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Forças Armadas, Transição, Verdade Brasil E Cone Sul

FORÇAS ARMADAS, TRANSIÇÃO, VERDADE BRASIL E CONE SUL Aluno: Arthur Prufer de Queiroz Campos Araújo Orientadora: Maria Celina Soares D`Araujo Introdução O processo de redemocratização do país foi feito

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FORÇAS ARMADAS, TRANSIÇÃO, VERDADE BRASIL E CONE SUL Aluno: Arthur Prufer de Queiroz Campos Araújo Orientadora: Maria Celina Soares D`Araujo Introdução O processo de redemocratização do país foi feito de forma lenta, gradual e controlada. Para que não houvesse cisões e para que os valores militares fossem preservados, tal transição foi organizada pelo próprio governo militar. A partir desse pensamento se materializou a Lei da Anistia (n de 28 de Agosto de 1979). A lógica do esquecimento passa a superar a busca pela verdade e qualquer ação governamental do período militar de cunho político é devidamente esquecida. A lógica corporativista das Forças Armadas, principalmente a do Exército, mantém-se desde então. A própria busca pela verdade que materializa a justiça de transição é realizada a partir de uma série de obstáculos causados por esse comportamento das instituições militares que se mostram ainda com muito poder de lobby e de agenda, mesmo não tendo mais um poder político institucionalizado. Em comparação com outros países do Cone Sul, o Brasil tem um processo de justiça de transição tardio. Motivado por parentes e amigos de desaparecidos políticos o presidente Fernando Henrique Cardoso cria a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos em 1995 (Lei n de 04 de dezembro), ou seja, dez anos após o fim da ditadura e dezesseis anos após a Lei da Anistia. Tal lei contribuiu para o início do processo de reparação no país, visto que responsabilizava o Estado, não as instituições militares ou os governantes, além de admitir que havia cidadãos mortos e desaparecidos e dispor-se a solucionar a situação legal dessas pessoas e a amparar as suas famílias. A caminhada da justiça de transição no país esbarrava na força das instituições militares e na falta de importância da temática dos direitos humanos na sociedade civil brasileira. Os arquivos da ditadura não eram abertos e mantinha-se a lógica do esquecimento apesar de a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos estar em funcionamento. Organizações internacionais começavam a pressionar o país por uma resolução do problema alegando que crimes contra a humanidade não poderiam ser deixados impunes apesar da Lei da Anistia. Tal questionamento causou reações de oficiais da reserva que alegavam que tal lei fora feita para os dois lados (agentes do Estado e opositores do regime) e davam o assunto por encerrado. A Lei n /02 surge como uma resposta a essas pressões internacionais criando a Comissão da Anistia e junto dela suas caravanas que percorriam os estados brasileiros. Essa (comissão) seria encarregada de analisar os pedidos de indenização formulados por pessoas impedidas de exercer atividades econômicas e profissionais por motivação política. Essa atividade novamente engendrava um sentido reparador às vítimas do regime militar. Além disso, o reconhecimento marcava uma resposta àqueles que clamavam por memória e justiça. A partir de então, surge a necessidade de se coletar arquivos do regime militar referentes à memória da repressão. Pelo programa Memórias Reveladas de 2008, todos os órgãos públicos começaram a enviar seus arquivos de censura interna e de informações ao Arquivo Nacional, à exceção das Forças Armadas. Tal atitude marca novamente a 1 necessidade de se proteger a instituição e os irmãos de farda. Apesar disso, permanece crescente a demanda por verdade e justiça. A criação de uma Comissão Nacional da Verdade, a partir da Lei n de 18 de novembro de 2011, com o objetivo de promover a apuração e o esclarecimento público das graves violações de direitos humanos praticadas no Brasil entre 1946 e 1988 foi uma resposta a essa demanda e um passo importante no processo de justiça de transição do país. Desde sua instalação em maio de 2012, o decorrer dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, até o seu relatório final em dezembro de 2014, causaram grande desconforto nas Forças Armadas. A possibilidade de punição e de consequente atrito com a instituição foi respondida com uma série de ataques à própria Comissão e à sua constituição. O corporativismo militar levantou-se para proteger algo que é muito caro ao próprio ethos do integrante das Forças Armadas, isto é, sua conduta ilibada e heroica. O término dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e a entrega de seu relatório final representou mais um passo no tardio processo de justiça de transição no Brasil. Instalada em 2012, 33 anos após a Lei da Anistia, tal Comissão não tinha como objetivo o julgamento de possíveis atores culpados por atos arbitrários, autoritários e criminosos da época do regime que durou de 1964 até 1985, mas buscava esclarecer os fatos e revelar a verdade a partir de evidências empíricas. Sendo entendidas como ator político que tomou para si a direção do regime ditatorial, as Forças Armadas acabaram sendo o principal alvo da Comissão. 1 Dessa forma, toda ação da CNV acaba por atingir diretamente as instituições militares e coloca em questão uma série de posicionamentos históricos. De forma esperada, as Forças Armadas acabaram reagindo e estabeleceram um padrão na defesa das acusações. Atacaram os atores que compunham a Comissão, questionaram seu propósito e o decorrer do processo de investigação e apuração foi tratado como mentiroso e como tentativa de recontar a história a partir de mentiras. Objetivos A presente pesquisa tem como objetivo focar na argumentação, por parte das Forças Armadas, que deslegitima os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade e consequentemente todo o processo de justiça de transição do Brasil. É preciso entender que essa argumentação repete-se metodicamente durante nossa história sempre que a ação política das instituições militares é colocada em debate, especialmente, desde as justificativas para o golpe militar de 1964 até as manifestações públicas contrárias à CNV. Metodologia A pesquisa buscou fazer uma análise qualitativa dos posicionamentos públicos das Forças Armadas. Para obter material empírico seriam necessários canais de comunicação com os diferentes órgãos que representassem o pensamento das instituições. Por existirem poucas manifestações públicas de caráter político dos militares da ativa, devido às proibições para tanto, tais informações precisariam ser adquiridas com militares da reserva. Tendo em vista uma amplitude temporal reduzida para a pesquisa, a realização de entrevistas foi descartada. Foi necessário pensar em outro tipo de abordagem. A fim de alcançarmos um material mais vasto, as soluções encontradas foram os canais oficiais dos militares da reserva e o principal meio utilizado foi o site oficial do Clube Militar (clubemilitar.com.br). Tendo em vista o consenso e coesão de pensamento que tal canal possui em relação às Forças Armadas em si, o site do Clube Militar materializou-se como uma ferramenta própria para os intuitos da pesquisa. 1 Para a reconstituição desse processo, ver, por exemplo, D Araujo, 2014 e Brito, No site há uma sessão intitulada notícias e artigos, na qual são postadas tanto artigos escritos para o próprio site e por seus membros, assim como há artigos de jornais, revistas e blogs. Entende-se que aqueles artigos escritos por civis merecem ser levados em consideração para a pesquisa por possuírem respaldo da instituição, caso contrário, não estariam presentes no site. Enquanto a CNV desenvolvia seus trabalhos e provocava nova discussão pública sobre o desenrolar de suas atribuições, até a publicação de seu relatório final em dezembro de 2014, o acompanhamento da reação das Forças Armadas, por meio daqueles veículos oficiais, foi realizado e uma quantidade considerável de material empírico foi reunida. Desenvolvimento No começo do trabalho examinamos uma reportagem do jornal O Globo do dia 23/09/2014 na qual o general da reserva Augusto Heleno Pereira se posiciona contra um ofício da Comissão Nacional da Verdade reconhecendo a prática de tortura pelos militares. O General diz que (...) em nenhum momento as Forças Armadas reconhecem a tortura. O reconhecimento aconteceu por parte do Ministério da Defesa. Esta história de querer que as Forças Armadas peçam desculpa... é lógico que ninguém vai aceitar isso aí. Não tem sentido essa orquestração. Eles vão pedir desculpas pelos inocentes que eles mataram? Anistia é esquecimento. A partir dali, começa vida nova. Não adianta resolver o passado só com um lado da história. Tudo isso é esquecido para transformar as Forças Armadas em vilã. O general também critica o pagamento das indenizações às vítimas, decisão anterior à criação da CNV: O governo já pagou polpudas indenizações pelo fato de ter reconhecido que o Estado brasileiro teria desrespeitado os direitos humanos. Algumas delas, estapafúrdias. Mas já estão pagas. Esta comissão não tem nenhuma credibilidade, pois só trabalha para um lado. Eles querem transformar guerrilheiros, assaltantes e assassinos em bonzinhos. Estão querendo fazer uma nova caça às bruxas. A ênfase desse posicionamento serviu como marco inicial da pesquisa, mostrou uma diretriz interpretativa por parte das Forças Armadas durante todo o decorrer do período em que a Comissão funcionou e indicou uma linha argumentativa bastante sólida. Tendo em mente o forte conteúdo simbólico dessa matéria, foi feito um acompanhamento dos artigos e relatos publicados no site do clube militar e das notícias referentes ao progresso dos trabalhos da CNV até a publicação do seu relatório final. Além disso, foi feita uma busca por manifestações e opiniões antigas, também no site do clube militar, referente a todo o desenvolvimento dos trabalhos da CNV desde a sua constituição. Quanto ao relatório final da CNV o Clube Militar, por meio de seu presidente, o general da reserva Gilberto Rodrigues Pimentel, soltou uma nota bastante elucidativa criticando e taxando o texto final como risível e parcial. Adjetivando a Comissão como espúria, indica que a entidade que alterou a seu bel-prazer sua missão, o objeto da lei e o prazo em que ocorreram os fatos a investigar, tudo através de decisões internas, legislando em causa própria sem que os poderes desrespeitados reagissem, perdeu, na origem, a imparcialidade que devia orientar seus trabalhos e, consequentemente, sua credibilidade. Em seguida o general Pimentel destaca algo que se mostrou recorrente em todos os posicionamentos coletados nesse estudo. Para as Forças Armadas representadas no Clube Militar, a CNV tem caráter revanchista e busca alterar a Lei da Anistia para que, dessa forma, possa punir os agentes de Estado que evitaram e protegeram o país de um golpe comunista. Além disso, classifica como parcial e até mesmo mentiroso o relatório já que os angelicais terroristas, merecem toda a proteção e indenizações criadas ou a criar. Quando a CNV fora instituída, a então Ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário (PT), concedera uma entrevista ao jornal Correio Braziliense (23/02/2012), na qual dizia que a Comissão poderia dar início a um processo de condenações semelhante ao 3 de outros países da América Latina. Tal fato causou comoção entre os clubes militares que soltaram uma nota de repúdio, defendendo as Forças Armadas através da Lei da Anistia. Todas essas manifestações públicas contrárias à CNV se articulam de maneira repetitiva. Os oficiais da reserva a todo momento classificam a Comissão com adjetivos como mentirosa, parcial, revanchista, míope e esquerdista. O que se pergunta é: de onde vem essa reação tão explosiva e defensiva por parte das Forças Armadas? Em um primeiro momento percebe-se que a Lei da Anistia é utilizada como defesa. A lógica do esquecimento, pela qual a lei se materializou, foi fundamental para que houvesse a coesão necessária, nas Forças Armadas e na sociedade, para que o processo de redemocratização tivesse êxito, segundo os militares. Dessa forma, mexer em certas cicatrizes e fazer isso de forma revanchista poderia representar um perigo para a democracia do país. A Lei da Anistia, recorrentemente citada, não parece ser a principal razão pela qual os militares criticam tanto a CNV. O que está em questão é a própria posição social das Forças Armadas enquanto instituição ilibada e detentora de tanto prestígio perante a sociedade brasileira. O que confere tal status e é parte fundamental do ethos militar, é o caráter heroico e salvador do qual a instituição goza. A explosão contrária à CNV, a Lei da Anistia como bengala argumentativa, só podem ser explicadas se levarmos em consideração as justificativas dadas ao ato fundador desse processo. É preciso olhar para as justificativas do golpe de Para que isso fosse possível, usamos a Revista do Clube Militar referente à comemoração dos 50 anos do golpe, feita em edição especial com o sugestivo título 31 de março de A Verdade. O título é de grande impacto pois durante toda a publicação a CNV é tratada como deturpadora da história, orquestradora de fatos e veículo de propaganda política de esquerda. Na própria parte destinada à opinião do presidente do Clube Militar, general-de-exército Renato César Tibau da Costa, isso fica bastante claro. O General diz: Meio século já se passou. Já há um distanciamento temporal para que verdadeiros historiadores comecem a estudar o período, embasados em fontes primárias e não em discursos deturpados de propaganda esquerdista, os quais infestam, inclusive, livros escolares e publicações de órgãos oficiais. 2 Percebe-se com essa declaração que as Forças Armadas, por meio do Clube Militar, não conferem legitimidade científica para as pesquisas e publicações da CNV. Os historiadores e pesquisadores da Comissão possuem, segundo esses representantes das Forças Armadas, alta carga de valor ideológico e por isso não podem fazer parte dela. Para as Forças Armadas, a história e a pesquisa possuem um valor positivista muito forte e por isso acabam sempre encontrando alto grau de posicionamentos ideológicos. Para os militares, os bons historiadores são aqueles que taxam o marxismo e o comunismo como ideia natimorta e todos aqueles contrários às Forças Armadas são Marxistas, Comunistas, esquerdistas. Além disso, a justificativa dos militares para 1964 sempre foi veiculada como uma resposta ao povo brasileiro que clamava por ajuda. Para eles, as Forças Armadas Brasileiras nunca foram intrusas na História. Seus ocupantes não constituem uma casta distante do povo. Ao contrário: são povo fardado! Legalistas por natureza, sempre que tiveram que intervir na vida nacional foi a chamado da Nação. Pois só esta é eterna! Governos passam. Muitos, a poeira do tempo encarrega-se de encobri-los, como inglórios e menos dignos. Às vezes, são falados apenas pela herança maldita que legaram. Daí por que o Movimento de 31 Mar 64 foi o desfecho de uma situação insustentável, uma revolução cívico-militar. Sem sangue! Os militares, pelo bem da Nação, atenderam ao apelo angustiante da sociedade civil. E, como escreveu o legendário Marquês do Herval, o heróico General Manuel Luiz Osório, A farda não abafa o cidadão no peito do soldado. 3 2 Ver Revista Clube Militar Edição 452 página 2 3 Ver Revista Clube Militar Edição 452 página 8 4 Para sustentar esse ponto de vista, a edição número 452 da revista do clube militar ainda coloca uma série de manchetes de jornais de grande circulação. O jornal O Globo de 1964 do dia 2 de abril, tem como título sugestivo Ressurge a Democracia, para mostrar como a sociedade civil apoiava o movimento. Embora essas justificativas sejam conhecidas, chama atenção o fato de as Forças Armadas não admitirem erros praticados durante o período da ditadura militar. O fato de serem a resposta a uma demanda social justifica as ações que fizeram durante aquele tempo, inclusive as mais fortes e mais cruéis. A instituição tem que ser defendida e os heróis do passado precisam ter suas ações justificadas, mesmo que isso queira dizer esquecer o que se passou e não dar valor à memória. Nesse sentido, percebe-se que as Forças Armadas repudiam qualquer tipo de investigação ao período no qual estavam no poder. Como tinham respaldo da sociedade para chegar ao poder poderiam tomar todas as medidas necessárias para salvarem o Brasil. A história militar não pode ser manchada, segundo eles por esquerdistas que buscam revanchismos. Conclusões A pesquisa constatou uma repetição discursiva por parte das Forças Armadas sempre na tentativa de descaracterizar os trabalhos da CNV. Alegando uma cegueira histórica, viés de esquerda e se apoiando na Lei da Anistia de 1979, todo o trabalho de pesquisa realizado pela Comissão é descaracterizado. Para a instituição Forças Armadas, a Lei da Anistia precisa se materializar a partir da lógica do esquecimento. Essa dinâmica precisa ser feita de forma bilateral, tanto por parte do Estado (comandado pelos militares), assim como por aqueles que lutaram contra o regime vigente. Além disso, a constituição da direção da CNV não estaria caracterizada pela neutralidade. Para os militares, a comissão visaria denegrir a imagem dos heróis nacionais que responderam ao clamor da sociedade civil para salvar o País. A CNV teria sido articulada por uma presidente que fez parte da luta armada durante o regime militar e por isso seus integrantes estariam contaminados por um viés ideológico de esquerda. Toda argumentação baseia-se na ideia de que em 1964 houve uma Revolução. Para eles, todas as atitudes tomadas foram necessárias devido ao contexto nacional e internacional da ameaça comunista. Aqueles militares lutaram para salvar o Brasil e, além disso, responderam a um clamor popular que temia pela democracia e pela soberania do país. Percebe-se portanto, segundo essas fontes, que a instituição e seus heróis precisam ser defendidos diante dos ataques da CNV. O forte laço corporativista que sempre caracterizou as Forças Armadas mantém-se até hoje. A pesquisa então, tem êxito ao revelar o que tem sido uma tendência histórica das Forças Armadas. Mostra uma instituição que não é mais ator dirigente da política, mas que ainda possui forte influência e ressonância no pensamento e no imaginário social. Tal força acaba por tornar o processo de justiça de transição mais lento e gradual, assim como foi a redemocratização do país. Referências [1]. D ARAUJO, Maria Celina (2010). Militares, Democracia e Desenvolvimento: Brasil e América. 1 edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, [2]. Notícias e Artigos: 5 [3]. D ARAUJO, Maria Celina (2014). Justiça de transição tardia e inconclusa no Brasil: impactos sobre a violência. Paper apresentado na Lasa 2014, Chicago. [4]. Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade: [5]. Jornais Impressos: O Globo e O Estado de São Paulo [6]. Brito, Alexandra Barahona de Brito (2009). Justiça transicional e a política da memória: uma visão global. In Revista Anistia 01 [7]. Revista do Clube Militar. 31 de Março de 1964 A Verdade. Edição Especial 6