fato; dano indireto, o decorrente de circunstâncias ulteriores, que aumentam o prejuízo. Dano contratual, se resulta do descumprimento de obrigação, e extracontratual, se decorrente da infração de dever legal. Danos previsíveis, os que se podem prever na celebração do contrato, como conseqüência normal e legítima do seu descumprimento, e imprevisíveis, os insuscetíveis de conhecimento antecipado. Conseqüência imediata da existência de dano é a obrigação de indenizar que nasce para o autor, sendo indiferente haver dolo ou culpa. E a indenização deve ser a mais ampla possível. 10. O dano moral. Dano moral é a lesão a direito personalíssimo produzida ilicitamente por outrem.22 Não afeta, a priori, o patrimônio do lesado, embora nele possa vir a repercutir. A questão de saber se é ou não indenizável leva a posições antagônicas, embora prevaleça o ponto de vista de sua ressarcibilidade. Discute-se acerca da possibilidade ou não de sua reparação; caso afirmativo, se é indenização ou satisfação ao ofendido, se é pena ou compensação, e qual o fundamento da indenização.23 A tese contrária à reparação alega a heterogeneidade de valores, referentes à dor e à estimativa pecuniária: é impossível a fixação do pretium doloris, pelo que a dor não se indeniza. Aceitando-se, porém, a responsabilidade civil como sanção, não há por que recusar-se o ressarcimento do dano moral, misto de pena e de compensação. No sistema legal brasileiro encontram-se dispositivos que reconhecem o dano moral e permitem a sua indenização, a saber, CF, art. 5° V e X; os arts. 186, 950, 953, par. único, do Código Civil; art. 81, do Código de Telecomunicações (Lei 4.117, de 27.08.62) e art. 244, § l", do Código Eleitoral (Lei 4.737, de 15.07.65) art. 24 e segs. da Lc-i dos Direitos Autorais (Lei 9.610, de 19.2.98) e arts. 49 e 53 da IAM de Imprensa (Lei 5.250, de 9.2.67). A jurisprudência brasileira, por muito tempo contrária à repara bilidade do dano moral, mudou sua posição, dispondo a Súmula n-491 do STF que "é indenizável o acidente que causa morte do lilho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado". No campo da responsabilidade contratual não se aceita, porém, a indenização cio dano moral sofrido pelo credor. No campo matrimonial, defende-se a indenização por dano moral decorrente da violação de direitos personalíssimos do cônjuge, diversos dos que decorrem do casamento (CC. art. 1.566), embora haja controvérsia. 11. A reparação do dano. A existência do dano dá ao lesado o direito de exigir a respectiva reparação, que pode ser a reconstituição do status quo anterior (sanção direta) ou uma indenização (sanção indireta). Consiste esta no pagamento em dinheiro (prestação pecuniária), cujo valor deve ser fixado, por acordo entre as partes, pela lei ou pelo juiz. Avalia-se o dano pelo cálculo da diferença entre o patrimônio atual e o que seria sem o ato ilícito. A fixação do quantum devido denomina-se liquidação. É legal, quando determinada em lei, convencional, quando feita por acordo (transação), e judicial quando estabelecida em sentença, por meio de arbitramento. A forma de liquidação legal está expressa no CC, arts. 948 a 954, compreendendo os casos de homicídio (art. 948), lesões cor porais (arts. 949 e 950), usurpação ou esbulho (art. 952), obrigação de diligência (art. 951), e de dano moral (arts. 952, par. único e 954, par. único). A liquidação judicial, incluindo as hipóteses dos dispositivos mencionados, faz-se por arbitramento, meio com que os técnicos (peritos) calculam o quantum a ser pago à vítima. Todas as hipóteses de dano não previstas nos dispositivos supra referidos terão fixada a respectiva indenização também por arbiti.i mento, na forma do art. 946 do Código Civil. 12. A responsabilidade civil. Conceito. Natureza. Importância Prática e teórica. A expressão "responsabilidade civil" pode compreender-se em sentido amplo ou em sentido estrito.24 Em sentido amplo, tanto significa a situação jurídica em que alguém se encontra de ter de indenizar outrem quanto a própria obrigação decorrente dessa situação, ou, ainda, o instituto jurídico formado pelo conjunto de normas e princípios que disciplinam o nascimento, conteúdo e cumprimento de tal obrigação. Em sentido estrito, designa o específico dever de indenizar nascido de fato lesivo imputável a determinada pessoa. É civil porque a relação se estabelece entre particulares, deixando-se ao direito administrativo o problema da responsabilidade do Estado, pelos danos resultantes do funcionamento dos serviços públicos. O instituto da responsabilidade civil traduz a realização jurídica de um dos aspectos do personalismo ético, segundo o qual ter responsabilidade, ser responsável, é assumir as conseqüências do próprio agir, em contrapartida ao poder de ação consubstanciado na autonomia privada. Não mais a concepção egoística do indivíduo em si, mas o indivíduo como pessoa, comprometido com o social. A responsabilidade civil traduz, portanto, o dever ético-jurídico de cumprir uma prestação de ressarcimento. Quanto à sua natureza, a responsabilidade civil é sanção indireta, de função preventiva e restauradora. Indireta porque, na impossibilidade de se restabelecer a situação anterior ao evento lesivo, a lei determina a reparação do prejuízo causado. Preventiva porque, como toda sanção, destina-se a garantir o respeito à lei, e restauradora no sentido de que, violado o preceito jurídico e configurado o dano, o infrator se obriga a indenizar o lesado. É, portanto, e simultaneamente, uma sanção e uma garantia de ressarcimento. A responsabilidade civil, como ato ilícito, é também importante fonte de obrigações, ao lado dos contratos, das declarações unilaterais de vontade e das demais hipóteses que a lei estabelece para esse fim. Seu estudo reveste-se de grande importância prática e teórica. Importância prática porque o sistema da responsabilidade civil constitui-se em um dos mais relevantes setores do direito contemporâneo. Todos os seus problemas configuram relações jurídicas em que uma das partes sofre um dano e a outra deve repará-lo. Esse conflito de interesses entre o autor do dano e a vítima, que exige a composição do dano injusto, é o problema fundamental da responsabilidade civil. Importância teórica pelo desenvolvimento da doutrina, da legislação e da jurisprudência, que provoca. Com o progresso da técnica t- o desenvolvimento da indústria, dos transportes e a aceleração do processo de mudança social, multiplicam-se os prejuízos e as rés pectivas pretensões de indenização. Cresce o número de relações jurídicas que nascem de fatos lesivos e que têm por objeto unia prestação de ressarcimento. Tais eventos exigem respostas jurídico aos problemas decorrentes da verificação de danos. Aumenta, assim o número de processos judiciais, hipertrofia-se a função jurisdicional do Estado com a crescente intervenção dos tribunais, desenvolve-se a jurisprudência, renova-se a doutrina, tudo contribuindo para a formação de um novo ramo de direito que, embora não autônomo, representa a institucionalização do princípio fundamental que é o da obrigação de reparar o dano injusto (alterum non laederej. Enfim, aperfeiçoa-se a disciplina da responsabilidade civil e desenvolve-se a respectiva teoria. Nisto consiste a sua importância teórica, hoje aumentada pelo advento da sociedade teconológica, com novas espécies de dano, como é o dano ambiental, o dano biotecnológico, o dano à saúde em variados aspectos, etc. 13. Notícia histórica. Breve retrospectiva histórica é útil para a compreensão do fundamento, evolução e estado atual do sistema da responsabilidade civil. Fundamento da responsabilidade civil é a razão por que alguém deve ser obrigado a reparar o dano causado a outrem. Na primeira fase do processo histórico foi a culpa e, posteriormente, o risco de um dano, como conseqüência de certas atividades produtivas descn volvidas pelo agente causador do prejuízo. No processo histórico-evolutivo da responsabilidade civil podem-se constatar três fases distintas: o direito romano em senso estrito, a idade moderna, culminando com o Código Civil francês, e a fase contemporânea. ----------------------------------17 "Se o automobilista atropelou o peão, a morte deste pode ter resultado não apenas do acto de imperícia do condutor, mas também da constituição débil da vítima, da natureza do pavimento sobre o qual esta foi projetada, da demora do seu transporte para o hospital, da falta de meios adequados de tratamento, da pouca prática do cirurgião que operou etc. Do mesmo modo, se a falta de cumprimento da obrigação causar graves prejuízos ao credor, pode o dano ter sido devido, não só à inadimplência do devedor, mas também à debilidade econômica do credor ao conjunto de obrigações a seu cargo que se acumularam na mesma data, à falta de compreensão dos seus credores que não anuíram à moratória por ele solicitada, à multiplicidade das obrigações que o devedor deixou acumular sobre o seu patrimônio etc." (João de Matos Antunes Varela. Das obrigações em geral, vol. I, p. 838.) 18 VonThur, op. cit., p. 70. 19 Agostinho Alvim, op. cit., p. 70. 20 Cf. Maria Helena Diniz, op. cit., ps. 83/86. Com ampla referência jurispin dencial. 21 Manuel Ignácio Carvalho de Mendonça. Doutrina e Prática das Obrigações, vol. II. P. 472; Adriano de Cupis. // danno. Teoria generale delia responsahililú civile, ns 3 e segs.; Giovanni Formica, apud Alvim, op. cit., p. 171. 22 Orlando Gomes. Direito das Obrigações, p. 330. Cf. Ainda Wilson Melo da Silva. Dano moral, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 22, p. 266. 23 Jaime Santos Briz. La Responsabilidad Civil, p. 155. 24 Do Autor, Responsabilidade Civil, in Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Vol. 5, p. 466. ----------------------------------O direito romano caracteriza-se pela ausência de um sistema de responsabilidade civil. Nos tempos primitivos, a responsabilidade era coletiva, objetiva e penal. Coletiva porque as ofensas pessoais e patrimoniais reparavam-se com a vingança privada contra o ofensor ou seu grupo social. Posteriormente, esse procedimento foi substituído pela entrega à vítima, pelo ofensor, de certa quantia em dinheiro, a título de pena (poena). O Estado passa a intervir nesses conflitos particulares, fixando o valor do prejuízo e obrigando a vítima a aceitar a composição. A responsabilidade era simultaneamente de caráter penal e civil e independente da existência de culpa, donde a sua denominação de objetiva. É a Lei das XII Tábuas que marca a transição entre a fase da composição voluntária e a da composição obrigatória, obrigando a vítima a renunciar à vingança privada e a aceitar a indenização fixada pelo Estado, como pena privada e como reparação, não se distinguindo a responsabilidade penal da civil. Compreende-se assim por que o primitivo direito romano não teve um sistema ou até um princípio geral sobre a matéria, somente esboçado na Lex Aquilia (286 a.c.), a base da jurisprudência clássica sobre a matéria, de tal modo que a concepção da culpa característica do delito tomou o seu nome "in lege Aquilia et levíssima culpa venit".25 Outra justificativa para a ausência de um sistema legal sobre a matéria no direito romano foi a existência de inúmeros delitos especiais, com suas correspondentes ações. Á medida que evoluía o direito, surgia a previsão e a disciplina de distintas hipóteses de ato ilícito, o que levava ao casuísmo na solução dos conflitos, por meio de ações especiais, como as reipersecutórias, de finalidade indeniza-tória, as penais e as mistas, destinadas estas a fixar, ao mesmo tempo, uma pena e uma indenização. A responsabilidade era objetiva, até a Lei Aquilia, no sentido de que a culpa não era o fundamento da obrigação indenizatória, e penal no sentido de não distinguir a pena da reparação. Compreende-se, assim, por que o direito romano não criou um sistema jurídico para a responsabilidade, nem adotou, como seu fundamento, o princípio geral da culpa. Com o Cristianismo e, mais tarde, os canonistas interpretando os textos romanos à luz da moral cristã, separando o aspecto penal do civil, chega-se a uma síntese das soluções romanas com os princípios da moral cristã, e elabora-se o princípio clássico segundo o qual cada um deve responder pelos atos culposos que praticar e que produzam um dano injusto a outrem. Já na época moderna, Domat, um dos maiores juristas franceses de todos os tempos, à luz do pensamento jusnaturalista, estabelece o princípio que vem a ser expresso no Código Civil francês, lontc de todo o direito moderno sobre o assunto: o fundamento da responsabilidade civil é a culpa, a negligência ou a imprudência.''" Fica assim, estabelecida a noção de responsabilidade e o seu fundamento, a culpa, tipicamente consubstanciada no ato ilícito praticado fora de uma relação jurídica preexistente (ilícito extra-contratual). E nesse contexto passou a considerar-se ato ilícito o que afetava apenas os direitos absolutos de outrem, enquanto a ofensa a direitos relativos caracterizaria o inadimplemento contratual, levando à clássica distinção entre responsabilidade extracontratual ou aquiliana e responsabilidade contratual. Com a fixação do princípio da culpa, e com a já realizada distinção dos aspectos penais e civis do mesmo ato, a responsabilidade civil, que nos primórdios era coletiva, objetiva e penal, passa a ser individual, subjetiva e civil.21 Na fase contemporânea, com a revolução industrial e tecnológica, a difusão dos meios de transporte, a complexidade crescente das relações sociais, o desenvolvimento da civilização, enfim, surgem novas condições de vida e, com isso, a proliferação dos acidentes e a multiplicação das demandas judiciais. O princípio da culpa mostra-se insuficiente como fundamento da obrigação de indenizar. Surge a concepção de que o dano deve ser indenizado, independentemente da culpa do agente, ampliando-se os casos de responsabilidade civil não-decorrente de fato próprio do sujeito, mas proveniente do risco derivado da sua atividade econômica e produtiva. Desenvolve-se o sistema de seguros contra o risco de danos e com isso parte-se para a socialização da responsabilidade civil, transferindo-se ou repartindo-se com a sociedade o ônus da reparação dos prejuízos sofridos pelos indivíduos em razão de atividades econômicas que a todos beneficiam. Surge, assim, a classificação da responsabilidade em subjetiva e objetiva, conforme se baseie, ou não, na culpa. Assiste-se, enfim, ao declínio da responsabilidade individual, ao mesmo tempo em que se desenvolve o sistema da garantia coletiva, por meio dos seguros, num característico processo de socialização do dever de indenizar. E no que diz respeito especificamente à normativa e à doutrina jurídica, surge uma teoria geral da responsabilidade civil, reunindo os princípios e os elementos comuns a todas as espécies aplicáveis a atividades que, mais freqüentemente, geram a obrigação de indenizar. O que mais importa é a atividade profissional do agente causador do dano. Mais recentemente surge a constituição de um novo método jurídico, a análise econômica do direito,28 para a qual o objetivo da responsabilidade civil é minimizar os custos sociais dos acidentes culposos. A concepção tradicional da responsabilidade civil defende a reparação do dano pelo seu autor, no valor correspondente ao prejuízo efetivamente sofrido. Este mecanismo corresponde ao ideal da justiça corretiva. Em contraposição, a análise econômica do direito procura incentivar a eficiência no comportamento social. A responsabilidade civil teria a função de induzir os agentes a considerar os danos que seus atos, ou suas omissões, podem causar a outros. Esses danos, em linguagem econômica, são os custos externos. Note-se a diferença entre a justiça corretiva e a eficiência. Aquela procura restabelecer a situação patrimonial preexistente à lesão. A eficiência procura desestimular a prática de atos que produzem dano. Em linguagem econômica dir-se-ia que a responsabilidade civil, como instituto, teria a função de minimizar os custos sociais dos acidentes culposos, isto é, a soma dos custos de prevenção, do dano propriamente dito, e dos custos do ressarcimento.29 Desse modo, a teoria do nexo causai deveria ser uma "teoria de prevenção eficiente tio custo social dos acidentes." 14. Espécies de responsabilidade civil. A evolução da responsabilidade civil é um processo que vai da responsabilidade coletiva, objetiva e penal dos primórdios até uma responsabilidade individual, subjetiva e civil dos tempos modernos, com a tendência contemporânea para a socialização do dever de indenizar através do sistema de seguros. Essa responsabilidade individual tem sido sistematizada, desde o Código Civil francês, em função da natureza dos direitos subjetivos lesados pelo ato ilícito. Se este ofende direito subjetivo relativo, nascido geralmente de contrato, a responsabilidade é dita contratual. Se o direito lesado é absoluto, a responsabilidade é extracontratual, ou aquiliana, por influência da Lex Aquilia, que fixou a culpa como fundamento do dever de indenizar. Temos então que, quanto à espécie do direito subjetivo lesado, a responsabilidade civil divide-se em contratual e extracontratual. Quanto ao fundamento, isto é, a existência ou não de culpa do agente, a responsabilidade divide-se em subjetiva e objetiva, e quanto à natureza pública ou privada da norma infringida, a responsabilidade é penal ou civil. No sistema dos códigos, a grande dicotomia é a responsabilidade contratual e a extracontratual. O Código Civil brasileiro também consagra a distinção da responsabilidade civil em responsabilidade contratual e responsabildade extracontratual ou aquiliana, regulando esta nos arts. 186 e 927 e 15. Responsabilidade contratual e extracontratual ou aquiliana. A responsabilidade contratual é a que decorre do não-cumpri-mento de obrigação nascida de contrato, de negócio jurídico unilateral ou da própria lei.30 O descumprimento da obrigação pode resultar de fato imputável ao devedor ou ao credor que agir com culpa ou dolo, ou de fato inimputável a qualquer deles, na hipótese de caso fortuito ou força maior. São, assim, causas do descumprimento a culpa do devedor, o caso fortuito e a força maior (CC, arts. 389 e 393). Quanto aos efeitos, o não-cumprimento pode ser definitivo (inadimplemento), simples retardamento culposo (mora) ou cumprimento defeituoso da obrigação. Verifica-se o inadimplemento quando a prestação se torna inútil para o credor e este a recusa; há simples mora, que é o atraso culposo no cumprimento da obrigação, quando a prestação ainda é possível e útil ao credor. Conseqüência do descumprimento da obrigação é a responsabilidade do devedor, que responde por perdas e danos (CC, art. 389). As perdas e danos compreendem o dano emergente e o lucro cessante. E nas obrigações de pagamento em dinheiro consistem nos juros de mora e custas sem prejuízo de pena convencional (CC, arts. 402 a 405). Caso fortuito e força maior são sinônimos na opinião doutrinária mais recente. Significam o fato necessário cujos efeitos não era possível evitar ou impedir (CC, art. 393, par. único). A diferença que porventura se possa estabelecer entre essas expressões é a que decorre de considerar-se o caso fortuito como impedimento relacionado com a pessoa do devedor ou com sua empresa, enquanto a força maior é um acontecimento externo (fenômenos naturais, ocorrências políticas etc.). Se o devedor agiu culposamente, deixando de cumprir a prestação devida, responde por perdas e danos. Se o inadimplemento for, todavia, conseqüência de caso fortuito ou força maior, o devedor fica isento de qualquer responsabilidade, salvo se expressamente por eles se responsabilizou, ou se estava em mora (CC, arts. 394, 395 e 399). A responsabilidade contratual resulta de ilícito contratual (nãocumprimento ou cumprimento defeituoso de obrigação preexisU-n-te), e a extracontratual, aquiliana ou delitual, resulta de ilícito extracontratual (violação de deveres gerais de abstenção pertinente aos direitos absolutos). A primeira decorre da violação de direitos subjetivos relativos, com a infração de um dever especial, enquanto a aquiliana nasce da ofensa a direitos subjetivos absolutos, com :\ infração de um dever geral de observância. A expressão responsabilidade contratual é, porém, abrangente, porque também compreende a infração de obrigações não decorrentes de contrato, como as nascidas de declaração unilateral de vontade ou da própria lei. C) efeito de ambas é a obrigação de indenizar, sendo elementos comuns o comportamento ilícito, a culpa, o dano e a relação de causalidade. Diferem as duas espécies nos seguintes aspectos: a) a responsabilidade contratual decorre de relação obrigacional preexistente, enquanto na aquiliana a relação obrigacional surge pela primeira vez ao verificar-se o dano. Naquela, a prestação indenizatória é simples mudança do objeto da relação, enquanto na segunda o dever de ressarcir é originário; b) a responsabilidade contratual pressupõe plena capacidade das partes que contratam enquanto a aquiliana pode ser causada por ato de incapaz; c) na responsabilidade contratual, eventual solidariedade entrr os obrigados depende de prévio acordo, enquanto na aquiliana a previsão de solidariedade está na lei (CC, art. 942); d) quanto ao ônus da prova, na responsabilidade contratual o devedor é que tem de provar a inexistência de culpa ou qualquer excludente do dever de indenizar, enquanto na aquiliana cabe à vítima demonstrar a culpa do agente; Existem, porém, algumas notas comuns. Em ambas as espécies é possível a limitação ou exclusão convencional da responsabilidade*, desde que não se contrarie a ordem pública e os bons costumes," ---------------------------25 "Na Lei Aquiliana se compreende também a culpa levíssima", Ulpiano, D, 9, 2, 44, pr. 26 Código Civil francês, art. 1.382: "Tout fait quelconque de I'homme qui rt à autrui un dommage, oblige celui par Ia faute duquel il est arrivé, à lê rcintin " (Qualquer fato humano que cause a outrem um dano obriga o culpado a rqnini li >.) 27 Jean Carbonnier. Droit civil, Lês obligations, p. 316. 28 A análise econômica do direito é uma concepção doutrinária que surge inicialmente nos EUA, no início da década de 60, com o objetivo de "sistematizar os efeitos econômicos das regras jurídicas", estudando como o direito orienta o comportamento individual e em que medida atinge seus objetivos sem ser alterada pelos destinatários. Para os economistas dessa escola a primeira questão que se apresenta em relação a qualquer regra de direito é saber qual o objetivo que ela pretende atingir, o que obriga o jurista a formular o fim social da regra, para que se possa avaliar se ela é eficaz na realização de seu objetivo. Fundamento de análise econômica do direito é a teoria micro econômica, ou neo-clássica, que estuda o comportamento dos agentes econômicos (indivíduos, produtores), ao contrário da análise macroeconômica, cujo objetivo é explicar como se determinam a produção, o investimento, o consumo, etc, em escala nacional. No que diz respeito ao direito, a análise econômica é a aplicação da teoria neoclássica ao estudo dos comportamentos sociais regulados pelo direito, isto é, a função das regras jurídicas. A crítica mais acentuada que se faz a essa nova concepção é o seu caráter positivista, a sua indiferença quanto aos critérios não racionais de escolha, a sua consideração do mercado como critério de legitimidade, as suas valorações exclusivamente econômicas. Cfr. Ghestin, op. cit., p. 176 e segs. 29 Guido Calabresi, The Cost of Accidents, apud Ghestin, op. cit., p. 184. segs. e 948, e aquela nos arts. 389 e segs., fazendo, todavia, concessão à teoria mista que identifica, em ambas, elementos comuns. 30 Antunes Varela, op. cit., p. 473. 31 Pessoa Jorge, A limitação convencional da responsabilidade civil, p. 29; cf. ainda José de Aguiar Dias. Cláusula de não indenizar, Antônio Pinto Monteiro. Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil. ---------------------------- assim como igualmente se admite a ressarcibilidade de danos nãopatrimoniais. Terceira concepção, de natureza intermediária, não considera fundamental a divisão clássica da responsabilidade em contratual e extracontratual, pois a obrigação de indenizar traduz a violação de um dever preexistente de respeitar direitos subjetivos relativos ou absolutos. Situam-se ambas no campo das fontes e dos efeitos das obrigações, não existindo diferença quanto à sua natureza. Cientificamente, uma só responsabilidade civil, com regimes diversos porém. Embora mantida a dualidade nos sistemas de direito positivo, vem-se evidenciando uma tendência doutrinária de superar tal dicotomia com a adoção de um regime misto, compreendendo uma teoria geral da responsabilidade civil, reunindo os princípios e os pressupostos comuns a toda as hipóteses, e regimes específicos, inerentes aos diversos ramos que se vêm construindo no campo da lei e da jurisprudência, como, por exemplo, a responsabilidade pelo exercício profissional,32 a dos produtores perante os consumidores,33 a decorrente de acidentes de trânsito,34 a dos transportadores,35 a dos construtores,36 a do Estado legislador,37 a dos bancos,38 a dos administradores de companhia,39 a das atividades perigosas,40 a dos representantes legais,41 a do abuso de direito em geral.42 Cabe ainda breve referência à responsabilidade pré-contratual e à cláusula de não-indenizar. Responsabilidade pré-contratual é aquela que se configura no caso de ruptura das negociações preliminares do contrato. Embora sem força vinculante, essa atividade, muitas vezes concretizada cm apontamentos ou minutas, cria para um dos interessados "a expectativa de contratar, obrigando-o, inclusive, a fazer despesas para possibilitar a realização do contrato". Se o outro interessado, sem qualquer motivo, põe termo às negociações, deve ser obrigado :\ ressarcir o primeiro dos danos que sofrem.43 Esse dever de indenizar baseia-se na culpa in contrahendo, culpa do agente que induz outrem a ajustar um contrato que não será celebrado, causando-lhe prejuízo. Essa culpa e essa responsabilidade são extracontratuais. A cláusula de não-indenizar é a convenção acessória aposta a um contrato ou a uma declaração unilateral de vontade pela qual uma das partes se exonera da responsabilidade de indenizar a outra por dano eventual, afastando a obrigação dele decorrente. Suscitando forte controvérsia na doutrina a respeito de sua validade, ela é aceitável desde que seja bilateralmente ajustada e não contrarie lei expressa, a ordem pública e os bons costumes, e não tenha o agente causado o dano intencionalmente.44 16. O sistema legal da responsabilidade civil. O instituto da responsabilidade civil se estabelece em torno da relação decorrente do ato ilícito, contratual ou extracontratual. Seu objetivo é puramente reparatório, não alcançando, por isso, os benefícios eventualmente obtidos pelo autor do dano.45 Enquanto para a doutrina ato ilícito é todo aquele contrário à norma jurídica, imposta pelo Estado (lei) ou pela autonomia privada (contrato), o Código Civil brasileiro restringe o respectivo significado, limitando-o ao teor do art. 186, dele separando o ilícito contratual, ou inadimplemento obrigacional, referido no art. 389. O Código Civil brasileiro tem assim dois sistemas distintos, o que resulta de ato ilícito e o que resulta da inexecução contratual. A expressão "responsabilidade civil" significa, de ordinário, o primeiro, a que se referem os arts. 186 e 927; o sistema da contratual está nos art. 389 e segs., compreendendo ainda a disciplina da mora (CC.arts. 394 a 401). Vê-se, então, que o legislador brasileiro, a exemplo do italiano, estabeleceu no art. 186 uma noção particular de "ato ilícito", dando-lhe taxinomia própria e disciplinando-lhe os efeitos, de modo diverso da inexecução contratual. Justifica-se tal diferença pelo fato de que o inadimplemento obrigacional provoca simples mudança objetiva na relação jurídica, substituindo-se a prestação pelo "id quod interest" (ressarcimento). No ilícito previsto no art. 186, o dever de indenização não é aspecto novo de uma obrigação preexistente, mas uma nova obrigação. "Praticado o ato, nasce para o agente' a obrigação de indenizar a vítima, tendo por objeto uma prestação por meio da qual o dano causado é ressarcido." Essa diversidade de estrutura justifica a disciplina diversa. 17. Responsabilidade subjetiva. A doutrina considera ainda uma outra distinção, conforme se dê relevo ou não à culpa do agente. É a responsabilidade subjetiva e a objetiva. A primeira, que é a clássica, e que pressupõe a existência de culpa, consagrou-se no Código Civil francês, donde se irradiou para o direito moderno. Adota-a o Código Civil brasileiro no art. 186, que estabelece a ato ilícito como fonte da obrigação de indenizar. Denomina-se também responsabilidade delitual. A responsabilidade objetiva, desenvolvida contemporaneamente, mas já existente nos primevos do direito romano, dispensa a culpa. Baseia-se em uni princípio de eqüidade: quem lucra com uma situação responde pelo risco ou desvantagens dela decorrentes (ibi commoda, ibi incommo-da). Conhecida como responsabilidade legal, tem como fundamento a atividade que o agente desenvolve, criando risco de dano para terceiro. Daí chamar-se "teoria do risco" ao conjunto de seus princípios. É legal porque imposta por lei, independentemente de culpa. O agente é obrigado a reparar o dano, ainda que isento de culpa, salvo no caso de comportamento doloso da vítima, como pode ocorrei1 em caso de acidente de trabalho. A responsabilidade subjetiva diz-se direta quando decorrente de fato próprio, do agente, e indireta ou complexa se resultante de fato de terceiros, de animal ou de coisa que se encontre sob a guarda do agente. 18. Responsabilidade por fato de terceiro. No sistema de responsabilidade civil subjetiva encontramos três institutos diversos: o da responsabilidade por fato próprio, o da responsabilidade por fato de terceiro e o da responsabilidade por fato da coisa ou de animal. ---------------------------------32 Quanto à responsabilidade civil dos advogados, Maria Helena Diniz, op. cit., pp. 204/6; do médico Wanderby Lacerda Panasco. A responsabilidade civil, penal e ética dos médicos, p. 27 e segs.; Teresa Ancona Lopez de Magalhães, Responsabilidade civil dos médicos, pp. 309 a 330; Ulderico Pires dos Santos, A Responsabilidade Civil na Doutrina e na Jurisprudência, n2 53. 33 Cf. Caio Mário da Silva Pereira, Responsabilidade civil do fabricante, pp. 28-44; Philippe Malinvaud, La protection du consommateur en droit français, p. 41 e segs.; Orlando Gomes. A Política Legislativa de Proteção ao Consumidor, ibidem, p. 30 e segs.; do Autor, As cláusulas contratuais gerais, a proteção ao consumidor e a lei portuguesa sobre a matéria, pp. 235-257; Eike von Hippel, Defesa do consumidor, p. 5 e segs. 34 Elcir Castello Branco, Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil e dos Proprietários de Veículos Automotores; Wilson Melo da Silva, Da Responsabilidade Civil Automobilística. 35 Mário Moacyr Porto, Responsabilidade civil [Transporte de pessoas), pp. 368-78; Octanny Silveira da Mota, Da Responsabilidade Contratual do Transportador Aéreo; Antônio Chaves, Responsabilidade do transportador por via aérea, pp. 1-23. 36 lolanda Moreira Leite, Responsabilidade civil do construtor, pp. 125148; Marco Aurélio da Silva Viana. Contrato de Construção e Responsabilidade Civil; Hely Lopes Meirelles. Direito de Construir; Helita Barreira Custódio, Dano causado por construção ou edificação, pp. 232 e 248. 37 J. Cretella Júnior. O Estado e a Obrigação de Indenizar, idem Responsabilidade civil do Estado legislador, pp. 169-191; Yussef Said Cahali, Responsabilidade Civil do Estado, pp. 355-377; José Joaquim Gomes Canotilho, O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos. 38 Sérgio Carlos Covello, Responsabilidade dos bancos pelo pagamento de cheques falsos e falsificados, pp. 257-288; Lauro Muniz Barreto. Direito Bancário; Wilson Melo da Silva, Cheques falsos; Arnaldo Wald. Estudos e Pareceres de Direito Comercial, vol. 2; idem, A responsabilidade contratual do banqueiro, p. 95; Luís Roldão de Freitas Gomes. Da responsabilidade civil dos administradores de instituições financeiras privadas em regime de intervenção ou liquidação extrajudicial no Brasil, pp. 146-155. 39 Waldirio Bulgarelli, Responsabilidade dos administradores de companhias, pp. 407-449; Roberto Rosas, Responsabilidade nas sociedades anônimas, p. 4; Wilson Egito Coelho, Da responsabilidade dos administradores das sociedades por ações em face da nova lei e da Lei 6.024/74, p. 37; Carlos Alberto Bittar, Responsabilidade dos administradores de sociedades anônimas, pp. 445-453. 40 Carlos Alberto Bittar, Responsabilidade civil nas atividades perigosas, pp. 85-101. 41 Antônio Junqueira de Azevedo, Responsabilidade civil dos pais, pp. 53-68; Alvino Lima. Da Responsabilidade Civil por Fato de Outrem; Munir Karam, Responsabilidade civil dos pais pelo fato do filho, pp. 393-409. 42 Maria Helena Diniz, op. cit., p. 377 e segs.; Antunes Varela, O abuso do direito no sistema jurídico brasileiro, p. 37 e segs. 43 Orlando Gomes, Contratos, n- 36. 44 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. I, n2 115; Sérgio Cavalieri filho, Programa de responsabilidade Civil, p. 451. 45 Adriano de Cupis. II âanno. Teoria generale delia responsabilitá civile, n2 102. ---------------------------------A responsabilidade por fato próprio é a obrigação de indenizar decorrente da ação ou omissão culposa do agente, provado o nexo de causalidade e o dano (CC, art. 186). A responsabilidade por fato de terceiro pressupõe dois agentes: um, causador do prejuízo, outro, responsável pela indenização. É o que ocorre nas hipóteses do art. 932, segundo o qual são responsáveis os representantes legais de direito de família, os empregadores, os hoteleiros e os donos de educandários, pelos atos praticados pelos respectivos representados, prepostos e hóspedes. É um caso de responsabilidade civil objetiva (CC, art. 933). E todos, menores e seus representantes legais, responderão com solidariedade (CC, art. 942, par. únic). A responsabilidade dos pais resulta do seu dever de guarda, não do poder familiar.46 No caso dos empregadores, comprovada a relação de emprego, existem duas responsabilidades, a do patrão, amo, ou comitente, e a dos empregados, serviçais e prepostos, que respondem por fato próprio. Quanto aos educandos, são responsáveis os diretores de colégios. Com exceção dos ascendentes, o que tiver ressarcido o dano tem o direito de regresso contra o respectivo agente (CC, art. 934). São casos especiais de responsabilidade por fato de terceiro a do proprietário de veículo por ato ilícito do condutor, não preposto, e a do médico, por ato de enfermeiro ou auxiliar. No caso de prejuízos causados por veículo conduzido por outrem que não o proprietário, este somente se exonera, se provar que o veículo entrou em circulação contra vontade, como no caso de furto. Fora disso presume-se a culpa do condutor e a do proprietário. Responde também o médico pelos atos ilícitos de seus auxiliares, enfermeiros etc., que agirem sob sua orientação, mas não responde pelo ato culposo, independente, do enfermeiro ou auxiliar, caso em que a responsabilidade é do nosocômio.47 19. Responsabilidade por falo da coisa. Não é correta a expressão "responsabilidade por fato da coisa", pois esta, por si só, não causa dano para fins de responsabilidade. Trata-se do prejuízo causado por uma coisa de que o agente trm a guarda, como previsto no art. 937, que torna responsável o dono do edifício ou construção pelos danos resultantes de sua ruína, se esta provier de falta de reparos cuja necessidade fosse manifesta. K o caso de negligência do proprietário que não conserva seu imóvel. Presume-se a culpa do proprietário, presunção que somente se elide com a ocorrência de caso fortuito, força maior ou culpa da vítima, ou se o dono provar que a renúncia não decorre da falta de reparos, ou que a necessidade desses reparos não era manifesta. O ônus da prova é da vítima. Embora o dever de indenizar não abranja o caso fortuito ou força maior, trata-se de responsabilidade muito próxima da responsabilidade objetiva. 20. Responsabilidade por fato de animal. A responsabilidade pelo dano causado por animais decorre de simples presunção de culpa, como prevista no art. 936 do Código Civil. O dono ou detentor do animal ressarcirá o dano por esse causado, se não provar culpa da vítima ou força maior. Existe presunção de culpa para o dono ou detentor do animal, da qual só se exonera se provar a ocorrência de qualquer dos excludentes mencionados. Basta que a vítima demonstre o dano e o ato causador, para configurar-se a responsabilidade do guarda. Há reversão do ônus da prova, que passa ao dono ou detentor do animal. 21. Responsabilidade objetiva. Responsabilidade objetiva é a que independe da culpa do agente. Desenvolveu-se com a teoria do risco, segundo a qual todo dano deve ser indenizado independentemente de haver ato ilícito. Resulta da constatação de que a concepção tradicional, subjetiva, é insuficiente para resolver problemas de setores específicos da vida con temporânea, onde a atividade econômica cria o risco de dano, que deve ser indenizado pelos beneficiários dessa atividade. Pressupõe sempre a possibilidade de um perigo, decorrente da atividade empresarial ou de circunstâncias objetivas, fora de controle humano habitual. O fundamento da obrigação de indenizar, nesta espécie de responsabilidade, não decorre da ilicitude do ato, mas de um princípio de eqüidade e de justiça comutativa, segundo a qual todo aquele que, na defesa de seus interesses prejudicar o direito de outrem, ainda que de forma autorizada, deve indenizar o dano causado. A responsabilidade objetiva não decorre de um princípio geral, como a subjetiva, previsto no art. 186. É imposta em lei para os seguintes casos: a) queda ou lançamento de coisa em lugar indevido (CC, art. 938); b) acidentes de trabalho (Lei 5.316, de 14.09.67, e Decreto 61.784, de 28.11.67); c) acidentes em estradas de ferro (Lei 2.681, de 01.12.12) e, por analogia, os acidentes de transportes coletivos; d) navegação aérea (Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei 7.565 de 19.12.86). e) dano ambiental (Lei 6.938, de 31.8.81, art. 14, p. 1°); f) dano nuclear (CF. art. 21, XVIII, c) Lei 6.453, de 17.10.77, art. 4°); g) prestação de serviço público (CF. art. 37, p. 6°; CC. art. 15); h) fato do produto e do serviço (Lei 8.078, de 11.9.90 art. 12, 14). ----------------------46 Antônio Junqueira de Azevedo, op. cit, p. 59; Maria Helena Diniz, op. cit, p. 342. 47 Alvino Lima. A Responsabilidade Civil pelo Fato de Outrem, n- 29. ----------------------CAPÍTULO XVIII Prescrição e Decadência Sumário: 1. O tempo como fato jurídico. 2. A relação jurídica e seu conteúdo. 3. Exigibilidade e exercício de direitos. 4. Prescrição. Conceito. Fundamento. Objeto. 5. Decadência. Conceito. Fundamento. Objeto. 6. Prescrição e decadência. Comparação. 7. Regras gerais da Prescrição. 8. Renúncia da Prescrição. 9. Impedimento e suspensão. 10. Interrupção da prescrição. 11. Prazos prescricionais. 12. Prazos de decadência. 13. Os prazos prescricionais em matéria de Direito Intertemporal. 1. O tempo como fato jurídico. O tempo é fato jurídico natural de grande importância nas relações jurídicas pela influência que pode ter na gênese, exercício e perda dos respectivos direitos. Desde a concepção do ser humano, o tempo influi nas relações jurídicas de que o indivíduo participa. Até o nascimento, o ser em potência já é centro autônomo de direitos; para certos setores da doutrina c- da legislação mais recente tem, inclusive, personalidade jurídica. Até completar 16 anos é absolutamente incapaz; aos 18 atinge a plena capacidade de fato, que lhe poderá, entretanto, ser antecipada pela emancipação aos 16 anos, (CC, art. 5-, I). Também com esta idade, o menor já pode exercer o comércio, função pública e ser eleitor.1 Para efeitos penais, o menor com menos de 18 anos é inimputável sendo objeto da aplicação de normas especiais, devendo ser internado em estabelecimento próprio, se demonstrar excessiva periculosida-de.2 Na aplicação da pena, a idade é atenuante para os menores de 21 e maiores de 70 anos. Para efeitos de cidadania, os maiores de 16 anos podem ser eleitores, mas só maiores de 18 anos podem ser eleitos vereadores, maiores de 21 anos, deputados federais ou estaduais e maiores de 35 anos, senadores ou presidentes da República. Para fins de exercício profissional, menores de 18 anos não podem trabalhar em indústrias insalubres, ou à noite; menores de 14 anos são impedidos de trabalhar, salvo como aprendizes.3 Embora tais condições sejam, na maioria, de direito público, é no campo do direito privado que se nota maior influência do tempo, tanto no nascimento quanto no exercício e extinção dos direitos. Assim, por exemplo, nos negócios jurídicos a termo, inicial ou resolutivo, na abertura de sucessão provisória (CC, art. 26, CPC, art. l. 159) e em todos os casos em que o decurso do tempo provoque a extinção ou surgimento de direitos. A disciplina da influência do tempo nas relações jurídicas é objeto de três institutos de direito civil, a usucapião ou prescrição aquisitiva, que leva à aquisição de direitos, a prescrição extintiva e a decadência, que levam à extinção. O primeiro estuda-se na parte dos direitos reais, por ser forma de aquisição da propriedade. Os demais, referentes aos direitos subjetivos in genere, disciplinam-se na parte geral do Código Civil. 2. A relação jurídica e seu conteúdo. A compreensão da importância do tempo como fato jurídico pressupõe o conhecimento da relação jurídica, na sua estrutura e função. Contem a relação jurídica várias espécies de direitos, correspondentes às diversas formas por que os sujeitos exercem o seu poder sobre o objeto da respectiva relação. As espécies mais importantes são o direito subjetivo, a pretensão, o direito potestativo e as faculdades jurídicas. Direito subjetivo, como já estudado, é o poder que o ordenamento jurídico reconhece a alguém de ter, fazer ou exigir de oiitrcin determinado comportamento. É verdadeira permissão jurídica, ou ainda, é um poder concedido ao indivíduo para realizar seus interesses. Representa a estrutura da relação poder-dever, em que ao poder de uma das partes corresponde o dever da outra. Da infração desse dever resulta, nas relações jurídicas patrimoniais, um dano para o titular do direito subjetivo. Nasce, então, p;u;i esse titular, o poder de exigir do devedor uma ação ou omissão, qur permite a composição do dano verificado. A esse direito de exiy.ir chama a doutrina de pretensão, por influência do direito alemão (BGB, § 194), principalmente Windscheid4, que transferiu para o direito substantivo privado a actio, direito subjetivo processual do direito romano e do antigo direito comum alemão. Temos, então, a pretensão de direito privado distinta da pretensão de "proteção jurídica", ou "direito de ação", que é o direito subjetivo público de invocar a tutela jurisdicional do Estado para a realização de sou direito, reparando-se o dano causado pelo agente infrator. A pretensão revela-se, portanto, como um poder de exigir de outrem uma ação ou omissão. É, para alguns, sinônimo de direito subjetivo, embora com conotação dinâmica, enquanto aquele é estático e, para outros, ainda, uma situação jurídica subjetiva5. A pretensão que nasce no momento em que o credor pode exigir a prestação, e esta não é cumprida, causando lesão no direito subjetivo, pressupõe, assim, a existência de um crédito, com o qual não se confunde. Por exemplo, se o vendedor, em um contrato de compra e venda, se compromete a receber o preço em prestações mensais, vencíveis a cada dia 30, no momento em que fez o contraio tornou-se credor, titular de um crédito, mas o direito de exigi r a prestação, que configura a pretensão, só nasce a cada dia 30, no respectivo vencimento, se não se verificar o pagamento. Embora a pretensão seja um conceito técnico jurídico aplicável às várias espécies de relações jurídicas, em tese, é nas obrigações que ele encontra a sua natural aplicação. A sua função mais importante é a de traduzir uma legitimação material para exigir uma prestação determinada, o que a relaciona intimamente com o direito processual civil. Contraposto ao conceito de pretensão existe o de exceção, direito que se tem de impedir a eficácia de um direito subjetivo de outrem. Funciona como um contradireito ou, tecnicamente, um direito de negar o cumprimento da prestação devida, correspondente à pretensão do credor. As exceções podem ser permanentes e transitórias ou dilatórias. As primeiras impedem a "imposição judicial" da pretensão perpetuamente; as segundas, temporariamente. Na hipótese de exceção permanente, o crédito a que corresponde a respectiva prestação contrariada é tido como não subsistente, e o exemplo mais notório dessa hipótese é a prescrição. Existem, porém, direitos subjetivos que não fazem nascer pretensões, porque destituídos dos respectivos deveres. São direitos potestativos. O direito potestativo é o poder que o agente tem de influir na esfera jurídica de outrem, constituindo, modificando ou extinguindo uma situação subjetiva sem que esta possa fazer alguma coisa se não sujeitar-se. São direitos potestativos o do patrão dispensar o empregado, o do doador revogar a doação simples, o do representado revogar a procuração, o do agente ocupar rés nullius, o de se aceitar ou não a proposta de contratar, o de se aceitar ou não herança, o de estabelecer uma passagem forçada para prédio encravado em outro. Como o direito potestativo é o dever de determinar mudanças na situação jurídica de outro sujeito, mediante ato unilateral, sem que haja dever contraposto e correspondente a esse poder, chama-se, também, direito formativo ou de formação. O lado passivo da relação jurídica limita-se a sujeitar-se ao exercício de vontade da outra parte. E não havendo dever, não há o seu descumprimento, não há lesão. Conseqüentemente não há pretensão. O conceito de pretensão serve, assim, para distinguir os direitos subjetivos dos potestativos. Como estes não podem ser lesados, seus titulares não têm pretensão, como ocorre nos direitos subjetivos. As faculdades jurídicas são também poderes de agir contidos nos direitos subjetivos. Deles diferem porque neles estão contidas e, por isso, deles dependem. O direito subjetivo configura-se, assim, como uma faculdade ou um conjunto delas. Prescrição e Decadência 577 3. Exigibilidade e exercício de direitos. Além dessas diversas espécies de direitos, outras noções se la/.cm indispensáveis para o perfeito entendimento do que sejam a prescrição e a decadência, como a de exigibilidade e de exercício desses direitos. Exigibilidade é qualidade do direito que pode ser reclamado em pagamento. É típico das obrigações. Exercício é o uso que se faz de um direito. Com o fim de proteger a segurança e a certeza, valores luiula-mentais do direito moderno, limitam-se no tempo a exigibilidade- e o exercício dos direitos subjetivos, fixando-se prazos maiores ou menores, conforme a sua respectiva função. Para os direitos subjetivos, a lei fixa prazos mais longos, que podem ser suspensos e interrompidos, durante os quais se pode exigir o cumprimento desses direitos, ou melhor, dos respectivos deveres. Já para os direitos potestativos, os prazos são mais rígidos, isso porque esses direitos devem exercer-se em brevíssimo tempo. Tal distinção é fundamental. Para as faculdades jurídicas o tempo não conta. Como simples manifestações dos direitos subjetivos em que se contém, a falta de seu exercício não prejudica esses mesmos direitos. As faculdades jurídicas não se extinguem pelo decurso do tempo. In facultativis non datur praescriptio (nas ações facultativas não corre a prescrição). O tempo é, assim, fator de limitação do exercício dos direitos. E a figura técnica que exprime a extinção dos direitos e suas pretensões pela inércia do respectivo titular no tempo devido. E a chamada caducidade. Esta, em sentido amplo, significa extinção de direitos em geral, e em sentido restrito, perda dos direitos potestativos quando toma o nome de decadência. Seu fundamento é o princípio da inadmissibilidade da conduta contraditória.6 4. Prescrição. Conceito. Fundamento. Objeto. Com os elementos referidos já é possível estabelecer-se o COM ceito da prescrição e da decadência. Prescrição é a perda da pretensão em virtude da inércia do seu titular no prazo fixado em lei (CC, art. 189). Se o lesado pelo descumprimento do direito subjetivo não agir no período legal, invocando a tutela jurisdicional do Estado para a proteção do seu crédito, extingue-se a sua pretensão de exigibilidade quanto ao seu direito subjetivo. De modo geral a prescrição aplica-se apenas aos direitos subjetivos patrimoniais, especificamente às obrigações em sentido técnico. A exceção prescreve no mesmo prazo da pretensão (CC, art. 190). A obrigação prescrita transforma-se, desse modo, em obrigação natural, que é aquela em que o credor não dispõe de ação judicial para exigir do credor o pagamento mas, no caso deste ser feito, pode retê-lo. Para que se configure a prescrição é preciso que se reúnam os seguintes elementos: a) um direito subjetivo lesado, do que necessariamente nasce uma pretensão de ressarcimento; b) a não-exigência do cumprimento do respectivo dever, ou do ressarcimento do dano; c) o decurso do prazo que a lei prefixa. Reunidos tais elementos, estabelece o direito a perda da pretensão não exercida. Justifica-se a prescrição pela necessidade de paz, ordem, segurança e certeza jurídica. Não houvesse tal instituto, a qualquer momento poder-seia voltar a superadas pretensões e a antigos litígios. Pode-se assim dizer que, de modo geral, o que se protege é o interesse público,7 embora, de modo particular, se reconheça que a prescrição é imposta, tendo em vista, principal e imediatamente, o interesse do sujeito passivo e, secundária e mediatamente, o interesse geral. Com a prescrição pune-se também a negligência do titular do direito subjetivo lesado. A prescrição refere-se, portanto, a direito subjetivo já fixado e constituído em relação jurídica preexistente, de natureza patrimonial. A prescrição ocorre, portanto, segundo respeitável opinião doutrinária, apenas no campo das obrigações,8 em direitos subjetivos patrimoniais e disponíveis. Sua razão de ser está em que a prescrição traduz a recusa da ordem jurídica em proteger a negligência do credor, forçando o pronto exercício do seu direito, visando assim manter a certeza e a segurança nas relações jurídicas. A prescrição tem por objeto, então, direitos subjetivos patrimoniais e disponíveis, basicamente as obrigações. Não afeta por isso os direitos personalíssimos, os direitos de estado e os direitos de família, que são irrenunciáveis e indisponíveis. Os direitos ou as relações jurídicas afetadas pela prescrição são objeto de ações condenatórias, que visam compelir o devedor a cumprir sua obrigação ou a puni-lo no caso de inadimplemento. A prescrição não opera, porém, de pleno direito. Deve ser alegada pela parte interessada (CC, art. 193), como exceção, meio de de lesa. 5. Decadência. Conceito. Fundamento. Objeto. Decadência é a perda do direito potestativo pela inércia do seu titular no período determinado em lei. Seu fundamento, como na prescrição, é a necessidade de certe/.a e segurança nas relações jurídicas, com paz e ordem na sociedade. Seu fim predominante é o interesse geral, ao contrário da prescrição em que o interesse básico é individual, do devedor da obrigação. Seu objeto são os direitos potestativos, de qualquer espécie, disponíveis e indisponíveis, direitos que conferem ao respectivo titular o poder de influir ou determinar mudanças na esfera jurídica de outrem, por ato unilateral, sem que haja dever correspondente, apenas uma sujeição. A decadência traduz-se, portanto, em uma limitação que a lei estabelece para o exercício de um direito, extinguindo-o e pondo termo ao estado de sujeição existente. Aplica-se às relações que não contêm obrigações, sendo objeto de ação constitutiva. Na decadência, ainda, o prazo começa a correr no momento em que o direito nasce, surgindo, simultaneamente, direito e termo inicial do prazo, o que não ocorre na prescrição, em que este só corre da lesão do direito subjetivo. O que se tem em mira é, portanto, o exercício do direito potestativo, não a sua exigibilidade, própria da prescrição. C) respectivo prazo é rigidamente fixado, sem possibilidade de interrupção ou suspensão, e também menor do que o da prescrição. A decadência é estabelecida em lei ou pela vontade das partes em negócio jurídico,9 desde que se trate de matéria de direito ---------------------1 A Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, estabelece que o voto é facultativo para os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos f art. 14, 5 \-H, c). 2 Constituição Federal, art. 228, e Lei 8.069, de 13.7.90, art. 104. 3 Constituição Federal, art. l-, item XXXIII. 4 Windscheid, Diritto delle Pandette, p. 183 e segs. 5 André Fontes, A Pretensão como situação jurídica subjetiva, p. (i(> r s 6 Heinrich Lehmann. Tratado de Derecho Civil, p. 522. 7 Aníbal de Castro. A caducidade na doutrina, na lei e. na jurisprudência, p. 26. 8 Dias Marques. Noções Elementares de Direito Civil, p. 108. 9 Aníbal de Castro, op. cit., p. 25. Cf. Código Civil português art. 330°. ---------------------- disponível e não haja fraude às regras legais. Enquanto a prescrição deve ser alegada pela parte interessada, a decadência não é "suscetível de oposição, como meio de defesa".10 6. Prescrição e decadência. Comparação. Tanto a prescrição quanto a decadência são formas de extinção de direitos, constituindo-se ambas em prazos extintivos. No entanto, a doutrina tem procurado estabelecer alguns critérios diferenciadores, apreciáveis quanto às semelhanças e quanto às diferenças. No caso das semelhanças, os pontos de identidade reúnem-se de acordo com três critérios, a própria natureza, o fundamento e o fator determinante. Quanto à sua própria natureza, ambas são institutos jurídicos que se constituem em causa e disciplina da extinção de direitos. Quanto ao seu fundamento, baseiam-se no princípio de ordem pública que visa preservar a paz social, a certeza e a segurança no comércio jurídico. Quanto ao fator determinante, na verdade dois, a inércia dos titulares dos direitos em questão e o decurso do tempo prefixado em lei. No que respeita às diferenças, há também que distinguir: a) quanto ao objeto, a prescrição atinge pretensões de direitos subjetivos patrimoniais disponíveis (direito de crédito), não afetando direitos indisponíveis, como os de personalidade, os de família, os de estado e também as faculdades jurídicas. A decadência atinge direitos potestativos, disponíveis ou indisponíveis. Todavia a prescrição não opera de pleno direito, devendo ser alegada como exceção ou defesa, pelo devedor, ao serlhe cobrada a prestação devida; b) na prescrição, o legislador visa consolidar um estado de fato transformando-o em estado de direito; na decadência, limita-se no tempo a possibilidade de exercício de direito, modificando-se uma situação jurídica;11 c) com a prescrição, pune-se a inércia no exercício de pretensão que devia ser exercida em determinado período; na decadência, priva-se do direito quem deixou de exercê-lo na única vez que a lei concede.12 A decadência seria, portanto, decorrente da inobservância de um "ônus de observância peremptória de um termo, no exercício de um direito potestativo, e a prescrição, a falta do exercício do direito em certo tempo"; d) na prescrição o prazo começa a correr quando o direito subjetivo é violado, momento em que nasce a pretensão do credor de ver cumprida a obrigação, ou ressarcido o dano a ele imposto pelo devedor inadimplente; na decadência, o prazo corre desde que o direito nasce;13 e) a prescrição supõe um direito (pretensão) nascido e eletivo, mas que pereceu pela falta do exercício da ação contra a violação sofrida; a decadência supõe um direito que, embora nascido, não se tornou efetivo pela falta de exercício.14 Quanto ao interesse que se visa proteger, como já exposto, a prescrição destina-se a favorecer, em primeiro lugar, o interesse particular do devedor. A decadência contempla o interesse geral de paz, certeza e segurança nas relações jurídicas. Quanto à natureza das ações em jogo, na prescrição deixa de exercitar-se uma ação que visa uma sentença destinada a permitir que o credorvencedor possa exigir do devedor-vencido a prestação devida ou o seu equivalente valor, condenatória portanto, enquanto na decadência a ação é constitutiva, isto é, dá origem a uma nova situação jurídica; por outro lado, a prescrição inviabiliza a ação creditória mas permite a retenção de eventual pagamento feito pelo devedor, o que transforma a dívida prescrita em verdadeira obrigação natural. No que respeita à fluência dos respectivos prazos, a prescrição interrompese por qualquer das causas legais incompatíveis com a inércia do sujeito; a decadência opera de maneira fatal, atingindo irremediavelmente o direito, se não for oportunamente exercido.IS A decadência não se suspende ou interrompe pelas causas sus-pensivas ou interruptivas da prescrição (CC, art. 207). Os pra/os são peremptórios, fatais. Ainda quanto à função do prazo estabelecido, no caso de prescrição, a lei fixa o período de tempo em que deve exercer-se o direito, enquanto na decadência o prazo limita o exercício do direito. 7. Regras gerais da prescrição. A prescrição está regulada na parte geral do Código Civil, arts. 189 a 206. Suas regras são de ordem geral e de ordem especial. São de ordem geral as pertinentes à sua alegação e à extinção de direitos. Entre as primeiras temos: a) qualquer interessado, pessoa natural ou jurídica, pode alegar a prescrição, em qualquer grau de jurisdição (menos em recurso extraordinário, perante o Supremo Tribunal Federal)16 (CC, art. 193); no caso de incapazes, a prescrição deve ser alegada por seus representantes. A possibilidade de invocar a prescrição constitui direito subjetivo; b) o juiz não pode suprir de ofício a alegação de prescrição, salvo se favorecer a absolutamente incapaz. (CC, art. 194). c) a prescrição começa a correr do momento em que nasce o direito de exigir (pretensão) a reparação do dano. A prescrição iniciada contra uma pessoa continua a correr contra seu sucessor (CC, art. 196), seja herdeiro legatário ou cessionário; é o princípio da accessio temporis] d) prescrito o direito principal, prescritos seus acessórios. Assim, prescrita a pretensão decobrar a dívida, prescritos os juros e os direitos reais que a garantiam como penhor ou hipoteca. e) os relativamente incapazes e as pessoas jurídicas têm ação contra os seus assistentes ou representantes legais, que derem causa à prescrição, ou a alegarem oportunamente. (CC, art. 195). 8. Renúncia da prescrição. Entre as normas gerais da prescrição incluem-se ainda as que dizem respeito à renúncia. O devedor pode deixar de alegar a prescrição que o beneficia, a ela renunciando. É preciso, porém, que a prescrição esteja consumada e que a renúncia não prejudique terceiros. Prescrição consumada é a que teve seu prazo totalmente decorrido. A renúncia é o ato jurídico pelo qual o titular de um direito dele se desfaz,17 constituindo-se em um modo geral de extinção de direito. Como ato jurídico que é, requer agente capaz. No caso da prescrição, a renúncia vale apenas se feita, sem prejuízo de terceiro, depois de consumada, quando já integra o patrimônio do prescribente (aquele em favor de quem ocorre a prescrição) (CC, art. 191). Consumada a prescrição, o devedor tem seu patrimônio acres cido, pois deixa de indenizar o dano causado ao credor, com o não-pagamento da obrigação. Pode, entretanto, renunciar a essa vantagem, desde que não prejudique terceiros, isto é, credores, os quais poderão opor-se a essa diminuição patrimonial que lhes reduz as garantias de recebimento de seu crédito. A renúncia pode ser expressa e tácita. Verifica-se esta quando o interessado pratica atos incompatíveis com a prescrição, como, por exemplo, o pagamento total ou parcial de dívida prescrita, a oferta de garantias ao credor, o pedido de prazo para pagamento, a novação ou qualquer outro ato que implique reconhecimento do direito de credor.18 A renúncia expressa é a que resulta de ato inequívoco do prescribente, para o que não impõe a lei forma determinada. Sendo instituto de ordem pública as partes não podem convencionar, por exemplo, renúncia à prescrição antes de decorrido o prazo legal. Não fosse assim, jamais se consumaria a prescrição, visto que, se admissível renúncia antecipada, uma cláusula inserta nos contratos sempre impediria que a prescrição se verificasse. Também inadmissível convenção sobre aumento ou encurtamento dos prazos prescricionais (CC, art. 192). 9. Impedimento e suspensão. O curso da prescrição pode ser impedido, suspenso e intcrrom pido por fatores diversos, obedecendo o impedimento, a suspensão e a interrupção a normas jurídicas de ordem pública contidas no Código Civil, arts. 197 a 204. Impedimento da prescrição é o obstáculo ao curso do respectivo prazo, antes do seu início. Constitui-se em um fato que não permite comece o prazo prescricional a correr. Suspensão é a cessação temporária do curso do prazo prescricional sem prejuízo do tempo já decorrido. Resulta de fato surgido após o início do curso do prazo prescricional, suspendendo-o enquanto permanecerem tais causas, e prosseguindo quando cessarem. Na suspensão, não se perde o tempo já decorrido. Cessando as causas suspensivas, a prescrição continua a correr, aproveitando-se o tempo anteriormente decorrido. Os prazos de decadência não admitem impedimento, suspensão nem interrupção, a não ser nos casos previstos em lei (CC, art. 207). Suspensa a prescrição, o direito subjetivo permanece inextinguí-vel pelo decurso do tempo, embora inerte seu titular. O devedor fica também impossibilitado de invocar a prescrição contra o credor. Relativamente a terceiros, a suspensão beneficia todos os credores solidários, desde que a obrigação seja indivisível (CC, art. 201). Se não for, pode beneficiar apenas um desses credores. O impedimento e a suspensão são da mesma natureza pelo que, embora com diferenças técnicas, reúnem-se no mesmo complexo de regras, arts. 197-201 do Código Civil. A lei estabelece as hipóteses de impedimento do curso prescricional nos arts. 197; 198, I; 199, I, II e III, e de suspensão, no art. 198, II e III. O art. 197 determina não correr a prescrição entre os cônjuges, na constância da sociedae conjugai; entre os ascendentes e descendentes, durante o poder familiar; entre tutelados e curate-lados e seus tutores e curadores, durante a tutela ou curatela. O art. 198 dispõe ainda que não corre a prescrição contra os absolutamente incapazes, os ausentes do País, em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios e, contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas em tempo de guerra, mas corre a favor deles.19 Na verdade, a primeira hipótese é de impedimento quando se refere aos menores de 16 anos, já que, contra esses, a prescrição jamais poderia começar a correr, podendo ser impedimento ou suspensão nos demais casos, conforme a incapacidade seja anterior ou superveniente ao início do curso prescricional. O dispositivo destina-se a proteger os que não podem exercei seus direitos, de modo absoluto, e os que se ausentam do país, por motivo de serviço ou de guerra (Contra non volentem agere nu n currit praescriptio) .20 O art. 199 completa os dois artigos anteriores, dispondo não correr a prescrição nos casos em que esteja pendente condição suspensiva, em que não esteja vencido o prazo, ou em que seja pendente ação de evicção. No primeiro caso, subordinada a aquisição de um direito à condição suspensiva, somente depois desta reali/ada é que se adquire o direito e seu titular pode agir, sujeitando-se ã prescrição eventual. Enquanto não existir o direito, não pode existir a pretensão e a respectiva ação que a assegura. No segundo caso a observação é semelhante. Enquanto não vencido o prazo prefixado, o direito não se configura. Conseqüentemente, não há pretensão a prescrever. A última exceção do artigo significa que o adquirente de coisa não pode invocar a prescrição em seu favor, se terceiro propuser ação de evicção e enquanto não for essa julgada. O seguinte exemplo ilustra a hipótese: A compra um imóvel a B, o qual, apesar da venda, se nega a entregá-lo ao comprador A, que dispõe de ação competente para exigir a entrega do imóvel e a imissão na sua posse. A ação deve ser proposta no prazo de 10 anos, conforme o art. 205 do Código Civil. Esse prazo não correrá, todavia, se terceira pessoa, C, mover ação de evicção contra A, alegando ser dono do imóvel. Evicção é a perda de um direito sobre uma coisa em virtude de uma sentença que reconhece terceiro como titular desse direito. Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juí/.o criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva (CC, art. 200). Só após decisão criminal, transitada cm julgada, é que começa a correr o prazo prescricional21. O art. 201 é o último a contemplar o impedimento e a suspensão da prescrição. No caso de credores solidários, suspensa a prescrição em favor de um deles, só aproveitam os outros se o objeto da obrigação foi indivisível, que é aquela cuja prestação tem por objeto uma coisa ou um fato não suscetível de divisão, por sua natureza, -------------------------10 Aníbal de Castro, op. cit., p. 152. 11 Cesare Ruperto. Prescrizione e decadenza, p. 422. 12 Francesco Messineo. Manuale di diritto civile e commerciale, I, p. 193. 13 Câmara Leal. Da Prescrição e da Decadência, p. 123. 14 Idem, ibidem. 15 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, I, p. 410. 16 Washington de Barres Monteiro, Curso de Direito Civil. Parte geral, p. 286. 17 Clóvis Beviláqua, Comentários ao Código Civil, art. 161 do Código de 1916. 18 Clóvis Beviláqua, Teoria Geral do Direito Civil, p. 329. 19 Carvalho Santos. Código Civil Brasileiro Interpretado, III p. 408. 20 "Não corre a prescrição contra os que não podem agir voluntariamente." 21 Renam Lotufo, Código Civil Comentado, p. 539. -------------------------por motivo de ordem econômica, ou dada a razão determinante do negócio jurídico (CC, art. 258). Além desses artigos do Código Civil, outros dispositivos existem, contidos em leis extravagantes, referentes a casos de impedimento e suspensão do curso da prescrição. 10. Interrupção da prescrição. Interrupção da prescrição é o fato que impede o fluxo normal do prazo, inutilizando o já decorrido. Só pode ocorrer uma vez (CC; art. 202). Difere do impedimento e da suspensão pelos seguintes aspectos: a) no impedimento, a prescrição não corre; na suspensão, a prescrição corre até ser paralisada. Cessada a causa da paralisação, o curso anterior prossegue, valendo o prazo anteriormente decorrido. Na interrupção, paralisado o curso da prescrição, inutiliza-se o tempo anterior. Desaparecendo a causa interrompida, inicia-se novo prazo prescricional; b) no impedimento e na suspensão, os fatos que as determinam não dependem da vontade humana, são fatos objetivos. Na interrupção, são fatos subjetivos, dependentes da vontade do agente. O Código Civil estabeleceu no art. 202 os fatos que interrompem a prescrição: I) despacho do juiz, mesmo incompetente, ordenando a citação, desde que o interessado a promova no prazo de 10 dias (CC, art. 202, I combinado com o CPC, art. 219, §§ l* e 2*); II) protesto nas condições do inciso antecedente; III) protesco cambial; IV) apresentação do título de crédito ern inventário ou em concurso de credores; V) qualquer ato judicial que constitua o devedor em mora; VI) qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor. A prescrição interrompida recomeça a correr do ato que a interrompeu ou do último do processo para interrompê-la (CC, art. 202, par. único). Na verdade inexiste um processo específico para interromper a prescrição. O processo a que a lei se refere é o mesmo cuja citação inicial interrompeu a prescrição (art. 202, I). Desta forma, a prescrição recomeça a correr a partir do último ato do processo iniciado pela citação qur a interrompeu. Tratando-se de interrupção, inutiliza-se o tempo já decorrido. Quanto à legitimidade para promover a interrupção da prescrição, qualquer interessado pode fazê-lo, por exemplo, o titular do direito em via de prescrever, o seu representante legal, terceiro com legítimo interesse, como o credor do credor contra quem corre a prescrição, o fiador deste credor etc. (CC, art. 203). A prescrição não se interrompe, porém, com a citação nula por vício de forma, por circunduta, ou por se achar perempta a instância ou a ação. Citação nula por vício de forma é a que não obedece aos requisitos que a lei estabelece para a realização desse ato. Comparecendo, porém, o réu para argüir a nulidade, e sendo esta decretada, considerar-se-á feita a citação na data em que ele, ou seu advogado, for intimado da decisão (CPC, art. 214, § 2-}. Citação circundutg é a que não produz efeitos por ter sido feita sem as prescrições legais, tendo caído em desuso essa denominação com o advento cio Código de Processo Civil. Perempção da instância significa a extinção do feito com absolvição da instância. Perempção da ação significa perempção do direito.22 São efeitos da interrupção da prescrição: a) inutiliza-se todo o tempo prescricional decorrido, começando a correr novo prazo. O ato interruptivo é normalmente instantâneo, mas a interrupção se faz por meio de citação pessoal ao devedor. O reinicio da prescrição começa do último ato do processo (art. 202, par. único); b) o direito subjetivo atingido é beneficiado pela interrupção, dilatando-se o período para composição do dano; essa vantagem para o titular do direito subjetivo ofendido corresponde às desvantagens para o prescribente, que vê retardado o benefício que lhe poderia advir da prescrição; c) a interrupção da prescrição por um credor não aproveita aos outros; igualmente, a interrupção operada contra o co-devedor, ou seu herdeiro, não prejudica os demais co-obrigados (CC, art. 204). 1. a interrupção por um dos credores solidários, aproveita aos outros; assim como a interrupção efetuada contra odevedor solidário envolve os demais e seus herdeiros (CC, art. 204, § l-]. 2. havendo solidariedade passiva, a interrupção contra um dos herdeiros de um dos co-devedores só prejudicará aos outros co-her-deiros e aos outros co-devedores solidários, se as obrigações forem indivisíveis (CC, art. 204, § 2*). 3. a interrupção produzida contra o principal devedor prejudica o fiador (CC, art. 204, § 3^). 11. Prazos prescricionais. O Código Civil brasileiro estabelece as regras e os prazos prescricionais na Parte Geral (CC, art. 205 e 206), deixando, em princípio, a disciplina dos prazos decadenciais para a Parte Especial. Os prazos prescricionais dividem-se em duas espécies: Prazo geral (prescrição comum ou ordinária) e prazos especiais (prescrição especial). O primeiro, mais longo e único, destina-se às ações de caráter ordinário. Os segundos, a certos direitos expressamente mencionados. O prazo geral da prescrição está previsto no art. 205 do Código: "a prescrição ocorre em 10 (dez) anos, quando a lei não lhe aja fixado prazo menor." Os prazos especiais podem ser anuais, bienais, trienais, quadrienais e qüinqüenais, como disposto no Código Civil, arts. 206, par. 1°, 2°, 3°, 4° e 5°. 12. Regras gerais da decadência. A decadência, como já visto, difere da prescrição, no sentido de que é a perda de um direito potestativo, pela inércia do seu titular, no prazo que a lei estabelece. Ambas são formas de extinção de direitos. Salvo, porém, disposição em contrário, não se aplicam à decadência as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição (CC, art. 207). No entanto, aplica-se à decadência o disposto nos arts. 195 e 198, I (CC, art. 208). Sendo matéria de ordem pública, dispõe a lei (CC, art. 209) que é nula a renúncia à decadência fixada em lei, sendo de dmitir-se, a contrario sensu, ser válida a renúncia à decadência estabelecida em negócio jurídico pela partes23. No caso de decadência legal, deve o jui/ conhecê-la de ofício (CC, art. 210). No caso de decadência convencional, o interessado, isto é, ;\ parte a quem aproveita, pode alegá-la em qualquer grau de jurisdição, mas o juiz não pode suprir a alegação (CC, art. 211). 13. Os prazos prescricionais em matéria de Direito Intertemporal. Interessante questão de direito intertemporal, diretamente ligada à exigibilidade dos direitos, é o conflito de normas jurídicas no tempo, tendo por objeto a fixação de prazos prescricionais. O art. 6° da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe sobre a matéria, estabelecendo que "A lei em vigor terá efeito imediato c geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido c a coisa julgada." Idêntica disposição encontra-se na Constituição Federal, art. 5°, XXXVI. Consagram-se assim os dois princípios teóricos sobre a matéria, a) o do efeito imediato da lei, no sentido de que a lei nova se aplica imediatamente, isto é, no momento em que se torna obrigatória, e b) o da irretroatividade, segundo o qual os fatos ocorridos na vigência da lei antiga continuam por ela regidos, em nome da segurança jurídica. Quando uma lei nova entra em vigor, configuram-se três espécies de situação jurídica: a) as pretéritas, iniciadas e findas antes da vigência da nova lei, b) as pendentes, iniciadas antes da vigência da lei e ainda não extintas, e c) as futuras, iniciadas após a vigência da lei nova e ainda não concluídas. No que diz respeito aos prazos prescricionais, o problema surge nas situações jurídicas pendentes {jacta pendentia), quando a lei nova incide sobre um prazo em curso. As situações pretéritas, já consolidadas, estão a salvo da lei nova. Com ela, também, consoli-dar-se-ão as situações futuras. Somente no caso das situações em curso é que podem surgir os conflitos de leis no tempo. No caso da nova lei não estabelecer as regras de solução para os problemas advindos da sua vigência, a doutrina aponta os seguintes critérios:24 I — Se a lei nova aumenta o prazo de prescrição ou de decadência, aplicase o novo prazo, computando-se o tempo decorrido na vigência da lei antiga. II — Se a lei nova reduz o prazo de prescrição ou de decadência, há que distinguir: a) se o prazo maior da lei antiga se escoar antes de findar o prazo menor estabelecido pela lei nova, adota-se o prazo da lei anterior; b) se o prazo menor da lei nova se consumar antes de terminado o prazo maior previsto pela lei anterior, aplica-se o prazo da lei nova, contando-se o prazo a partir da vigência desta. Esses critérios foram consagrados no art. 169, 2a alínea da Lei de Introdução ao Código Civil alemão, segundo o qual "se o prazo de prescrição, conforme o Código Civil, é mais curto do que segundo as leis anteriores, computa-se o prazo mais curto a partir da entrada em vigor do Código Civil. Não obstante, se o prazo mais longo determinado pelas leis anteriores expira mais cedo do que o prazo mais curto determinado pelo Código Civil, a prescrição se conserva com o fim do prazo mais longo". Disciplinando a matéria dispõe o Código Civil no seu art. 2.028 que "serão o da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido rnais da metade do tempo estabelecido na lei revogada". Temos, assim, duas hipóteses de aplicação do novo Código às situações jurídicas pendentes: 1) O novo código reduz o prazo de prescrição. a) e já decorreu mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada, como pode ser o caso, por exemplo, da pretensão dos credores de alimentos, de aluguéis, de rendas temporárias e vitalícias, de prestação de juros de quaisquer outras prestações acessórias (CC, art. 206, par. 2° e 3°). Nestes casos, aplica-se o prazo de lei anterior. b) e decorreu menos da metade do tempo estabelecido na lei revogada. Aplica-se o prazo do novo código, computado o prazo já decorrido na vigência da lei antiga. 2) O novo código aumenta o prazo de prescrição É o caso, por exemplo, do art. 206, par. 1°. Aumentando o novo código o prazo de prescrição, aplica-se o novo prazo, computando-se o tempo decorrido na vigência do código anterior. -------------------------------22 Wilson Bussada, Código Civil Brasileiro Interpretado pelos Tribunais, III, p. 172. 23 Renan Lotufo, op. cit. p. 559. 24 Wilson de Souza Campos Batalha, Lei de Introdução ao Código Civil, volume II, Tomo I, p. 229 e segs. --------------------------