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As Revoluções Do Capitalismo, De Maurizio Lazzarato

Maurizio Lazzarato publicou “As Revoluções do Capitalismo” originalmente em 2004, fazendo parte de um movimento contemporâneo de reapropriação de Gabriel Tarde, autor francês que durante a virada para o século XX rivalizou com Émile Durkheim. Na

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  108 Cadernos de Sociologia e Política   Resenha de  As Revoluções do Capita-lismo , de Maurizio Lazzarato   V ictor  M ourão “Jamais on ne débute par l’échange.” Gabriel TardeMaurizio Lazzarato é um filósofo e sociólogo italiano, radicado emParis, que vem dedicando seus esforços na direção de entender ocapitalismo contemporâneo, tendo escrito trabalhos relacionadosa temas como trabalho imaterial e capitalismo cognitivo. Na inter-face entre estas perspectivas, produziu a obra “As Revoluções doCapitalismo” que não se caracteriza por uma discussão econômicano sentido estrito: apenas um dos capítulos aborda esta questão demaneira direta. Ou antes: não se trata de uma análise econômica docapitalismo, mas de uma análise política do mesmo, não enquanto ummodo de produção específico, mas enquanto uma maneira específicade criação de mundos. As duas grandes ascendências intelectuais deste livro são Gabriel Tardee Gilles Deleuze. Basicamente, trata-se de uma leitura deleuziana deTarde, que fez sua própria leitura de Leibniz ao abrir as mônadas àsinfluências recíprocas, aos fluxos de crença e desejo que são funda-mentais para a estruturação da realidade. Outras grandes influênciassão Mikhail Bakhtin, (com sua teoria linguística, que é vista comouma questão ontológica e política por Lazzarato), e Michel Foucault(através de um brilhante e pequeno artigo de Deleuze,  Post Scriptum  Sobre As Sociedades de Controle). O grande antagonista do livro é oMarxismo, acusado de ser um operador totalizante, que subsume acriação do novo, das alternativas possíveis, a um único mundo (26;191-2; 244. 1 1. Todas as referências bibliográcas sem maior indicação se referem à obra  Fórum dos Alunos do IESP 109 Lazzarato tenta operar uma refundação ontológica ao colocar o “acon-tecimento” como ponto focal de invenção social, de criação de mundospossíveis, momento de inauguração do processo de experimentação ecriação. O caráter imprevisível e arriscado do acontecimento é ressal-tado, e o exemplo-mor do acontecimento político são os movimentosde Seattle em 1999. Através desta refundação ontológica, trata-se derefutar a “filosofia do sujeito”, atribuída a autores como Kant, Hegel eMarx, em favor da “filosofia da diferença”, cuja genealogia que passapor Leibniz, Tarde, Bergson, Deleuze e Félix Guattari. “Acontecimen-tos, não mais essências: a ruptura é radical” (54). A recriação conceitual operada por esta corrente desloca as noções deprodução e de trabalho da centralidade teórica dada pelo marxismo,colocando importância fundamental à noção de invenção. O valor(outra noção deslocada) é criado quando se inventa algo; a difusãodesta invenção tem a ver com outro processo, que ficou sobrevalo-rizado pela crítica durkheimiana a Tarde, o da imitação. A produçãode riquezas, ligada à capacidade de produzir (reproduzir – imitar nojargão de Tarde) algo é completamente distinta da operação de criar(produzir-inventar no mesmo jargão) este algo que será difundido(108). Há uma clivagem, em Tarde/Lazzarato, entre fazer e criar, entre(re)produzir e inventar.Na Filosofia da Diferença, cria-se valor quando se inventa algo;produz-se riqueza quando, mimeticamente, acumula-se dinheiro aovender algo para o mercado. São operações completamente distintaspara um tardiano, pois, para ele, há uma concepção imanente do pro-cesso de constituição da realidade. A filosofia do sujeito, ao imaginar a resenhada.    110 Cadernos de Sociologia e Política constituição do mundo como um processo ligado à sua construção pelosujeito, prende-se à oposição sujeito e objeto que, segundo Lazzarato,é um dos resultados possíveis da constituição imanente operada peladifusão de uma invenção. O mundo da filosofia do sujeito é fechado,capturado; Lazzarato tenta afirmar a realidade do virtual, a realidadedos mundos possíveis, para se contrapor à filosofia do sujeito pormeio de uma filosofia da diferença que afirma a multiplicidade (não-totalizante, n-1 na máxima deleuziana) e o “excesso” da realidade.O livro  Monadologia e Sociologia (Tarde, 2007) é talvez a grande fontede inspiração para o autor italiano. Publicado em 1893, quando Tardejá era célebre por seu debate com a Antropologia Criminal italiana(Cesare Lombroso) e pela publicação de seu livro que se tornou omais conhecido em sua época (  Les Lois de L’Imitation ),  Monadologia  é uma reapropriação das concepções ontológicas de Leibniz a serviçoda sociologia então nascente. As mônadas são partículas infinitesimais que compõem o mundo.Cada uma delas é diferente das outras: existir, para uma mônada, édiferir (31). A mônada é, de uma só vez, singular e múltipla; tal quala dobra deleuziana, ela é um ponto que expressa o mundo todo, ouniverso, de um ponto de vista particular, próprio, específico, singular(30-1). Contra uma concepção ontológica dualista (que separa mente emundo, duas faces da mesma moeda) ou monista idealista (que colocaque o mundo é uma representação no interior da subjetividade), Tardedefende um monismo materialista, que admite que “todo o universoexterior é composto de almas outras que a minha, mas no fundo semel-hantes à minha” (Tarde, 2007:65). Há um psicomorfismo universal,uma materialismo espiritualizado, um miriateísmo generalizado – seem Durkheim a Sociedade é posta no ponto vazio deixado pelo DeusCristão secularizado, em Tarde a secularização viria de uma fontemais próxima a Spinoza. Há uma espiritualização da mônada - ela  Fórum dos Alunos do IESP 111 adquire características antes somente dadas às almas, aos espíritos:“Cada mônada [...] tem, em maior ou menor grau, forças ‘psíquicas’: desejo, crença, percepção, memória” (29).Dada sua diferença universal, como é possível pensar a organização domundo, como é possível a coordenação entre a multitude de mônadasque compõem o mundo? Na acepção leibniziana, o acordo entre elasera garantido por Deus, que as arranjou de determinada maneira paraque não houvesse o caos. A explicação desta organização, para Tarde,não será dada por intervenção (ou prevenção) divina: a abertura dasmônadas (completamente fechadas e entregues a si na acepção ante-rior) à influência mútua é o que permitirá que alguma ordem, aindaque não estável, seja efetuada entre elas. “O universo não é o resultado deuma composição de movimentosmecânicos, mas de um vitalismoimanente da natureza. É sobre talbase de materialismo espiritualizadoque se deve compreender que ‘todacoisa é uma sociedade’, ou seja, todoindivíduo (físico, vital, humano)constitui a composição de uma in-finidade de outros indivíduos que sejuntam, sob formas políticas sempresingulares, fundadas nos desejos ecrenças” (29). Daí provê-se o objetivo das ciências, em especial da sociologia: “Apre-ender o infinito dentro da finitude” (54), ir em direção ao infinitesimalpara explicar a realidade, quantificar os fluxos de crença e desejo queperpassam os indivíduos (as mônadas) para que a composição imanentedo mundo (social, no caso da sociologia) possa ser explanada. Há umaartificialidade e um construtivismo infinitesimal, pois uma mônada, porsi só, não pode nada. “A força de uma mônada deve compor-se com ade outras mônadas para aumentar sua potência através de relações deapropriação, de captura” (40). Uma mônada compõe força com outras  112 Cadernos de Sociologia e Política ao agir sobre elas, ao capturá-las, aos possuí-las (  avoir  ): daí entende-sequando Lazzarato diz que o consumo trata de pertencimento a mundos,de adesão a universos (100).Na famosa definição de Tarde, “A sociedade é ‘a possessão recíproca,sob as mais variadas formas, de todos por cada um’” (36), podemosperceber a também aclamada passagem do ser ( être ) para o ter (  avoir  ),da filosofia do sujeito para a filosofia da diferença. Nessa possessãorecíproca, captura mútua que estabelece fluxos de crença e de desejoque constroem imanentemente o mundo, se estabelece uma maneiradiferenciada de pensar o social, pois a cooperação e a coordenaçãoentre cérebros precede as relações entre trabalhador e capitalista,explorado e explorador, relações estas que são fundadas na primeirarelação de cooperação e coordenação. É assim que a neomonadologiaconsegue se distinguir da economia política e do marxismo, tirando aprecedência da divisão do trabalho e colocando-a na criação e efetu-ação de mundos e do sensível (33). “O todo social é produzido coma ajuda de uma multiplicidade desingularidades, que agem umas sobreas outras, aproximando-se cada vezmais, propagando hábitos corporaisou mentais, às vezes lentamente, àsvezes com a rapidez de difusão deuma espécie de contágio viral atravésda rede formada pelas mônadas”(43).  Assim, há dois movimentos fundamentais (há ainda um terceiro, o daoposição-hesitação, que ocupa lugar menor na filosofia de Tarde e nolivro de Lazzarato) de composição do mundo formado por mônadas:a invenção, a criação de singularidades, novos hábitos e crenças, e aimitação, a propagação destas singularidades, por meio da repetição,através de fluxos que permitem que as mônadas se possuam.